SALMO 𝟡𝟡

O Senhor reina, tremam os povos; ele está entronizado sobre os querubins, estremeça a terra.

O Senhor é grande em Sião, e exaltado acima de todos os povos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 99


§ 99:1  O Senhor reina, tremam os povos; ele está entronizado sobre os querubins, estremeça a terra.

§ 99:2  O Senhor é grande em Sião, e exaltado acima de todos os povos.

§ 99:3  Ł Louvem o teu nome, grande e tremendo; pois é santo.

§ 99:4  És Rei poderoso que amas a justiça; estabeleces a eqüidade, executas juízo e justiça em Jacó.

§ 99:5  Exaltai o Senhor nosso Deus, e prostrai-vos diante do escabelo de seus pés; porque ele é santo.

§ 99:6  ɱ Moisés e Arão entre os seus sacerdotes, e Samuel entre os que invocavam o seu nome, clamavam ao Senhor, e ele os ouvia.

§ 99:7  Ɲ Na coluna de nuvem lhes falava; eles guardavam os seus testemunhos, e os estatutos que lhes dera.

§ 99:8  Ŧ Tu os ouviste, Senhor nosso Deus; tu foste para eles um Deus perdoador, embora vingador dos seus atos.

§ 99:9  Exaltai o Senhor nosso Deus e adorai-o no seu santo monte, porque o Senhor nosso Deus é santo.


O SALMO 99


SERMÃO AO POVO (Proferido em Cartago na basílica Celerina)



§ 1
1 Ouvistes, irmãos, cantar o salmo, que é curto, mas não obscuro. Asseguro-o para não terdes medo de cansaço. Vejamos, contudo, atentamente — com cuidado tanto maior quanto mais livres estamos — o significado das palavras como soam de maneira evidente, a fim de apreendermos, à medida do dom de Deus, seu sentido espiritual. A voz de Deus, seja qual for o instrumento que emprega, é sempre a voz de Deus e somente ela apraz a seus ouvidos. Por isso, também nós ao falarmos lhe somos agradáveis, se é ele quem fala por nossos lábios.



§ 2
2 “Salmo de confissão”.

Tal a inscrição, o título.

Salmo de confissão”.

Poucos versículos, carregados de muito sentido. Germinem em vossos corações estas sementes e prepare-se o celeiro para a colheita do Senhor. Este salmo de confissão constitui uma palavra de ordem, um convite a apresentarmo-nos jubilosos diante de Deus. Não se dirige apenas a um recanto da terra, ou a uma só habitação ou grupo humano. Mas, como a bênção se espalhou por toda a parte, de toda a parte exige o júbilo.



§ 3
2 “Jubilai, pois, diante do Senhor, terra inteira”.

Neste momento, a terra inteira ouve a minha voz? No entanto, a terra inteira ouviu essa voz. A terra inteira jubila diante do Senhor; e a parte que ainda não jubila, jubilará um dia. Estende-se a bênção, a Igreja começa em Jerusalém (cf Lc 24,47), propaga-se por todas as nações, prostra por toda parte a impiedade, estabelece a piedade. Misturam-se bons e maus. Há maus na terra inteira, bons em toda a terra. Nos maus a terra toda murmura, nos bons jubila a terra inteira. Que é jubilar? O título deste salmo chama a atenção para essa palavra. Intitula-se:

De confissão”.

Que significa jubilar em confissão? Encontra-se em outro salmo a expressão:

Feliz o povo que entende o júbilo(Sl 88,16).

Deve ser algo de grandioso, porque torna felizes os que o entendem. O Senhor nosso Deus, que torna felizes os homens, conceda-me entender o que tenho a dizer e vos dê compreender o que ouvis:

Feliz o povo que entende o júbilo”.

Acorramos, pois, ao encontro desta felicidade. Entendamos o que é jubilar. Não o comecemos antes de haver entendido. O que adianta jubilar, atender ao salmo que diz:

jubilai diante do Senhor, terra inteira” e não entender o que é júbilo, de tal modo que só a voz jubile, não o coração? O entendimento é voz do coração.



§ 4
Vou repetir o que já vos é notório. Quem jubila não pronuncia palavras. O júbilo é som alegre, sem palavras. É a voz da alma, transbordante de alegria, a exprimir quanto possível seu afeto, sem dar-lhe sentido preciso. O homem, com alegria e exultação inexprimíveis e initeligíveis, deixa tranbordar sua alegria, sem palavras. Demonstra na voz a alegria, mas repleto de excessivo gáudio, não o explica oralmente. Verifica-se o fato, mesmo nos que cantam canções desonestas. Sem dúvida, não é dessa espécie o nosso júbilo. Jubilamos na justiça e eles na iniqüidade. Nós na confissão, eles na confusão. Mas, a fim de entendermos bem o que digo, basta relembrardes um fato conhecido. Os trabalhadores do campo são os que mais se dão ao júbilo. Os ceifeiros, os vindimadores, os que colhem frutos, contentes com a abundância da messe, satisfeitos com a fecundidade e a fertilidade da terra, cantam exultantes; entremeiam nos cânticos sons sem palavras, em expansão alegre. A isso denominam júbilo. Se alguém não o sabe, por não ter aplicado a atenção ao fato, advirta agora. Oxalá não encontre o que advertir, não descubra Deus a quem punir. Como, no entanto, não cessam de nascer os espinhos, reconheçamos o júbilo reprovável nos que se regozijam mal, e a Deus ofereçamos o júbilo merecedor de coroa.



§ 5
Quando é, pois, que jubilamos? Quando louvamos o que é inefável. Observamos toda a criação, a terra, o mar e o céu, e tudo o que eles encerram. Notamos a origem peculiar a cada coisa, suas causas; vemos a força germinal das sementes, o modo bem ordenado de nascer e de subsistir, o tempo de morrer. Verificamos que os séculos perfazem seu percurso impertubáveis, que as estrelas parecem girar do oriente ao ocidente, a marcar o decurso dos anos. Percebemos também a duração dos meses, a extensão das horas. Além disso, existir, em todos os animais, algo de invisível, chamado espírito ou alma, que os induz a desejar o prazer e fugir da dor, assim como certo vestígio de unidade, o instinto de conservação. Constatamos ainda possuir o homem algo de comum com os anjos de Deus (não o que lhes é comum com os animais, como viver, ouvir, ver, etc.), mas sim o conhecimento de Deus, peculiar à mente, a qual distingue o bem do mal, da mesma forma que vê o olho a diferença entre branco e preto. Após considerarmos as criaturas que, de algum modo, nomeamos e percorremos, interrogue-se a alma a si mesma: quem fez tudo isso? Quem criou todas as coisas? E entre elas, quem te criou? Que são esses seres que consideras? Quem és tu que meditas? Quem as fez para serem vistas e a ti que as observas? Quem é ele? Dize-o. Pensa antes de explicar. Às vezes pode-se pensar em alguma realidade, sem conseguir exprimi-la; de modo nenhum, porém, falar o que não se consegue pensar. Por conseguinte, pensa nele, antes de dizer o que ele é. Para pensares, acerca-te dele. Se queres ver bem um objeto para descrevê-lo, aproximas-te para olhar, a fim de não te enganares, observando só de longe. Vemos os corpos com esses olhos corporais; a Deus, contemplamo-lo com a mente, consideramos e vemos com o coração. Qual o coração que o vê? “Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus(Mt 5,8).

Escuto, creio, entendo como posso, que o coração vê a Deus, que só os corações puros podem ver a Deus. Mas, ouço igualmente outra passagem da Escritura:

Quem pode dizer: Purifiquei meu coração, de meu pecado estou puro”? (Pr 20,9).

Examinei quanto pude as Escrituras; notei as corporais no céu e na terra, as espirituais em mim mesmo que falo, que animo meus membros, que emito a voz, movo a língua, pronuncio palavras e percebo o sentido das mesmas. E quando chego a compreender-me a mim mesmo? Como então entender o que está acima de mim. Não obstante, ao coração humano está prometida a visão de Deus e ele é convidado a certa purificação. Diz a Escritura: Prepara-te para ver aquele a quem amas antes de ver. A quem não é suave ouvir falar de Deus, pronunciar seu nome, a não ser o ímpio muito longe, muito distante? “Eis que perecerão os que se afastam de ti”.

E prossegue:

Exterminaste os que de ti apostatam(Sl 72,27).

E nós? Eles estão longe, nas trevas, com os olhos de tal modo ofuscados pelas trevas que não apenas não anelam pela luz, mas até a odeiam. Nós também estávamos longe. Que nos diz a Escritura? “Acercai-vos dele e sereis iluminados(Sl 33,6).

Desagradem-te tuas trevas e assim te aproximes e sejas iluminado; condena o que és, a fim de mereceres tornar-te o que não és. És iníquo e deves ser justo. Jamais obterás a justiça enquanto a iniqüidade te agradar. Esmaga-a no coração e purifica-o; expele-a do coração, onde quer habitar aquele a quem desejas ver. Vai se aproximando, pois, a alma humana, o homem interior, criado novamente à imagem de Deus. Fora criado à imagem de Deus; tanto se distanciara quanto se tornara dessemelhante. Não são as distâncias que nos afastam ou nos aproximam de Deus. Dessemelhante, foste para longe; se te fizeste semelhante, ficaste próximo. Vê de que maneira quer o Senhor que nos aproximemos. Primeiro faz-nos semelhantes e depois próximos. Sede como “vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos(Mt 5,45).

Aprende a amar o inimigo, se dele te queres precaver. À medida que em ti crescer a caridade transformando-te, chamando-te novamente à semelhança de Deus, o amor se estenderá até os inimigos e te tornarás semelhante àquele que faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, não só sobre bons, e cair a chuva não apenas sobre os justos, mas sobre justos e injustos. Quanto mais te assemelhares, mais progredirás na caridade e começarás a perceber a Deus. A quem experimentas? Aquele que a ti vem ou aquele ao qual voltas? Ele jamais se afasta de ti. Deus de ti se afasta quando tu dele te apartas. Todas as coisas estão igualmente presentes para um cego e um que goza da visão. Estando num mesmo lugar um cego e um que vê, cercam-nos os mesmos seres. Um está presente e o outro acha-se ausente. Ambos no mesmo local: um presente, outro ausente. Não são as coisas que se aproximam ou se afastam. Os olhos é que são diferentes. O cego, extinta a faculdade de apreender a luz que tudo reveste, em vão se acha em presença daquilo que não vê. Seria mais exato dizer que se acha ausente do que presente. É com toda razão que se diz estar ausente do lugar que sua percepção não alcança. Ausentar-se é alhear-se, interceptar os sentidos. Ao invés, Deus está presente em toda a parte, está todo em toda parte.

A sabedoria alcança com vigor de um extremo ao outro e governa o universo com suavidade(Sb 8,1).

A Sabedoria, o Verbo, luz de luz, Deus de Deus é igual a Deus Pai. Que desejas ver? Não está longe de ti aquele que queres ver. O Apóstolo afirma que não está longe de nós:

Nele, com efeito, temos a vida, o movimento e o ser(At 17,27.28).

Enorme miséria é estar longe daquele que está em toda parte!



§ 6
Assemelha-te, pois, através da piedade; conhece e ama.

Sua realidade visível torna-se inteligível, através das criaturas(cf Rm 1,20).

Contempla, admira as coisas criadas, procura o Criador. Se fores dessemelhante, serás repelido; se semelhante, exultarás. E quando pela semelhança começares a te aproximar e a pressentir melhor a presença de Deus, à medida que em ti crescer a caridade, porque “Deus é amor(1Jo 4,8), sentirás algo que dizias e não podias exprimir. Antes de experimentar, julgavas poder falar de Deus; começas a perceber, e verificas ser impossível traduzir o que experimentas. Sabendo ser impossível explicar o que percebes, calarás? Não louvarás? Emudecerás os louvores de Deus e não darás graças àquele que se deu a conhecer? Louvavas quando buscavas; ao encontrares, calarás? De modo nenhum. Não serás ingrato. Devem-se-lhe honra, respeito, muito louvor. Considera o que és. Terra e cinza. Vê quem mereceu e o que mereceu ver. Quem? E o quê? O homem a Deus. Reconheço. Não é mérito do homem, mas trata-se de misericórdia de Deus. Louva, portanto, aquele que foi compassivo. Louvar, mas como? O pouco que chego a experimentar é “em espelho e de maneira confusa(cf 1Cor 13,12); não consigo explicá-lo. Escuta, contudo, o salmo:

Jubilai diante do Senhor, terra inteira”.

Ouviste o júbilo da terra inteira, se teu júbilo se expande diante do Senhor. Jubila diante do Senhor. Não dividas teu júbilo por este ou aquele objeto. Enfim, as criaturas podem ser descritas de algum modo. Só ele é inefável, ele que “disse e tudo foi feito(cf Sl 32,9).

Disse e fomos feitos; mas nós não podemos dizer o que ele é. Seu Verbo, no qual ele nos criou, é seu Filho para que nós, em nossa fraqueza, de algum modo o exprimíssemos, ele se fez fraco. Podemos pôr o júbilo no lugar da palavra; trocar o verbo por uma palavra, não podemos.

Jubilai, pois, diante do Senhor, terra inteira”.



§ 7
Servi o Senhor, com alegria”.

A servidão é repleta de amargura. Os escravos servem murmurando. Não tenhais medo de servir a este Senhor. Não será com gemido, murmuração, indignação. Ninguém será vendido, pois suavemente fomos resgatados. É enorme felicidade, irmãos, ser escravo nessa grande casa, não obstante os grilhões. Não temas, escravo acorrentado, confessa a teu Senhor. Atribui os grilhões a teus próprios méritos; confessa nas cadeias, se queres que elas se convertam em ornamentos. Não foi em vão (pois a súplica é atendida) que foi dito:

Chegue a tua presença o gemido dos cativos(Sl 78,11).

Servi o Senhor, com alegria”.

Perto do Senhor, a escravidão é livre; escravidão livre, porque se serve com caridade, não por necessidade.

Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto à carne, mas pela caridade, ponde-vos a serviço uns dos outros(Gl 5,13).

A verdade te fez livre; faça-te escravo a caridade.

Se permanecerdes na minha palavra, sereis, em verdade, meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará(Jo 8,31.32).

És simultaneamente servo e livre. Servo enquanto criatura; livre, porque amado por Deus que te fez. Mais livre ainda por amares aquele que te fez. Não sirvas murmurando. A murmuração não te livra de servir; apenas faz com que sirvas mal. És servo do Senhor, liberto do Senhor. Não ambiciones alforria, que te afastaria da casa do Senhor que te liberta.



§ 8
Servi o Senhor, com alegria”.

Haverá plena, perfeita alegria “quando este ser corruptível tiver revestido a incor-ruptibilidade, e este ser mortal tiver revestido a imortali-dade(cf 1Cor 15,54).

Existirá, então, perfeita alegria, júbi-lo consumado, louvor indefectível, amor sem escândalo, frutos sem temor, vida sem morte. E agora? Não existe gáudio? Se não há gáudio, não há júbilo. Como, então, se diz:

Jubi-lai diante do Senhor, terra inteira?” Aqui na terra, certamente, existe também um gáudio, o da esperança da vida futura. Aqui é antegozo, lá saciedade. Mas, é preciso que o trigo sofra muito no meio do joio; há grãos no meio da palha (cf Mt 3,12; 13,30), lírio entre os espinhos. Que palavra é dita à Igreja? “Como lírio entre espinhos, é minha amada entre as filhas(Ct 2,2).

Não se disse: entre as estranhas, e sim:

entre as filhas”.

Ó Senhor, é assim que con-solas, que confortas, que atemorizas? O que dizes? “Como lírio entre espinhos”, que espinhos? “Assim é minha amada entre que filhas?” Espinhos identificam-se a filhas? Ele responde: São espinhos, por causa de seus costumes, filhas por causa de meus sacramentos. Antes gemesse entre estrangeiros; gemeria menos. Esse gemido é mais agudo.

Pois se me exprobasse um inimigo, decerto o suportaria. E se o que me odiava proferisse insolências, dele me esconderia”.

São palavras de um salmo. Quem conhece nos-sas Escrituras, sabe continuar; quem não conhece, aprenda como continua:

E se o que me odiava proferisse isolên-cias, dele me esconderia. Mas és tu, meu companheiro, meu conselheiro e amigo, tu que comigo tomavas suaves alimentos(Sl 54,13-15).

Quais são esses alimentos suaves que partilham aqueles que não ficarão conosco para sempre? Quais? Senão:

Provai e vede como é suave o Senhor”? (Sl 33,9).

Vivendo entre eles, forçoso é gemermos.



§ 9
Mas, para onde há de retirar-se o cristão que não quer gemer entre falsos irmãos? Aonde ir? Que fazer? Procurar a solidão? Segui-lo-ão os escândalos. Quem progrediu, há de apartar-se para não ter de suportar absolutamente a outro? Que teria acontecido, se antes de haver feito progresso, ninguém tivesse querido suportá-lo? Se alguém, por ter progredido, não quer suportar os outros, pelo fato mesmo de não querer tolerar, dá provas de que não avançou. V. Caridade esteja atenta.

Suportai-vos uns aos outros com amor, procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz(Ef 4,2.3).

Suportai-vos uns aos outros. Não tens algum defeito que os outros tenham de tolerar? Admiro- me muito se não houver. Mas, concedo. Não existe. Tanto mais forte hás de ser para suportar os demais, se já não dás motivo a outrem de te suportar. Não és tolerado. Suporta. Não posso, respondes. Então, já existe em ti alguma coisa que os outros suportem.

Suportai-vos uns aos outros com amor”.

Abandonas o con-vívio humano, separas-te de tal forma que ninguém te veja. A quem serás útil? Chegarias a este ponto se ninguém te houvesse ajudado? Julgas que tiveste pés rápidos para atravessar; então vais cortar a ponte? Exorto a todos, a todos exorta a voz de Deus:

Suportai-vos uns aos outros com amor”.



§ 10
Vou isolar-me, diz alguém, com alguns, poucos mas bons; estarei bem em sua companhia. Não ter a quem ajudar é impiedoso, é cruel. Não foi isso que me ensinou o meu Senhor. Ele não condenou o servo que lucrou com o que recebera, mas condenou aquele que não empregou o dinheiro. Pelo castigo do preguiçoso entende-se qual será o do infiel.

Servo mau e preguiçoso(Mt 25,14-30), condena o Senhor. Não declara: Empregaste mal o meu dinheiro. Não diz: Dei-te e não me devolveste na íntegra. Diz: Punir-te-ei porque não lucraste, não empregaste. Deus é avaro de nossa salvação. Isolar-me-ei, então, com poucos, mas bons. Que tenho a ver com as multidões? Está bem. Mas esses poucos que são bons, de que multidão foram escolhidos? Se já são todos bons, é bom e louvável estar na companhia dos que escolheram uma vida tranqüila; separados do bulício do povo, das turbas inquietas, dos vagalhões do século, acham-se no porto. Já possuem aí o gáudio? Já têm o júbilo prometido? Ainda não. Ainda há gemidos, ainda existe a tribulação das tentações. Também o porto tem acesso de algum lado. Se não houvesse acesso, nave alguma poderia penetrar. É preciso, portanto, estar aberto de alguma parte. Às vezes, porém, do lado aberto irrompe o vento e onde não há escolhos, as naves se entrechocam e se partem. Onde então encontrar segurança, se nem no porto? Entretanto, é melhor estar no porto do que no alto mar. Temos de confessar isso, de conceder. É verdade. Amem-se. As naves no porto fiquem bem situadas, não se entrechoquem. Conservem-se a igualdade, a eqüidade, a constância na caridade. E se acaso do lado aberto irromper o vento, seja cautelosa a direção.



§ 11
Que me dirá aquele que preside, ou antes, que serve os irmãos, nestes lugares denominados mosteiros? Que dirá? Serei precavido. Não admitirei nenhum malvado, nenhum irmão perverso que queira entrar. Estarei bem na companhia de poucos, mas bons. De onde conheces aquele que por acaso queres excluir? Para se saber se é mau, precisa ser experimentado no mosteiro. Como exclues o candidato que deve ser experimentado e não pode ser experimentado se não entrar? Repeles os maus? Assim falas. Sabes conhecê-los? Todos vêm a ti com o coração descoberto? Nem eles mesmos, os candidatos, se conhecem; quanto menos tu! Muitos prometeram levar uma vida santa, ter tudo em comum, numa vida onde ninguém diz ser sua coisa alguma e todos têm um só coração e uma só alma em Deus (cf At 4,32.35); mas lançados na fornalha, racharam. Como hás de conhecer quem a si mesmo se desconhece? Excluirás os maus irmãos do convívio dos bons? Tu que afirmas isso, expulsa, se puderes, de teu coração todos os maus pensamentos; não entre em teu coração nem mesmo a sugestão má. Mas, não consinto, respondes. A sugestão, contudo, entrou. Todos nós queremos ter o coração bem defendido de qualquer sugestão má. Quem sabe, porém, por onde ela entra? Lutamos cotidianamente em nosso coração, que é um só; um homem só, em seu coração, luta com multidão. Sugere a avareza, sugere a volúpia, sugere a voracidade, sugere o contentamento vulgar. Todos sugerem. Contém-te, replica a todos, escapa de todos; difícil é não ser ferido de algum modo. Onde existe, então, segurança? Aqui, em parte alguma. Nessa vida, jamais, a não ser apenas na esperança das promessas de Deus. Lá, porém, no céu, quando lá chegarmos, haverá perfeita segurança, ao se fecharem as portas e “se reforçarem os ferrolhos de tuas portas, ó Jerusalém(Sl 147,13); lá haverá pleno júbilo e grande alegria. Agora, porém, não é seguro louvar vida alguma. Antes da morte não louves homem algum (cf Eclo 11,30).



§ 12
Por isso, enganam-se os homens ao aconselharem a não se escolher a vida melhor, ou a optar por ela de modo temerário. Se querem elogiar, elogiam sem declarar o mal que existe mesclado e os que querem censurar, fazem-no com ânimo tão invejoso e perverso que fecham os olhos ao que há de bom, exagerando o mal que existe ou julgam existir. Daí vem que toda profissão falsamente elogiada, isto é, louvada sem reservas, atrai os homens por causa desses elogios. Eles a adotam, mas verificam depois serem alguns como eles não suspeitavam; escandalizados com os maus, fogem dos bons. Irmãos, aplicai a seguinte regra a vossa vida; escutai-a para vivê-la. De modo geral, louva-se a Igreja de Deus. Grandes homens esses cristãos! E somente eles! É grandiosa a Igreja católica. Todos se amam e quanto possível entregam-se à oração, aos jejuns, aos hinos. Por toda a terra Deus é louvado na concórdia da paz. Quem ouve, sem saber que se calou a existência de maus no meio deles, aproxima-se atraído pelos louvores. Encontra maus entre eles, sem estar prevenido. Escandaliza-se com os maus cristãos, foge dos verdadeiros. De outro lado, os que os odeiam maldizem, lançam vitupérios. Que espécie de cristãos! Que cristãos! Avaros, usurários. Não são os mesmos que enchem os teatros e anfiteatros, nos jogos e outros espetáculos, que freqüentam as igrejas nos dias de festa? Ébrios, vorazes, invejosos, perseguidores uns dos outros. Existem tais cristãos; mas não somente desses. E o censor, cego de espírito, não fala dos bons, enquanto aquele admirador incauto não trata dos maus. Se, porém, for louvada agora a Igreja de Deus, conforme a louvam as Escrituras de Deus, eis como será:

Como lírio entre espinhos, é minha amada entre as filhas(Ct 2,2).

Alguém escuta, considera, agrada-lhe o lírio, entra, adere ao lírio, tolera os espinhos. Merecera o louvor e o ósculo do esposo, que diz:

Como lírio entre espinhos, é minha amada entre as filhas”.

Coisa idêntica acontece relativamente aos clérigos. Os que querem elogiar observam que existem bons ministros, dispensadores fiéis, pacientes com todos, dando-se inteiramente aos que querem progredir, não buscando os próprios interesses e sim os de Jesus Cristo (cf Fl 2,21).

Louvam-nos e se esquecem de que entre eles há mistura de alguns maus. De outro lado, os censores da avareza dos clérigos, de sua falta de probidade, das demandas, da ambição do alheio, atacam-nos porque são ébrios, vorazes. Um louva incautamente; outro inveja por censura. Se louvas, declara que existem juntamente maus; se criticas, verifica que há também alguns bons. Assim sucede igualmente a respeito da vida comum dos irmãos em mosteiros. São grandes homens, santos! Passam os dias em hinos, em orações, no louvor de Deus. Absorvem-se na leitura. Trabalham com as próprias mãos para viver. Nada pedem avaramente. Usam moderadamente e com caridade os donativos de irmãos piedosos. Ninguém exige para si o que os outros não têm. Todos se amam, todos se apoiam mutuamente. Louvor e mais louvor! Quem não sabe o que se passa lá dentro, quem ignora que ao irrom-per o vento até mesmo os navios no porto se colidem, entra contando obter segurança, sem precisar tolerar os outros. Encontra maus irmãos. Não se verificaria que são maus se não houvessem sido admitidos. É preciso serem tolerados inicialmente a fim de se corrigirem. Não podem logo ser excluídos, antes de serem tolerados. Então, o candidato não tolera por impaciência. Quem é que me chamava para cá? Pensava que havia aqui muita caridade. E irritado com os aborrecimentos causados por poucos, não persevera no cumprimento do que prometeu e deserta de tão santo propósito, tornando-se réu, trans-gressor de um voto. Depois de sair, faz-se crítico e maldizente. Conta apenas aquilo que afirma não ter podido suportar, e por vezes com verdade. Mas, toleram-se os males reais, por causa da convivência com os bons. Diz-lhes a Escritura:

Ai de vós que perdestes a paciência(Eclo 2,14).

E o que é pior, exala o mau odor da indignação, assustando os que planejavam entrar, porque ele entrou e não pôde ficar. Como são eles? Invejosos, contensiosos, intolerantes, avaros; um fez isto, outro aquilo. Ó malvado, porque não falas dos bons? Censuras os que não pudeste tolerar; calas os que te suportaram a ti, que és mau.



§ 13
Efetivamente, é magnífica no evangelho do Senhor, irmãos caríssimos, a palavra do Senhor:

Estarão dois no campo; um será tomado, e o outro deixado. Estarão duas moendo no moinho; uma será tomada e a outra deixada; dois estarão num leito; um será tomado e o outro deixado(Mt 24,40.41; Lc 17,34.35).

Quem são os dois no campo? É o que diz o Apóstolo:

eu plantei; Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer. Vós sois a seara de Deus(1 Cor 3,6.9).

Trabalhamos no campo.

Os dois no campo” são os clérigos.

Um é tomado, e o outro deixado: é tomado o bom e deixado o mau.

duas no moinho” é a plebe. Por que no moinho? Porque, presas ao século, estão como que detidas pela mó, pelo circuito das coisas temporais. E assim, “uma será tomada e a outra deixada”.

Quem será tomada? Quem pratica boas obras, quem atende às necessidades dos servos de Deus, à indigência dos pobres. Quem se mostra fiel no louvor, na alegria certa da esperança, vigilante junto de Deus, sem desejar mal a ninguém, amando o mais possível, não só os amigos, mas até os inimigos, não cobiçando a mulher do próximo, não desejando outro marido a não ser o seu. Esta será também tomada do moinho. A outra, muito diferente, será deixada. Outros dizem: Queremos sossego; não queremos suportar a ninguém. Separemo-nos da multidão e estaremos bem, em relativa segurança. Se é sossego que procuras estás buscando um leito, a fim de descansares sem preocupações. E por isso, “um será tomado e o outro deixado”.

Ninguém vos engane, irmãos. Se não quereis vos iludir e desejar amar os irmãos, sabei que em qualquer estado na Igreja há fingidos. Não disse que todos são fingidos e sim que em todos os estados há fingidos. Existem maus cristãos; há, porém, bons igualmente. Parece que vês maus em maior número. São palha que te impedem de alcançar os grãos. Existem grãos também. Aproxima-te, experimenta, sacode, julga. Encontrarás monjas indisciplinadas; por isso vamos criticar o estado monástico? Muitas não param em casa, aprendem a correr de casa em casa, desocupadas, tagarelas, soberbas, intrigantes, dadas à bebida (cf 1Tm 5,13); e se são virgens, de que serve a integridade da carne, se a mente é corrupta? É melhor o matrimônio humilde do que a virgindade soberba (cf 1Cor 7,34).

Se fossem casadas, não teriam título de que se orgulhar e sim freio para governá-las. Por causa das virgens más, iremos condenar as que são santas no corpo e no espírito? Ou, diante das que merecem louvor, seremos obrigados a elogiar até mesmo as indignas? Em toda parte, uma será tomada, e outra deixada.



§ 14
Mas, irmãos, terminemos o salmo. É muito claro.

Servi o Senhor, com alegria”.

Dirige-se a vós todos que na caridade tudo suportais, alegres na esperança.

Servi o Senhor”, não com a amargura da murmuração, mas “com a alegria” do amor.

Entrai exultantes em sua presença”.

É fácil exultar exteriormente. Exulta na presença do Senhor. Não tanto seja a boca a exultar. Exulte a consciência.

Entrai exultantes em sua presença”.



§ 15
3 “Sabei que o Senhor é Deus”.

Quem não sabe que o Senhor é Deus? O salmo se refere ao Senhor, que os homens julgavam não ser Deus.

Sabei que o Senhor é Deus”.

Não menosprezeis aquele Senhor. Vós o crucificastes, fla-gelastes, cobristes de escarros, coroastes de espinhos, vestistes com a veste ignominosa, suspendestes no madeiro, atravessastes com os cravos, feristes com a lança, pusestes guardas em seu sepulcro. Ele é Deus.

Sabei que o Senhor é Deus. Ele nos fez e não nós mesmos nos fizemos”.

Ele nos fez.

Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito(cf Jo 1,3).

Por que exultais? De que vos orgulhais? Outro vos criou. Fizeste sofrer vosso criador. E vós vos gabais, gloriais, ensoberbeceis, como se vos tivésseis feito a vós mesmos. É bom para vós que termine sua obra aquele que vos criou.

Ele nos fez e não nós mesmos nos fizemos”.

Não nos orgulhemos. Recebemos de nosso criador todo bem que possuímos. Conceda-nos o que fizemos em nós e coroe-nos o que ele mesmo fez em nós.

Somos povo seu e ovelhas de seu rebanho”.

Somos ovelhas e ovelha. As ovelhas constituem uma só ovelha. E que pastor é tão amante quanto nosso pastor? Deixou as noventa e nove ovelhas e foi em busca de uma só, aquela que foi remida com seu sangue. Carrega-a nos ombros e volta (cf Lc 15,4.5).

O pastor morreu confiante pela ovelha e tendo ressuscitado a possui.

Somos povo seu e ovelhas de seu rebanho”.



§ 16
Transponde seus pórticos com cânticos de confissão”.

Os pórticos são o começo. Começai pela confissão. Por isso é que o salmo se intitula:

De confissão”.

Aí jubilai. Confes-sai que não vos fizestes a vós mesmos, louvai vosso criador. Ele seja teu bem, pois ao te afastares dele, praticaste o mal que vem de ti.

Transponde seus pórticos com cântico de confissão”.

O rebanho atravesse os pórticos. Não fique fora, em poder dos lobos. E como há de entrar? “Pela confissão”.

A porta, isto é, o início seja a confissão. Por isso, diz outro salmo:

Começai cânticos, confessando ao Senhor(Sl 146,7).

Começai” é idêntico a “pórticos” deste salmo.

Transponde seus pórticos com cânticos de confissão”.

Tendo entrado, não confessaremos mais? Confessa sempre; há sempre o que confessar. Difícil é nessa vida transformar-se o homem de tal maneira que nada mais de repreensível nele se encontre. Importa que te acuses a ti mesmo, a fim de que não te censure quem pode condenar. Portanto, mesmo depois de entrares nos átrios, confessa. Quando não haverá mais confissão de pecados? Naquele repouso, naquela igualdade com os anjos. Mas, notai o que afirmei: Não haverá mais confissão de pecados. Não disse: Não haverá mais confissão. Haverá a confissão do louvor. Sempre haverás de confessar que ele é Deus e tu, criatura; ele é protetor e tu o protegido. Nele, de certo modo, estarás escondido, conforme se disse:

Abrigá-los-ás no esconderijo de tua face(Sl 30,21).

E seus átrios com hinos. Confessai-o”.

Nos pórticos, confessai; e tendo entrado em seus átrios, confessai-o com hinos. Os hinos são louvores. Ao entrares censura-te a ti mesmo; lá dentro louva-o.

Abri-me as portas da justiça”, diz outro salmo.

Entrarei por elas para confessar o Senhor(Sl 117,19).

Acaso diz: Quando tiver entrado, já não confessarei? Mesmo havendo entrado, confessará. Que pecados confessou nosso Senhor Jesus Cristo, quando disse:

Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra”? (Mt 11,25).

Confessava a louvar, não a se acusar.



§ 17
4.5 “Louvai o seu nome, porque o Senhor é suave”.

Não penseis que ides desfalecer, se louvardes assim. Vosso louvor vos servirá de alimento; à medida que louvardes, adquirireis forças e vos será suave aquele a quem louvais.

Louvai o seu nome, porque o Senhor é suave. Sua misericórdia é eterna”.

Com a tua libertação não se extinguirá sua misericórdia. Compete a sua misericórdia proteger-te sempre na vida eterna. Portanto, “sua misericórdia é eterna e sua verdade se estende de geração em geração. De geração em geração”, isto é, em todas as gerações; ou duas gerações, uma terrena e outra celeste. Aqui na terra é a primeira geração, que gera seres mortais; a outra produz seres eternos. Sua verdade existe aqui e lá. Não se pense que não exista aqui sua verdade. Se aqui não houvesse verdade, não teria dito outro salmo:

A verdade germinou da terra(Sl 84,14); nem teria afirmado a própria verdade:

E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos(Mt 28,20).