SALMO 𝟡𝟚

Os meus olhos já viram o que é feito dos que me espreitam, e os meus ouvidos já ouviram o que sucedeu aos malfeitores que se levantam contra mim.

Os justos florescerão como a palmeira, crescerão como o cedro no Líbano.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 92


§ 92:1  Bom é render graças ao Senhor, e cantar louvores ao teu nome, ó Altíssimo,

§ 92:2  ɑ anunciar de manhã a tua benignidade, e à noite a tua fidelidade,

§ 92:3  ʂ sobre um instrumento de dez cordas, e sobre o saltério, ao som solene da harpa.

§ 92:4  Pois me alegraste, Senhor, pelos teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos.

§ 92:5  Quão grandes são, ó Senhor, as tuas obras! quão profundos são os teus pensamentos!

§ 92:6  O homem néscio não sabe, nem o insensato entende isto:

§ 92:7  ɋ quando os ímpios brotam como a erva, e florescem todos os que praticam a iniqüidade, é para serem destruídos para sempre.

§ 92:8  ɱ Mas tu, Senhor, estás nas alturas para sempre.

§ 92:9  Pois eis que os teus inimigos, Senhor, eis que os teus inimigos perecerão; serão dispersos todos os que praticam a iniqüidade.

§ 92:10  ɱ Mas tens exaltado o meu poder, como o do boi selvagem; fui ungido com óleo fresco.

§ 92:11  Os meus olhos já viram o que é feito dos que me espreitam, e os meus ouvidos já ouviram o que sucedeu aos malfeitores que se levantam contra mim.

§ 92:12  Os justos florescerão como a palmeira, crescerão como o cedro no Líbano.

§ 92:13  Estão plantados na casa do Senhor, florescerão nos átrios do nosso Deus.

§ 92:14  Ɲ Na velhice ainda darão frutos, serão viçosos e florescentes,

§ 92:15  para proclamarem que o Senhor é reto. Ele é a minha rocha, e nele não há injustiça.


O SALMO 92



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 Ouvimos ser enunciado o título deste salmo. Não é difícil saber o que significa por meio da Escritura de Deus, quer dizer, do livro do Gênesis. Pois, o título nos avisa, no limiar, o que devemos procurar lá dentro. Assim é a inscrição:

Cântico de louvor. De Davi. Para o dia anterior ao sábado, quando a terra foi criada”.

Recordemos, portanto, o que Deus fez naqueles dias todos em que criou e pôs em ordem o universo, do primeiro ao sexto dia, porque o sétimo ele o santificou, descansando de todas as obras que ele criou muito boas. Descobrimos que no sexto dia (aqui relembrado, porque se diz:

anterior ao sábado”) ele criou todos os animais da terra; em seguida, no mesmo dia fez o homem à sua imagem e semelhança. É por motivo determinado que esses dias assim são dispostos; é deste modo que os séculos hão de decorrer até que repousemos em Deus. Descansaremos então, se praticarmos boas obras. Como exemplo para nós escrito acerca de Deus:

Deus no sétimo dia descansou(cf Gn 1;2,1-3), depois de ter feito tudo muito bem. Não descansou porque estava cansado; nem deixa agora de obrar, pois Cristo Senhor diz claramente:

Meu Pai trabalha até agora(Jo 5,17).

Dirigia-se aos judeus, que pensavam de modo carnal a respeito de Deus, e não entendiam que Deus opera sem movimento, e sempre trabalha e sempre está em repouso. Portanto, também nós, que Deus então quis prefigurar, depois de todas as obras boas teremos repouso. Na verdade, irmãos, as boas obras que praticamos aqui no mundo antes do repouso, são acompanhadas de certo labor. O repouso, nós o possuímos em esperança, ainda não na realidade. Se não houvesse esta esperança, desanimaríamos no trabalho; mas são transitórias as obras boas laboriosas. Pois, que há de melhor do que dar pão a quem tem fome? Que há de tão bom como o que acabamos de ouvir na leitura do evangelho, que é aconselhado de modo geral:

Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo”? (Lc 3,11).

Vestir o nu é boa obra; porventura será sempre necessária esta boa obra? Dá um pouco de trabalho, mas traz consigo o alívio da esperança do futuro repouso. Que trabalho tem quem veste o nu? A obra boa não dá muito trabalho, mas a má é laboriosa. Quem veste o nu, se tem o que dar, não tem trabalho; se não tem:

Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que ele ama(Lc 2,14).

Mas quem pode contar o trabalho que tem aquele que quer despojar um homem vestido? No entanto, tudo isto há de passar ao chegarmos àquele repouso, onde ninguém tem fome e é alimentado, nem nu para ser vestido. Por conseguinte, como haverão de passar estas obras boas, também o sexto dia, quando estarão completas as obras muito boas, tem uma tarde. No sábado não há tarde, porque nosso repouso não terá fim; a tarde representa o fim. Como, portanto, Deus fez no sexto dia o homem a sua imagem, assim descobrimos que no sexto século veio nosso Senhor Jesus Cristo para reformar o homem à imagem de Deus. Pois, o primeiro tempo, como se fosse o primeiro dia, abrange de Adão até Noé; o segundo tempo, como se fosse o segundo dia, de Noé a Abraão; o terceiro tempo, como terceiro dia, de Abraão a Davi; o quarto tempo, como quarto dia, de Davi até o cativeiro de Babilônia; o quinto tempo, como quinto dia, do cativeiro de Babilônia à pregação de João. O sexto dia vai da pregação de João até o fim, e após o fim do sexto dia alcançamos o repouso. Agora, portanto, estamos no sexto dia. Se agora decorre o sexto dia, vede o que en-cerra o título:

Para o dia anterior ao sábado, quando a terra foi criada”.

Ouçamos agora o próprio salmo. Interro-guemo-lo como foi criada a terra, se acaso então foi feita a terra, pois não lemos isso no Gênesis. Quando, então, foi criada a terra? Quando, a não ser quando se realiza o que foi lido agora do Apóstolo:

Se, contudo, permaneceis na fé”, diz ele, “firmes, inabaláveis”? (1 Cor 15,58).

Quando todos os fiéis por toda a terra permanecem firmes na fé, a terra está fundada; então o homem é feito à imagem de Deus. Este o significado do sexto dia do Gênesis. Mas como o criou Deus? Como fundou a terra? Veio Cristo para fundar a terra.

Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo(1 Cor 3,11).

É, portanto, acerca dele que o salmo canta:



§ 2
2 “O Senhor reinou, vestiu-se de magnificência. Revestiu-se de poder e pré-cingiu-se”.

Vemos que se vestiu de duas coisas: poder e magnificência. Para quê? Para fundar a terra. Continua:

Ele firmou o orbe da terra, que será inabalável”.

Como confirmou? Revestindo-se de magnificência. Não a firmaria se se revestisse somente de magnificência e não de poder. Por que de magnifi-cência? Por que de poder? O salmista afirma ambas as coisas:

O Senhor reinou, vestiu-se de magnificência. Revestiu-se de poder e pré-cingiu-se o Senhor”.

Tendes conhecimento, irmãos, de que, tendo nosso Senhor vindo, revestido da carne, agradava a uns e desagradava a outros dentre aqueles aos quais pregava a boa nova do reino. Pois, dividiram-se contra ele as opiniões dos judeus:

Uns diziam: Ele é bom. Outros, porém, diziam: Não. Ele engana o povo(Jo 7,12).

Uns, portanto, falavam bem dele, outros eram detratores, dilaceravam sua fama, mordiam, injuriavam. Para aqueles, portanto, aos quais agradava, vestiu-se de magnificência; diante daqueles aos quais não agradava, “revestiu-se de poder”.

Imita, portanto, também tu, o teu Senhor, a fim de poderes te tornar a sua veste. Apresenta-te com magnificência diante daqueles aos quais tuas boas obras agradam; sê forte contra os detratores. Ouve como o apóstolo Paulo imita seu Senhor, como também ele teve magnificência, teve poder.

Somos o bom odor de Cristo, em toda parte, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem”.

Salvam-se aqueles que se aprazem no bem; os detratores do bem perecem. De seu lado ele tinha o bom odor; ou antes, era o bom odor; mas ai dos infelizes que morrem até em conseqüência do bom odor. Ele não afirmou: Somos para uns odor, e para outros mau cheiro, mas:

Somos o bom odor de Cristo, em toda parte, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem”.

E acrescentou imediatamente:

Para uns, odor que da vida leva à vida, para outros, odor que da morte leva à morte(2 Cor 2,14-16).

Vestira-se de magnificência para aqueles aos quais ele era odor de vida para a vida; para os que o tinham como odor de morte que levava à morte, ele se revestia de poder. Todavia, se tu te alegras ao te louvarem os homens e se comprazerem em tuas boas obras, mas ao te censurarem, desanimas de fazer boas obras, e de certo modo achas que perdeste o resultado delas, porque encontras censores, não ficaste imóvel, não pertences ao orbe da terra, que será inabalável.

Revestiu-se de poder e pre-cingiu-se o Senhor”.

O apóstolo Paulo em outra passagem trata da magnificência e do poder:

Pelas armas ofensivas e defensivas da justiça”.

Vê onde está a magnificência, onde o poder:

na glória e no desprezo”.

Na glória magnificência, no desprezo o poder. Alguns o elogiavam como glorioso; outros o desprezavam em sua ignomínia. Apresentava magnificência àqueles aos quais aprazia, força contra aqueles que o aborreciam. E assim enumera tudo até o fim, onde declara:

Como nada tendo, embora tudo possuamos(2 Cor 6,7.8.10).

Quando tem tudo, é magnificente; quando nada possui é forte. Não é de admirar que continue o salmo:

Ele firmou o orbe da terra, que será inabalável”.

Como será inabalável o orbe da terra? Quando todos os fiéis acreditam em Cristo e estão dispostos a ambas as coisas: alegrar-se com os que os louvam, serem fortes contra os que os censuram; não fraquejar diante das línguas dos que os louvam, nem quebrar-se por causa das línguas dos que os injuriam.



§ 3
Talvez nos questionemos acerca da palavra:

pré-cingiu-se”.

O cinto representa as obras. Quando alguém quer trabalhar, cinge-se. Mas porque não disse: Cingiu-se, mas:

pré-cingiu-se? Cinge a espada a teu flanco, o poderosís-simo; os povos cairão a teus pés”, diz outro salmo (Sl 44, 4.6).

Neste não disse: cingir (cingere), nem pré-cingir (praecingere), mas cingir de lado (ascingere).

Cinges-te de lado quando apertas algo a teu lado pelo cinto; por isto diz o salmo:

Cinge a espada a teu flanco”.

A espada do Senhor que venceu o orbe da terra, eliminando a maldade é o Espírito de Deus na verdade da palavra de Deus. Por que se diz que a espada foi cingida ao flanco? Referimo-nos ao ato de cingir, de outro salmo, para explicar uma coisa pela outra; como fizemos esta citação, não devemos passar por cima. Que significa cingir a espada ao flanco? Pelo flanco se figura a carne. O Senhor não venceria o orbe da terra de outra maneira a não ser vindo, segundo a carne, a espada da verdade. Por que, então, se “pré-cingiu?” Quem se pré-cinge põe diante de si alguma coisa com a qual vai se cingir. Daí vem o que foi dito:

Tomando uma toalha, cingiu-se com ela e começou a lavar os pés dos discípulos”.

Foi um ato de humildade cingir-se e lavar os pés dos discípulos. Toda a fortaleza, porém, encontra-se na humildade, porque toda soberba é frágil; por isso, ao falar de força, acrescentou:

pré-cingiu-se”.

Lembra-te de que Deus se cingiu, cheio de humildade, ao lavar os pés dos discípulos. Mas, Pedro ficou horrorizado de ver seu Senhor, seu mestre (é menos dizer mestre, do que dizer Senhor), curvado diante de seus pés, e a lavar-lhe os pés. Apavorou-se e disse:

Senhor, tu, lavar-me os pés? O Senhor respondeu: o que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde”.

Respondeu-lhe Pedro:

Jamais me lavarás os pés! Jesus replicou-lhe: Se eu não te lavar, não terás parte comigo”.

Pedro, que primeiro se assustara de ver o Senhor a lavar-lhe os pés, mais ainda se assustou com a palavra:

Não terás parte comigo” e acreditou que o Senhor não fazia tal coisa sem motivo, que devia tratar-se de um mistério, e respondeu-lhe:

Senhor, não apenas os meus pés, mas também as mãos, a cabeça e todo o corpo. Jesus lhe disse: Quem se banhou não tem necessidade de se lavar, porque está inteiramente puro(Jo 13,4-15).

Não se tratava, portanto, de um sacramento de purificação, o ato de lavar-lhes os pés, mas era um exemplo de humildade, pois ele dissera:

O que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde”.

Vejamos se eles compreenderam mais tarde, vejamos se manifestou-lhes o Senhor o sentido do que fazia, a fim de contemplarmos o Senhor cingido de força, porque na humildade está toda a fortaleza. Tendo-lhes lavado os pés, de novo pôs-se à mesa, e disse-lhes:

Vós me chamais mestre e Senhor e dizeis bem; pois eu sou. Se, portanto, eu, o mestre e o Senhor, vos lavei os pés”, como deveis fazer uns aos outros? (Jo 13,6-15)? Se, portanto, a força está na humildade, não tenhais medo dos soberbos. Os humildes são como pedra; a pedra se vê no chão, mas é sólida. E os soberbos? São como fumaça; embora no alto, desvanecem. Por conseguinte, devemos atribuir à humildade do Senhor que ele se tenha cindigo, conforme relembra o evangelho. Ele se cingiu para lavar os pés dos discípulos.



§ 4
Existe outra questão que podemos entender destas palavras. Dissemos que aquele que se pré-cinge, põe diante de si aquilo que ele amarra, a fim de se cingir. Aqueles que querem nos diminuir, em geral o fazem em nossa au-sência, como se fosse por detrás; às vezes, fazem-no peran-te nossa face, conforme faziam ao Senhor crucificado, dizendo:

Se é filho de Deus, desça da cruz(Mt 27,40).

Não precisas de fortaleza quando detraem de ti em tua ausên-cia, porque não ouves, nem sentes; se porém te lançam no rosto, é necessário seres forte. Que quer dizer: Seres forte? Que suportes. Não penses que és forte quando, ao ouvires uma injúria, vingas-te com uma bofetada. Isto não é fortaleza, ferir ao seres injuriado, porque foste vencido pela ira; e é grande tolice chamar de forte um homem vencido, pois declara a Escritura:

Mais vale quem vence a cólera do que o conquistador de uma cidade(Pr 16,32).

Chama de melhor o que vence a ira do que o conquistador de uma cidade. Tens, portanto, em ti mesmo um grande ad-versário. Ao ouvires um ultraje, se começar a surgir a ira, e queres pagar o mal com o mal, recorda-te da palavra do Apóstolo Pedro:

Não pagueis mal por mal, nem injúria por injúria(1Pd 3,9).

Lembrado destas palavras, quebras a ira, manténs a fortaleza. Uma vez que ele te maldiz em face e não por detrás, tu te mostras cingido de fortaleza.



§ 5
Já podemos ouvir o restante. O salmo é curto.

Ele firmou o orbe da terra, que será inabalável”.

Notai, irmãos. Muitos acreditam em Cristo; é uma grande multidão. E no entanto, conforme ouvistes na leitura do evangelho, no meio desta grande multidão, o Senhor virá de pá na mão e limpará a sua eira; guardará o trigo no celeiro e queimará a palha no fogo inextinguível (cf Mt 3,12).

De fato, por toda a terra há bons e maus. Os bons são grãos e os maus, palha. A joeira entra na eira: a palha cai, e o trigo fica limpo. Que é, então, o orbe da terra, “que será inabalável?” O salmista não diria isto, de fato, se não houvesse um orbe da terra que se abalará. Existe um orbe da terra que não se abalará e há um orbe da terra que se abalará. Existem bons, estáveis na fé que constituem um orbe da terra: não se diga: Parcialmente, sim. E maus, que não ficam firmes na fé ao sentirem qualquer tribulação; acham-se no orbe da terra. Existe, portanto, um orbe da terra móvel, e outro imóvel, mencionados pelo Apóstolo. Eis o orbe da terra que é móvel. Pergunto-vos, de quem falava o Apóstolo nesses termos:

Entre os quais se acham Himeneu e Fileto. Eles se desviaram da verdade, dizendo que a ressurreição já se realizou; estão pervertendo a fé de vários”? Acaso estes pertenciam ao orbe da terra que é inabalável? Ao invés, eram palha:

estão pervertendo a fé de vários”.

Não disse: De todos. E se falasse de todos, deveríamos entender tratar-se dos pertencentes à cidade de Babilônia, que deve ser condenada com o diabo; no entanto, disse:

a fé de vários”.

E se alguém lhe dissesse: E quem lhes pode resistir? Ele logo acrescenta:

Não obstante, o sólido fundamento colocado por Deus permanece”.

Aí está o orbe da terra, que é inabalável.

Marcado pelo selo desta palavra”.

Qual o selo que tem firme fundamento? “O Senhor conhece os que lhe pertencem”.

Tal o orbe da terra, que é inabalável:

O Senhor conhece os que lhe pertencem”.

E qual a marca deste orbe? “Aparte-se da injustiça todo aquele que pronuncia o nome do Senhor(2 Tm 2,17-19).

Afaste-se agora da iniqüidade; pois não pode apartar-se dos iníquos, uma vez que a palha fica misturada ao trigo até a ventilação. Que dizer, irmãos? Na própria eira acontece uma coisa interessante com o trigo: afasta-se da palha quando debulhado, e não se aparta da eira ao ser triturado. Mas, quando se separará definitivamente? Quando o Senhor vier para ventilar. Por conseguinte, agora a eira é o orbe da terra. Forçoso é, se te aperfeiçoas, viver no meio dos iníquos. Destes não consegues te apartar. Então, afasta-te da iniqüidade.

Aparte-se da injustiça todo aquele que pronuncia o nome do Senhor” e estará no orbe da terra, que é inabalável.



§ 6
2 “Desde aí está preparado o teu trono, ó Deus”.

Que significa:

Desde aí?” Desde então. Seria como se o salmo dissesse: Qual é o trono de Deus? Onde Deus se senta? Em seus santos. Queres ser o trono de Deus? Prepara em teu coração um lugar onde ele se sente. Que é o trono de Deus a não ser o lugar onde Deus habita? Onde Deus habita, senão em templo? Qual o seu templo? É dotado de paredes? De forma nenhuma. Talvez seja seu templo este mundo, porque é muito grande, e um recinto digno de Deus? Criado por ele, não o contém. E onde está Deus? Na alma quieta, na alma justa; esta o porta. Um fato importante, irmãos: certamente Deus é imenso: é pesado para os fortes, leve para os fracos. Quem chamo de fortes? Os soberbos, que presumem de suas forças. Pois a fraqueza da humildade é a maior força. Ouve o Apóstolo a afirmar:

Pois, quando sou fraco, então é que sou forte(2 Cor 12,10).

Foi isto que recomendei, ao dizer que o Senhor se cingiu de poder quando ensinava a humildade. É este, portanto, o trono de Deus, claramente apontado na passagem do profeta:

Sobre quem repousará o meu Espírito?” Isto é, onde repousará o Espírito de Deus, a não ser no trono de Deus? Ouve como ele descreve este trono. Talvez pensavas em ouvir falar de palácio de mármore, átrios amplos, tetos altos e brilhantes. Ouve o que Deus prepara para si:

Sobre quem repousará o meu Espírito? Sobre aquele que é humilde e quieto e que treme diante de minha palavra(Is 66,2).

Eis que és humilde e quieto e em ti habita Deus. Deus é elevado, mas não habita em ti se quiseres elevar-te. Certamente queres ser elevado a fim de que ele habite em ti; sê humilde e treme diante de sua palavra e ele aí habitará. Não tem medo de uma casa que treme, porque ele mesmo a firma.

Desde aí, está preparado o teu trono, ó Deus. Desde aí”, quer dizer, desde então. Com isso figura um tempo determinado. Desde então. Desde quando? Talvez desde o dia “anterior ao sábado. Desde aí”, porque o título do salmo nos conta previamente desde quando. Pois, no sexto dia, isto é, na sexta época deste mundo, o Senhor veio segundo a carne. Desde então, portanto, na verdade deste então, segundo a natureza humana, desde o seio materno. Como se expressa outro salmo:

Entre os esplendores dos santos, do seio. Entre os esplendores dos santos”, isto é, para que os santos sejam iluminados, vejam Deus encarnado; o coração se purifique para ver a divindade.

Entre os esplendores dos santos, do seio”.

Mas, como continua? Não imagines que Cristo começou a existir no seio da virgem.

Antes do raiar da estrela da manhã eu te gerei(Sl 109,3).

Tendo dito:

Entre os esplendores dos santos, do seio”, imediatamente acrescenta, para não se pensar que Cristo começou a existir quando nasceu, como começou Adão, Abraão, Davi.

Antes do raiar da estrela da manhã eu te gerei”, antes de todos os luzeiros. Pelo nome de estrela da manhã designa ou todas as estrelas, e por elas os tempos, pois Deus fez as estrelas para servirem de sinais a marcar o tempo (cf Gn 1,14), e descobrirás que Cristo nasceu antes dos tempos. Efetivamente, quem nasceu antes dos tempos, não pode parecer nascido no tempo, porque também os tempos são criaturas de Deus. Com efeito, se tudo foi feito por ele (cf Jo 1,3), também os tempos foram feitos por ele. Ou certamente, porque foi gerado antes de todos os espíritos que são iluminados, o salmo fala acerca da Sabedoria:

Antes do raiar da estrela da manhã, eu te gerei”.

Preste atenção, V. Caridade. Tendo dito:

do seio”, torna precavida nossa fé, a fim de não pensarmos que Cristo começou a existir no seio da virgem, e logo acrescenta:

Antes do raiar da estrela da manhã, eu te gerei”.

Assim também, aqui, tendo dito:

Desde aí”, isto é, desde certa ocasião, desde o dia ante-rior ao sábado, desde a sexta idade do mundo, quando veio Cristo Senhor, e nasceu segundo a carne, porque Deus se dignou fazer-se homem por nossa causa, não somente anterior a Abraão, mas anterior ao céu e a terra, ele que disse:

Antes que Abraão nascesse, eu sou(Jo 8,58).

Não somente antes de Abraão, mas antes de Adão; não apenas de Adão, mas antes de todos os anjos, antes do céu e da terra, porque por ele tudo foi feito; acrescentou-o para que tu não penses, em consideração do dia do natal do Senhor, em que nasceu, que ele começou a existir então:

Está preparado o teu trono, ó Deus”.

Mas que Deus é este? “Desde todos os séculos tu és”.

Desde toda eternidade, diz o salmo, apò aionos; assim está no texto grego; aion às vezes significa séculos, às vezes eternidade. Portanto, tu que aparentemente começaste então, és desde toda eternidade. Não se cogite de natividade humana, mas se pense em eternidade divina. Portanto, ele começou do nascimento e cresceu; ouvistes o evangelho. Escolheu discípulos, instrui-os, eles começaram a pregar. Talvez seja isto o que o salmo quer dizer em seguida.



§ 7
3.4 “Os rios ergueram a sua voz”.

Que rios são estes que ergueram a sua voz? Não a ouvimos. Não ouvimos os rios falarem nem quando o Senhor nasceu, nem quando foi batizado, nem quando padeceu. Não ouvimos a voz dos rios. Lede o evangelho e não encontrareis vozes de rios. No entanto, não basta que falaram, mas “ergueram a sua voz”; não somente falaram, mas falaram com força, com grandeza, de maneira elevada. Que rios são estes que falaram? Dissemos que não lemos isto no evangelho; contudo, vamos procurar ali. Pois, se lá não encontrarmos, onde encontraremos? Poderia inventar; e de repente não seria correto administrador, mas um incapaz inventor de fábulas. Procuremos no evangelho, procuremos juntos quais os rios que ergueram a sua voz.

Jesus, de pé, disse em alta voz”, foi dito no evangelho. Que dizia em alta voz? Eis que o principal dos rios clama; ele é a fonte da vida de onde decorrem os rios. Ele primeiro ergueu a sua voz. E que dizia em alta voz Jesus, de pé? “Quem crê em mim, como diz a Escritura, de seu seio jorrarão rios de água viva”.

O evangelista imediatamente acrescenta:

Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem; pois não havia ainda sido dado o Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado(Jo 7,37-39).

Depois, porém que Jesus foi glorificado pela ressurreição e ascensão aos céus, como sabeis, irmãos, com mais dez dias, devido a certo mistério, ele enviou seu Espírito Santo (cf At 2,4), que encheu os discípulos. O próprio Espírito é um caudaloso rio, de cujas águas se encheram muitos rios. Do próprio rio diz um salmo, noutra passagem:

Um rio impetuoso alegra a cidade de Deus(Sl 45,5).

Por conseguinte, brotaram rios a jorrarem do seio dos discípulos, quando receberam o Espírito Santo. Rios, porque receberam o Espírito Santo. Quando os rios ergueram a sua voz? Por que ergueram? Porque primeiramente eles tiveram medo. Pedro ainda não era um rio, quando diante da pergunta da criada por três vezes negou a Cristo:

Não conheço o homem(cf Mt 26,69-74).

Aqui ele mente por medo. Ainda não ergue a voz, ainda não é rio. Logo, porém, que os apóstolos foram repletos do Espírito Santo, os judeus os fizeram comparecer diante do sinédrio e ordenaram-lhes que absolutamente não falassem, nem ensinassem em nome de Jesus. Pedro, porém, e João responderam:

Julgai se é justo aos olhos de Deus obedecer mais a vós do que a Deus. Pois é impossível deixarmos de falar das coisas que temos visto e ouvido(At 4,19-20).

Portanto, “os rios ergueram a sua voz, ao fragor das grandes águas”.

Ainda pertence a esta elevação da voz, o fato descrito nos Atos:

Pedro, de pé com os onze, ergueu a voz e assim lhes falou:

Homens da Judéia” etc. (At 2,14).

E anuncia-lhes Jesus sem temor com grande audácia.

Os rios, portanto, ergueram a sua voz, ao fragor das grandes águas”.

Pois, quando os apóstolos foram despedidos do sinédrio dos judeus, procuraram os seus e lhes indicaram tudo quanto os sacerdotes e os anciãos lhes haviam dito: mas eles, unanimamente, ergueram a voz ao Senhor, nesses termos:

Senhor, tu fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm(At 4,23.24) etc.; disseram os rios erguendo a sua voz.

Admiráveis os vagalhões do mar”.

Ao elevarem os discípulos a sua voz, muitos acreditaram, muitos receberam o Espírito Santo e muitos rios, de poucos que eram, começaram a erguer a voz. Por isso, continua o salmo:

Ao fragor das grandes águas, admiráveis os vagalhões do mar”, isto é, deste mundo. Ao iniciarem tantas vozes a anunciar o Cristo, o mar começou a enca-pelar-se, começaram a crescer as perseguições. Portanto, quando “ergueram os rios a sua voz, ao fragor das grandes águas, admiráveis os vagalhões do mar”.

Os vagalhões se levantam, porque quando o mar se encapela, as ondas se levantam. Levantem-se quanto queiram, o mar pode bramir quanto quiser; de fato, “admiráveis são os vaga-lhões do mar”, admiráveis as ameaças, admiráveis as perseguições, mas vê como o salmo prossegue:

Magnífico é nas alturas o Senhor”.

O mar, portanto, se acalme, faça-se a bonança, dê-se a paz aos cristãos. O mar se agitava, e a barquinha flutuava. A barca é a Igreja, e o mundo é o mar. Veio o Senhor, andou sobre as águas do mar e pisou nas ondas (cf Mt 14,24,25).

Como o Senhor andou sobre as águas do mar? Andou sobre os cumes destas grandes ondas espumantes. Os potentados, os reis acreditaram, submeteram-se a Cristo. Portanto, não nos aterremos porque “admiráveis são os vagalhões do mar. Magní-fíco nas alturas é o Senhor”.



§ 8
Bem dignos de fé são teus testemunhos”.

Mais que admiráveis eram os vagalhões do mar, mas o Senhor é magnífico nas alturas.

Bem dignos de fé são teus testemunhos. Teus testemunhos”, porque o Senhor dissera antes:

Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações”.

Digo-vos, porque no mundo tereis tribulações. Começaram a sofrer e viram confirmado em si o que o Senhor lhes predissera e tornaram-se mais fortes. Vendo que em si se realizavam os padecimentos, esperavam também receber coroas. Portanto, “admiráveis os vagalhões do mar. Magnífico nas alturas é o Senhor. Para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações”.

Então, que fazer? O mar se enfurece, erguem-se as ondas, e raivosas soltam bramidos; sofremos tribulações. Acaso desanimaremos? De forma nenhuma.

Magnífico nas alturas é o Senhor”.

Por isso, tendo o Senhor dito no evangelho:

Para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações”, como se ouvisse em resposta: Pensas que o mundo não nos angustia e não nos eliminará? Logo acrescenta:

Mas tende coragem: eu venci o mundo!(Jo 16,33).

Se, portanto, ele diz:

Eu venci o mundo”, aderi àquele que vence o mundo, que vence o mar. Alegrai-vos junto dele, porque magnífico nas alturas é o Senhor, e “bem dignos de fé são teus testemunhos”.

E qual o fim de tudo isso? “A santidade convém a tua casa, Senhor”.

Tua casa, toda a tua casa: não aqui, ou ali, ou mais adiante, mas tua casa inteira, por todo o orbe da terra? Por que por todo o orbe da terra? Porque ele firmou o orbe da terra, que será inabalável (cf Sl 95,10).

A casa do Senhor será forte; será por todo o orbe da terra. Muitos caem, mas aquela casa fica de pé; muitos se perturbarão, mas aquela casa não se abalará.

A santidade convém a tua casa, Senhor”.

Acaso por pouco tempo? Absolutamente não.

Em toda duração dos dias”.