ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 96 | ||
§ 96:1 | Ƈ Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, todos os moradores da terra. | |
§ 96:2 | Ƈ Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome; anunciai de dia em dia a sua salvação. | |
§ 96:3 | Ɑ Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos as suas maravilhas. | |
§ 96:4 | Ꝓ Porque grande é o Senhor, e digno de ser louvado; ele é mais temível do que todos os deuses. | |
§ 96:5 | Ꝓ Porque todos os deuses dos povos são ídolos; mas o Senhor fez os céus. | |
§ 96:6 | ʛ Glória e majestade estão diante dele, força e formosura no seu santuário. | |
§ 96:7 | Ŧ Tributai ao Senhor, ó famílias dos povos, tributai ao Senhor glória e força. | |
§ 96:8 | Ŧ Tributai ao Senhor a glória devida ao seu nome; trazei oferendas, e entrai nos seus átrios. | |
§ 96:9 | Ɑ Adorai ao Senhor vestidos de trajes santos; tremei diante dele, todos os habitantes da terra. | |
§ 96:10 | Ɗ Dizei entre as nações: O Senhor reina; ele firmou o mundo, de modo que não pode ser abalado. Ele julgará os povos com retidão. | |
§ 96:11 | Ɑ Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; brame o mar e a sua plenitude. | |
§ 96:12 | ⱻ Exulte o campo, e tudo o que nele há; então cantarão de júbilo todas as árvores do bosque | |
§ 96:13 | ɖ diante do Senhor, porque ele vem, porque vem julgar a terra: julgará o mundo com justiça e os povos com a sua fidelidade. | |
O SALMO 96 | ||
SERMÃO AO POVO (Proferido Em Cartago) | ||
§ 1 | Oferece Deus ao coração do cristão grandiosos espetáculos e a nada de mais agradável pode-se assistir, quando se tem o paladar da fé, que saboreie o mel de Deus. Cremos possuírdes todos vós o seu Espírito, pois acredi-tastes de todo coração em nosso Salvador. Este Espírito vos deleita na leitura das profecias prenunciadas há tantos anos pela boca dos santos e realizadas tanto tempo depois, para fé dos gentios. Então já alimentavam grande alegria aqueles mesmos santos profetas, ao contemplarem espiritualmente não uma realização atual, e sim futura. Tinham então grande alegria; contudo, pelo amor por nós que os inflamava, apesar de não nos verem quando nos geravam espiritualmente, queriam, se fosse possível, viver agora conosco e verem cumpridas as realidades que no espírito profetizavam. Daí vem o Senhor dizer a seus discípulos que começavam a vê-las: “Muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não ouviram” (Mt 13,17). Apesar de as verem em espírito, viam-nas de certo modo futuras; aos apóstolos, ao invés, estavam presentes. Por esta razão, o velho Simeão, que era justo, exultou intensamente ao contemplar o menino Jesus, reconhecendo naquele pequenino o grande Senhor, e naquele corpinho vendo o Criador do céu e da terra. Com efeito, exultou intensamente, porque recebera a revelação de que não morreria sem ver a salvação enviada por Deus. Reconheceu-o, pois, alegrou-se, exultou cheio de gozo e disse: “Senhor, agora podes despedir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,25-30). Intenso, portanto, foi este regozijo, produzido pela caridade. Nós nos deleitamos ao ser cantado este salmo. Certas expressões foram entendidas por todos. Algumas, contudo, a meu ver, somente por poucos, ou certamente não por todos. Consideremos, portanto, juntamente aquele que nos leva a vos servir e vejamos como Deus se dignou nos alegrar, apresentando o objeto de suas promessas e demonstrando que em nós foram realizadas. | |
§ 2 | 1 O Salmo tem por título: “De Davi, quando lhe foi restituída sua terra”. Atribuamos tudo a Cristo, se queremos manter-nos no caminho do entendimento reto. Não nos apartemos da pedra angular, a fim de que não se arruíne o nosso intelecto. Consolide-se nela tudo o que oscilava na instabilidade; repouse sobre ela tudo o que pendia na incerteza. Qualquer dúvida que surgir no ânimo, ao ouvir o homem as Escrituras de Deus, não se aparte de Cristo. Se aquelas palavras lhe revelarem o Cristo, saiba que entendeu; não presuma ter compreendido antes de chegar ao conhecimento de Cristo. “O fim da lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). E Então, como se atribui a Cristo a expressão: “Quando lhe foi restituída sua terra?” Pois, não é díficil ver referência a Cristo em Davi. De fato, Cristo nasceu de Maria, da descendência de Davi; e como viria desta estirpe, pelo nome de Davi ele era profetizado em figura. Portanto, em Davi temos Cristo, mesmo porque o siginificado do nome de Davi é Mão forte. Quem possui mão mais forte do que aquele que venceu o mundo na cruz? Ora, após sua ressurreição e ascensão e tendo os apóstolos com a vinda do Espírito Santo recebido o dom de falar em várias línguas, a multidão dos que haviam crucificado o Cristo se comoveu e procurou alcançar a salvação (cf At 2,4). Aceitou-a, acreditou. Foi absolvida, tendo sido perdoado o reato do sangue de Cristo e foi-lhe concedido beber do sangue de Cristo. Tornaram-se fiéis os que haviam sido perseguidores. Acreditaram naquele que haviam crucificado e diante do qual meneavam a cabeça, como insulto; quiseram tê-lo por sua Cabeça. Assim, pois, “foi-lhe restituída sua terra”, de acordo com o título do salmo. Efetivamente, a Judéia era sua terra, e toda ela perecera, quando crucificaram seu Senhor aqueles ignorantes, frenéticos, enfurecidos contra o médico, que repeliam em sua loucura a sua própria salvação. De certo modo perecera toda a Judéia. Por que toda? Até mesmo os apóstolos hesitaram. Pedro que seguia a Cristo preso, com amor audacioso, negou-o três vezes por timidez e medo. O Senhor Jesus Cristo ressuscitado encontrou na estrada de Emaús os discípulos que falavam entre si a respeito dele; de tal modo que responderam a sua pergunta sobre qual seria o assunto de que falavam: “Tu és o único forasteiro em Jerusalém que ignora os fatos que nela aconteceram nestes dias? Quais? Responderam: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que foi profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus e diante de todo o povo. Nossos chefes dos sacerdotes e nossos príncipes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel” (Lc 24,18.21). Já haviam perdido a esperança em Cristo. Pois, não disseram: Esperamos que há de redimir, e sim: “Esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel”. Tinham-no consigo, mas não possuíam esperança nele. Cristo se mostrou a eles, manifestou-se também aos demais discípulos. Foi visto, tocado, encontrado por aqueles que pensavam que ele perecera. Recuperaram a fé os que haviam caído: “foi-lhe restituída sua terra”. Em seguida, após quarenta dias com eles, subiu ao céu (cf At 1,3-9); e conforme há pouco relembrei, enviou o Espírito Santo que fez com que seus discípulos, homens sem instrução, falassem as línguas de todos os povos. Então, aqueles pelos quais rezara eficazmente: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Abalados, conforme dissemos, procuraram obter a salvação e aceitaram a exortação a crerem nele. Creram num só dia três mil, e de outra vez, cinco mil (cf At 2,41; 4,4); a Igreja de Cristo começou a fervilhar na Judéia, onde fervilhara o opróbrio de Cristo, e “foi-lhe restituída sua terra”. Mas, segundo o que ele mesmo dissera: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; devo conduzi-las também e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16), os apóstolos foram enviados também aos gentios, aos quais os profetas não tinham sido enviados. Foram procurados os que não o buscavam, e encontrados os que nada esperavam. Eles não tinham as promessas de Deus, mas encontraram-no como seu redentor. No entanto, os judeus tinham as promessas de Deus, porque entre eles os profetas prenunciaram e prometeram o Cristo. Ouviram as promessas sobre ele, mas não o conheceram quando esteve presente. Aos gentios, porém, nada fora prometido, contudo, os profetas falaram acerca de sua fé. Se as profecias não foram para eles, eram a respeito deles. Houve uma missão para eles e ouviste qual foi, por disposição de Deus. Pois, a leitura há pouco ouvida é tirada dos Atos dos Apóstolos e trata da maneira como o centurião Cornélio acreditou. Cornélio não era centurião do povo judaico. Orava, jejuava, dava esmolas. Deus não o abandonou, apesar de ser gentio; foi-lhe enviado um anjo que lhe anunciou terem sido aceitas junto de Deus suas esmolas e suas orações. Ele acreditou e chamou Pedro para junto de si (cf At 10). Por acaso o anjo não poderia instruí-lo? O Senhor, que se dignara visitar os homens, enviou-o a Pedro, a fim de que sua fé fosse esclarecida por meio de um homem. Não desdenhou ensinar por intermédio de um homem aquele que se dignara fazer-se homem. Assim, portanto, “foi-lhe restituída sua terra”. Uma parede vinha do lado dos judeus, e outra do lado dos gentios; ele seria a pedra angular a unir os dois povos, as duas paredes que vinham de lados diferentes (cf Ef 2,20). | |
§ 3 | Mais uma vez, como entendemos: “Quando lhe foi restituída sua terra?” Quando sua carne ressuscitou. Então, ocorre-nos outro sentido, embora igualmente se refira a Cristo. A terra restituída seria a carne ressuscitada. Após sua ressurreição realizaram-se todos esses eventos cantados pelo salmo. Ouçamos o salmo que está repleto da alegria por causa da restituição de sua terra. O próprio Senhor nosso Deus excite em nós uma expectativa e uma alegria dignas de tão grande fato. Ele dirija nossa palavra de maneira apta a vossos corações, de tal forma que a alegria que tais espetáculos despertam em nosso coração, ele a transmita em nossa língua e desta a vossos ouvidos e em seguida a vosso coração e depois a vossas ações. | |
§ 4 | “O Senhor é rei”. Aquele que compareceu diante de um juiz, que recebeu tapas, foi flagelado, cuspido, coroado de espinhos, esbofeteado, suspenso no madeiro, crucificado e insultado, morreu na cruz, foi ferido com a lança, sepultado, ele mesmo ressuscitou: “O Senhor é rei”. Os reinos enfureçam-se quanto puderem; que podem fazer ao Rei dos reinos, ao Senhor de todos os reis, ao Criador de todos os séculos? Ou será desprezado, por ter aparecido tão submisso, tão humilde? Foi misericórdia, não carência. Mostrou-se humilde a fim de se pôr a nossa altura. Mas, vejamos: “O Senhor é rei, exulte a terra. Alegre-se a multidão das ilhas”. Assim é, porque a palavra de Deus foi anunciada não só no continente, mas também nas ilhas do meio do mar. Elas estão cheias de cristãos, de servos de Deus. O mar não constitui uma separação para aquele que fez o mar. As palavras de Deus não atingem os lugares aonde os navios têm acesso? As ilhas estão cheias. Todavia, é possível tomar figuradamente a palavra: ilhas, como sendo todas as igrejas. Por que são denominadas ilhas? Por que ao redor delas ouve-se o bramido das ondas de todas as tentações. Mas, assim como uma ilha pode ser batida de todos os lados pelo fragor das ondas, mas não se quebra, ou antes as ondas é que se quebram na praia e não vice-versa, também as igrejas de Deus, propagadas por toda a terra, sofreram perseguições dos infiéis enfurecidos, de todos os lados. E as ilhas estão firmes, e o mar em bonança. “Alegre-se a multidão das ilhas”. | |
§ 5 | 2 “Ele está envolvido em nuvem escura. A justiça e o direito sustentam o seu trono”. Como “está envolvido em nuvem escura?” Como “a justiça e o direito sustentam o seu trono?” Nuvem escura para os ímpios, que não o compreenderam; justiça e direito para os fiéis que nele acreditaram; os primeiros não viram por causa da soberba, os segundos mereceram ser orientados em vista de sua humildade. Escuta qual é a nuvem escura, quais a justiça e o direito. O próprio Senhor o declara: “Para julgamento é que vim a este mundo; para que os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos” (Jo 9,39). Que significa: “os que vêem tornem-se cegos?” Tornem-se cegos, não entendam aqueles que julgam ver, que se consideram sábios, que não pensam necessitarem de remédio. “Os que não enxergam, vejam”: os que confessam sua cegueira mereçam ser iluminados. Sejam, portanto, “envolvidos em nuvem escura” os que não o conheceram; mas aos que o confessam e se humilham, “a justiça e o direito sustentem o seu trono”. Chama de seu trono aqueles mesmos que nele acreditaram; o Senhor fez deles o seu trono, pois a Sabedoria neles se senta; pois o Filho de Deus é a Sabedoria de Deus” (cf 1Cor 1,24). Encontramos, porém, em outra passagem da Escritura a melhor prova deste modo de entender. “A alma do justo é o trono da Sabedoria” (Sb 12,13). Por conseguinte, tornaram-se justos os que nele creram; justificados pela fé, fizeram-se seu trono. Ele neles se senta, julga por meio deles, e os orienta. Por quê? Porque encontrou-os mansos, quais jumentos mansinhos, não recalcitrantes, não soberbos a sacudirem o jugo ou recusarem o castigo. Tornaram-se jumentos dele, bons e mansos e mereceram a recompensa citada em outro salmo: “Dirigirá os mansos no juízo. Ensinará aos dóceis os seus caminhos” (Sl 24,9). Em conseqüência disso, são nuvens escuras os que não são retos; os mansos, porém, terão “a justiça e o direito a sustentarem o seu trono”. | |
§ 6 | 3 “Um fogo arderá a sua frente e abrasará ao redor seus inimigos”. De que fogo fala, irmãos, com esses termos: “Um fogo arderá a sua frente e abrasará ao redor seus inimigos?” Não creio que se trata do fogo em que serão lançados os ímpios após a última sentença do juiz, aos quais, separados e postos à esquerda, conforme recordamos ter sido lido no evangelho, se dirá: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41). A meu ver, não se trata deste fogo. Que base tenho para esse parecer? Porque se trata de determinado fogo, que o precederá, antes que ele venha para o juízo. Pois, foi dito que será precedido por fogo que queimará tudo em redor, isto é, seus inimigos pela terra inteira. Aquele fogo será após a sua vinda, este, contudo, o precederá. Que fogo, então, é este? É possível entender do castigo dos maus, e da salvação dos justos redimidos. Como será castigado para os maus? Ao ser anunciado o Cristo, os povos se agitaram, e se abalaram, perseguindo. Sua ira foi um fogo, que mais consumia os perseguidores do que os perseguidos. Ao notarmos dois homens dos quais um está irado e o outro o suporta com paciência, qual deles queima-se mais? Julgai. É possível ver tal espetáculo entre os homens. Imaginai um homem iníquo, com o ânimo perturbado, o rosto cruel, olhos inflamados, com palavras ardentes, ser levado a matar outro, não se contendo, não se abstendo de depredações, de injúrias, de insultos; o outro pacientemente recebendo as palavras, os ferimentos, tudo o que ele quiser lhe infligir, e ao que lhe bate numa face oferecendo a outra; ao vires de um lado a fúria e de outro a mansidão; daqui a ira, dali a paciência, daqui as chamas e dali a tolerância, terias ainda dúvidas de qual deles está queimando e sofre o suplício? É aquele que é maltratado corporalmente ou o outro com a alma devastada? Por causa disso, diz também o profeta Isaías: “E agora o fogo preparado para os teus adversários os consumirá” (Is 26,11). Que significa: “E agora?” Antes de chegar aquele dia do grande juízo, já ardem em seu furor aqueles que hão de queimar naquele fogo que causa um suplício eterno. A não ser, irmãos, que em vossa opinião, a injustiça que parte de alguém para prejudicar a outrem, atinja a quem é dirigida e não seja nociva àquele de onde parte. Como pode ser isto? Por vezes, achega-se um facho ardente à lenha úmida e verde, que não deixa o fogo pegar, no entanto o facho arde: assim acontece igualmente a teu inimigo. Se existe algum que te trama insídias, ou te opõe dificuldades, ele é injusto; tu, se fores lenha verde, isto é, se és um ramo viçoso, verde, cheio de seiva espiritual, resistirás às chamas da inimizade, rezando por aquele que te persegue; ele arde, mas tu permaneces íntegro; sua injustiça o prejudica, não a ti. A não ser que consideres prejuízo o que ataca teu corpo, conquanto a alma paciente e incorrupta chegue até Deus para ser coroada, tendo seguido o exemplo do seu Senhor que preferiu sofrer da parte dos judeus, e que apesar de poder não morrer, morreu, e de poder não nascer, nasceu. Em ti o nascimento é natural, nele é voluntário; tu hás de morrer devido a tua condição humana, e ele por misericórdia. Da mesma forma que os judeus em nada o prejudicaram, nem o inimigo perseguidor te fará mal se preferires ser membro daquela Cabeça. | |
§ 7 | Já entendemos que o fogo que precede, agora indica certo castigo dos infiéis e iníquos. Vejamos também, se é possível, como denota a salvação dos remidos; pois era isso que nos propuséramos. O próprio Senhor disse: “Eu vim trazer fogo à terra” (Lc 12,49). Fogo, da mesma forma que a espada; pois em certa passagem disse que não veio trazer a paz a terra, mas a espada (cf Mt 10,34). Espada para separação, fogo para cauterização; mas ambas salutares, porque também a espada da palavra nos separou salutarmente dos hábitos maus. O Senhor trouxe a espada e separou cada fiel ou de pai que não acreditara em Cristo, ou de mãe igualmente infiel; ou certamente, se nasceu de pais cristãos, ao menos de seus antepassados. Nenhum de nós há que não tenha tido um avô, ou bisavô, ou alguma antiga origem gentílica, seguidores daquela detestável infidelidade a Deus. Fomos separados daquilo que éramos, mas a espada interveio distinguindo, sem matar. Do mesmo modo o fogo: “Eu vim trazer fogo à terra”. Arderam nele os que acreditaram, receberam o fogo da caridade; por esta razão igualmente o Espírito Santo foi enviado aos apóstolos e “apareceram umas como línguas de fogo, que se distribuíram e foram pousar sobre cada um deles” (At 2,3). Inflamados neste fogo, começaram a ir pelo mundo, queimar e incendiar ao redor de si os seus inimigos. Quais inimigos? Os que haviam abandonado o Deus que os fizera, para adorarem os ídolos que haviam fabricado. Incendiavam os maus para serem consumidos e os bons a fim de os restaurarem. Era queimado aquele que não queria acredita, pois tendo ouvido a palavra de Deus se tornara pior e por aquele fogo era queimado, consumido, por causa de sua inveja. Se, ao contrário, se convertesse e acreditasse, nem assim deixaria de arder alguma coisa. Pois, ardia o feno, a fim de que o ouro ficasse purificado. O ouro é a fé, e o feno é a concupiscência carnal. Diz Isaías: “Toda carne é feno, e toda a sua graça como a flor do feno” (Is 40,6). Tudo aquilo que o homem carnal deseja de vão e mundano é feno. Quantos, talvez, irmãos nossos foram ao teatro? Foram arrastados pelo feno. Não seria desejável que passassem por este fogo, a fim de que o feno seja queimado e o ouro purificado? O feno oprime toda a fé que há neles. Seria um bem arderem neste fogo santo, para que após ter sido consumido o feno, brilhe a parte preciosa, remida por Cristo. Portanto, “um fogo arderá a sua frente a abrasará ao redor seus inimigos”. Alguns foram abrasados de maneira salutar e hoje são fiéis. Eram do número de seus inimigos e agora já são fiéis. Procuras os inimigos e já não existem; foram consumidos, abrasados. A caridade consumiu os perseguidores de Cristo e purificou-os para crerem em Cristo: “E abrasará ao redor seus inimigos”. | |
§ 8 | 4 “Seus relâmpagos iluminaram o orbe da terra”. Grande exultação. Não o vemos? Não é coisa manifesta? Seus relâmpagos iluminaram toda a terra. Os inimigos inflamaram-se, abrasaram-se. Ardeu toda contradição “e seus relâmpagos iluminaram o orbe da terra”. Como apareceram? Fazendo com que eles cressem. De onde vieram os relâmpagos? Das nuvens. Quais são as nuvens de Deus? Os pregadores da verdade. Vês uma nuvem no céu nebulosa, obscura, mas contendo alguma coisa escondida. Se corusca da nuvem, brila com esplendor. Desprezavas o que dali surgiu em teu pavor. Nosso Senhor Jesus Cristo, pois, enviou seus apóstolos, seus pregadores, quais nuvens. Os homens os olhavam e desprezavam-nos, tal como se vêem as nuvens e são menosprezadas até que de lá surja o relâmpago que te causa admiração. Os apóstolos, primeiramente eram homens, carnais, fracos; além disso, ignorantes, indoutos, vulgares; mas havia neles algo que podia fulgurar, que podia coruscar. Aproximava-se Pedro, o pescador; rezava e ressuscitava um morto (cf At 9,40). O aspecto humano era uma nuvem e o esplendor do milagre um relâmpago coruscante. Em palavras e obras, ao falarem e fazerem eram admiráveis. “Seus relâmpagos iluminaram o orbe da terra. A terra estremeceu ao vê-los”. Não é verdade? Toda a terra, já cristã, não clama: Amém, abalada pelos relâmpagos que surgem daquelas nuvens? “A terra estremeceu ao vê-los”. | |
§ 9 | 5 “Os montes derreteram como cera na presença do Senhor”. Que montes? Os soberbos. Toda grandeza que se exalta contra Deus, diante dos feitos de Cristo e dos cristãos tremeu, sucumbiu, e quando repito a palavra acima: Derreteu não posso encontrar verbo melhor. “Os montes derreteram como cera na presença do Senhor”. Onde está a grandeza dos potentados? Onde a dureza dos infiéis? “Os montes derreteram como cera na presença do Senhor”. O Senhor apresentou-se a eles como fogo, e eles derreteram como cera na sua presença. Persistiam na dureza, até que se lhes aproximasse o fogo. Toda elevação foi aplainada e agora não ousa blasfemar contra Cristo. Também o pagão não acredita, mas não blasfema; embora não se tenha tornado pedra viva, no entanto a dureza da montanha foi superada. “Os montes derreteram como cera na presença do Senhor”. Na presença do Senhor de toda a terra”: não somente dos judeus, mas também dos gentios segundo a palavra do Apóstolo. Pois Deus não é Deus somente dos judeus, mas também dos gentios (cf Rm 3,29). Efetivamente, o Senhor de toda a terra, nosso Senhor Jesus Cristo nasceu na Judéia. Mas não somente para a Judéia, porque antes de nascido fez a todos e quem fez a todos, todos restaurou. “Na presença do Senhor de toda a terra”. | |
§ 10 | 6 “Os céus anunciaram a sua justiça. Viram todos os povos a sua glória”. Quais os céus que anunciaram? “Narram os céus a glória de Deus!” (Sl 18,2). Que céus? Os que se tornaram o trono de Deus. Da mesma forma que Deus se senta nos céus, assim o fazem também os apóstolos, nos pregadores do evangelho. Também tu, se quiseres, te tornarás um céu. Queres ser um céu? Purifica teu coração do que é da terra. Se não tiveres concupiscências terrenas, e não responderes em vão que tens o coração ao alto, serás um céu. O Apóstolo assim se dirige aos fiéis: “Se, pois, ressucsitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, e não as da terra” (Cl 3,1.2). Começaste a ter gosto pelas coisas do alto, e não pelas da terra; não te tornastes um céu? Tens um corpo, mas já estás de coração no céu; tua cidade está nos céus (cf Fl 3,20). Sendo assim, anuncias também tu a Cristo; pois, qual fiel cala-se a respeito de Cristo? V. Caridade esteja atenta. Pensais que nós apenas, aqui de pé, anunciamos a Cristo e vós não? Como se explica que nos procurem, com desejo de se tornarem cristãos, alguns que nunca vimos, que não conhecemos, aos quais jamais pregamos? Teriam crido sem que ninguém lhes anunciasse o Cristo? Fala o Apóstolo: “E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador”? (Rm 10,14). Com efeito, a Igreja inteira anuncia Cristo, e os céus anunciam sua justiça. Todos os fiéis que cuidam de ganhar para Deus aqueles que ainda não acreditaram e fazem-no por amor, são céus. Deus, por intermédio deles, faz trovejar o terror de seu juízo; treme o que era infiel, sente pavor, acredita. Mostrai aos homens o que pôde Cristo fazer na terra inteira; falai, levai-os ao amor de Cristo. Quantos hoje levaram seus amigos ao pantomimo, ou ao flautista e aos coros? Como, senão porque os amam? Também vós, amai a Cristo. Aquele que venceu o mundo e que ninguém pode acusar de qualquer culpa, exibiu tantos espetáculos! Acontece, porém, às vezes no teatro que alguém perde na torcida. Ninguém perde relativamente a Cristo. Não tem de que se envegonhar. Arrastai, levai, atrai todos os que puderdes. Ficai tranqüilos, porque os levais àquele que nunca desagrada aos assistentes; e pedi-lhe que os ilumine, para assistirem bem. “Os céus anunciaram a sua justiça. Viram todos os povos a sua glória”. | |
§ 11 | 7 “Sejam confundidos todos os que adoram ídolos”. Não foi isso que aconteceu? Não ficaram confundidos? Não se coram diariamente? Imagens esculpidas são os ídolos, obra das mãos dos homens. Por que são confundidos os que adoram estas imagens esculpidas? Porque todos os povos viram a glória de Cristo. Já confessam todos os povos a glória de Cristo; corem-se os que adoram pedras. Aquelas pedras eram mortas e nós encontramos a pedra viva. Ou antes, aquelas pedras nunca tiveram vida, e por isso não se pode dizer que morreram. Ao contrário, nossa pedra é viva, sempre viveu junto do Pai, e tendo morrido por nossa causa ressurgiu, agora vive, e a morte não o dominará mais (cf Rm 6,9). Os povos reconheceram-lhe tal glória; abandonam os templos e acorrem às igrejas. “Sejam confundidos todos os que adoram ídolos”. Ainda tentam adorar ídolos? Eles não quiseram abandonar os ídolos; estes os deixaram. “Sejam confundidos todos os que adoram ídolos e os que se gloriam de seus simulacros”. Mas aparece não sei quem para disputar, pensando que é sábio e diz: Não adoro aquela pedra, nem aquela estátua sem sensibilidade. Não foi apenas vosso profeta que pôde saber que eles têm olhos e não vêem (cf Sl 113,5); também eu sei que aquela estátua não tem alma, não vê com seus olhos, nem ouve com seus ouvidos. Não a adora, mas adoro o que vejo e sirvo aquele que não vejo. Quem é ele? Uma divindade invisível, responde ele, que preside àquele simulacro. Dando assim satisfação a respeito de seus simulacros, pensam que são espertos, que não adoram ídolos e no entanto cultuam os demônios. De fato, irmãos, segundo a palavra do Apóstolo: “Aquilo que os gentios imolam, eles o imolam aos demônios, e não a Deus. Ora, não quero que entreis em comunhão com os demônios, pois sabemos que o ídolo nada é”. O próprio Apóstolo o disse: “Sabemos que um ídolo nada é, mas aquilo que os gentios imolam eles o imolam a demônios e não a Deus. Ora, não quero que entreis em comunhão com os demônios” (1 Cor 10,19.20; 1Cor 8,4). Não tirem, pois, daí razões para se escusarem, como se não se devotassem a ídolos insensíveis; mais perigoso ainda é terem antes se devotado aos demônios. Pois, se apenas cultuassem os ídolos, estes assim como não os auxiliariam, tampouco os prejudicariam; mas se adoras e serves os demônios, eles serão teus senhores. E como serão esses teus senhores? Cheios de inveja. Necessariamente invejarão a tua liberdade, sempre procurarão apossar-se de ti, sempre te tornar tal que possam eles te arrastar consigo. Estes maus espíritos possuem entranhada malevolência e maldade para prejudicar. Alegram-se com o mal que infligem aos homens e se fartam de nos enganar, se o conseguem. Qual o seu fito? Não procuram súditos eternos, mas quem possa ser condenado eternamente com eles, assim como costuma um malévolo ladrão acusar um inocente. Acaso se for queimado vivo, queimará menos se forem dois a arder? Morrerá menos, se forem dois a morrer? O castigo não lhe é diminuído, mas sua malevolência se satisfaz. Morra comigo. Não diz que morrerá menos, mas sente alívio com o mal de outrem. Assim é o diabo. Quer seduzir aqueles que serão punidos com ele. Como não pode enganar a Deus ao julgar (não denuncia perante ele um inocente), e querendo ter verdadeiros crimes para denunciar, persua-de o homem a pecar. Eis os senhores que arrajam para si os que cultuam os ídolos e demônios: “Aquilo que os gentios imolam, eles o imolam aos demônios, e não a Deus. Ora, não quero que entreis em comunhão com os demônios”. | |
§ 12 | Quanto a nós, que Deus temos? Escutai como continua o salmo. Tendo dito: “Sejam confundidos todos os que adoram ídolos e os que se gloriam de seus simulacros”, tem em vista que não haja alguns que de certo modo se escusam a respeito dos simulacros e declarem: Não cultua-mos pedras, mas divindades. Que divindades adorais: dize-me. Cultuas os demônios, ou espíritos bons, como os anjos? Existem, de fato, anjos santos e espíritos malignos. Afirmo que em teus templos são adorados apenas os espíritos malignos; aqueles que exigem sacrifícios oferecidos a si orgulhosamente, e querem ser adorados como deuses são malignos, são soberbos. Tais são igualmente os maus, que procuram a própria glória e desprezam a glória de Deus. Observai, porém, os santos; são semelhantes aos anjos. Ao encontrares algum santo servo de Deus, se quiseres cultuá-lo e adorá-lo, em lugar de Deus, ele te impedirá. Não quer arrogar-se a honra, devida a Deus, não quer ser tido por Deus, e sim estar contigo submisso a Deus. Assim agiram os santos apóstolos Paulo e Barnabé. Eles pregavam a palavra de Deus na Licaônia. Tendo realizado alguns milagres, os cidadãos desta região trouxeram-lhes vítimas e quiseram sacrificá-las em sua honra, chamando Barnabé de Júpiter e Paulo, de Mercúrio. Eles não se deleitaram com isso. Acaso não quiseram que fossem imoladas em sua honra, por detestarem serem comparados aos demônios? Não; mas porque tiveram horror de que os homens lhes prestassem honras divinas. Indicam-no suas próprias palavras. Não é opinião nossa. Segue a leitura do texto do mesmo livro, que narra como eles se assustaram: “Então os apóstolos Paulo e Barnabé rasgaram as vestes, clamando: Amigos, que fazeis: Nós também somos homens, passíveis da mesma sorte que vós” (At 14,13.14). Atenção. Do mesmo modo que os bons impediram aqueles que queriam adorá-los como deuses, e preferiram fosse cultuado o Deus único, fosse o Deus único adorado, ao Deus único se oferecesse sacrifício e não a si, assim igualmente todos os santos anjos buscam a glória daquele a quem amam. Eles se aplicam a levar a seu culto, a sua adoração, a sua contemplação todos os que eles amam e que nisso se inflamem. Sendo soldados, nada mais sabem que procurar a glória de seu imperador. Se, porém, procurassem a própria glória, seriam condenados como tiranos. Tal aconteceu ao diabo e aos demônios, isto é, a seus anjos: arrogou para si e para todos os demônios as honras divinas. Encheu o templo dos pagãos e persuadiu-os a fabricarem ídolos e a lhe oferecerem sacrifícios. Não seria preferível que cultuassem os anjos santos a cultuarem os demônios? Eles respondem: Não adoramos os demônios perversos; adoramos aqueles que chamais de anjos, poderes do grande Deus e ministros do grande Deus. Oxalá quisésseis adorá-los: facilmente eles vos dissuadiriam de adorá-los. Ouvi um anjo ensinar. Um anjo instruía a certo discípulo de Cristo e mostrava-lhe muitos milagres, no Apocalipse de João. Ele, porém, diante da visão miraculosa que lhe era mostrada apavorou-se, e prostrou-se aos pés do anjo. O anjo, que não procurava senão a glória de seu Senhor, disse: “Levanta-te. O que fazes? “É a Deus que deves adorar! Sou servo como tu e como teus irmãos” (Ap 9,10). E, então, meus irmãos? Ninguém diga: Receio que o anjo se irrite contra mim porque não o adoro como meu deus. Ele se irritará se o quiseres adorar, pois ele é bom e ama a Deus. Os demônios se encolerizam quando não são adorados, mas os anjos ficam indignados se são adorados em vez de Deus. Mas, a fim de que não suceda que um coração fraco, um coração medroso, diga a si mesmo: Então se os demônios se encolerizam por não serem adorados, tenho medo de ofendê-los. Que te pode fazer até mesmo o príncipe dos demônios, o diabo? Se pudesse alguma coisa, nenhum de nós subsistiria. Porventura as bocas dos cristãos não proferem diariamente contra ele tantas palavras e não cresce a messe dos cristãos? Quando um péssimo escravo teu te aborrece, não o chamas com esse nome: Satanás, diabo? Assim lhe gritas. Talvez nisso erres, porque o dizes a um homem, e por imoderada ira és arrastado a injuriar a imagem de Deus; no entanto escolhes para lhe dizer o que mais detestas. Se o diabo pudesse, não se vingaria? Mas não lho é permitido. E só o faz quando lhe é permitido. Pois, também quis tentar a Jó, e pediu poder para isso; e nada faria, se não o recebesse (cf Jó 1,11). Então, por que não adoras bem tranqüilo a Deus, sem cuja vontade ninguém te faz mal, e com cuja permissão és corrigido, mas não derrubado? Se agradar ao Senhor teu Deus permitir que alguém te prejudique, ou algum espírito te cause dano, ele te corrige a fim de clamares por ele: “O Senhor me castigou duramente, mas não me entregou à morte” (Sl 117,18). Portanto, “sejam confundidos todos os que adoram ídolos e os que se gloriam de seus simulacros. Adorai-o, vós todos os seus anjos”. Aprendam os pagãos como adorar a Deus. Eles querem adorar os anjos; imitem os anjos, e adorem aquele que os anjos adoram. “Adorai-o, vós todos, anjos seus”. Adore como o anjo que foi enviado a Cornélio (cf At 10,3ss); enquanto adorava, mandou a Cornélio que chamasse Pedro. Servo como Pedro, adore a Cristo, Senhor de Pedro. “Adorai-o, vós todos, anjos seus”. | |
§ 13 | 8 “Sião ouviu e regozijou-se”. Que foi que Sião ouviu? Que todos os anjos o adoram. Que ouviu Sião? Eis o que ouviu: “Os céus anunciaram a sua justiça. Viram todos os povos a sua glória. Sejam confundidos todos os que adoram ídolos e os que se gloriam de seus simulacros”. Com efeito, a Igreja ainda não se propagara entre os gentios. Na Judéia havia fiéis dentre os judeus, e eles pensavam que eram os únicos pertencentes a Cristo. Os apóstolos foram enviados aos gentios, foi pregado o evangelho a Cornélio; Cornélio acreditou, foi batizado, e foram igualmente batizados os que estavam com Cornélio. Mas sabeis o que foi feito para que eles fossem batizados. O leitor ainda não chegou a este ponto, contudo alguns disso se recordam; e os que não se lembram, ouçam de mim rapidamente. O anjo foi enviado a Cornélio, e enviou Cornélio a Pedro; Pedro veio até Cornélio. E como Cornélio era gentio, ele e os que estavam em sua casa, não eram circuncisos. Que Pedro não hesitasse transmitir o evangelho a incircuncisos. Antes que fossem batizados Cornélio e os seus, veio o Espírito Santo, encheu-os e eles começaram a falar várias línguas. Até então o Espírito Santo não descera sobre ninguém que não fosse batizado; sobre estes, porém, desceu antes do batismo. Pois, seria possível que Pedro duvidasse batizar incircuncisos; veio o Espírito Santo e começaram a falar em línguas. Foi concedido o dom invisível e dissipou a dúvida acerca do sacramento visível; todos foram batizados. Tens ali escrito: “Todavia, os apóstolos e os irmãos da Judéia souberam que os gentios haviam recebido a palavra de Deus, e bendiziam a Deus”. É isto que é relembrado aqui: “Sião ouviu e regozijou-se. E as filhas de Judéia exultaram”. Que foi que “ouviu Sião e regozijou-se? Que os gentios haviam recebido a palavra de Deus”. Aparecera uma parede, mas ainda não se formara o ângulo. Propriamente é aqui denominada Sião a Igreja que estava na Judéia. “Sião ouviu e regozijou-se e as filhas da Judéia exultaram”. Assim está escrito: “Os apóstolos e os irmãos da Judéia souberam”. Vede se não “exultaram as filhas da Judéia”. Que vieram a saber? “Que os gentios haviam recebido a palavra de Deus”. Onde o disse o presente salmo? “Os céus anunciaram a sua justiça. Viram todos os povos a sua glória”. E como acreditaram os gentios que adoraram os ídolos, continua: “Sejam confundidos todos os que adoram ídolos e os que se gloriam de seus simulacros. Sião ouviu e regozijou-se e as filhas da Judéia exultaram”. Depois alguns dos circuncisos quiseram caluniar Pedro e disseram-lhe: “Entraste em casa de incircuncisos e comeste com eles!” Pedro, porém, explicou-lhes o motivo, como ao orar aparecera-lhe um prato sustentado por uma toalha, presa pelas quatro pontas. Aquele prato continha todos os animais, que representavam todos os povos. As quatro pontas presas eram figura das quatro partes da terra, de onde viriam os povos; por isso, os quatro evangelhos anunciam o Cristo, a fim de demonstrar que a sua graça pertence às quatro partes da terra. Pedro, que tivera tal visão, indicou-lhes, explicou-lhes tudo: como Cornélio acreditou e que antes de ser batizado esse pagão, veio sobre ele o Espírito Santo. Tendo ouvido isso, calaram e deram glória a Deus nesses termos: “Deus, portanto, concedeu também aos gentios a conversão que conduz à vida!” (cf At 11,1-18). Eis: “Sião ouviu e regozijou-se e as filhas da Judéia exultaram, Senhor, à vista de teus juízos”. Quais? Que Deus não faz acepção de pessoas. Pois, o próprio Pedro tendo visto que o centurião Cornélio e os seus, ficaram repletos do Espírito Santo exclamou: “Verifico que Deus não faz acepção de pessoas”. Portanto, “as filhas da Judéia exultaram, Senhor, à vista de teus juízos”. Que significa: “à vista de teus juízos?” Porque “em qualquer nação” e em qualquer povo, quem o servir, “lhe é agradável” (cf At 10 e 11). Pois, Deus não é apenas dos judeus, mas também dos gentios. | |
§ 14 | 9 Vede se não têm razão de exultar as filhas da Judéia. “E as filhas da Judéia exultaram, Senhor, à vista de teus juízos. Porque tu és, Senhor, o Altíssimo sobre toda a terra”. Não apenas sobre a Judéia, nem somente sobre Jerusalém, nem sobre Sião apenas, mas “sobre toda a terra”. Os juízos de Deus foram válidos em toda a terra, de sorte que em toda a parte os povos foram convocados. Os que se separaram, não têm comunicação com eles. Não ouvem a predição, nem vêem a realização: “Porque tu és, Senhor, o Altíssimo sobre toda a terra. Elevado muito acima de todos os deuses”. Por que “muito acima?” Trata-se de Cristo. Que quer dizer: “muito acima”, senão igual ao Pai? Que é: “acima de todos os deuses?” Quem são eles? Os ídolos que não têm sensibilidade, não têm vida. Os demônios percebem, têm vida; mas são malvados. Que importância há em ser Cristo elevado acima de todos os ídolos? Elevado muito acima de todos os demônios. Mas isto também não tem muita importância. Os demônios, de fato, são os deuses dos gentios (cf Sl 95,5), mas ele está elevado muito acima de todos os deuses. Os homens também são chamados deuses: “Eu disse: Vós sois deuses e sois todos filhos do Altíssimo”; e ainda foi escrito: “Deus está de pé na assembléia dos deuses e no meio deles institui seu julgamento” (Sl 81,6.1). Acima de todos está exaltado Jesus Cristo nosso Senhor; não somente sobre os ídolos, nem somente sobre os demônios, mas ainda sobre todos os homens justos. E isto ainda é pouco; igualmente acima de todos os anjos; pois, qual a razão da palavra: “Adorai-o, vós todos, anjos seus? Elevado muito acima de todos os deuses”. | |
§ 15 | 10 Que fazemos todos que nos reunimos com ele, com aquele que é elevado muito acima de todos os deuses? Ele nos deu um breve preceito: “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. Não é consentâneo amar juntamente com Cristo a avareza. Tu o amas; deves odiar o que ele odeia. Suponhamos que tens um inimigo, que é homem, o mesmo que tu. Fostes criados pelo mesmo Criador, numa mesma condição humana; e no entanto, se teu filho fala com teu inimigo, vai a sua casa, tem assíduas conversas com ele, queres deserdá-lo, porque fala com teu inimigo. Como? Pensas que proferes uma palavra justa: És amigo de meu inimigo, e queres algo de meus bens! Por isso, atende o que digo. Amas a Cristo. A avareza é inimiga de Cristo. Por que fala com ela? Não digo: Falas com ela; por que queres servi-la? Pois, Cristo ordena muitas coisas e não fazes; a avareza manda e fazes. Cristo ordena que vistas o pobre e não o praticas; a avareza manda que cometas uma fraude e preferes cometê-la. Se as coisas correm assim, se és desses tais, não esperes muito a herança de Cristo. Mas respondes: Amo a Cristo. “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. Revela-se que amas o que é bom, se mostras odiar o mal: “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. | |
§ 16 | Mas ao começarmos a odiar o maligno, conseqüentemente vêm as perseguições. Odiamos o maligno. Propõe-nos um perseguidor: comete uma fraude. Dize-nos: Adora o ídolo. Fala-nos: Oferece incenso aos demônios. Mas nós ouvimos a palavra: “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. Ouvimos, de fato, mas se não atendermos, o maligno se enfurece. Até onde vai seu furor? Que pode tirar? Responde: Porque és cristão? Por causa da herança eterna, ou para alcançar uma felicidade terrena? Interroga tua fé, põe tua alma no palanque de tua cons-ciência, atormenta-te com o temor do juízo, responde em que é que acreditaste, por que acreditaste. Replicas: Acreditei em Cristo. Que te prometeu Cristo, a não ser aquilo que mostrou em si mesmo? Que demonstrou em si? Morreu, ressuscitou, subiu ao céu. Queres segui-lo? Imita a paixão, espera a promessa. Que pode te tirar o maligno enfurecido, ao começares a odiá-lo e amar o Senhor? Que te arrebatará? O patrimônio. Será o céu? Enfim, que tire tudo o que Deus te deu. De fato, não tira, se Deus não quiser; se ele quiser, porém, arrebata o que Deus deu. Contanto que Deus não se aparte de ti. Ninguém pode tirar-te Deus, mas tu és que o afastas, se foges dele. | |
§ 17 | Talvez respondas: Não me preocupo com meu patri-mônio: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou”; posso acrescentar: Como agradou ao Senhor, assim se fez” (Jó 1,21), mas tenho medo de que me mate. Isto é o máximo. Escuta, então, o consolo que dá o salmo: “O Senhor vela pelas almas de seus justos”. Tendo dito mais acima: “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”, a fim de não teres medo de odiar o maligno, para que não te mate, logo acrescentou: “O Senhor vela pelas almas de seus servos”. Nota como ele guarda as almas de seus servos, pois diz: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28). Mata o corpo aquele que puder te fazer muito mal. Que te fez? O mesmo que ao Senhor teu Deus. Porque gostarias de ter o mesmo que Cristo, se tens medo de sofrer igual a ele? Ele vem tirar-te a vida temporal, fraca, sujeita à morte. Teme, sem dúvida, a morte, mas se puderes não morrer. O que não podes evitar naturalmente, por que não aceitas por causa de tua fé? O adversário, que te ameaça, tire-te esta vida, mas Deus te dará outra vida. Ele mesmo te deu a vida presente, e se quiser, nem esta será retirada; se, porém, quiser que te seja tirada ele tem o que mudar em ti; não receies ser espoliado por causa dele. Não queres tirar esta veste maltrapilha? Ele te dará a veste da glória. Que veste é esta, perguntas-me? “Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade” (1 Cor 15,53). Tua própria carne não perecerá. O inimigo pode se enfurecer até a morte; além disso não tem poder, nem sobre a alma, nem sobre o próprio corpo; porque mesmo que mutile o corpo não impede a ressurreição. Os homens tinham medo a respeito de sua vida; que lhes disse o Senhor? “Até mesmo os vossos cabelos foram todos contados” (Mt 10,30). Temes perder a vida, se não perdes os cabelos? Para Deus tudo está contado. Ele restaurará tudo, ele que tudo criou. As coisas não existiam e foram criadas; existiam e não serão reparadas? Acreditai, portanto, de todo o coração, meus irmãos e “vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. Sede fortes, não somente no amor a Deus, mas ainda no ódio ao maligno. Ninguém vos atemorize. É mais poderoso aquele que vos chamou, ele é onipotente. É mais forte que todos os fortes, superior a todos os seres excelsos. O Filho de Deus morreu por nossa causa; tenha certeza de receberes em ti sua vida, pois tens por penhor a sua morte. Por quem morreu ele? Acaso pelos justos? Interroga a Paulo. “Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios” (Rm 5,6). Eras ímpio, e ele morreu por ti; estás justificado, ele te abandonará? Quem justificou o ímpio, desamparará o piedoso? “Vós que amais o Senhor, detestai o maligno”. Ninguém se atemorize: “O Senhor vela pelas almas de seus servos e livra-las-á das mãos do pecador”. | |
§ 18 | 11 Mas talvez dirás: Perco esta luz. “Resplandece a luz para o justo”. Que luz estás receando perder? Tens medo de ficar no escuro? Não tenhas medo de perder a luz, ou antes teme que, ao te acuatelares para não perder esta luz, percas a verdadeira luz. A luz que temes perder, sabemos a quem é dada, com quem ela te é comum. Por acaso somente os bons vêem este sol, quando Deus faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos? (cf Mt 5,45). Os iníquos contigo contemplam esta luz, vêem contigo os ladrões, vêem-na contigo os impudicos, vêem-na contigo os animais, as moscas, os vermezinhos. Qual a luz que ele reserva para os justos, aquele que dá a luz visível a todos estes? Com razão, os mártires pela fé contemplaram esta luz. Tendo desprezado a luz visível, contemplaram outra luz que desejaram os que menosprezaram a primeira. “Resplandeceu a luz para o justo e para os corações retos surgiu a alegria”. Não penses que verdadeiramente estavam na miséria aqueles que andavam presos com cadeias. O cárcere se alargou para os fiéis, e eles foram as cadeias aos que confessaram a fé. Tinham alegria nas camas de ferro aqueles que anunciavam a Cristo no meio dos tormentos. “Resplandeceu a luz para o justo”. Que luz resplandeceu para o justo? Aquela que não nasce para o injusto; não esta luz que Deus faz nascer para bons e maus. Existe outra luz que resplandece para o justo; desta luz que não nasce para eles, dirão no fim os injustos: “Sim, extra-viamo-nos do caminho da verdade; para nós não nasceu o sol, a luz da justiça não brilhou para nós” (Sb 5,6). Eis que amando este sol, ficaram a jazer nas trevas do coração. Que lhes serviu terem visto esta luz com seus olhos, e não verem com a mente a outra? Tobias era cego, e ensinava ao filho o caminho de Deus. Conheceis isto. Tobias admoestava o filho: “Filho, toma de teus bens para dar esmola. A esmola impede que se caia nas trevas” (Tb 4,7.10). Quem falava estava nas trevas. Verificais como existe outra luz que resplandece para o justo, e uma alegria que surge para os corações retos? Não tinha visão e dizia ao filho: “Toma de teus bens para dar esmola. A esmola impede que se caia nas trevas”. Não teve receio de que dissesse seu filho no próprio coração: Então, não fizeste esmolas? Por que me falas assim, estando cego? Eis que as esmolas te levaram à cegueira e como afirmas: “A esmola impede que se caia nas trevas?” Por que ele afirmava isto com confiança, senão porque contemplava outra luz? O filho segurava a mão do pai a andar; mas o pai ensinava ao filho o caminho para que vivesse. Existe, portanto, outra luz, que resplandece para o justo: “Resplandeceu a luz para o justo, e para os corações retos surgiu a alegria”. Queres conhecê-la? Sê reto de coração. Que significa: Sê reto de coração? Não tenhas o coração torto perante Deus, resistindo a sua vontade, querendo dobrá-lo à tua, em vez de te corrigires conforme o seu querer. Sentirás, então, a alegria que conhecem todos os que têm o coração reto. “Resplandeceu a luz para o justo e para os corações retos surgiu a alegria”. | |
§ 19 | 12 “Alegrai-vos, ó justos”. Talvez os fiéis ao ouvirem dizer: Alegrai-vos, comecem a pensar em banquetes, preparem cálices, esperem um tempo de rosas, porque foi dito: “Alegrai-vos, ó justos”. Mas, observa como continua o salmo: “no Senhor. Alegrai-vos, ó justos, no Senhor”. Esperas a primavera para te alegrares. Põe no Senhor a tua alegria. O Senhor está sempre contigo. Para ele não há tempo; tu o tens de noite, tu o tens de dia. Sê reto de coração e sempre estará contigo a alegria que ele traz. A alegria, segundo o mundo, não é verdadeira alegria. Escuta o profeta Isaías: “Mas para os maus não há alegria, diz o Senhor” (Is 48,22; 57,21). O que os ímpios denominam alegria não o é. Que espécie de alegria conhecia aquele que censurava este gozo? Acreditemos nele, irmãos. Era homem, mas conhecia as duas espécies de gozo. Efetivamente, conhecia o prazer da bebida porque era homem, conhecia o prazer da mesa, do leito, conhecia todos esses prazeres mundanos e sensuais. Ele que os conhecia, disse com certeza: “Para os maus não há alegria, diz o Senhor”. Mas não é um homem quem o diz: “Diz o Senhor”, segundo a veracidade do Senhor: “Para os maus não há alegria”. Pois, eles pensam que se alegram: “Para os maus não há alegria, diz”, não um homem, “mas o Senhor”. Por este motivo, o profeta vendo este mesmo gaúdio, disse: “Não desejei o dia dos homens, tu o sabes” (Jr 17,16). Fizeste-me não desejar o dia dos homens tu que me mostras outro dia, que me ensinas haver outra luz, que infundes em mim outra alegria, que me insinuas interiormente outra coisa. De fato, Isaías via os homens na embriaguez, na devassidão, nos teatros, nos espetáculos, e o mundo todo entregue licenciosamente a várias futilidades e, no entanto, clamava: “Para os maus não há alegria, diz o Senhor”. Se nisto não consiste a alegria, qual o regozijo que contemplava, em comparação do qual tudo isso não é prazer? Seria como se tu conhecesses o sol, e dirias a alguém que o louvasse: Isto não é luz. Por que não é luz? Ele tem pelo sol o maior apreço, alegra-se a sua vista, exulta, e tu dizes: Isso não é luz. Ou se alguém se admira-se ao ver uma macaca, e tu lhe dissesses: Não é bonita. E se ele, talvez, observasse a disposição dos membros deste animal e se admirasse de sua boa estrutura, tu que conheces outro tipo de beleza, discordasses: Não é bonita. Por quê? Por que conheces outra espécie de beleza. Mas replicas: Não vejo a luz que Isaías via. Crê e verás. Talvez não tenhas recursos para vê-la; existem olhos que vêem aquela beleza. Os olhos do coração que contemplam aquela alegria difere dos olhos carnais que vêem a luz do sol. Talvez os olhos do coração estejam sujos, manchados, perturbados pela ira, pela avareza, pela ambição, pelo prazer insensato; o olho turvado não te deixa ver aquela luz. Crê antes de veres: serás curado e verás. “Resplandeceu a luz para o justo e para os corações retos surgiu a alegria”. | |
§ 20 | “Alegrai-vos, ó justos, no Senhor e celebrai a memória de sua santidade”. Já alegres no Senhor, jubilosos no Senhor, confessai a ele: pois, se não quisesse não nos alegraríamos nele. Pois declarou o mesmo Senhor: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações” (Jo 16,33). Se sois cristãos, esperai tribulações neste mundo; não fiqueis na expectativa de tempos mais tranqüilos e melhores. Irmãos, não vos enganeis. Não queirais fazer-vos promessas que o evangelho não fez. Sabeis como se exprime o evangelho. Falamos a cristãos. Não devemos ser prevaricadores da fé. O evangelho afirma que nos últimos tempos serão abundantes muitos males, muitos escândalos, muitas tribulações, muitas iniqüidades; aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo. “O amor de muitos esfriará” (Mt 24,3-13). Quem tiver, portanto, com perseverança um espírito ardente, segundo a expressão do Apóstolo: “fervorosos de espírito”, não deixará esfriar seu amor; pois, o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 12,1; 5,5). Ninguém, portanto, prometa a si mesmo o que o evangelho não promete. Eis que virão tempos melhores, farei isto, cumpro aquilo. É melhor para ti atenderes àquele que não se engana, nem engana os outros, que te prometeu alegria, não na terra, mas em si; e quando passarem todas essas coisas, esperes reinar com ele eternamente. Não suceda que, desejando reinar aqui na terra, não encontres alegria nem aqui nem na eternidade. | |