ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 98 | ||
§ 98:1 | Ƈ Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele tem feito maravilhas; a sua destra e o seu braço santo lhe alcançaram a vitória. | |
§ 98:2 | Ꝋ O Senhor fez notória a sua salvação, manifestou a sua justiça perante os olhos das nações. | |
§ 98:3 | Ł Lembrou-se da sua misericórdia e da sua fidelidade para com a casa de Israel; todas as extremidades da terra viram a salvação do nosso Deus. | |
§ 98:4 | Ƈ Celebrai com júbilo ao Senhor, todos os habitantes da terra; dai brados de alegria, regozijai-vos, e cantai louvores. | |
§ 98:5 | Ł Louvai ao Senhor com a harpa; com a harpa e a voz de canto. | |
§ 98:6 | Ƈ Com trombetas, e ao som de buzinas, exultai diante do Rei, o Senhor. | |
§ 98:7 | Ꞗ Brame o mar e a sua plenitude, o mundo e os que nele habitam; | |
§ 98:8 | ᶀ batam palmas os rios; à uma regozijem-se os montes | |
§ 98:9 | ɖ diante do Senhor, porque vem julgar a terra; com justiça julgará o mundo, e os povos com eqüidade. | |
O SALMO 98 | ||
SERMÃO AO POVO (Pregado em Cartago) | ||
§ 1 | Irmãos, deve ser notório a V. Caridade, como a filhos da Igreja, e instruídos na escola de Cristo através de todas as Escrituras de nossos antigos Pais, que escreveram as palavras de Deus e suas maravilhas, que eles procuraram o bem de todos nós, futuros fiéis em Cristo. Este, no tempo determinado, veio para nós, primeiro na humildade, mas depois há de vir em sua glorificação. Da primeira vez, veio para comparecer diante de um juiz; depois há de vir para se sentar no tribunal como juiz, e perante ele comparecerá o gênero humano, conforme o que merecer. Precederam-no muitos arautos, como sendo um grande juiz, e isto quando ainda viria em condição humilde. Muitos arautos o precederam quando ainda nasceria da virgem Maria, como criança que suga o leite materno. Viria pequenino o Verbo de Deus, pelo qual tudo foi feito. Precederam-no muitos arautos e predisseram o que aconteceria hoje; mas o proferiram, de maneira encoberta em suas sentenças, sob certas figuras. O véu que encobria a verdade nos livros antigos, é levantado agora quando a própria verdade já surge da terra. Pois assim afirma o salmo: “A verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu” (Sl 84,12). Agora, ao ouvirmos o salmo, o profeta, a lei, tudo isso escrito antes que aparecesse na carne nosso Senhor Jesus Cristo, toda a nossa atenção se volta para ver aí o Cristo, para aí entendê-lo. V. Caridade conosco preste atenção a este salmo e procuremos nele a Cristo. Com efeito, ele aparecerá aos que o buscam, tendo-se manifestado primeiro aos que não o procuravam, e não abandonará os que anelam por ele, tendo remido os que o menosprezavam. Eis como começa o salmo a falar acerca dele: | |
§ 2 | 1“O Senhor é rei, irritem-se os povos”. Nosso Senhor Jesus Cristo começou a reinar, começou a ser anunciado, depois que ressuscitou dos mortos e subiu ao céu, depois que encheu seus discípulos na confiança que o Espírito Santo incute, a fim de não terem medo da morte, que ele absorvera em si. Começou, portanto, a ser anunciado Cristo Senhor, de sorte que nele acreditassem os que quisessem obter a salvação. E iraram-se os povos adoradores dos ídolos. Irritavam-se os que adoravam os ídolos que haviam fabricado, por ser anunciado aquele por quem eles mesmos foram feitos. De fato, o Senhor anunciava através de seus discípulos a si mesmo. Queria que se convertessem para aquele que os fizera, e se apartassem os ídolos que haviam fabricado. Eles, por causa de seu ídolo irritavam-se contra seu senhor. Se, por causa de seu ídolo se irritassem contra seu escravo, eram condenáveis. Pois, é melhor um escravo do que um ídolo; o escravo foi feito por Deus, enquanto o ídolo foi feito pelo artífice. Irritavam-se por causa de seu ídolo, sem temerem a ira de seu Senhor. Mas: “irritem-se”, não é ordem; é predição. Foi dito profeticamente: “O Senhor é rei, irritem-se os povos”. Para alguma coisa serve a ira dos povos; eles se irritam e por causa da ira deles os mártires são coroados. Que fizeram eles aos pregadores da palavra da verdade, às nuvens de Cristo que percorriam o orbe da terra e faziam chover sobre o campo de Deus? Que lhe infligiram os homens encolerizados, a não ser que entre suas mãos a carne fosse afligida e nas mãos de Cristo o espírito fosse coroado? Nem a própria carne que os perseguidores puderam matar, morreu de tal modo que perecesse para sempre. Virá o tempo oportuno para que ressurja também ela, porque o Senhor em si mesmo já demonstrou a realidade da ressurreição da carne. Ele quis receber de nós uma carne humana, para que pudéssemos não perder a esperança acerca de nossa própria carne. Portanto, irmãos, a carne dos servos que os adoradores dos ídolos mataram, ressuscitará a seu tempo; quanto aos ídolos quebrados por Cristo, jamais o artífice os fará de novo. Ouvistes a leitura do profeta Jeremias antes da leitura do Apóstolo, se tivestes ouvidos atentos; contemplastes ali os tempos que agora decorrem. Pois, ele disse: “Os deuses que não criaram o céu e a terra desaparecerão da terra e de debaixo dos céus” (Jr 10,11). Não disse: Os deuses que não criaram o céu e a terra desaparecerão do céu e da terra, porque nunca estiveram no céu; mas como se exprimiu? “Os deuses que não criaram o céu e a terra desaparecerão da terra”. Seria como se a terra respondesse e não houvesse quem respondesse do céu, porque eles lá não estiveram; mas indicou duas vezes a terra, porque a terra está debaixo do céu. “Perecerão da terra e de debaixo dos céus”, de seus templos. Notai se isso não aconteceu, se já não sucedeu em maior parte; o que falta ou quanto falta? Os ídolos persistem mais nos corações dos pagãos do que nos templos. | |
§ 3 | Portanto, “o Senhor é rei, irritem-se os povos. Tem seu trono sobre os querubins”. Subentende-se: “é rei. Abale-se a terra”. De novo diz: “Irritem-se os povos”. Tendo dito: “O Senhor”, repete: “Tem seu trono sobre os querubins”. E as palavras: “é rei” estão subentendidas em outro versículo. Quanto a: “Irritem-se os povos” torna-se aqui: “Abale-se a terra”. Pois que são os povos senão a terra? Irrite-se quanto puder a terra contra aquele que tem seu trono no céu. O Senhor esteve também na terra, e assumiu um pouco de terra, com a qual pudesse estar na terra. Revestiu-se da carne e quis primeiro suportar que os povos se irassem. Quis sofrer a ira dos povos em primeiro lugar, a fim de que seus servos não tivessem medo e como era necessária a ira dos povos a seus servos, a fim de serem curados por meio das tribulações de todos os seus pecados e recuperassem a saúde, o médico em primeiro lugar bebeu o copo amargo, para que o doente não tivesse medo de beber. Por conseguinte: “O Senhor é rei, irritem-se os povos”. Irritem-se os povos, porque de sua ira, Deus retira muito bem. Eles se irritam, e os servos de Deus se purificam; e como são exercitados, são coroados. “Irritem-se os povos. Tem seu trono sobre os querubins”, é rei. “Abale-se a terra”. O querubim é o trono de Deus, conforme traz a Escritura. Uma espécie de trono celeste e sublime, que nós não vemos; mas a palavra de Deus o conhece, conhece-o como seu trono, e o próprio Verbo de Deus, o Espírito de Deus, diz aos servos de Deus onde Deus se senta. Não significa isto que Deus ali se senta como um homem. Mas se queres ser o trono de Deus, se fores bom, tu o serás. Pois, assim está escrito: “A alma do justo é o trono da sabedoria” (Sb 12,13). Trono em latim é sedes. Alguns, que sabem o hebraico, quiseram traduzir a palavra querubim para o latim, porque o nome é hebraico, e afirmaram que querubim quer dizer: plenitude da ciência. Portanto, como Deus supera toda a ciência, diz-se que ele se senta sobre a plenitude da ciência. Haja, pois, em ti, a plenitude da ciência e serás também tu o trono de Deus. Mas talvez repliques: E quando haverá em mim a plenitude da ciência? E quem pode chegar a tal cume que haja nele a plenitude da ciência? Pensas que Deus queira que haja em nós esta plenitude da ciência de sorte que saibamos quantas são as estrelas, ou quantos sãos os grãos, não digo de areia, mas de trigo, ou quantos frutos pendem das árvores? Ele sabe tudo, porque nossos cabelos são contados para ele. Mas é outra a plenitude da ciência que ele quis para o homem; pertence à lei de Deus a ciência que ele quis que tivesses. E quem pode, talvez me digas, conhecer perfeitamente a lei, de tal maneira que possua a plenitude da ciência da lei e possa se tornar o trono de Deus? Não te perturbes; dir-te-ei brevemente o que deves ter para possuir a plenitude da ciência e te tornar o trono de Deus. Diz o Apóstolo: “é a caridade a plenitude da lei” (cf Mt 10.30; Rm 13,10). E então? Não encontras desculpa alguma. Interroga teu coração; vê se possuis a caridade. Se ali existe a caridade, há plenitude da lei, Deus já habita em ti, e te tornaste trono de Deus. “Irritem-se os povos”. Os povos irados que podem fazer ao que se tornou o trono de Deus? Observas os que se enfurecem contra ti, mas não entendes ao que se senta sobre ti. Tu te transformaste em céu e tens medo da terra? Outra passagem da Escritura declara que Deus disse: “O céu é o meu trono” (Is 66,1). Se, portanto, possuíres a plenitude da ciência e a caridade tu te tornaste trono de Deus, tu te transformaste em céu. Não, porém, este céu que nossos olhos contemplam lá em cima é muito precioso para Deus. Céu para Deus são as almas santas, céu de Deus as mentes dos anjos, e todas as mentes de seus servos. Por conseguinte, “irritem-se os povos. Abale-se a terra”. Que farão eles, que fará a terra ao trono de Deus e ao céu onde Deus se senta? | |
§ 4 | 2 “É grande em Sião o Senhor, elevado acima de todos os povos”. É grande e elevado em Sião o Senhor. Eis que, se era obscuro para ti o que foi dito: “Tem seu trono sobre os querubins”, e não sabias o que era querubim, e talvez imaginavas uma espécie de trono celeste, imenso, coberto de gemas preciosas, e o chamavas de querubim, esvoaçando no meio de idéias com senso carnal, já te foi dito que querubim significa plenitude da ciência. Além disso, que era plenitude não de qualquer ciência, mas plenitude da ciência da lei útil ao homem; e a fim de não desanimares acerca da própria ciência da lei, foi-te dito brevemente: “A caridade é a plenitude da lei”. Tem, pois, caridade para com Deus e para com o próximo e serás trono de Deus: participarás da natureza do querubim. Mas se ainda não entendes, ouve o que vem em seguida: “É grande em Sião o Senhor”. Aquele que disse estar sobre os querubins, é grande em Sião. Já me interrogas o quer dizer Sião? Sabemos que Sião é a cidade de Deus. É denominada Sião a cidade de Jerusalém. É chamada Sião por certa interpretação do nome, pois Sião quer dizer observação, isto é, visão e contemplação. Observar é olhar para a frente, ou ver detidamente, ou olhar com atenção para ver bem. Sião é toda alma que se empenha em ver a luz que deve ser vista. Pois, se der atenção a sua própria luz, ficará em trevas; mas se voltar sua atenção para a luz divina, será iluminada. Uma vez, porém, que está claro ser Sião a cidade de Deus, qual é a cidade de Deus, senão a santa Igreja? Os homens que se amam mutuamente e que amam o seu Deus, que neles habita, constituem a cidade de Deus. Uma cidade se rege por determinada lei. A lei desta cidade é a caridade. E Deus é amor; está claramente escrito: “Deus é amor” (1Jo 4,8). Quem, pois, está repleto de caridade, está repleto de Deus; e muitos homens cheios de caridade constituem a cidade de Deus. Esta cidade de Deus se chama Sião; portanto, a Igreja é Sião. Nela, grande é Deus. Estabelece-te nela, e Deus não estará longe de ti. Quando, porém, estiver Deus em ti, porque te tornaste cidadão de Sião, membro de Sião, pertencente à sociedade do povo de Deus, Deus será em ti excelso acima de todos os povos, acima daqueles que se irritam, ou acima daqueles que se irritavam. Pensais, então, que eles outrora se iravam e agora não? Então se irritavam. Como eram em grande número, iravam-se publicamente; agora, como se tornaram poucos, ocultamente se encolerizam. Por enquanto quebrou-se a audácia; terminará também a raiva. | |
§ 5 | Pensais, irmãos, que aqueles que ontem tocavam seus instrumentos não se aborrecem com nossos jejuns? Não nos irritemos contra eles, mas jejuemos por eles. O Senhor nosso Deus, que tem em nós seu trono, disse, mandou-nos que rezemos por nossos inimigos, oremos pelos que nos perseguem; e quando a Igreja assim age, quase terminam seus perseguidores. Foi entendida ao agir assim, e ainda é ouvida quando assim procede. Eles prevaleciam em sua maldade, mas terminaram devido ao bem da Igreja. Quereis saber como terminaram? Foram devorados pela Igreja. Procuras e não os encontras. Procura-os naquela que os devorou e acham-se em suas entranhas. Pois, ao passarem para a Igreja tornaram-se cristãos; pereceram os perseguidores, aumentaram os pregadores. Por isso, nas suas festas, vendo os que restaram como loucos em seus prazeres maus e perversos, rogamos a Deus por eles, a fim de que, se ouvem encantados o seu instrumento, ouçam com prazer maior a voz de Deus. Se alguns sons desordenados dão prazer ao ouvido, a palavra de Deus não deixa de deleitar o coração. Por esta razão rezamos por eles, quando não jejuamos nos seus dias de festa, para que eles vejam a si mesmos. Vendo-se a si mesmos, sentirão desgosto; não o sentem porque não se observam a si mesmos. Um ébrio não desagrada a si mesmo, mas desagrada ao sóbrio. Vejamos, por exemplo, um homem que já se alegra em Deus, que vive com seriedade, suspira pela paz eterna prometida por Deus; e nota que se ele vê um homem a dançar ao som de um instrumento, tem mais pena deste louco do que de um frenético febril. Em vista disto, se conhecemos seus males, e destes mesmos males estamos isentos, tenhamos compaixão deles; e se os lastimamos, rezemos por eles; e para sermos atendidos, jejuemos por eles. Com efeito, não celebramos nossos jejuns por ocasião de suas festas. Nossos jejuns são outros. Nós os celebramos na expectativa da Páscoa, e outros dias de solenidades, em Cristo. Nestes dias jejuamos, porém, visando a oferecer a Deus nossos gemidos em seu favor, enquanto eles se alegram. Pois, sua alegria desperta nossa dor, e recordam-nos como eles ainda são infelizes. Mas não devemos perder a esperança relativamente a eles, porque vemos que muitos se libertam daquilo que nos prendia também a nós. E se ainda por cima eles se irritam, devemos rezar. Se ainda se abala a restante partícula da terra, persistamos em nossos gemidos em favor deles, para que Deus lhes dê compreensão e eles possam ouvir conosco estas palavras que agora nos alegram. “É grande o Senhor em Sião, elevado acima de todos os povos”. | |
§ 6 | 3.4 “Celebrem o teu grande nome”. Os mesmos povos, acima dos quais em Sião o Senhor é grande, já “celebram o teu grande nome”. Pequeno era para eles este nome quando eles se irritavam; tornou-se grande, e eles já o confessam. Como dizemos que foi pequeno o nome de Cristo, antes que a fama de Cristo se divulgasse amplamente? Porque chamamos de nome a sua fama. Era pequeno o nome; agora já se tornou grande. Qual o povo que não tenha ouvido o nome de Cristo? Por conseguinte, já se tornou grande e os povos que diante de teu nome pequeno se iravam, agora o celebram: “Celebrem o teu grande nome”. Por quê? “Porque é terrível e santo”. O próprio nome é terrível e santo. Assim é anunciado o Cristo crucificado, é anunciado o que foi humilhado, o que foi julgado, mas virá excelso, virá vivo, virá para julgar com poder. Agora poupa os povos que blasfemam, porque a paciência de Deus induz à penitência (cf Rm 2,4). Se agora poupa, nem sempre haverá de poupar; ou se agora é anunciado para ser temido, não deixará de vir para julgar. Há de vir, meus irmãos, há de vir. Temamo-lo, e vivamos de tal modo que nos encontremos a sua direita. Pois, há de vir e julgar, pondo uns à esquerda e outros à direita (cf Mt 25,31-25). Ele não o fará de qualquer maneira, de tal sorte que erre acerca dos homens, pondo os que deviam estar à direita, do lado esquerdo. Ou os que deviam estar à esquerda, por engano de Deus, são colocados à direita. Deus não pode errar, colocando um mau onde devia estar um bom, nem colocando um bom onde devia estar um mau. Se ele não pode errar, erramos nós se não tememos; se, porém, agora temermos, não teremos então por que temer. “Porque é terrível e santo. É honra do rei amar a justiça”. Temam, portanto, os povos, para se corrigirem. Não presumam demais de sua misericórdia, afastando-se dele e vivendo mal, pois ele ama a misericórdia, mas ama igualmente o juízo. Que é a misericórdia? Que eles agora te anunciem a verdade, que clamem para que te convertas. Seria pequena misericórdia se vives fazendo o mal e ele não te retira do mundo ao pecares, a fim de te perdoar os pecados quando creres? Seria pequena misericórdia? Pensas que haverá sempre misericórdia de tal forma que a ninguém castigue? Não é assim. Seu nome é terrível e santo. “É honra do rei amar a justiça”. Pois, seria julgamento injusto, ou antes absolutamente não seria julgamento, se não fosse dado a cada um conforme seus méritos, segundo as obras de cada um enquanto estava no corpo, sejam boas ou más (cf 2Cor 5,10). “É honra do rei amar a justiça”. Por conseguinte, temamos, pratiquemos a justiça, façamos o que é segundo a eqüidade. | |
§ 7 | Mas quem pratica a eqüidade? Quem faz a justiça? O homem pecador, o homem iníquo, o perverso, o adversário da luz da verdade? Que deve fazer o homem? Converter-se apenas para Deus, a fim de que este o forme para a eqüidade, porque ele mesmo não pode formar e sim deformar. O homem é capaz de ferir-se; mas será capaz de curar-se? Quando quiser pode adoecer, mas não se cura quando quer. Se quiser pode viver sem moderar o frio ou o calor; adoece quando quiser. Tendo vivido sem temperança começa a adoecer; recupere-se quando quiser. Aquele que caiu doente quando quis, levante-se, se puder, quando o desejar. Precisou de sua intemperança para cair doente; para recuperar a saúde, porém, precisa de recurso da medicina. Assim também quanto ao pecado, o homem basta a si mesmo para pecar, mas para se justificar não basta; tem de ser justificado por aquele que é o único justo. Tendo este salmo atemorizado os povos, dizendo: “Celebrem o teu grande nome, porque é terrível e santo. É honra do rei amar a justiça”, e tendo em vista que os homens se entreguem para serem formados relativamente à justiça, parece que os povos assustados perguntam como devem viver para serem justos (uma vez que em si mesmos não podem possuir a justiça); então o salmo relembra-lhes quem é que plasma a justiça neles e continua: “Estabeleceste a eqüidade, exerceste o julgamento e a justiça em Jacó”. Pois, devemos ter a capacidade de julgar, devemos ter a justiça; mas é ele que em nós exerce o julgamento e a justiça. Ele nos fez, e os exerce em nós. Como também nós devemos exercer o julgamento e a justiça? Exerces o julgamento quando distingues o bem do mal; a justiça, porém, quando segues o bem e te apartas do mal. Distinguindo, exerces o julgamento; fazendo, tens a justiça. “Aparta-te do mal e faze o bem; procura a paz e segue-a” (Sl 33,15). Primeiro deves ter o julgamento, e depois a justiça. Que julgamento? Que primeiro julgues o que é o mal e o que é o bem. E que justiça? Aparta-te do mal e faze o bem. Isto, contudo, não se origina de ti mesmo; pois vê o que disse o salmo: “Exerceste o julgamento e a justiça em Jacó”. | |
§ 8 | 5 “Exaltai ao Senhor nosso Deus”. Exaltai verdadeiramente, exaltai bem. Louvemo-lo, exaltemos aquele que nos deu a justiça que temos; foi ele quem nos fez. Quem exerceu a justiça em nós, senão aquele que nos justificou? Foi dito a respeito de Cristo: Aquele “que justifica o ímpio” (Rm 4,5). Por conseguinte, nós somos ímpios e ele é quem justifica, porquanto ele mesmo é quem exerce em nós a justiça, pela qual lhe agradamos, de tal modo que nos porá à direita e não à esquerda. Dirá aos da direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”; e não os colocará à esquerda, entre aqueles aos quais se dirá: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para seus anjos” (Mt 25,34.41). Quanto não deve ser exaltado aquele que há de coroar seus dons e não os nossos méritos? “Exaltai ao Senhor nosso Deus”. | |
§ 9 | “Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés. Ele é santo”. Que haveremos de adorar? “O escabelo de seus pés”. Escabelo é o mesmo que supedâneo. Os gregos denominam-no hipopodiom, enquanto os latinos dizem-no “escabelo”, e outros chamam-no de “supedâneo”. Mas, notai, irmãos, o que o salmista nos manda adorar. Em outro trecho da Escritura se diz: “O céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés” (Is 66,1). Em conseqüência, ele nos manda adorar a terra, porque outra passagem diz que ela é o escabelo dos pés de Deus? E como adoraremos a terra, se a Escritura diz claramente: “Ao Senhor teu Deus adorarás”? (Dt 6,13; Mt 4,10). E o salmo diz: “Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés”. Expõe-me a Escritura o que é o escabelo de seus pés: “A terra o escabelo de meus pés”. Fico em dúvida. Tenho medo de adorar a terra, e que me condene aquele que fez o céu e a terra; de outro lado, receio não adorar o escabelo dos pés de meu Senhor, porque me diz o salmo: “Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés”. Interrogo o que é o escabelo de seus pés e a Escritura me responde: “E a terra é o escabelo de meus pés”. Hesitante, volto-me para Cristo, porque é ele quem eu procuro aqui. E descubro como a terra pode ser adorada sem impiedade, como sem impiedade se adora o escabelo de seus pés. Cristo assumiu um pouco de terra da terra; porque a carne vem da terra, e da carne de Maria ele assumiu a carne. E como andou na terra segundo a carne, deu-nos a comer a própria carne para nossa salvação, e como ninguém recebe a sua carne sem primeiro adorá- la, descobrimos de que modo se adora o escabelo dos pés do Senhor. Não somente não pecamos por adorá-lo, mas pecaríamos se não o adorássemos. Acaso a carne vivifica? O próprio Senhor afirmou, ao recomendar essa mesma terra: “O espírito é que vivifica, a carne para nada serve”. Por conseguinte, ao te inclinares e prostrares diante desta terra, não a olhes como terra, mas considera aquele Santo de quem adoras o escabelo de seus pés. Adoras por causa dele; por isso, aqui acrescenta o salmo: “Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés. Ele é santo”. Quem é santo? Aquele em cuja honra adoras o escabelo de seus pés. E ao te prostrares ante ele, teu pensamento não se detenha na carne para seres vivificado pelo espírito: “Pois o espírito é que vivifica, a carne para nada serve”. Na ocasião em que o Senhor relembrava estas coisas, havia declarado a respeito de sua carne: Se não comerdes a minha carne, não tereis a vida eterna. Muitos de seus discípulos, escandalizados (eram quase setenta), disseram: “Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?” Muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele”. Pareceu-lhes duro ouvir: Se não comerdes a minha carne, não tereis a vida eterna. Tomaram essas palavras de maneira insensata, pensaram nelas carnalmente, e julgaram que o Senhor iria cortar uns pedacinhos de seu corpo, para lhes dar, e responderam: “Esta palavra é dura”. Eles é que eram duros, não a palavra. Pois, se não fossem duros e sim mansos, diriam a si mesmos: Ele não fala deste modo sem motivo; talvez haja aí algum mistério latente. Teriam se mostrado mansos para com ele e não duros e dele aprenderiam o mesmo que aprenderam os discípulos que ficaram com ele, enquanto os demais se afastavam. Pois, tendo doze discípulos permanecido com ele, enquanto os outros se afastavam, sugeriram-lhe algo, mostrando-os pesarosos acerca da morte daqueles discípulos, que se escandalizaram diante de sua palavra e se afastaram. Jesus, porém, instruiu-os: “O espírito é que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que vos disse são espírito e vida” (cf Jo 6,54-64). Entendei espiritualmente o que falei; não haveis de comer o corpo visível e de beber o sangue que derramarão os que me crucificarem. Referi-me a certo mistério; entendido espiritualmente ele vos vivificará. Apesar de necessariamente ser celebrado de modo visível, importa entendê-lo invisivelmente. “Exaltai ao Senhor nosso Deus. Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés”. | |
§ 10 | 6.8 “Moisés e Aarão contam-se entre os seus sacerdotes e Samuel entre os que invocavam o seu nome. Invocavam o Senhor e ele os atendia. Falava-lhes da coluna de nuvem”. Estes antigos, Moisés, Aarão e Samuel, servos de Deus, eram grandes entre os antigos. Estais cientes de que Moisés, pelo poder de Deus, retirou o povo de Israel do Egito, através do mar Vermelho, e conduziu-o pelo deserto; e quantos milagres fez Deus naquele tempo pelas mãos de Moisés, sabem-no todos os que ouvem com gosto estas Escrituras na Igreja, ou lêem-nas em casa, ou aprenderam-nas de qualquer outro modo. Aarão era irmão de Moisés, que ele estabeleceu como sacerdote. De fato, então não aparece outro sacerdote, a não ser Aarão (cf Ex 28,1, etc). Claramente nas Sagradas Letras Aarão é denominado sacerdote de Deus; nelas não se diz que Moisés fosse sacerdote. Mas se não o era, que era ele? Acaso poderia ser mais do que sacerdote? Este salmo diz expressamente que ele também era sacerdote: “Moisés e Aarão contam-se entre os seus sacerdotes”. Eram, portanto, sacerdotes do Senhor. Samuel posteriormente aparece, já no livro dos Reis; Samuel viveu no tempo de Davi, pois foi ele quem ungiu o santo rei Davi. Samuel desde criança viveu e cresceu no templo. Sua mãe era estéril. (1Rs 16,13). Desejando um filho, pediu-o ao Senhor com muitos gemidos, e ao suplicar a Deus que lhe desse um filho mostrou que não o desejava carnalmente, pois quis que fosse de Deus, que lho dera. Dedicou-o, pois, ao Senhor Deus e disse: Se me deres um filho homem, servirá em teu templo (cf 1Rs 1,11). E assim aconteceu. Nasceu o santo Samuel e a mãe o guardou consigo enquanto o amamentava; logo que o desmamou, entregou-o no templo, para ali crescer, ali se fortificar no espírito, ali servir a Deus. Tornou-se um grande sacerdote, um santo sacerdote naquele tempo. O salmo menciona estes santos, e através deles quer que vejamos todos os santos. Por que, então, os nomeou aqui? Porque dissemos que devemos ver referência a Cristo aqui. Preste atenção, V. Caridade. O Salmista disse mais acima: “Exaltai ao Senhor nosso Deus. Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés. Ele é santo”, recomendando alguém, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo, cujo escabelo deve ser adorado, porque ele assumiu a carne, na qual apareceu ao gênero humano. Queren-do nos demonstrar que também os antigos pais o anunciaram, porque nosso Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro sacer-dote, mencionou estes justos, porque Deus lhes falava da coluna de nuvem. Que é: “coluna de nuvem?” Falava-lhes por figuras. Se, pois, falava de uma nuvenzinha, aquelas palavras obscuras prenunciavam alguém que se revelaria. Este alguém já não é um desconhecido, porque nós o conhecemos, nosso Senhor Jesus Cristo. “Moisés e Aarão contam-se entre os seus sacerdotes e Samuel entre os que invocam o seu nome. Invocavam o Senhor e ele os atendia. Falava-lhes da coluna de nuvem”. Aquele que antes falava da coluna de nuvem, falou-nos do escabelo de seus pés, isto é, da terra assumida, a carne, donde vem que nos prostramos ante o escabelo de seus pés, porque ele é santo. Ele mesmo falava da nuvem e então não era compreendido; falou do escabelo de seus pés, e foram compreendidas as palavras desta nuvem. “Falava-lhes da coluna de nuvem”. | |
§ 11 | Atenção, irmãos. Vede quais e que santos o salmista nomeou. “Eles guardavam seu testemunho e os preceitos que lhes deu”. Guardavam, certamente. Atenção! “guardavam seu testemunho e os preceitos que lhes deu”. Isso afirma o salmista e não se pode negar. Não tinham pecados? Como? Quando guardavam seus preceitos, guardavam seus testemunhos. Vede como nos quer formar, a fim de não presumirmos de uma quase perfeita justiça. Eis Moisés e Aarão contados entre os seus sacerdotes e Samuel entre os que invocam o nome de Deus. A eles falava Deus da coluna de nuvem e tão abertamente os atendia que eles guardavam os testemunhos e os preceitos que lhes dera. “Senhor, nosso Deus, tu os escutavas. Foste para eles um Deus propício”. Não se diz que Deus é propício senão relativamente aos pecados. É denominado propício quando perdoa. E o que encontrava nestes para castigar, de sorte que devia ser propício, perdoando? Era propício perdoando os pecados e propício castigando-os. Como continua o salmo? “Foste para ele um Deus propício, mesmo ao castigares todas as suas faltas”. Mesmo castigando, foste propício; não somente perdoando foste propício, mas também castigando. Notai, irmãos, a recomendação aqui feita; tomai nota. Deus se encolerizava contra aquele que peca e não castiga; pois, ao ser efetivamente propício, não apenas perdoa os pecados para não condenar no mundo futuro, mas ainda castiga, a fim de que o pecador não tenha sempre complacência para com os pecados. | |
§ 12 | Vamos, irmãos. Indaguemos como Deus os castigou. Que ele me assista nesta explicação. Indaguemos, pois, acerca destas três pessoas, Moisés, Aarão e Samuel, como foram castigados, pois diz o salmo: “Mesmo ao castigares as suas faltas”. De fato, cita as falhas que o Senhor conhecera haver em seus corações, ocultas aos homens. Com efeito, viviam de maneira irrepreensível no meio do povo de Deus. Mas que dizemos? Moisés teve primeiro talvez uma vida de pecado? De fato, matou um homem e fugiu do Egito. Aarão também teve primeiro uma vida que desagradou a Deus. Pois, ele permitiu ao povo enlouquecido e enfurecido que fabricasse um ídolo, e foi feito um ídolo para o povo de Deus o adorar. Que fez Samuel, desde criança dedicado a Deus no templo? Passou todas as fases da vida no meio dos sacramentos santos de Deus, sendo servo de Deus desde a infância. Nunca se disse algo contra Samuel, nada foi dito da parte dos homens. Talvez soubesse Deus de alguma coisa a purificar, porque mesmo o que parece perfeito aos homens, ainda é imperfeito diante da perfeição de Deus. Muitas vezes os artistas fazem uma obra e a mostram a não conhecedores daquela arte. E quando os imperitos a declaram perfeita, os artistas a retocam, sabendo o que ainda falta, de tal forma que os homens ficam admirados de tantos retoques na obra que eles haviam declarado estar perfeita. O mesmo acontece nos edifícios, nas pinturas, nas vestes e quase em toda espécie de arte. Primeiro os ignorantes julgam a obra já quase perfeita, porque seus olhos de nada sentem falta; mas difere o juízo de um olho imperito do critério da arte. Assim também aqueles santos viviam perante os olhos de Deus, como se não tivessem culpa, como sendo perfeitos, como anjos; aquele que castigava todas as suas faltas sabia o que lhes faltava. Castigava sem cólera, mas propício; castigava para completar o que fora começado, e não para condenar o que era rejeitado. Deus, portanto, castigava todas as suas culpas. Como castigou a Samuel? Onde está o castigo? Digo-o, para que saibam os cristãos, que já conheceram a Cristo e para os quais veio Cristo no escabelo de seus pés; amou-os de tal forma que por eles deu o próprio sangue. Saibam como são flagelados, quando estiverem muito adiantados. Indagamos qual o castigo de Moisés; foi quase nulo, a não ser que no fim da vida lhe disse Deus: “Sobe a esta montanha. Morrerás”. Deus disse ao ancião: “Morrerás”. Já passara por todas as idades; por acaso jamais morreria? Que castigo é este? Ele lhe mostrou qual o seu castigo, nestes termos: “Não poderás entrar na terra prometida” (cf Dt 42,49.52; 34,4), onde entraria aquele povo? Moisés era figura de alguns outros. Pois, aquele que entrou no reino dos céus, teria como grande castigo não entrar naquela terra, prometida temporariamente, como uma sombra que passaria? Porventura não entraram muitos pérfidos naquela terra? Acaso os que viviam naquela terra não praticaram muitos pecados e ofenderam a Deus? Não praticaram a idolatria naquela mesma terra? Era coisa importante que a Moisés não fosse dada aquela terra? Mas Moisés era uma figura dos que estavam sob a lei, porque a lei foi dada por Moisés (Jo 1,17), e representava que os que queriam estar sob a lei e não sob a graça, não entrariam na terra da promissão. Por conseguinte, o que foi dito a Moisés era uma figura e não um castigo. Que castigo seria para um ancião a morte? Qual a pena de não entrar naquela terra onde entraram os indignos? Que, porém, foi dito de Aarão? Morreu velho, e seus filhos foram seus sucessores no sacerdócio; seu filho depois exerceu o sacerdócio (Nm 20,24-28); como então castigou também a este? Samuel também, um santo ancião morreu e deixou os filhos como seus sucessores (1Rs 8,1; 25,1). Investigo qual o seu castigo e humanamente não encontro; mas segundo o que sei como sofrem os servos de Deus, eles eram castigados diariamente. Lede e vereis os castigos, e vós que procurais progredir, suportai esses castigos. Cada dia suportavam as contradições do povo, cada dia sofriam por causa dos que viviam perversamente. Eram obrigados a viver no meio deles e diariamente reprovavam sua vida. Este era o castigo. Quem o considera insignificante, ainda não progrediu. À medida que deixas a tua injustiça, a dos outros te atormentará. Pois, ao te tornares trigo, isto é, planta boa de uma boa semente, filho do reino, ao começares a dar grãos, então aparece o joio; porque, “quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio”. Ao aparecer o joio, verificarás que estás no meio dos maus. Quase preferes separar-te dos maus, e tirar da Igreja todos os maus; o Senhor te responderá com a sentença: “Deixai-os crescer juntos até a colheita, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo” (Mt 13,26-30). A sentença do Senhor mostra ser necessário poupar o joio, e é condição do servo viver obrigatoriamente no meio do joio. Não podes separá-lo; é preciso tolerá-lo. Vê as feridas que tens no coração, apesar de teres o corpo íntegro, no meio dos maus. Vós todos que estais adiantados no caminho, provais o vosso progresso. Tudo isso deve ser tolerado; talvez tenha referência à palavra: “Aquele servo que conheceu a vontade de seu senhor, mas não agiu conforme sua vontade, será açoitado muitas vezes” (Lc 12,47). Quando a vontade de Deus nos é conhecida em muitos pontos, na mesma medida aparecem-nos nossas culpas; e quanto mais as conhecemos, tanto mais aumentam nossos prantos e lágrimas. Verificamos como é justo o que Deus exige de nós, em quantas imperfeições estamos prostrados; realiza-se em nós a palavra: “Aumentando o saber, aumenta-se o sofrer” (Ecl 1,18). Aumente em ti a caridade e mais terá dor por ter pecado. À medida que a caridade em ti for maior, atormentar-te-á aquele que suportas. Ele não te atormentará encolerizando-te, mas fazendo com que te condoas de seus males. | |
§ 13 | Vê como o apóstolo Paulo sofria; vê quem e o que sofria. Diz ele: “E isto sem contar o mais”, externamente (dissera muitos de seus padecimentos e começou a descrever os internos, além dos externos, que lhe adivinham dos maus, perseguidores de Cristo), “a minha preocupação cotidiana, a solicitude que tenho por todas as Igrejas!” E vê qual é a sua solicitude, como é paterna, como é materna. Notai como era batido, para serem castigadas todas as suas faltas; diremos também quais as suas culpas, que Deus castigava. Diz ele: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem se escandaliza, sem que eu me abrase”? (2 Cor 11,28.29). Quanto maior a caridade, tanto mais profundas as chagas por causa dos pecados alheios. Foi-lhe dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás para o espancar. Eis como Deus lhe era propício, castigando todas as suas faltas. Quais as faltas que lhe eram castigadas? Ele mesmo expôs, disse: “Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás para me espancar”. Apesar de tão perfeito, todavia era de se temer que se ensoberbecesse; pois Deus não aplicaria um remédio onde não houvesse ferimento. E ele pediu que lho fosse retirado; o doente pedia que se retirasse o medicamento: “A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim”, isto é, o aguilhão na carne que o espancava, talvez alguma dor corporal, “pedi, disse que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2 Cor 12,7-9). Eu conheço aquele de quem estou tratando; o doente não me dê conselho. Como um emplastro mordente arde, mas cura. Ele suplica ao médico que tire o emplastro; mas ele não o retira a não ser quando estiver curada a parte do corpo onde o colocara. “É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Ora, irmãos, todos nós que progredimos em Cristo, não pensemos que podemos ficar sem os açoites; porque, por mais que nos aperfeiçoemos, Deus conhece nossos pecados. Por vezes, ele nos mostra também os pecados e nós os vemos. E quando começarmos a viver entre tais homens, que os outros já não tenham em que nos censurar, censura-nos aquele que tudo sabe e castiga todas as culpas, porque nos é propício. Efetivamente, se não castiga e nos deixa de lado, estamos perdidos. “Deus, foste para eles um Deus propício, mesmo ao castigares todas as suas faltas”. | |
§ 14 | 9 “Exaltai ao Senhor nosso Deus”. Novamente o exaltamos. Como deve ser louvado, como deve ser exaltado aquele que é bom, apesar de ferir? Tu podes agir assim para com teu filho e Deus não pode? De fato, não és bom quando acaricias teu filho e mau quando bates em teu filho. És pai quando acaricias e és pai quando castigas. Acaricias a fim de que ele não desanime; bates, para que não se perca. “Exaltai ao Senhor nosso Deus e adorai-o em seu monte santo, porque é santo o Senhor nosso Deus”. Mais acima dizia o salmo: “Exaltai ao Senhor nosso Deus. Prostrai-vos ante o escabelo de seus pés”, e nós entendemos o que é adorar o escabelo de seus pés. Assim também agora, após aludir à exaltação do Senhor nosso Deus, a fim de que ninguém o exalte fora de seu monte, nomeou o mesmo monte. Quem é seu monte? Lemos em outra passagem da Escritura que uma pedra se destacou do monte sem intervenção de mão alguma, quebrou todos os reinos da terra e cresceu a própria pedra. Foi Daniel quem teve esta visão que narro. Cresceu esta pedra destacada do monte sem intervenção de mão alguma e “tornou-se uma grande montanha, que ocupou a terra inteira” (Dn 2,34.35). Adoremos neste grande monte, se queremos ser atendidos. Os hereges não adoram neste monte, porque esta montanha ocupou a terra inteira. Aderiram a um partido e perderam o todo. Se reconhecerem a Igreja católica, adorarão conosco neste monte. Com efeito, já notamos como aquela pedra destacada do monte sem intervenção de mão alguma cresceu, quantas regiões da terra ocupou e até que povos atingiu. Que é o monte donde foi destacada a pedra sem intervenção de mão alguma? O reino dos judeus. Anteriormente eles adoravam um só Deus. De lá foi destacada a pedra, nosso Senhor Jesus Cristo. Dele disse: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Sl 117,22; At 4,11). Esta pedra destacada do monte sem intervenção de mão alguma quebrou todos os reinos da terra. Verificamos que todos os reinos da terra foram quebrados por aquela pedra. Quais foram os reinos da terra? Os reinos dos ídolos, os reinos dos demônios foram esmagados. Reinava Saturno entre muitos homens; onde se acha seu reino? Foi esmagado, foram reduzidos todos eles ao reino de Cristo, nos lugares onde este reinava. Que importância tinha o reino de Celeste em Cartago! Onde está agora o reino de Celeste? Aquela pedra quebrou todos os reinos da terra, a pedra destacada do monte sem intervenção de mão alguma. Que quer dizer: destacada do monte sem intervenção de mão alguma? Cristo, nascido do povo judaico, sem atuação humana. Pois, todos os homens nascem de um matrimônio; ele nasceu da virgem, sem intervenção humana; pois, por mãos se indicam as obras humanas. Não houve intervenção de mão humana alguma, não houve cópula conjugal, no entanto foi concebido. Nasceu, portanto, do monte sem intervenção de mão alguma aquela pedra: cresceu, e crescendo esmagou todos os reinos da terra. Tornou-se uma grande montanha, que ocupou a terra inteira. Tal é a Igreja católica, da qual vos alegrais de participar. Os outros, porém, que não têm comunhão com ela, que adoram e louvam a Deus, fora do próprio monte, não são atendidos no que importa à vida eterna, apesar de serem atendidos em relação a determinados bens temporais. Não se iludam, portanto, por serem ouvidos em determinadas questões por Deus; pois ele atende também aos pagãos em certos pontos. Os pagãos não clamam por Deus e obtêm as chuvas? Por quê? Porque Deus faz nascer seu sol sobre bons e maus e faz cair a chuva sobre justos e injustos (cf Mt 5,45). Não te gabes, portanto, ó pagão, visto que, ao clamares por Deus, dele obténs a chuva, porque ele faz cair a chuva sobre justos e injustos. Ele te ouviu a respeito de bens temporais; não te escutará quanto aos bens eternos, se não adorares em seu monte santo. “Adorai o Senhor em seu monte santo, porque é santo o Senhor nosso Deus”. | |
§ 15 | Estas palavras bastem à V. Caridade, sobre o presente salmo. Falamos quanto Deus permitiu. E tudo o que falamos em nome de Deus, visto que é Deus quem fala por nós, constitui uma chuva de Deus. Examinai que espécie de terra sois vós. Pois, quando a chuva cai sobre a terra, se a terra é boa, produz bons frutos; se a terra é má, germinam espinhos. No entanto, a chuva é suave, tanto para os frutos quanto para os espinhos. Quem se tornar pior, depois de ouvir estas palavras, e com a chuva produzir espinhos, aguarde o fogo, sem acusar a chuva. Quem melhorar, e produzir bons frutos de uma terra boa, aguarde o celeiro, louve a chuva. Com efeito, quais são as nuvens, ou o que é a chuva, a não ser a misericórdia de Deus, que tudo fez para os que ama, e tudo lhes deu para ser amado? | |