ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 93 | ||
§ 93:1 | Ꝋ O Senhor reina; está vestido de majestade. O Senhor se revestiu, cingiu-se de fortaleza; o mundo também está estabelecido, de modo que não pode ser abalado. | |
§ 93:2 | Ꝋ O teu trono está firme desde a antigüidade; desde a eternidade tu existes. | |
§ 93:3 | Ꝋ Os rios levantaram, ó Senhor, os rios levantaram o seu ruído, os rios levantam o seu fragor. | |
§ 93:4 | ɱ Mais que o ruído das grandes águas, mais que as vagas estrondosas do mar, poderoso é o Senhor nas alturas. | |
§ 93:5 | ɱ Mui fiéis são os teus testemunhos; a santidade convém à tua casa, Senhor, para sempre. | |
O SALMO 93 | ||
SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Como ouvimos com toda atenção a leitura deste salmo, ouçamos atentamente também ao nos revelar Deus os mistérios que se dignou ocultar aqui. Certos sinais sacramentais estão escondidos nas Escrituras, não a fim de se furtarem ao nosso entendimento, mas para se manifestarem àqueles que batem à porta (cf Mt 7,7). Se, portanto, bateis com piedoso sentimento e sincero amor do coração, abrir-vós-á aquele que vê o motivo de baterdes. Todos nós estamos cientes (e oxalá não sejamos nós deste número) de que muitos murmuram contra a paciência de Deus e lastimam que vivam nesta terra homens iníquos e ímpios, ou ainda que tenham muito poder. Ainda mais, com freqüência os maus podem fazer muito contra os bons e muitas vezes os maus oprimem os bons; os maus exultam e os bons labutam; os maus se orgulham e os bons são humilhados. Observando esses fatos no gênero humano (pois acontecem copiosamente), os ânimos fracos e impacientes se pervertem, como se fosse inútil ser bom, uma vez que Deus desvia ou parece desviar o olhar das boas obras dos piedosos e fiéis, enquanto os maus prosperam naquilo que amam. Considerando, portanto, os fracos que é inútil viver bem, sentem-se atraídos a imitar a malícia daqueles que vêem prósperos. Se por fraqueza pessoal ou de ânimo, têm medo de praticar o mal a fim de não lhes suceder algum infortúnio por causa das leis civis, abstêm-se, de fato, de fazer o mal, mas não de cogitar o mal; não por amor à justiça, mas, para dizê-lo claramente, por medo de serem condenados entre os homens por outros homens. E entre seus pensamentos malvados, principal lugar ocupa aquela impiedade malígna que os leva a pensar que Deus negligencia e não cuida dos acontecimentos humanos; que tudo é igual para bons e maus; ou ainda, o que é mais pernicioso, que ele persegue os bons e favorece os maus. Os que assim pensam, embora nada de mal façam a outrem, fazem muito mal a si mesmos e são ím-pios no seu íntimo. Sua iniqüidade não prejudica a Deus, mas ela os mata a eles. Não prejudicam os homens, porque são tímidos os que assim pensam; mas Deus vê seus homicídios, seus adultérios, suas fraudes e rapinas e pune seus pensamentos. Ele anota o que eles desejam. A carne não impede que seus olhos vejam a vontade deles. Esses tais, se encontram oportunidade, não se tornam maus, mas manifestam que o são. Não perceberás o que então desperta, mas entenderás o que estava implícito. Há poucos anos, quase ontem, puderam os homens verificar esta verdade e experimentaram-no mesmo os que custam a entender. Pois, havia aqui uma casa poderosíssima temporariamente. Dela fizera Deus para o gênero humano um flagelo, que o castigou, para ver se reconhecia o açoite paterno e tinha medo da sentença do juiz. Como essa casa poderosa estivesse aqui, muitos sob seu jugo ge-miam, murmuravam, censuravam, destestavam, blasfemavam. Como se comportam os homens, e são entregues por juízo divino às concupiscências de seu coração? (cf Rm 1,24). De repente, passaram a pertencer àquela casa os que murmuravam a respeito dela; e os outros passaram a sofrer deles as mesmas coisas de que eles pouco antes se queixavam. É bom aquele que mesmo quando pode praticar o mal, não o pratica; dele está escrito: “Quem podia pecar e não pecou, fazer o mal e não o fez? Quem é este para que o felicitemos? Porque fez maravilhas em sua vida” (Eclo 31,10.9). A Escritura se referia aos potentados inocentes. Pois o lobo quer fazer tanto mal quanto o leão: são nocivos de maneira diferente, mas desejam a mesma coisa. Pois, o leão não somente despreza o cão a latir, mas ainda o afugenta, vai ao redil, e enquanto os cães ficam mudos ele rouba o que pode; o lobo não ousa fazer isto enquanto os cães ladram. Acaso porque não pôde arrebatar a ovelha de medo dos cães, voltou mais inocente? Portanto, Deus ensina a inocência de sorte que sejamos inocentes não por medo do castigo, mas por amor à justiça. Então não prejudicamos livremente e somos verdadeiramente inocentes. Quem não é nocivo por medo, não é inocente, embora não seja nocivo àquele que ele quer prejudicar. Ele não é nocivo a outrem por um ato mau, mas a si mesmo pelo mau desejo. Ouve da Escritura como prejudica a si mesmo: “Quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma” (Sl 10,6). E na verdade muitos são os homens que pensam que sua injustiça faz mal aos outros e não prejudica a si mesmo. A iniqüidade de alguém atinge os outros, prejudicando seus corpos, lesando os seus bens de família, invadindo-lhes a propriedade, tirando-lhes os escravos, roubando-lhes o ouro, a prata, ou qualquer outra coisa que possuam. A isto atinge nos outros a iniqüidade dele. Então, tua iniqüidade é nociva ao corpo de outrem e não prejudica a tua alma? | |
§ 2 | Os homens murmuram, se não com a voz, ao menos este murmúrio lhes rói o coração, contra essa doutrina simples e verdadeira, que sugere aos bons que amem a justiça e procurem por meio dela agradar a Deus; entendam que ele infunde certa luz inteligível em sua alma a fim de fazerem obras justas e dêem precedência a esta luz da sabedoria em relação a todos os bens amados neste mundo. Que respondem, então? Na verdade, agradarei a Deus pela justiça? Ou agradam os justos àquele, sob cujo governo os maus prosperam? Tantos males eles cometem, e nada lhes acontece de mal. Ou se acaso acontece-lhes algum infortúnio, que te replicam eles, quando começas a lhes dizer: Eis quanto mal este homem fez; como foi castigado? Que fim teve? Eles começam a pensar nos justos que sofreram males e retrucam: Se algo de mal acontece aos maus porque são iníquos, por que sucedeu isto àquele que viveu de modo tão honesto? Ele que praticou tantas esmolas, que fez tanto bem à Igreja, por que teve tal sorte? Por que teve tal fim, igual ao daquele que cometeu tantos crimes? Assim se exprimem, mostrando que não fazem tantos males, porque não podem, ou porque não ousam. Pois, a língua atesta o que quer o coração; e efetivamente, embora se calasse a língua, presa pelo temor, Deus veria o interior do homem, o que pensava, apesar de oculto aos outros homens. Este salmo cura os que quiserem ser curados de tais pensamentos silen-ciosos dos homens, ou mesmo que se manifestem em palavras e fatos. Dêem atenção e serão curados. Oxalá em toda multidão que se acha entre essas paredes agora, e ouve por nosso intermédio a palavra do Senhor, não haja tais feridas que precisem ser curadas; oxalá não existam. No entanto não é supérfluo falar disso, se não houver ferida alguma aqui. Os corações sejam instruídos para curar os outros, ao começarem a ouvir tais coisas. Acredito que qualquer cristão, ao ouvir alguém dizer tais coisas, se é bom fiel, acredita retamente em Deus, e deposita sua esperança no século futuro, não nesta terra, não nesta vida, e não ouve inutilmente que deve ter o coração ao alto, ri-se e condói-se dos que proferem tais murmurações e diz a si mesmo: Deus sabe o que faz. Não podemos descobrir seus desígnios, por que poupa os maus em determinado tempo, ou por que razão os bons se afligem temporariamente. Basta- me saber que é por algum tempo que os bons labutam, e por algum tempo que os maus prosperam. Quem age assim, está seguro. Suporta pacientemente todas as felicidades dos maus, e com paciência suporta, tolera as dificuldades dos bons, até que termine este mundo, até que passe a iniqüidade. Tal homem já é feliz, e Deus o instruiu sobre a sua lei, e aliviou-o nos dias malignos, até que se abra a fossa para o pecador. Quem, porém, ainda não é assim, ouça de nossos lábios o que agrada ao Senhor. Que diga muito mais nos corações aquele que vê melhor a ferida a curar. | |
§ 3 | 1 O salmo tem o seguinte título, isto é, a seguinte inscrição: “Salmo de Davi, para o quarto dia a contar do sábado”. O salmo vai ensinar a paciência nos trabalhos por que passam os justos; diante da felicidade dos pecadores ensina a paciência, edifica na paciência. Trata do assunto o salmo inteiro, do começo ao fim. Por que traz o título: “quarto dia a contar do sábado?” Um dia depois do sábado é o domingo; segundo, a segunda-feira, que os mundanos denominam dia da Lua: terceiro após o sábado, a terça-feira, denominado dia de Marte. O quarto desde o sábado, portanto, é a quarta-feira, que os pagãos chamam de dia de Mercúrio; e igualmente o fazem muitos cristãos; mas não queremos isto e antes se corrijam, não falem assim. Com efeito eles têm uma linguagem própria, que devem usar. Pois, não são todos os povos que falam deste modo; muitos povos têm denominações diferentes para os dias da semana. Da boca do cristão é muito melhor, portanto, que saia uma linguagem de acordo com o uso da Igreja. No entanto, se alguém se deixar levar pelo costume, saindo de sua boca o que o coração reprova, entenda que aqueles todos que deram nome aos astros foram homens, e que estes astros não começaram a existir no céu desde que eles nasceram, mas já estavam ali antes. Ora, devido a certos banefícios temporais feitos por mortais a mortais, seus coetâneos lhes prestaram honras divinas porque eram muito poderosos e ilustres no mundo, tornando-se caros aos homens, não em vista da vida eterna, e sim de certas facilidades temporais. Os antigos deste mundo enganados e querendo enganar, e adulando aqueles que eram mais poderosos do que eles, segundo o amor ao mundo, mostravam os astros no céu, dizendo que aquele astro era de um e outro astro de outro homem. Os homens, porém, que anteriormente não haviam observado o céu de sorte a verem que lá já estavam aqueles astros antes do nascimento de tais homens, enganados acreditaram. E surgiu esta opinião vã. O diabo confirmou esta opinião errônea, mas Cristo a eliminou. Por conseguinte, segundo nosso modo de falar, “quarto dia a contar do sábado” é o quarto após o domingo. V. Caridade, portanto, preste atenção no sentido deste título. Aqui se esconde grande mistério, verdadeiramente oculto. Pois, muitas expressões deste salmo têm sentido claro, manifestamente nos incitam e logo são entendidas. O título, contudo, devemos confessá-lo, apresenta não poucas obscuridades. Mas o Senhor estará conosco, dissipará a névoa, e examinareis o salmo, conhecendo-o segundo o título. Pois, o salmo começa: “Salmo de Davi, quarto dia a contar do sábado”. No limiar de uma casa acha-se o título, fixo num umbral. Todos querem conhecer o título antes de entrar na casa. Relembremos, então, da Sagrada Escritura, do Gênesis (cf Gn 1,3-19), o que foi feito no primeiro dia. Descobrimos que é a luz. O que foi feito no segundo dia? Encontramos que foi o firmamento, que Deus chamou de céu. O que foi feito no terceiro dia? Vemos a terra e o mar, e a separação entre eles, de tal sorte que todo o aglomerado das águas foi chamado mar, e a parte árida foi denominada terra. No quarto dia, Deus fez os luzeiros no céu: o sol para presidir o dia, a lua e as estrelas para presidirem a noite (cf Sl 135,8.9); isto ele fez no quarto dia. Que quer dizer então o fato de que o salmo retirou o título do quarto dia, se nesse salmo se ensina a paciência diante da felicidade dos maus e as dificuldades dos bons? Temos o apóstolo Paulo a dizer aos santos fiéis, fortificados em Cristo: “Fazei tudo sem murmurações nem reclamações, para vos tornades irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus, sem defeito, no meio de uma geração má e pervertida, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da palavra da vida” (Fl 2,14-16). Foi apresentada aos santos a comparação com os luzeiros, a fim de que se mantivessem sem murmuração, no seio de uma geração má e perversa. | |
§ 4 | Mas, tendo em vista que ninguém pense que os luzeiros do céu devem ser cultuados e adorados, porque deles se tirou um termo de comparação relativamente aos santos, primeiro expliquemos em nome de Cristo não ser conseqüência necessária que o sol, ou a lua, ou as estrelas, ou o céu, que representam por comparação os santos, devem ser adorados, porque há muitos outros objetos que servem de comparação com os santos e não são adorados. Se, de fato, tudo o que é figura dos santos deva ser adorado, conforme opinas, adora as montanhas e as colinas, porque foi dito: “Os montes saltaram como carneiros, as colinas, como cordeiros” (Sl 113,4). Tu te referes aos santos, e eu falo do próprio Cristo. Adora o leão, porque está escrito: “O Leão da tribo de Judá venceu” (Ap 5,5). Adora a pedra, porque foi dito: “Essa rocha era Cristo” (1 Cor 10,4). Se, portanto, não adoras em Cristo essas realidades terrenas, embora sejam certas figuras, se para simbolizar os santos tira-se uma comparação de alguma criatura, deves entender a semelhança que a figura apresenta, mas adorar o autor da criação (cf Sb 5,6). Nosso Senhor Jesus Cristo foi denominado sol. Acaso seria este sol que até os animais mais minúsculos vêem como nós? Ao invés, é o sol do qual foi dito: “Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem ao mundo” (Jo 1,9). Com efeito, a luz visível ilumina não somente os homens, mas também os jumentos, os rebanhos e todos os animais. A luz que ilumina todo homem, ilumina no coração, onde somente existe entendimento. | |
§ 5 | Compreenda, portanto, V. Caridade, a quem disse o Apóstolo: “No meio de uma geração má e pervertida”, isto é, no meio dos iníquos, “no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da palavra da vida” (Fl 2,15), e como ele nos adverte a entender este salmo e a conhecer previamente seu título. Pois, tais santos, que possuem a palavra da vida, devido ao fato de serem cidadãos dos céus, desprezam a iniqüidade que se faz na terra; e quais luzeiros no céu, avançam dia e noite, perfazem seu caminho, têm suas órbitas determinadas, e apesar de serem perpetrados tantos crimes na terra, as estrelas no alto ficam firmes no céu, seguindo o roteiro celeste, preestabelecido e determinado por seu Criador. Assim devem ser os santos, contanto que fixem no céu seus corações, que não ouçam e não respondam em vão terem ao alto os corações, que imitem aquele que disse: “Mas a nossa cidade está nos céus (Fl 3,20). Eles, portanto, estão no alto, e pensam nas coisas do alto, conforme diz o evangelho: “Onde está o teu tesouro aí estará também teu coração” (Mt 6,21). Esses pensamentos celestes os tornam pacientes. Não cuidam do que se comete na terra, enquanto perfazem seu caminho, do mesmo modo que os luzeiros do céu não cuidam senão como passar dias e noites, apesar de todos os males que vêem serem perpetrados na terra. Ora, talvez seja fácil que os justos suportem as iniqüidades dos maus que não são contra eles mesmos; mas como suportam as cometidas contra outrem, suportem as que são contra eles mesmos. Efetivamente, não devem suportar e tolerar, porque são feitas contra os outros, e se cometidas contra eles mesmos, perder a paciência. Pois, quem perde a paciência, cai do céu; quem tem o coração fixo no céu, só a parte que tem de terreno peleja na terra. Quantas coisas inventam os homens dos próprios astros e no entanto, eles suportam pacientemente? Da mesma forma devem os justos suportar pacientemente até as falsas incriminações. Isso mesmo que já mencionei várias vezes, a saber, afirmar: esta estrela é de Mercúrio, a outra é de Saturno, e aquela outra de Júpiter, constitui ofensa para as estrelas. E então? Ao ouvirem elas tantos ultrajes, acaso se movimentam, ou param seus percursos? Assim também o homem que no meio de uma geração má e perversa possui a palavra de Deus, fulgura como um luzeiro no céu. Quantos são os que parecem prestar honras ao sol, e mentem a respeito dele? Os que declaram: é Cristo o sol, mentem acerca do sol. O sol conhece que Cristo é seu Senhor e seu Criador. E se pudesse se indignar, ficaria muito mais indignado contra os que o honram falsamento do que contra os que o injuriam. Pois, para um bom servo é maior ultraje a injúria contra seu senhor. Quantas falsidades proferem alguns acerca dos próprios astros? E eles suportam, toleram, não se comovem. Por quê? Porque estão no céu. Mas, o que é o céu? Não omitiremos nem isso: quantas mentiras dizem os homens quando vêem a luz se esconder e dizem: Os homens maléficos a diminuem? No entanto, ela tem nos tempos marcados, as suas fases, conforme a disposição de Deus. Aquela que se acha no céu, contudo, não dá atenção a estas palavras dos homens. Mas que quer dizer: No céu? No firmamento do céu. Quem tem o coração no firmamento do livro de Deus, não se preocupa com estas coisas. | |
§ 6 | Pois, o céu, isto é, o firmamento, é figura do livro da lei. Por isto, está escrito numa passagem: “Estende o céu como um pavilhão” (Sl 103,2). Se é estendido como uma pele, assemelha-se a um livro desenrolado para se ler. Passada, porém, a sua época, já não se lê. Por isso, lê-se a lei, porque ainda não chegamos àquela Sabedoria que enche os corações e as mentes dos que a vêem; então não será mais necessário ali que se nos leia alguma coisa. Ao nos ser lido algo, as sílabas soam e passam. Aquela luz da verdade não passa, mas permanecendo fixa inebria os corações dos que a vêem, conforme foi dito: “Inebriar-se-ão na abundância de tua casa. Na torrente de tuas delícias lhes dás de beber. Pois em ti está a fonte da vida”. E vê a própria fonte: “Na tua luz contemplamos a luz” (Sl 35,9.10). Agora nos é necessária a leitura, enquanto é “limitado o nosso conhecimento, e limitada é a nossa profecia”, segundo diz o Apóstolo. “Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá” (1 Cor 13,9). Não nos será necessária naquela cidade de Jerusalém, onde vivem os anjos, e longe da qual agora peregrinamos, gemendo em nossa peregrinação. Gememos, de fato, se sabemos que peregrinamos. Pois, não tem amor, de forma alguma, à pátria, quem se sente bem enquanto peregrina. Por acaso naquela cidade onde estão os anjos, lê-se o evangelho, ou o Apóstolo? Lá eles se alimentam do Verbo de Deus. A fim de que o Verbo de Deus ressoasse no tempo para nós, o Verbo se fez carne e habitou entre nós (cf Jo 1,14). Todavia, a própria lei, que foi escrita, é um firmamento para nós. Se nosso coração ali está, não se agita com as maldades humanas. Pois, foi dito: “Estende o céu como um pavilhão” (Sl 103,2). Quando, porém, passar o tempo em que os livros são necessá-rios, o que foi dito? “Os céus se enrolam como um livro” (Is 34,4). Quem, conseqüentemente, tem o coração ao alto, seu próprio coração é um luzeiro: brilha no céu, e não é vencido pelas trevas. Abaixo encontram-se as trevas, as trevas da maldade; não são trevas imutáveis. Já o relem-bramos ontem. Mas os que hoje são trevas, se quiserem, amanhã serão luz; os que entraram aqui sendo trevas, se quiserem, podem se tornar luz. Claramente o diz o Apóstolo, a fim de que ninguém pense que a maldade é natural e não pode mudar: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz” (Ef 5,8). “Luz no Senhor”, não em vós mesmos. O coração, portanto, esteja fixo no livro; se o coração está no livro, está no firmamento do céu. Se lá se acha o coração, brilhe dali, e não se comoverá com as iniqüidades que estão abaixo. Não quer dizer que esteja no céu pelo corpo, mas está ali pela vida, conforme foi dito: “A nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20). Não podes imaginar como é aquela cidade, que ainda não vês. Queres pensar no céu? Medita o livro de Deus. Escuta o que diz o salmo: “Dia e noite meditará a lei do Senhor”. Aí também foi afirmado: “Feliz o homem que não entrou no conselho dos ímpios, não se deteve no caminho dos pecadores, nem se sentou em cátedra pestífera. Mas aderiu à lei do Senhor”. Vê o luzeiro no céu: “Dia e noite meditará a lei do Senhor” (Sl 1,1.2). Quer alguém suportar tudo com paciência? Não desça do céu, e medite a lei do Senhor dia e noite. Assim seu coração estará no céu; se o coração está no céu, todas as iniqüidades que se praticam na terra, por algum tempo, toda a felicidade dos maus, todos os labores dos justos que meditam dia e noite a lei de Deus, nada são; ele tolera tudo pacientemente e será feliz, instruído por Deus. E como estará no firmamento do céu? A lei é o firmamento. “Feliz o homem a quem instruíres, Senhor, e a quem ensinares a tua lei, a fim de lhe suavisares os dias maus, até que se abra a fossa ao pecador” (Sl 93,12.13). Obser-vai, pois, como os luzeiros avançam, desaparecem, voltam, seguem seu curso, distinguem o dia da noite, deixam decorrer anos e tempos. E tantos males se cometem na terra, enquanto eles ficam tranquilamente no céu. Que é então, que Deus nos ensina? Vamos dar atenção ao salmo. | |
§ 7 | “Deus das vinganças, Senhor, o Deus das vinganças agiu com intrepidez”. Pensas que Deus não se vinga? O Deus das vinganças se vinga. Que significa: “Deus das vinganças?” Deus que castiga. Certamente murmuras, que os maus não são castigados por ele. Não murmures, para não estares entre aqueles que sofrem a vingança. Alguém pratica um furto e continua a viver; tu murmuras contra Deus, porque não morre aquele que te roubou. Se já não furtas, considera. Talvez não furtes mais, mas vê se alguma vez não furtaste. Se já és dia, relembra-te de tua noite. Se já estás fixo no céu, lembra-te de tua terra. Descobres que alguma vez foste ladrão. Talvez alguém se tenha irritado porque viveste furtando e não morreste. Tu quando cometias este pecado, continuaste a viver a fim de não o cometeres mais; não procures, uma vez que tu passaste, derrubar a ponte da misericórdia de Deus. Não sabes que muitos haverão de passar por onde tu passaste? Existirias agora para murmurar, se tivesse sido ouvido aquele que anteriormente murmurou a respeito de ti? E no entanto agora desejas a vingança de Deus contra os maus, que morra o ladrão e murmuras contra Deus se o ladrão não morre. Pesa na balança da eqüidade o ladrão e o blasfemo. Já afirmas que não és ladrão; mas murmurando contra Deus és blasfemo. O ladrão espia quando o homem vai dormir para roubar e tu dizes que Deus dorme e não vê o homem. Se, portanto, queres que ele corrija sua mão, corrige tu primeiro a tua língua. Queres que ele corrija o coração relativamente ao homem; então corrige teu coração que está contra Deus, para não suceder que se vier o castigo de Deus que desejas, não te atinja primeiro. Pois, este castigo virá, virá e julgará os que perseveram em sua malícia, os ingratos para com as delongas de sua misericórdia, os ingratos diante de sua paciência, que estão acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras (cf Rm 2,4-6), porque o “Deus das vinganças, Senhor, o Deus das vinganças agiu com intrepidez”. A ninguém poupou, quando falou aqui. Era Senhor na fraqueza da carne, mas com o poder da palavra. Não usou de acepção de pessoas relativamente aos príncipes dos judeus. Quantas coisas não lhes disse? E como disse? Verdadeiramente com intrepidez, porque num salmo acha-se escrito sobre ele: “Por causa da aflição dos necessitados e dos gemidos dos pobres, hei de me levantar agora, diz o Senhor” (Sl 11,6). Quais são os necessitados? Quais os pobres? Aqueles que depositam sua esperança somente naquele que não decepciona nossa esperança. Notai, irmãos, quais são os necessitados e pobres. A Escritura, ao louvar os pobres, não parece absolutamente se referir aos que são completamente pobres, que nada têm. Conheces, talvez, um pobre que, ao sofrer alguma injustiça, não olha senão para seu patrono, em cuja casa talvez habite, de quem é inquilino, ou colono, ou cliente; e por isso, diz que sofre injustamente, porque pertence àquele. Seu coração está repousando num homem, sua esperança está depositada num homem, cinza em cinzas. Existem outros, porém, que são opulentos, e se apoiam em honrarias humanas por algum tempo; contudo, não depositam sua esperança nem no dinheiro, nem em suas propriedades, nem em sua família, nem na glória transitória de sua dignidade; mas põem toda a sua esperança naquele que não tem sucessor, que não pode morrer, que não pode enganar-se nem enganar; esses, apesar de parecerem ter muito na opinião dos mundanos, administram bem em favor dos necessitados. São contados no número dos pobres do Senhor. Pois, vêem que vivem no meio de perigos nesta vida, percebem que são peregrinos; de tal modo convivem com a opulência de suas riquezas, que se parecem ao viajante numa hospedaria, onde está de passagem, e não como dono. Portanto, que diz o Senhor? “Por causa da aflição dos necessitados e dos gemidos dos pobres, hei de me levantar agora, diz o Senhor. Porei a salvo”. Salva-nos nosso Salvador; nele quis o salmista depositar a esperança de todos os necessitados e pobres. E como se exprime ele? “Agirei com confiança” (Sl 11,6). Que quer dizer: “Agirei com confiança?” Ele não terá medo, não poupará os vícios e maus desejos dos homens. Verdadeiramente médico fiel, munido do bisturi medicinal da palavra, abriu para curar todos os ferimentos. Tendo assim sido predito e anunciado previamente, foi também assim que se mostrou. Falava na montanha, onde declarou: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. Ali foram declarados bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, e acrescenta este sermão: porque deles é o reino dos céus”. E a fim de fazer deles luzeiros, isto é, aqueles que toleram todos esses males com paciência, porque são transitórios, disse: “Bem-aventurados sois, quando vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,3.10.11.12). Em seguida, mais adiante no sermão, ao começar a ensinar, embora a multidão o cercasse, disse tais coisas aos discípulos, que feriam os fariseus e judeus na face, a eles que pareciam ter o primeiro lugar na exposição de todas as Escrituras. Não poupou os fariseus e os judeus que se consideravam justos ou queriam parecer tais, e cuja primazia talvez fosse obsequiada pelo povo, nesses termos: “E, quando orardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de fazer oração pondo-se em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos homens”, etc. (Mt 6,5). Atingiu a todos, sem medo de ninguém. E no fim do sermão, a Escritura, no evangelho, concluiu acerca do assunto: “Aconteceu que ao terminar Jesus estas palavras, as multidões ficaram extasiadas com o seu ensino, porque ensinava com autoridade e não como os seus escribas e os fariseus” (Mt 7,28.29). Quantas coisas, portanto, não falou aquele do qual foi dito: “ensinava com autoridade”, quantas coisas disse: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas” (Mt 23,13.14, etc.). Quantas coisas não lhes lançou ao rosto? De ninguém teve medo. Por quê? Porque é o Deus das vinganças. Por isso, não poupava palavras, a fim de posteriormente ter a quem perdoar no juízo; porque se eles não quisessem aceitar o remédio da palavra, prosseguiriam de fato e encontrariam a setença do juiz. Por quê? Porque disse o salmista: “Deus das vinganças, Senhor, Deus das vinganças agiu com intrepidez”, isto é, a ninguém poupou em palavras. Se estando para padecer não poupou em palavras, haverá de poupar ao sentenciar no julgamento? A ninguém temeu em sua condição humilde; terá medo quando estiver em sua glória? Ele agiu com intrepidez; é fácil imaginar como será no fim dos séculos. Por isso, não murmures contra Deus, se aparentemente poupa os maus. Sê no número dos bons, que ele talvez castigue, mas há de poupar no juízo final. | |
§ 8 | 2 Como agiu com intrepidez, eles não suportaram sua ousadia; e como viera humildemente, revestido da carne mortal, e viera para morrer, para sofrer o mesmo que os pecadores, sem ter feito o que eles fazem, como viera por isso e tendo agido com intrepidez, eles não puderam suportar sua intrepidez, o que fizeram? Prenderam-no, flagelaram-no, zombaram dele, esbofetearam-no, cuspiram-lhe, coroaram-no de espinhos, levantaram-no na cruz e finalmente mataram-no. Mas, qual a seqüência de seu modo intrépido de agir? “Levanta-te, juiz da terra”. Pondera que prenderam-no ao se apresentar humilde; prendê-lo-ão ao vir de maneira excelsa? Pensa que julgaram-no qual mortal; porventura não serão julgados quando imortal? Como se exprime o salmista? “Levanta-te”, tu que agiste com intrepidez. Os iníquos não toleraram a ousadia de tua palavra, e pensaram que estavam conseguindo alguma coisa, ao te prenderem e crucificarem. Eles, que deviam te apreender pela fé, prenderam-te durante a perseguição. Tu, porém, que agiste com intrepidez no meio dos malvados, sem medo algum, e padeceste, “levanta-te”, isto é, ressurge, sobe ao céu. A Igreja igualmente sofre pacientemente o mesmo que sofreu com paciência sua Cabeça. “Levanta-te, juiz da terra; retribui aos soberbos o que merecem”. Ele retribuirá, irmãos. Que quer dizer: “Levanta-te, juiz da terra; retribui aos soberbos o que merecem?” É profecia do futuro e não imperativo audacioso. O profeta não disse: “Levanta-te, juiz da terra” e Cristo obedeceu ao profeta, ressurgindo e subindo ao céu; mas, ao contrário como Cristo haveria de realizar isso, o profeta o predisse. Por conseguinte, Cristo não executou o que o profeta predissera; mas o profeta predissera, porque ele haveria de realizar tudo isso. Ele em espírito vê Cristo humilde, vê como é humilde, mas sem medo algum, sem poupar palavras em relação a ninguém, e declara: “Ele agiu com intrepidez”. Ele contempla-o a agir com intrepidez, contempla-o preso, crucificado, humilhado, ressuscitado, subindo ao céu, donde há de vir a julgar aqueles em cujas mãos padeceu todos os suplícios e diz: “Levanta-te, juiz da terra; retribui aos soberbos o que merecem”. Retribuirá aos soberbos, não aos humildes. Quais soberbos? Aqueles aos quais não bastam os pecados que praticam, mas querem ainda defendê-los. Quanto aos que crucificaram a Cristo, aconteceu-lhes depois um milagre, quando no próprio número dos judeus alguns creram, e receberam o sangue de Cristo. Tinham mãos ímpias e cruentas do sangue de Cristo. Lavou-as o mesmo sangue que haviam derramado. Eles se incorporaram ao corpo de Cristo, isto é, à Igreja, embora hajam perseguido seu corpo mortal visível. Derramaram seu preço, para o beberem depois. Pois, de fato, muitos posteriormente se converteram. Como os apóstolos faziam muitos milagres, alguns milhares de homens creram num só dia. Aproximaram-se tanto de Cristo que vendiam tudo o que possuíam e depositavam o produto da venda aos pés dos apóstolos; e a cada um distribuia-se o necessário. Eles tinham uma só alma e um só coração em Deus (At 4,4), e isso, dentre aqueles que crucificaram o Senhor. Mas, por que não lhes foi retribuído o que fizeram? Porque foi dito: “Retribui aos soberbos” e eles não quiseram ser soberbos. Ao verificarem que muitos milagres se realizavam em nome de Cristo, que eles haviam matado, abalados pelos milagres, ouviram da boca de Pedro em nome de quem estes milagres se realizavam. Os servos não quiseram arrogar-se a si mesmo o poder de seu Senhor, declarando que haviam feito o que ele mesmo realizava por meio deles. Os servos prestaram honra a seu Senhor. Afirmaram que aquelas maravilhas eram realizadas em nome daquele que os judeus haviam crucificado. E eles se fizeram humildes, contritos de coração, cheios de confusão a confessarem seus pecados. Pediram conselho, com estas palavras: “Que devemos fazer”? (At 2,37-38). Não perdem a esperança de recuperar a saúde, e procuram o remédio. Então, Pedro lhes respondeu: “Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado em nome de Jesus Cristo” (At 2,37.38). Fazendo penitência mostraram-se humildes; por isso, não lhes foi retribuído o mal que fizeram. Pois, observa como se exprime o salmo: “Levanta-te, juiz da terra: retribui aos soberbos o que merecem”. Foram, portanto, extraídos daquele número; não lhes foi retribuído. Valeu-lhes a oração do Senhor na cruz: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,24). “Levanta-te, juiz da terra; retribui aos soberbos o que merecem”. Então, há de retribuir o que merecem? Sim, mas aos soberbos. | |
§ 9 | 3.4 Mas quando? Quando retribuirá? Por enquanto os maus triunfam, exultam os maus, blasfemam os maus, praticam toda espécie de maldade. Isso te abala? Procura entender com piedade; não repreendas com soberba. Abala-te? O salmo se compadece de ti, procura contigo, mas não por desconhecer a causa. Procura contigo o que ele sabe, para nele encontrares o que desconhecias. Assim como acontece quando alguém quer consolar um aflito. Se não se condoer dele, não o reanima. Primeiro deve condoer-se com ele, e depois animá-lo com palavras de consolo. Se, porém, se aproximar dele rindo de seu pesar, não faz o que acaba de ser lido, uma palavra do Apóstolo: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram” (Rm 12,15). Portanto, a fim de que se alegre contigo, chora primeiro com ele. Deves te contristar com ele para o animares. Assim também o Espírito de Deus, que efetivamente tudo conhece, procura contigo, como que repetindo tuas palavras. “Até quando, Senhor, até quando os pecadores haverão de se gloriar? Responder e proferir a iniqüidade? Falarão todos os obreiros da injustiça?” Que falarão, a não ser contra Deus, os que dizem: De que nos adianta viver assim? Que dizes? Deus cuida de fato do que fazemos? Como continuam a viver, pensam que Deus não sabe o que eles fazem. Olha o mal que lhes sucede! Se o guarda (stationarius)1 soubesse, prendê-los-ia; por isso se escondem dos olhares dos guardas, para não serem logo presos. Mas, os olhos de Deus ninguém pode evitar, porque vê não somente no quarto, mas até o íntimo de teu coração. Pensam também eles que de Deus nada se esconde. Uma vez que fazem assim mesmo, sabem o que fazem, e notando que continuam a viver apesar de Deus ter conhecimento disso (seriam mortos se o guarda o soubesse) dizem a si mesmos: Estes atos agradam a Deus; de fato, se lhe desagradassem nossos atos, da mesma forma que desagradam aos juízes, como desagradam aos reis, como desagradam aos imperadores, e como desagradam aos escrivães (commentarienses)2, acaso como nos ocultamos aos olhares desses últimos, não poderíamos evitar os olhares de Deus? Portanto, estas coisas agradam a Deus. No entanto, em outro salmo se diz ao pecador: “Fizeste isto e calei. Suspeitaste, devido a tua iniqüidade que sou semelhante a ti”. Qual o sentido de: “sou semelhante a ti?” Não penses que me aprazem tuas más ações da mesma maneira que te são aprazíveis. E ameaça para o futuro: “Censurar-te-ei” (Sl 49,21). Por conseguinte não cala aquele que disse: “Calei”. Tendo dito: “Fizeste isto e calei. Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti”, e não calou. Pois, quando nós falamos, ele não cala; quando o leitor faz a leitura, ele não cala; quando o salmo canta esses fatos, ele não cala. Estas vozes todas de Deus se fazem ouvir pelo orbe da terra. Como, então, ele cala e como não cala? Não cala quanto a palavras, mas faz calar a vingança. Que quer dizer, então: “Fizeste isto e calei?” Fizeste isso e não me vinguei. “Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti”. Quanto a fazer calar a vingança, isto é, à cessação do castigo, diz em outra passagem: “Calei; acaso sempre calarei”? (Is 42,14). “Até quando, Senhor, até quando os pecadores haverão de se gloriar? Responder e proferir a iniqüidade? Falarão todos os obreiros da injustiça?” E diz todas as obras. “Responder e proferir a iniqüi-dade?” Que é: “Responder?” Eles têm o que responder contra o justo. Vem um justo e diz: Não pratiques a iniqüidade. Por quê? A fim de não morreres. Mas eu pratiquei a iniqüidade; por que não morri? Aquele outro praticou a justiça e morreu; por que ele morreu? Eu fiz o mal; Por que Deus não me tirou do mundo? Eis, aquele outro praticou a justiça; e por que assim o castigou? Por que ele peleja tanto? respondem, isto é, “responderão” porque têm o que dizer; visto que a paciência de Deus os poupa, encontram argumentos em resposta. Deus poupa por certo motivo, e eles respondem por outro, porque vivem. O Apóstolo explica porque Deus poupa, expondo o desígnio paciente de Deus: “Ou pensas tu, que praticas tais ações, que escaparás no juízo de Deus?” Ou desprezas a riqueza da sua bondade e longanimidade, desconhecendo que a paciência de Deus te convida à conversão?” Tu, porém, a saber, aquele que responde: Se desagradasse a Deus, Deus não me pouparia; vê o que ele faz contra si mesmo, escuta o Apóstolo: “ora, tu, com tua obstinação e com teu coração inpenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus que retribuirá a cada um segundo suas obras” (Rm 2,3-6). Ele, pois, aumenta a longanimidade e tu aumentas a maldade. Haverá um tesouro de misericórdia eterna para com aqueles que não desprezaram a misericórdia; teu tesouro, contudo, será de ira. Cada dia ajuntas um pouquinho, mas depois encontrarás um grande volume; colocas pouco a pouco, mas encontrarás um acúmulo. Não consideres pequenos teus pecados cotidianos; de gotas minúsculas enchem-se os rios. | |
§ 10 | 5.6 Que estão fazendo aqueles que respondem e proferem a iniqüidade, porque cometem o mal e são poupados? “Eles humilharam teu povo, Senhor”, a saber, todos os que vivem na justiça, e contra os quais querem orgulhar-se todos os malvados. “Eles humilharam teu povo, Senhor, maltrataram a tua herança. Mataram a viúva e os órfãos, e tiraram a vida ao prosélito”, isto é, ao peregrino, ao adventício, ao estrangeiro; é o que significa aqui prosélito. Cada uma dessas expressões é clara e não precisamos nos deter nelas. | |
§ 11 | 7 “E disseram: O Senhor não o verá”. Não dá atenção a estas coisas, negligencia, cuida de outras questões, não entende. Essas duas vozes vêm dos maus; uma é a que já citei: “Fizeste isso e calei. Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti”. Que é: “sou semelhante a ti?” Pensas que eu vejo teus feitos e eles me agradam, pois não me vingo. A outra é a voz dos iníquos: Uma vez que Deus não observa estas ações, nem examina para saber como vivo, Deus não se preocupa comigo. Por isso, Deus me conta entre os outros? Ou de fato Deus me inclui no seu número? Ou enumera os próprios homens? Ó infeliz! Ele cuidou de que existisses; não há de cuidar de que vivas no bem? Por conseguinte, assim falam eles. E disseram: “O Senhor não o verá, nem o perceberá o Deus de Jacó”. | |
§ 12 | 8 “Entendei agora, néscios dentre o povo, e insensatos, quando é que entendereis bem”. Instrui Deus a seu povo, porque pode o homem sentir resvalarem-lhe os pés, diante das felicidades dos malvados, quando ele já está vivendo bem no número dos santos de Deus, isto é, no número dos filhos da Igreja. Ele vê que os maus prosperam enquanto praticam a maldade e sente inveja, sendo levado a imitar seus atos. Parece-lhe que nada adianta viver o homem humilde honestamente, esperando obter aqui uma recompensa. Pois, se esperar a recompensa futura, não a perderá; mas ainda não chegou o tempo de recebê-la. Trabalhas na vinha. Faze tua tarefa e receberás tua paga. Não exigirias pagamento de um pai de família antes de trabalhares, e queres exigi-lo de Deus antes do trabalho? Também esta paciência faz parte de tua tarefa e pertence à recompensa. Queres trabalhar menos na vinha, uma vez que não queres pacientar; a própria tolerância faz parte da obra que te valerá a recompen- sa. Se és fraudulento, não somente não receberás recompensa, mas encontrarás castigo, porque quiseste ser um operário fraudulento. Com efeito, um operário doloso quando começa a agir mal, observa os olhos do pai de fa-mília, olha aquele que o contrata a trabalhar na vinha. Logo que ele tirar os olhos de cima dele, pára e trabalha mal; quando volta a olhar, trabalha bem. Deus, porém, que te contratou, não tira os olhos. Não te é lícito trabalhar com dolo. Os olhos do pai de família estão sempre fixos em ti. Procura um lugar onde possas enganá-lo e interrompe o trabalho se puderes. Conseqüêntemente, se talvez cogitáveis alguma coisa, ao virdes os maus progredirem e vossas cogitações faziam vacilar vossos pés no caminho de Deus, é a vós que se dirige o presente salmo. Se nenhum de vós pensa assim, falei aos demais: “Entendei agora”, porque eles haviam dito: “O Senhor não o verá, nem o perceberá o Deus de Jacó. Entendei agora, néscios dentre o povo, e insensatos, quando é que entendereis bem”. | |
§ 13 | 9.10 “Quem plasmou o ouvido não ouvirá?” Não tem com que ouvir aquele que fez com que ouças? “Quem plasmou o ouvido não ouvirá? Ou quem formou o olho não verá? Quem educa as nações não argüirá?” Prestai maior atenção a isso, meus irmãos: “Quem educa as nações não argüirá?” Atualmente Deus assim age. Ele educa as nações. Para tanto enviou sua palavra por todo o orbe da terra aos homens. Enviou-a por intermédio dos anjos, dos patriarcas, dos profetas, de seus servos, de tantos pregoeiros a precederem a vinda do juiz. Enviou Deus também o seu próprio Verbo, enviou o próprio Filho. Enviou os servos de seu Filho e nos servos o seu Filho. Por todo o orbe da terra se anuncia a palavra de Deus. Onde é que não se prega aos homens: Abandonai vossas anteriores maldades, convertei-vos ao caminho reto? Deus poupa para que vos corrijais; ontem não castigou para que vivais honestamente hoje. Ele educa as nações; por isso não argüe? Não haverá de ouvir aqueles que ele educa? Não haverá de julgar aqueles aos quais previamente enviou a palavra, de antemão semeou a palavra entre eles? Se estivesse na escola, receberias e não retribuirias? Com efeito, ao receberes do mestre, ficas instruído; o mestre te entrega aquilo que ele apresenta, e não exigirá de volta por ocasião da repetição? Ou quando começares a repetir, estarás sem medo da palmatória? Agora, portanto, recebemos; depois estaremos perante o mestre, para restituír-mos tudo o que recebemos no passado, isto é, para prestarmos contas de tudo o que agora nos é entregue. Ouve como fala o Apóstolo: “Porquanto todos nós teremos de comparecer perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (Rm 14,10; 2Cor 5,10). “Quem educa as nações não augüirá? Ele que ensina aos homens o saber?” Não saberia aquele que te fez saber: “que ensina aos homens o saber?” 1 Chamavam-se “stationarii” os soldados e guardas estabelecidos em províncias e cidades, que denunciavam os crimes notórios aos magistrados (Maurinos). 2 “Commentarienses” (escrivães) eram os guardas-chefes e notários que deviam anotar as folhas dos presos e dos réus e receber os relatórios dos crimes (Maurinos) | |
§ 14 | 11 “O Senhor conhece os pensamentos do homem, sabe que são vãos”. Pois, apesar de desconheceres os desígnios de Deus, que são justos, ele “conhece os pensamentos do homem, sabe que são vãos”. Existiram homens que conheceram os pensamentos de Deus, mas são aqueles de quem ele era amigo e aos quais revelou seu desígnio. Mas também vós, meus irmãos, não vos menosprezeis. Se com fé vos aproximais de Deus, ouvireis quais os seus pensamentos. Aprendei-os agora, quando vos são manifestados, e instrui-vos acerca do motivo por que Deus agora poupa os maus, a fim de não murmurardes contra Deus, que “ensina aos homens o saber. O Senhor conhece os pensamentos do homem, sabe que são vãos”. Abandonai, portanto, os pensamentos do homem, que são vãos, a fim de compreenderdes os pensamentos de Deus, que são sábios. Mas, quem é que compreende os pensamentos de Deus? Quem está no firmamento do céu. Já cantamos estas palavras, já as repetimos e expusemos. | |
§ 15 | 12.13 “Feliz o homem a quem ensinas, Senhor, e instruis na tua lei, a fim de lhe suavizares os dias maus, até que se abra a fossa ao pecador”. Aí está o desígnio de Deus, o motivo por que poupa os maus: abre-se a fossa ao pecador. Tu já querias sepultá-lo; a fossa ainda está sendo aberta; não tenhas pressa de sepultá-lo. Que quer dizer: “até que se abra a fossa ao pecador?” Quem é esse pecador? Um só homem? Não. Quem, então? Todo o gênero dos homens pecadores, mas orgulhosos; o salmo já declarou antes: “Retribui aos soberbos o que merecem”. Pois pecador era também o publicano, que baixara os olhos para o chão e batia no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” Mas, como não era soberbo, e Deus retribuirá aos soberbos o que merecem, a fossa não se abre para ele, mas para os orgulhosos, até que lhes seja retribuído o que merecem. Portanto, a palavra: “Até que se abra a fossa ao pecador” deve ser entendida relativamente aos soberbos. Quem é soberbo? Aquele que não faz penitência, não confessa seus pecados, de sorte que possa ser curado pela humildade. Quem é soberbo? Aquele que quer arrogar a si mesmo os poucos bens que parece ter, e procura diminuir a misericórdia de Deus. Quem é soberbo? Aquele que, embora atribua a Deus o bem que faz, injuria contudo aqueles que não o fazem, e exalta-se acima deles. Pois também o fariseu dizia: “Eu te dou graças”; não disse: Eu faço. Dava graças a Deus pelo bem que praticava; percebia que fazia o bem, e o fazia com o auxílio de Deus. Então, por que foi reprovado? Porque injuriava o publicano. Prestai atenção a fim de tirardes proveito. Primeiro, nos homens e nas mulheres, deve preceder a confissão dos pecados, uma penitência salutar, que valha para corrigir o homem e não para zombar de Deus. Ao começar alguém, depois da penitência, a viver bem, deve ainda não atribuir a si o bem que faz, mas dê graças a Deus, por cujo auxílio pôde viver bem. Pois, Deus o chamou, o iluminou. Então, ele já é perfeito? Não; falta-lhe ainda algo. Que lhe falta? Que não se ensoberbeça acima daqueles que ainda não vivem de igual modo. Quem agir assim, está seguro; não lhe será retribuído conforme foi dito: “Retribui aos soberbos o que merecem”. Não está entre aqueles para os quais se abre a fossa. Pois, vede como se exaltou aquele que assim rezava: “Eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, injustos, ladrões, adúlteros, nem como este publicano”; quanto se exaltou, ao dizer: “nem como este publicano?” O publicano, com o rosto inclinado para o chão, batia no peito, dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” O fariseu era soberbo no meio de suas boas ações, e o publicano humilde por causa de suas ações más. Vede, irmãos. Mais agradou a Deus a humildade no meio das más ações do que a soberba com as boas ações. De tal modo Deus odeia os soberbos. Por isso assim conclui a parábola: “Eu vos digo que o publicano desceu para casa justificado, mais do que o fariseu. E declara a razão: “Todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (cf Lc 18,10-14). Meus irmãos, ao menos por isso aprendemos que Cristo nos ensinou a humildade, porque Deus se fez homem. Esta humildade desagrada aos pagãos e por causa disso nos injuriam: Adorais um Deus que nasceu? Adorais um Deus que foi crucificado? A humildade de Cristo desagrada aos soberbos. Tu, porém, ó cristão, se te apraz, imita-a. Se a imitares, não terás tribulações, porque ele mesmo disse: “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,28.29). Assim é a disciplina cristã: ninguém pratica algum bem, a não ser pela graça de Deus. O mal praticado pelo homem, provém dele mesmo: o bem é obra da graça de Deus. Ao começar a agir bem, não atribua o cristão o que faz a si mesmo; e não o atribuindo a si, dê graças àquele do qual deriva. Ao agir bem não injurie a quem não age de igual maneira, nem se exalte acima dele. A graça de Deus não terminou nele, de tal sorte que não possa atingir a outrem. | |
§ 16 | “A fim de lhe suavizares os dias maus, até que se abra a fossa ao pecador”. Ó cristão, seja quem fores, sê manso diante dos dias maus. Ora, são maus os dias em que os pecadores parecem prosperar e os justos afligir-se; mas o labor dos justos é o flagelo do Pai, ao invés da felicidade dos pecadores, que constitui uma fossa para eles. Visto que Deus vos suaviza os dias maus, até que se abra a fossa ao pecador, não deveis imaginar que os anjos estejam em qualquer parte com enxadas a cavar uma grande fossa, capaz de conter todos os iníquos. E ponderando que são tantos os iníquos, não comeceis a dizer-vos de modo carnal: De fato, que fossa pode conter tamanha multidão de pecadores, essa turba de iníquos? Quando ficará pronta essa fossa com capacidade para todos? Portanto, Deus perdoa. Nada disso. A fossa dos pecadores é sua própria felicidade; pois eles aí caem como se lhes abrisse uma fossa. Atenção, irmãos. É importante saber que a felicidade é denominada fossa: “Até que se abra a fossa ao pecador”. Com efeito, Deus poupa a alguém que ele conhece por pecador e ímpio. Trata-se de uma justiça oculta. Pelo fato mesmo de poupá-lo, Deus através da impunidade deixa-o tornar-se orgulhoso. Ele pensa que está muito elevado e cai. Cai porque se julga nas alturas. Ele imagina que está subindo ao cume e Deus denomina a este fato fossa. A fossa aprofunda-se e não vai para o céu. Os pecadores, contudo, cheios de soberba, pensam que vão para o céu e se enterram. Ao contrário, os humildes abaixam-se até o chão e sobem ao céu. Amansa-te, portanto, ó fiel, se és bem instruído na lei de Deus, de tal forma que teu coração se fixe no firmamento do céu; porque Deus fez os luzeiros no “quarto dia a contar do sábado”, conforme consta do título do presente salmo. Da mesma forma que vês os luzeiros continuarem a percorrer pacientemente a sua órbita, sem cuidarem do que dizem os homens a seu respeito, assim também tu não te preocupes com o que te fizer a carne. Pois, todo homem é carne e sangue. Não és pior do que qualquer homem carnal que te oprima, pois foi por tua causa que Cristo assumiu a carne, e por ti derramou seu sangue, ele que há de submeter ao futuro exame a ti e àquele homem. E se ele te concedeu previamente tantos dons quando eras ímpio, que não há de reservar depois de te tornares fiel? Por esta razão acalma-te. Como te acalmarás? Dizendo: Os maus prosperam porque Deus assim o quer. Ele quer poupar os maus, a fim de levá-los à penitência, mas eles não se corrigem; Deus sabe como há de julgá-los. Efetivamente, o homem é impaciente quando quer opor-se à bondade do Senhor, ou à paciência, ao poder, à justiça do juíz. O soberbo se levanta contra Deus, mas Deus o abaixa; e o humilha no ato mesmo de sua revolta contra Deus. Pois, num outro salmo se encontra dito: “Derrubaste-os quando se exaltavam” (Sl 72,18). Não disse: Derrubaste-os porque se exaltaram; ou, Derrubaste-os, depois que se exaltaram, de sorte que difiram as ocasiões de seu orgulho e as de sua humilhação; mas no ato mesmo de se exaltarem eles foram derrubados. O coração do homem se afasta de Deus na medida mesma de sua soberba; e apartando-se de Deus, mergulha nas profundezas. Ao invés, o coração humilde atrai a Deus do alto do céu a se tornar próximo dele. Certamente Deus é excelso, está acima de todos os céus, transcende a todos os anjos; quanto deves subir para atingir a este Deus excelso? Não arrebentes esticando-te. Dou-te outro conselho, a fim de não estourares pela soberba no esforço de te estenderes. Certamente Deus é excelso. Humilha-te e ele descerá a ti. | |
§ 17 | 14 Ouvimos dizer o motivo por que ele poupa os maus. Trata-se de se lhes abrir a fossa. Deus te declara: Não te compete saber como se lhes abre a fossa, nem por que razão; mas aprende de minha lei que deves ser paciente, “até que se abra a fossa ao pecador”. E que me sucederá, dizes, a mim que trabalho, e labuto no meio dos próprios pecadores? A resposta é a seguinte: “Porque o Senhor não há de rejeitar o seu povo”. Exercita-o; não o rejeita. Como se expressa em outra passagem a Escritura? “Pois o Senhor educa a quem ele ama, e castiga todo filho que acolhe” (Hb 12,6). Ele acolhe o filho castigado e tu dizes que ele rejeita? Notamos que entre os homens acontece que ajam desta maneira em relação aos filhos; por vezes, tendo perdido a esperança de correção de seus filhos, deixam-nos viver do modo que quiserem. Castigam aqueles nos quais têm esperanças. Os outros, porém, que inteiramente se mostrarem sem sinais de melhora e rebeldes, deixam-nos fazerem como quiserem. O pai não admite à posse da herança aquele a quem abandona à própria vontade; mas castiga o filho para o qual reserva a herança. Quando Deus castigar um filho, corra e fique sob as mãos do Pai que o açoita, porque o pai que castiga prepara à obtenção da herança. Ele não há de repelir da herança o filho que é castigado, mas castiga-o para que a receba. O filho não tenha um senso tão tolo e pueril que diga: Meu pai ama meu irmão mais do que a mim, pois permite que ele faça o que quiser; eu se me mover contra sua ordem, recebo logo açoites. Alegra-te de ser submetido ao castigo, porque te é reservada a herança, uma vez que “o Senhor não há de rejeitar o seu povo”. Emenda temporariamente, mas não condena para sempre; àqueles, porém, que ele poupa por algum tempo, condenda-los-á eternamente. Escolhe, pois: Queres um trabalho temporal, ou um castigo eterno? Uma felicidade temporal, ou uma vida eterna? De que te ameaça Deus? De um castigo eterno. Que te promete Deus? Um repouso eterno. O castigo dos bons é temporário; e se poupa os maus é por algum tempo. “Porque o Senhor não há de rejeitar o seu povo, nem de desamparar a sua herança”. | |
§ 18 | 15 “Até que a justiça se converta em juízo e os que a possuem são corações retos”. Dá atenção agora; possui a justiça, porque ainda não podes ter o juízo. Primeiro é necessário que possuas a justiça; mas a própria justiça se converterá em juízo. Os apóstolos tiveram na terra a justiça e suportaram os pecadores. Mas que lhes foi dito? “Vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,28). Portanto, a justiça deles se converterá em juízo. De fato, agora qualquer dos justos deve sofrer e tolerar os males; suporte no tempo da paixão, pois virá o dia do juízo. Mas, porque falo dos servos de Deus? O próprio Senhor, juiz dos vivos e dos mortos, primeiro quis ser julgado, para julgar depois. “Até que a justiça se converta em juízo e os que a possuem são corações retos”. Os que agora possuem a justiça ainda não julgam. Em primeiro lugar devem ter a justiça e depois julgar. Primeiro se deve suportar os maus e depois julgá-los. Agora, exista a justiça; posteriormente se converterá em juízo. Enquanto isso suportem-se os maus, quanto Deus o quiser, quanto os tolerar a Igreja de Deus, a fim de ser instruída através da malícia deles. Deus, contudo, não há de rejeitar o seu povo “até que a justiça se converta em juízo e os que a possuem são corações retos”. Quais são os “corações retos?” Os que querem o que Deus quer. Ele poupa os pecadores, e tu queres que já condene os pecadores. Tens o coração distorcido e a vontade pervertida, se queres coisa diferente daquela que Deus quer. Ora, Deus quer poupar os maus, e tu não o queres; Deus é paciente em relação aos pecadores, mas tu não queres tolerar os pescadores. Mas, conforme eu começara a dizer, queres coisa diferente do que Deus quer. Converte teu coração, dirige-o para Deus, pois Deus se compadeceu dos fracos. Ele nota em seu corpo, isto é, em sua Igreja os fracos, que anteriormente tentavam seguir sua própria vontade; mas ao verificarem ser outra a vontade de Deus, corrigiram-se a si e a seus corações para aceitar a vontade de Deus e segui-la. Não procures torcer a vontade de Deus segundo tua própria vontade, mas corrige tua vontade conforme a vontade de Deus. A vontade de Deus é uma espécie de régua: eis que, pensa nisso, torceste a régua; de que te servirás para corrigir? Ela, porém, permanece íntegra: a régua é imutável. Enquanto ela permanecer íntegra, tens com que te converter e corrigir tua maldade, tens como corrigir o que está torto. Pois, o que querem os homens? Não lhes basta terem uma vontade tortuosa; mas ainda querem fazer a vontade de Deus se entortar segundo o coração deles, de tal modo que Deus faça o que eles querem, conquanto devessem eles fazer aquilo que Deus quer. | |
§ 19 | Como, porém, o Senhor entrelaçou as duas vontades em uma só, quando se fez homem? Prefigurava que em seu corpo, isto é, em sua Igreja, haveriam alguns que tentassem fazer a própria vontade, mas depois seguissem a vontade de Deus; manifestou alguns fracos que lhe pertencem e prefigurou-os em si mesmo. Por isso também ele suou sangue em todo o corpo (cf Lc 22,44), mostrando em seu corpo, isto é, em sua Igreja o sangue dos mártires. O sangue escorria por todo o corpo; da mesma forma a Igreja tem seus mártires e por todo o seu corpo correu o sangue. Preferindo alguns dos mais fracos em seu corpo, fala em nome deles, compartilhando seu sofrimento: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice” (Mt 26,39). Demonstra ter vontade humana; se persistisse nesta vontade, teria coração perverso. Mas, uma vez que de ti se compadeceu, e em si te liberta, imita a palavra que proferiu em seguida: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, ó Pai”. Se a vontade humana começar a te insinuar: Oh! Se Deus matasse este meu inimigo para que não me perseguisse! Oh! se fosse possível que não me fizese sofrer tanto! Se persistires nesses desejos, se consentires, sabendo que Deus não o quer, tens o coração perverso, não possuis a justiça que se há de converter em juízo, pois os que a possuem são corações retos. E quais são os “corações retos?” Os que se portam como Jó, que disse: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; conforme agradou ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Eis um coração reto. E ainda, como respondeu à mulher, estando ele gravemente ferido? O diabo a deixara, não a matara, para a ter por auxiliar e não para consolo do marido. Lembrava-se de que por Eva havia sido enganado Adão (cf Gn 3,6), e tinha necessidade desta outra vez. Esta se aproximou de Jó, qual outra Eva; mas Adão no meio do estrume venceu e foi superior a Adão no paraíso, que foi vencido. Pois, que respondeu Jó a sua mulher? Observa como tem o coração preparado, o coração reto. Acaso não sofria graves perseguições? E todos os cristãos as sofrem. Se os homens não se enfurecem, enfurece-se o diabo; e se os imperadores se tornaram cristãos, porventura ler-se-á o diabo feito cristão? Notai, portanto, V. caridade, que sentido tem a expressão: coração reto. A mulher se aproximou de Jó e lhe disse: “Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” Enumerou todas as suas tribulações e as dele: Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez! Mas ele, já conhecedor de Eva, querendo voltar ao lugar de onde caiu, e tendo o coração fixo em Deus, como um luzeiro no céu, familiar em seu coração do Livro da palavra de Deus, replicou: “Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males”? (Jó 2,9.10). É um coração reto porque fixo em Deus. Deus é reto, e quando nele firmas teu coração, ele te dará forma e teu coração reto. Fixa, portanto, nele teu coração e ele será reto. Mas, talvez se insinue a vontade humana. Alguma coisa, proveniente da fraqueza da carne, alimentava tua mente; não desesperes. O Senhor te prefigurou em sua fraqueza e não a si mesmo; pois ele não tinha medo de sofrer, havendo de ressuscitar ao terceiro dia. Se verdadeiramente sofria enquanto homem, e não era como Deus que viera para sofrer, e se sabia que haveria de ressuscitar ao terceiro dia, absolutamente não temeria a morte, como nem teve medo dela o apóstolo Paulo, que só ressuscitaria no fim do mundo. Pois, ele declarou: “Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (Fl 1,23.24). Causava-lhe tédio permanecer na carne; sentia-se impelido de duas partes. Partir e estar com Cristo, dizia que seria muito melhor. Ao se aproximar a sua morte, como exultava! Como se gloriava! “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2 Tm 4,7.8). Paulo se alegra porque deve ser coroado, e triste está o Senhor que haverá de dar as coroas; o Apóstolo de tal forma se alegra e diz Cristo Senhor nosso: “Meu Pai, se é possível que passe de mim este cálice”. Assumiu a tristeza da mesma forma que assumiu a carne. Não penseis diante do que dizemos que o Senhor não tivesse sentido tristeza. Pois, se dissermos que não ficara triste, quando o evangelho afirma: “A minha alma está triste até a morte!” e ainda quando o evangelho assevera: Jesus dormiu (cf Mt 8,24), dissermos que Jesus não dormiu, e também quando o evangelho declara: Jesus comeu (cf Lc 14,1), dissermos que Jesus não comeu, insinua-se um micróbrio infeccioso e nada deixa sem contaminação, dizendo que seu corpo não era verdadeiro, nem teve carne verdadeira. Tudo aquilo, portanto, que está escrito a respeito dele, irmãos, é um fato, é verdadeiro. Portanto, esteve triste? Triste de fato, mas aceitou voluntariamente a tristeza, assim como voluntariamente assumiu a carne; como voluntariamente escolheu carne verdadeira, voluntariamente era verdadeira a tristeza. De tal maneira mostrou-a voluntariamente em si que se acaso a fraqueza humana se insinuar em ti, e começar a querer coisa diferente do que Deus quer, reconheças a maldade de teu coração fora da regra, firmas-te na regra para que encaminhe para Deus teu coração, que começara a perverter-se. Com efeito, o Senhor, figurando-te, disse: “A minha alma está triste até a morte!” e acresentou: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice”. Ora tu deves imediatamente fazer o que ele fez para te ensinar: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,38.39), ó Pai. Se assim agirdes, tereis a justiça e se tiverdes a justiça, o coração será reto; se o coração é reto, aquela justiça que agora pacienta, se converterá em juízo. Posteriormente, ao julgar teu Senhor, não somente não terás pavor dos males, mas ainda te gloriarás por causa da coroa. Então verás como serviu a paciência de Deus para castigo deles, ou para tua coroa. Agora nada vês. Acredita no que ainda não vês a fim de não te envergonhares ao veres. “Até que a justiça se converta em juízo e os que a possuem são corações retos”. | |
§ 20 | 16 “Quem te levantará por mim contra os malfeitores? Ou quem estará comigo contra os obreiros de iniqüidade?” Os maus querem te persuadir a praticares muitos pecados, a serpente não desiste de sussurar para fazeres a iniqüidade. Se acaso progrides no bem, procuras um companheiro de vida honesta e seja para onde for que te voltares, mal o encontras. Cercam-te muitos malvados, porque os grãos são poucos e a palha é muita. Esta eira contém teus grãos, mas estes ainda sofrem. O total da massa, separada da palha, é volumoso; os grãos são poucos em comparação com a palha, mas em si mesmos são muitos. Por conseguinte, como os maus gritam de todos os lados, e dizem: Por que vives desta maneira? Tu somente és cristão? Por que não ages como os outros? Por que não assistes aos espectáculos como os demais? Por que não usas remédios e ligaduras? Por que não consultas astrólogos e adivinhos como os outros homens? E tu fazes o sinal da cruz e respondes: Sou cristão, no intuito de repelires a esses tais. Mas o adversário insiste, aperta o cerco; e o que é pior, sufoca os cristãos com o exemplo de outros cristãos. O cristão sua, se inflama, fica atribulado. Tem, contudo, com que vencer. Mas, por si mesmo? Vê o que pode responder. Pois, há de replicar: De que serve usar agora esses remédios e lucrar com isto poucos dias? Devo sair deste mundo e ir para junto de meu Senhor, que me lançará no fogo; se prefiro uns poucos dias à vida eterna, ele me mandará para a geena. Qual? A do eterno juízo de Deus. De fato, pensas que Deus cuida da maneira de viver dos homens? E isso talvez te diz não o amigo na rua, mas a mulher em casa, ou o marido à mulher fiel, boa e santa, seduzindo-a. Se é a mulher que diz ao marido, será Eva para ele; se é o marido à mulher, será o diabo para ela. Ou ela será Eva para ti, ou tu serpente para ela. Por vezes é um pai que pondera o modo de viver de um filho e verifica que é mau, péssimo; abala-se, hesita, procura como vencer, quase se deixa levar, quase consente, mas Deus o assiste. Portanto, ouvi como se exprime o salmo: “Quem se levantará por mim contra os malfei-tores?” São tantos! Para qualquer lado que olhe, encontro-os. Quem se oporá ao príncipe da maldade, o diabo com seus anjos e aos homens seduzidos por ele? | |
§ 21 | 19 “Se o Senhor não me tivesse ajudado, por pouco minha alma teria habitado no inferno”. Por pouco caía na fossa preparada para os pecadores; equivale a dizer: “por pouco minha alma teria habitado no inferno”. Já vacilava, quase consentia; por isso olhei para o Senhor. Imagina, por exemplo, que já era injuriado para que praticasse a iniqüidade. Por vezes os maus se congregam para insultar os bons; principalmente se eles forem em maior número, e cercam a um só, como às vezes muita palha está ao redor de um único grão (não estarão juntos quando a massa for ventilada). Este homem isolado é apanhado no meio de muitos iníquos e é insultado, pressionado; querem superá-lo, atacam-no como sendo justo, e de certo modo injuriam-no acerca de sua própria justiça. Dizem-lhe: És um grande apóstolo; subiste ao céu como Elias. Assim agem os homens algumas vezes para que este homem, dando importância às palavras dos homens, envergonhe-se de ser bom no meio de malvados. Que ele resista, no entanto, aos maus; não por suas forças, para não se tornar soberbo ao tentar escapar dos soberbos e não aumentar o número deles. Mas o que dirá? “Quem se levantará por mim contra os malfeitores? Ou quem estará comigo contra os obreiros de iniqüidade? Se o Senhor não me tivesse ajudado, por pouco minha alma teria habitado no inferno”. | |
§ 22 | 18.19 “Se eu dissesse: Meus pés titubearam, tua misericórdia, Senhor, me ajudaria”. Vê como Deus aprecia uma confissão. Teus pés se abalam e não dizes: Meus pés titubeiam, mas declaras que estás firme de pé, quando já estás caindo. Ao invés, se já começaste a ficar abalado, se já começaste a hesitar, confessa o abalo para não lastimares depois a ruína, tendo em vista que Deus te ajude para que a tua alma não habite no inferno. Deus quer a confissão, quer a humildade. Tu te abalaste, enquanto homem; ele te ajuda, sendo Deus; mas confessa, no entanto: “Meus pés titubearam”. Por que já te abalas, e dizes: Estou firme? “Se dissesse: Meus pés titubearam, tua misericórdia, Senhor, me ajudaria”. Do mesmo modo que Pedro presumiu, mas não de suas forças. Via-se o Senhor andar sobre o mar, calcando as cabeças de todos os soberbos deste mundo. Andando sobre as ondas encapeladas representava sua caminhada a calcar as cabeças do soberbos. Também a Igreja calca, pois ela é Pedro. Todavia, Pedro não ousou caminhar sobre as águas por si mesmo; mas como falou? “Senhor, se és tu, manda que eu vá ao teu encontro sobre as águas”. O Senhor o fazia por próprio poder, Pedro segundo sua ordem. Disse ele: “Manda que eu vá ao teu encontro”. O Senhor respondeu: “Vem”. Portanto, também a Igreja calca as cabeças dos soberbos. Mas, como é a Igreja e tem em si fraqueza humana, para se cumprir a palavra: “Se eu dissesse: Meus pés titubearam”, Pedro titubeou no mar e exlcamou: “Senhor, eu pereço”. O mesmo que: “Se dissesse: Meus pés titubearam” é o pedido: “Senhor, eu pereço”. O salmo diz: “Tua misericórdia, Senhor, me ajudaria”, e o evangelho: “Jesus estendeu a mão, repreendendo-o: Homem fraco na fé, por que duvidaste”? (Mt 14,25-31). É admirável como Deus experimenta os homens. O próprio perigo nos torna mais suave o libertador. Pois, vede como continua o salmo. Se dissesse: “Meus pés titubearam, tua misericórdia, Senhor, me ajudaria”. Estas palavras fizeram com que o Senhor se mostrasse suave, livrando-o dos perigos; por isso, expondo a suavidade do Senhor, o salmista exclama: “Senhor, à medida que se multiplicaram as dores de meu co-ração, tuas exortações alegraram-me a alma”. Muitas dores, mas muitas consolações também; amargos os ferimentos, suaves os medicamentos. | |
§ 23 | 20 “És acaso, cúmplice do tribunal da injustiça, tu que estabeleces (fingis) dor no preceito?” Isto é: Nenhum iníquo senta-se a teu lado, nem és cúmplice do tribunal da injustiça. Explica em seguida como entende isso: “Que estabeleces dor no preceito”. Compreendo que não és cúmplice do tribunal da injustiça, pois nem a nós poupaste. Encontra-se provado na epístola do apóstolo Pedro, que para tal apresenta o testemunho da Escritura: “Com efeito, é tempo de começar o juízo pela casa do Senhor”, isto é, tempo de serem julgados os que pertencem à casa do Senhor. Se os filhos são castigados, que não devem esperar os servos péssimos? Por isso, se o juízo “começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a obedecer ao evangelho de Deus?” (1Pd 4,17.18). Logo acrescenta o testemunho: “Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficarão o ímpio e o pecador”? (ib; Pr 11,31). Em que situação, portanto, ficará diante de ti o iníquo, se nem a teus fiéis poupas e de tal maneira os experimentas e instrues? Mas, visto que não poupas para instruir, diz o salmo: “Que esbeleces dor no preceito. Estabeleces (fingis), isto é, formas, plasmas. Daí também: oleiro (figulus) e vaso de barro (fictile). Não é relativo à ficção, mentira, mas ao objeto formado para vir a ser, ter forma, como em outro versículo deste salmo: “Quem formou o olho, não verá?” Acaso: formou (finxit) o olho, aqui, trata-se de uma mentira? Mas, subentenda-se: plasmou o olho, fez o olho. Porventura não se denomina figulus o oleiro, por fazer vasos frágeis, fracos, terrenos? Ouve como se exprime o Apóstolo: “Trazemos, porém, esse tesouro em vasos de argila (fictilibus)” (2 Cor 4,7). Mas seria outro quem fez estes vasos? Escuta o Apóstolo: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Vai acaso a obra dizer ao artífice: Por que me fizeste assim? O oleiro não pode formar da sua massa seja um utensílio para uso nobre, seja outro para uso vil”? (Rm 9,20.21). Observa que o próprio Senhor Jesus Cristo apresenta-se como oleiro. Pois, assim como modelara o homem com argila (cf Gn 2,7), ungiu com lodo os olhos do cego de nascença (cf Jo 9,1-6). Portanto, o versículo: “És, acaso, cumplice do tribunal da injustiça, tu que estabeleces dor no preceito?” pode-se exprimir assim: És acaso, cúmplice do tribunal da injustiça, tu que plasmas dor no preceito? Plasmas dor no preceito, isto é, fazes das dores um preceito, de sorte que a própria dor seja um preceito para nós. Como a dor é um preceito para nós? Quando o Senhor te flagela, ele que por ti morreu, e não te promete a felicidade nesta vida. Ele não pode enganar, e não dá aqui o que procuras. Que dará? Onde dará? Quanto dará aquele que aqui não dá, que na terra nos instrui, que plasma dor no preceito? Na terra te compete trabalhar, mas te é prometido o repouso. Ponderas que tens aqui trabalhos, mas atende qual repouso te é prometido. Podes imaginá-lo? Se pudesses, verias que o trabalho em nada conta em vista da compensação. Escuta aquele que o contemplou em parte e disse: “Agora o meu conhecimento é limitado” (1 Cor 13,12). Que diz mais o Apóstolo? “Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso”. Que significa: “peso eterno de glória que elas nos preparam?” Para quem elas preparam? “Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno (2 Cor 4,17.18). Não tenhas preguiça no trabalho que passa brevemente, e terás uma alegria incessante. Deus te dará a vida eterna; pondera com quanto trabalho hás de obtê-la. | |
§ 24 | Atenção, irmãos. Está à venda. Está à venda o que tenho, Deus te diz; compra-o. Que é que ele tem à venda? Tenho à venda o repouso. Adquire-o com teu trabalho. Atenção. Sejamos cristãos fortes em nome de Cristo. É bem pouco o que falta do salmo. Não nos cansemos. Como poderá ser forte na ação, quem desfalece na audição? O Senhor nos assista para que vos expliquemos o restante. Atenção. Como é que o Senhor nos propôs a venda o reino dos céus. Dize-lhe: Quanto vale? O seu preço é o teu trabalho. Se ele dissesse: É pago em ouro, não bastava esta resposta, mas perguntarias quanto ouro? Pois, há ouro em moeda, meia onça, libra. etc. Por isso, ele declarou o preço, a fim de não teres o trabalho de perguntar até descobrir. O preço é o teu trabalho; em que quantidade? Pergunta quanto é preciso trabalhar. Não te é declarado quanto trabalho será, ou quanto trabalho será exigido de ti. Deus te diz: Eu te mostro a duração daquele repouso; julga tu a quantidade de trabalho necessária para adquiri-lo. Diga, portanto, Deus a duração do repouso. “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). É um repouso eterno. Sem fim será o repouso, sem fim a alegria, sem fim o regozijo, sem fim a incorrupção. Terás a vida eterna, o repouso infinito. Quanto trabalho merece a aquisição de um repouso infinito? Se queres uma comparação exata, julgar segundo a verdade, um repouso eterno se adquire exatamente com um trabalho eterno. A verdade é esta; mas não tenhas medo porque Deus é misericordioso. Pois se tivesses de fazer um trabalho eterno, jamais chegarias ao repouso eterno. Sempre trabalhando, quando alcançarias aquilo que mereceria ser comprado com um trabalho eterno, porque o repouso é eterno? Um preço justo: comprar com um trabalho eterno um repouso eterno. Mas se sempre trabalhasses, jamais chegarias ao repouso. Por conseguinte, a fim de alcançares um dia o que compras, não hás de trabalhar eternamente; não quero dizer que não tenha tal valor, mas deves adquirir o que compras. É digno de fato o repouso de ser comprado, com um trabalho perpétuo; mas necessariamente há de ser obtido por um trabalho temporal. Certamente deveria ser tão longo, isto é, trabalho eterno em troca de repouso eterno. Que vale um milhão de anos a trabalhar? Um milhão de anos tem fim. O que eu te darei, diz Deus, não terá fim. Como é a misericórdia de Deus? Não diz: Trabalha um milhão de anos. Não diz: Trabalha mil anos. Não diz: Trabalha quinhentos anos. Mas: Trabalha enquanto vives, uns poucos anos; depois virá o repouso e este não terá fim. Escuta ainda como continua o salmo: “Senhor, à medida que se multiplicaram as dores de meu coração, tuas exortações alegraram-me a alma”. Trabalhas por poucos anos, e no meio destes mesmos trabalhos não falta o consolo, não faltam as alegrias cotidianas. Mas não te alegres segundo o mundo; alegra-te em Cristo, alegra-te em sua palavra, alegra-te em sua lei. A esta alegria pertence o que vos falamos e o que vós ouvis. Quantas, portanto, são as consolações no meio de tantos trabalhos? É verdade o que diz o Apóstolo: “Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso” (2 Cor 4,17). Eis o valor que damos, uma insignificância, para recebermos tesouros eternos; uma migalha de trabalho para um repouso inacreditável, conforme foi dito: “São leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso”. Alegras-te por algum tempo? Não confies nisso. Estás triste por algum tempo? Não desesperes. A felicidade não te corrompa, a adversidade não te deixe alquebrado, de tal maneira que digas interiormente: Não é possível que Deus admita junto de si iníquos, e que emende os justos para salvá-los, que emende para instruí-los. “Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e o pecador”? (Pr 11,31; 1Pd 4,18). “És acaso, cúmplice do tribunal da injustiça, tu que estabeleces dor no preceito”? Isto é, acaso és cúmplice do tribunal dos ímpios, tu que quiseste de tal modo exercitar e instruir estes teus filhos, que quiseste dar-lhes preceitos a fim de que não estivessem sem temor, a ponto de amarem a outros bens e esquecerem-se de ti, seu verdadeiro bem? Deus é bom. Se Deus deixasse de misturar amarguras às felicidades deste mundo, nós o esqueceríamos. | |
§ 25 | Mas quando as angústias das aflições fazem levantar-se as ondas na alma, desperte-se a fé que ali dormia. O mar estava tranqüilo quando Cristo dormia: enquanto ele dormia armou-se uma tempestade e a nave começou a periclitar. Também no coração do cristão haverá tranqüi-lidade e paz enquanto estiver vigilante a fé; se nossa fé está adormecida, periclitamos. É isto que significa Cristo a dormir, a saber, alguns esquecem-se de sua fé e correm perigo. Mas como aquela nave flutuava, e Cristo foi despertado pelos que hesitavam e lhe diziam: “Senhor, esta-mos perecendo” (cf Mt 8,23-26), mas ele se ergueu, ordenou à tempestade, ordenou às ondas e o perigo cessou, voltando a bonança, assim também em ti, quando te perturbam os maus desejos, as persuasões malvadas, são ondas que serão amainadas. Já perdes a esperança, e pensas que não perteces ao Senhor. Desperte-se a tua fé, acorda o Cristo em teu coração. Ao se reanimar a fé, já reconheces onde te achas. E se te tentam as ondas da concupiscência, volta os olhos para as promessas de Deus, e a suavidade delas te fará desprezar a do mundo. Se muito me pressionarem as ameaças dos poderosos e malvados, e estas expelirem a justiça, atende às ameaças de Deus: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25,41) e não abandonarás a justiça. Temendo, pois, o fogo eterno, desprezas as dores temporais. Em vista do que Deus prometeu, desprezas a felicidade temporal. Ele prometeu o repouso; sofre as incomodidades. Ameaça com o fogo eterno; despreza as dores temporais. E quando Cristo está vigilante, tranqüilize-se teu coração, a fim de também chegares ao porto. Não deixaria de preparar o porto quem preparou a nave. “És, acaso, cúmplice do tribunal da injustiça, tu que estabeleces dor no preceito?” Ele nos exercita por intermédio dos homens malvados e instrui-nos por meio das perseguições deles. Com a malícia do malvado o bom é castigado, e por meio do escravo o filho é corrigido; é assim que ele plasma a dor no preceito. Os maus fazem o que Deus lhes permite fazer; ele os poupa por certo tempo. | |
§ 26 | 21 Como continua o salmo? “Eles atentarão contra a vida do justo”. Por que atentarão? Porque não encontram verdadeiro crime para acusá-lo. Que atentaram contra o Senhor? Inventaram crimes falsos, porque não puderam encontrar verdadeiros (cf Mt 26,59). “E condenarão o sangue inocente”. Declarará em seguida o motivo por que tudo isso se faz. | |
§ 27 | 22 “Mas o Senhor se fez o meu refúgio”. Não buscarias tal refúgio se não te sentisses em perigo; mas periclitaste para procurar, porque ele forma a dor no preceito. A malícia dos maus acarreta-me tribulação; atingido por ela comecei a procurar aquele refúgio que desistira de buscar na felicidade mundana. Quem facilmente se recordará de Deus, se é sempre feliz e goza das esperanças presentes? Retire-se a esperança neste mundo, e venha a esperança em Deus, a fim de poderes dizer: “Mas o Senhor se fez o meu refúgio”. Sinta dor, a fim de que o Senhor se faça o meu refúgio. “E meu Deus veio em auxílio de minha esperança”. Pois agora o Senhor é nossa esperança enquanto estamos na terra; estamos na esperança, não ainda na realidade. Mas a fim de não desfalecermos, assiste-nos aquele que fez a promessa, animando-nos e moderando os males que nos atingem. Não foi em vão que foi dito: “Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar” (1 Cor 10,13). Ele coloca o vaso na fornalha da tribulação para que fique cozido e não a fim de que rebente. “Mas o Senhor se fez o meu refúgio e meu Deus veio em auxílio de minha esperança”. Então, por que te parece injusto que ele poupe os maus? Vê como o salmo já se retrata. Tu também deves corrigir-te com o salmo, pois no salmo estavam tuas vozes. Quais? “Até quando, Senhor, até quando os pecadores haverão de se gloriar?” O salmo se exprimia com tuas palavras; agora tu também emprega as palavras do salmo. Quais? “Mas o Senhor se fez o meu refúgio e meu Deus veio em auxílio de minha esperança”. | |
§ 28 | 23 “O Senhor lhes retribuirá segundo suas obras e pela sua própria malícia há de exterminá-los o Senhor nosso Deus”. Não é inutilmente que disse o salmista: “pela sua própria malícia”. Eu ganho com isso; no entanto, se diz que é pela malícia e não por benefício deles. Certamente os males nos experimentam, nos flagelam. Com que finalidade? Na verdade, por causa do reino dos céus. “Pois, o Senhor castiga todo filho que acolhe. Qual é, com efeito, o filho que o pai não educa” (Hb 12,6.7)? Ao agir assim, Deus nos instrui em vista da herança eterna. E isto ele nos presta com freqüência por meio dos homens perversos; assim nos exercita e aperfeiçoa no amor, que deve se estender até os inimigos. Não é perfeito o amor do cristão se não cumpre o preceito de Cristo: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44). Com isso venceis o próprio diabo, e alcançais a coroa da vitória. Eis quantos bens Deus nos concede através dos homens maus; contudo, não lhes retribui de acordo com o bem que nos prestam, mas segundo sua malícia. Pois, vede quantos bens nos prestou com o enorme crime do traidor Judas. Judas entregou à paixão o Filho de Deus e pela paixão do Filho de Deus todos os povos redimidos obtiveram a salvação; todavia, Judas não recebeu recompensa pela salvação dos povos, mas o suplício merecido por sua malícia. Pois, se considerarmos a entrega de Cristo, e não o ânimo do traidor, Judas fez o mesmo que Deus Pai, do qual foi escrito: “Não poupou o próprio Filho e o entregou por todos nós” (Rm 8,32). Judas fez o mesmo que o próprio Cristo Senhor, do qual foi escrito: “Cristo se entregou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de odor suave”; e ainda: “Como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,2.25). E no entanto, damos graças a Deus Pai, que não poupou o Filho único, mas entregou-o por nós; damos graças ao próprio Filho, que se entregou a si mesmo por nós, cumprindo a vontade do Pai, e detestamos Judas, de cuja ação resultou tão grande benefício para nós. É com razão que dizemos: O Senhor lhe retribuiu segundo suas obras e pela sua própria malícia o exterminou. Com efeito, ele não entregou Cristo por nós, mas o vendeu para obter dinheiro, embora a traição feita a Cristo tenha servido para nosso acolhimento e Cristo foi vendido para nossa redenção. Assim também aqueles que perseguiram os mártires, perseguindo-os na terra, enviavam-nos ao céu. Estavam cônscios de lhes infligirem dano da vida presente, mas sem saberem conferiam-lhes o lucro da vida futura. No entanto, todos os que perseveraram no ódio injusto aos justos, o Senhor lhes retribuirá segundo sua própria iniqüidade, e os exterminará devido a sua malícia. Assim como a bondade dos justos se opõe aos maus, a iniqüidade dos maus aproveita aos bons. De fato, diz o Senhor: “Eu vim para que os que não enxergam vejam, e os que vêem tornem-se cegos” (Jo 9,39) e o Apóstolo: “Para uns somos odor que da vida leva à vida; para outros, odor que da morte leva à morte” (2 Cor 2,16). Efetivamente, a malícia dos iníquos são as armas defensivas dos justos; conforme diz o mesmo Apóstolo: “Pelas armas ofensivas e defensivas da justiça, isto é, na glória e no desprezo” (2 Cor 3,7.8). Em seguida, trata do restante demonstrando que armas ofensivas da direita são a glória de Deus, a boa fama, a verdade, pela qual os cristãos conheciam que viviam, que não estavam morrendo, que se alegravam, que enriqueciam a muitos e possuíam tudo. Armas da esquerda, porém, constituíam o fato de serem tidos por vis e de má fama, serem reputados sedutores, serem ignorados, mortos, coagidos, aparentemente se entristecerem, sofrerem penúria e nada terem. Por que nos admirarmos de que os soldados de Cristo vençam o diabo com armas ofensivas e defensivas? Como as armas da direita são paz para os homens de boa vontade (cf Lc 2,14), mesmo quando são odor de morte que leva à morte para outros, assim a morte dos homens de má vontade são armas defensivas para a salvação dos justos. No entanto, Deus lhes retribuirá não segundo a utilidade que disso tiramos, mas de acordo com a iniqüidade que eles amaram, odiando deste modo a própria alma. Deus não lhes dará honra segundo o benefício que deles tira para nós, pois ele emprega bem até os maus, mas “pela sua própria malícia, há de exterminá-lo o Senhor nosso Deus”. | |
§ 29 | O justo, portanto, tolere o injusto; tolere a impunidade temporal do injusto, as dificuldades temporais do justo; mas o justo vive da fé (cf Rm 1,17). Não há outra justiça para o homem nesta vida, a não ser viver da fé, que age pela caridade (cf Gl 5,6). Se, porém, o justo vive da fé, acredite também que gozará do futuro repouso depois do labor presente, e os injustos terão os eternos suplícios depois da exultação no presente. E se a fé age pela caridade, ame também os inimigos, e à medida do possível, queira ser-lhes útil; desta forma fará com que eles não o prejudiquem, mesmo se o quiserem. E se acaso eles conseguirem o poder, com possibilidade de fazer mal e de dominar, tenha o justo o coração ao alto, onde ninguém poderá prejudicá-lo, educado e instruído na lei de Deus, a fim de que os dias lhe seja suavizados, até que se abra a fossa ao pecador. Se aderir à lei do Senhor e meditá-la dia e noite (cf Sl 1,2), tendo sua cidade nos céus (cf Fl 3,20), do firmamento do céu brilhará sobre a terra. Daí vem o título do presente salmo: “quarto dia a contar do sábado”, quando foram criados os luzeiros (cf Gn 1,14), para fazerem tudo sem murmuração, tendo a palavra de vida no meio de uma geração má e pervertida (cf Fl 2,14-16). Como a noite não extingue as estrelas no céu, a mente dos fiéis, aderindo ao firmamento das Escrituras de Deus não são vencidas pela iniqüidade. E o fato mesmo de que nossos bens terrenos caem por vezes em poder dos maus, não só pertence a nossa instrução (de sorte que o Senhor se torne nosso refúgio e Deus o auxílio de nossa esperança), mas ainda aumenta a fossa do pecador, do qual fala outro salmo: “Curvar-se-á e cairá, ao se apossar do pobre” (Sl 9,10). | |
§ 30 | Talvez vos tenha sido onerosa a extensão do sermão, embora não o demonstre todo o vosso empenho. Mas apesar de ser assim, perdoai-me. Primeiro, porque cumpri uma ordem; pois o Senhor nosso Deus me ordenou por meio destes irmãos, nos quais ele habita. Deus não dá ordens apenas de seu trono. Em seguida, nós o confessamos, porque vos mostrastes tão ávidos de nossas palavras quanto nós o fomos de nos ouvirdes. Nosso Deus, portanto, console-nos por este esforço, de tal sorte que nosso suor seja proveitoso à vossa salvação, e não sirva de prova de acusação. Assim me exprimo, irmãos, a fim de aproveitardes bem o que ouvistes e o rumineis. Não vos permitais esquecê-lo, não somente relembrando, falando sobre isso, mas ainda vivendo assim. Uma vida honesta, levada segundo os preceitos de Deus é como um estilete que escreve no coração o que ouve. Se escrevêsseis sobre cera, logo se apagaria; escrevei-o em vossos corações, em vossos costumes, e jamais se apagará. | |