SALMO 𝟭

Não temerás os terrores da noite, nem a seta que voe de dia, nem peste que anda na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia.

Mil poderão cair ao teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 91


§ 91:1  Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Todo-Poderoso descansará.

§ 91:2  Ɗ Direi do Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio.

§ 91:3  Porque ele te livra do laço do passarinho, e da peste perniciosa.

§ 91:4  Ele te cobre com as suas penas, e debaixo das suas asas encontras refúgio; a sua verdade é escudo e broquel.

§ 91:5  Ɲ Não temerás os terrores da noite, nem a seta que voe de dia,

§ 91:6  ɲ nem peste que anda na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia.

§ 91:7  ɱ Mil poderão cair ao teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido.

§ 91:8  Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios.

§ 91:9  Porquanto fizeste do Senhor o teu refúgio, e do Altíssimo a tua habitação,

§ 91:10  ɲ nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.

§ 91:11  Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.

§ 91:12  Eles te susterão nas suas mãos, para que não tropeces em alguma pedra.

§ 91:13  Pisarás o leão e a áspide; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.

§ 91:14  Pois que tanto me amou, eu o livrarei; pô-lo-ei num alto retiro, porque ele conhece o meu nome.

§ 91:15  Quando ele me invocar, eu lhe responderei; estarei com ele na angústia, livrá-lo-ei, e o honrarei.

§ 91:16  Ƈ Com longura de dias fartá-lo-ei, e lhe mostrarei a minha salvação.


O SALMO 91


SERMÃO 💬

§ 1
Prestai atenção ao salmo. O Senhor nos conceda revelarmos os mistérios que ele contém; para evitar que vos enfastieis, explicamos as mesmas coisas de maneira diversa e variada. De fato, Deus não nos ensina outro cântico senão o da fé, da esperança e da caridade: para que nossa fé se firme nele, enquanto não o vemos, acredi-tando, porém, naquele que não vemos: deste modo nos alegraremos ao vê-lo, e a visão de sua luz sucederá à nossa fé. Então não nos será mais dito: Crê no que não vês, mas: alegra-te porque já vês. Nossa esperança igualmente seja indefectível e apoie-se nele. Não vacile, não flutue, não se agite, como o próprio Deus em quem ela se fir-ma não pode se agitar. Ela agora se denomina esperança; depois não haverá mais esperança, mas será plena realidade. Enquanto se chama esperança, não se vê o que se espera, segundo a palavra do Apóstolo:

Ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,24.25).

Agora, portanto, é necessária a paciência, até que venha o que foi prometido. Efetivamente, ninguém é paciente nos eventos felizes. O mal é que exige paciência da parte do homem. Então, se lhe diz: Tenha paciência, tolera, suporta; Deus quer que sejas forte, tolerante, longânime, paciente, sob o mal que atinge. Mas, acaso engana aquele que fez a promessa? O médico mete o bisturi para cortar a parte vulnerada, e diz ao paciente que será operado: Tem paciência, suporta, tolera; durante as dores exige a paciência, mas depois das dores promete a saúde. E aquele que tolera as dores sob o bisturi do médico, se não se lhe propõe a saúde que ainda não tem, desanima no meio da dor que o atinge. Com efeito, numerosos são os males neste mundo, interna e externamente. Absolutamente não cessam, os escândalos abundam. Só os percebe aquele que já ingressou pelos caminhos de Deus. Todas as páginas divinas lhe dizem que deve tolerar os males presentes, esperar os bens futuros, amar a Deus que não vê para abraçá-lo ao vê-lo. Mas, a caridade, que vem em terceiro lugar, depois da fé e da esperança, é maior do que a fé e a esperança (cf 1Cor 13,15), porque a fé pertence às coisas que não se vêem. Será a visão quando se manifestarem. A esperança é atinente aos bens que ainda não são possuídos. Ao chegarem os bens reais, já não haverá esperança, porque possuiremos e não esperaremos. Ao invés, a caridade apenas pode crescer cada vez mais. Pois se amamos o que não vemos, como amaremos, ao vermos? Portanto, cresça nosso desejo. Não somos cristãos a não ser em vista do século futuro. Ninguém espere os bens presentes, ninguém prometa a si mesmo a felicidade neste mundo, pois é cristão. Mas, use da felicidade presente, como puder, se puder, quando puder, quanto puder. Quando ela existe, dê graças por causa do consolo que Deus proporciona; se falta, dê graças à justiça de Deus. Seja sempre grato, nunca ingrato. Seja grato ao Pai, quer console e acaricie, quer emende e castigue e ensine. Pois, ele sempre ama, quer acaricie, quer ameace; e repita o que ouviste no salmo:

É bom confessar ao Senhor e cantar salmos a teu nome, ó Altíssimo”.



§ 2
1 O salmo traz o título seguinte:

Salmo de cântico. Para o dia de sábado”.

Eis que hoje é sábado. Os judeus celebram este dia atualmente com um lazer corporal lânguido, negligente e dissoluto. Pois eles se dão a futilidades. Deus ordenou o repouso do sábado (cf Ex 20,8), mas eles o passam naquelas coisas que Deus proíbe. Nosso repouso seja em relação às obras más, enquanto eles deixam as obras boas. Pois, é melhor arar do que dançar. Eles descansam em relação às boas obras, mas não se abstêm das obras fúteis. Foi Deus quem promulgou o sábado. Qual? Em primeiro lugar, vede onde ele se encontra. É em nosso íntimo, no coração que está nosso sábado. Muitos deixam os membros em repouso, e agitam-se na consciência. Um homem malvado não pode ter sábado, pois sua consciência nunca repousa; necessariamente viverá no meio de perturbações. Quem tem uma consciência em paz, fica tranqüilo; e esta mesma tranqüilidade é o sábado do coração. Pois, ele considera que Deus foi quem prometeu. E se labuta no presente, em esperança se estende para o futuro, e assim dissipa toda nuvem de tristeza, conforme a palavra do Apóstolo:

Alegrando-nos na esperança(Rm 12,12).

A alegria na tranqüilidade de nossa esperança é que constitui o nosso sábado. É isto que relembra, que canta o presente salmo: como o cristão se comporta no sábado de seu coração, isto é, no lazer, na tranqüilidade e na serenidade de sua consciência, sem perturbação. Daí vem que o salmista aqui descreva como costumam os homens se perturbar, e te ensine como passar o sábado em teu coração.



§ 3
2 Em primeiro lugar, que louves a Deus por teus progressos, se progrediste um pouco, porque esse adiantamento é devido a um dom seu e não a teus méritos. Assim começa o sábado: não atribuires a ti como se não tivesses recebido o que recebeste (cf 1Cor 4,7), nem te desculpando do mal que fazes, porque este vem de ti. Pois, os homens perversos e perturbados, que não observam o sábado, atribuem a Deus o mal que em si encontram, e a si o bem. Se fizer algo de bom, logo diz: Fui eu que fiz; se algo de mau, procura a quem acusar, para não se confessar a Deus. E que significa: Procura a quem acusar? Se não é muito incrédulo, tem a seu alcance Satanás para ser acusado. Satanás fez isto, diz ele, persuadindo-me. Como se Satanás tivesse poder de coagir. Ele tem astúcia para persuadir. Mas se Satanás falasse, e Deus se calasse, terias como te desculpar. No entanto, agora teus ouvidos acham-se entre Deus que admoesta e a serpente que sugere. Por que te dobras para um lado e voltas as costas a outro? Satanás não cessa de persuadir em relação ao mal; mas nem Deus deixa de admoestar para o bem. Satanás, contudo, não obriga a quem não quer; em teu poder está consentir ou não consentir. Se por persuasão de Satanás fizeres algum mal, abandona a Satanás, acusa-te e por tua acusação merecerás a misericórdia de Deus. Queres acusar aquele que não tem perdão? Acusa-te e obterás indulgência. Em outros casos, muitos não acusam a Satanás, mas acusam o destino. Meu fado me conduziu, diz alguém. Se lhe perguntas: Por que fizeste isto? Por que pecaste? Responde: Devido a meu malvado destino. Não querendo dizer: Eu é que fiz, estende as mãos para Deus, mas blasfema com a língua. Não o faz abertamente; mas observa como fala assim. Interroga-o sobre o que é o destino e ele responde: As más estrelas. Pergunta-lhe quem fez as estrelas, quem as pôs em ordem. Não tem outra resposta senão que foi Deus. De resto, quer de passagem, ou longamente, quer pelo caminho mais curto, ele acusa a Deus. Apesar de Deus castigar os pecados, ele declara que Deus é o autor de seus pecados. Não é possível que ele castigue aquilo que ele mesmo tenha feito. Ele pune aquilo que tu fazes, a fim de libertar aquilo que ele mesmo faz. Às vezes, porém, deixando tudo de lado, vão diretamente a Deus e ao pecarem, dizem: Foi Deus quem quis assim; se Deus não o quisesse, eu não teria pecado. Suas admoestações fazem não somente que não seja ouvido para não pecares, mas ainda para que tu o acuses se pecas? Ora, que nos ensina este salmo? “É bom confessar ao Senhor”.

Que significa:

Confessar ao Senhor?” Em ambos os casos, tanto por causa do pecado que praticaste, como do bem que fizeste, porque vem de Deus, confessa ao Senhor. Cantas salmos ao nome de Deus Altíssimo, se procuras a glória de Deus e não a tua; seu nome, e não o teu. Pois, se procuras o nome de Deus, ele também procura exaltar teu nome; se, porém, negligenciares o nome de Deus, ele também apagará teu nome. Por que motivo eu disse: Ele procura exaltar teu nome? Porque será conforme ao que ele disse a seus discípulos que voltavam da missão de evangelizar. Havendo praticado muitos milagres, e expulsado demônios em nome de Cristo, ao regressar, disseram-lhe:

Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!” Eles afirmaram:

em teu nome”.

Mas, o Senhor viu que eles se alegravam pela própria glorificação, e se orgulhavam, e daí partiam para a soberba, porque lhes fora facultado expulsar os demônios. Viu que eles procuravam sua própria glória e disse-lhes, procurando, ou antes conservando seus nomes junto de si:

Contudo, não vos alegreis por isso; alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus(Lc 17,20).

Eis onde tens o teu nome, se não te descuidas do nome de Deus. Salmodia, portanto, ao nome de Deus, de tal forma que teu nome esteja inscrito junto de Deus. O que é salmodiar, irmãos? O saltério é uma espécie de instrumento de cordas. Nossas obras são nosso saltério. Quem emprega as mãos em boas obras, salmodia para Deus. Quem confessa com a boca, canta a Deus. Canta com a boca, salmodia com as obras. Com que finalidade?



§ 4
3 “Publicar de manhã a tua misericórdia e pela noite a tua verdade”.

Que significa publicar de manhã a misericórdia de Deus e pela noite sua verdade? Diz-se que é de manhã quando tudo corre bem para nós; e noite, quando chega a tristeza da tribulação. Em resumo, que disse o salmista? Quando estás bem, alegra-te junto de Deus, porque isso provém de sua misericórdia. Talvez já dirias: Se, portanto, alegro-me junto de Deus, quando tudo corre bem, porque isso deriva de sua misericórdia, quando estou em tristeza, em tribulação, que devo fazer? Vem de sua misericórdia o estar bem; então seria crueldade de sua parte, quando as coisas correm mal? Se louvo a misericórdia quando tudo está bem, acusá-lo-ei de crueldade quando as coisas correm mal? Não. Mas, quando tudo prospera, louva a misericórdia; quando dá para trás, louva a verdade, porque não é iníquo quem castiga os pecados. Para Daniel era noite, quando orava; pois Jerusalém estava em cativeiro, estava no poder dos inimigos. Então os santos padeciam muitos males, e ele mesmo fora lançado na cova dos leões (cf Dn 3,6), e os três jovens foram precipitados na fornalha de fogo. Era isto que padecia o povo de Israel no cativeiro. Era noite, Daniel louvava de noite a verdade de Deus; dizia-lhe na oração:

Nós pecamos, cometemos iniqüidades. A ti, Senhor, a glória; e a nós a vergonha no rosto(Dn 9,5.7).

Ele anunciava a verdade de Deus de noite. Que significa anunciar a verdade de Deus pela noite? Não acusar a Deus, por sofreres algum mal, mas atribuir tudo isso a teus pecados e à correção que vem de Deus:

Publicar de manhã tua misericórdia e pela noite a tua verdade”.

Ao anunciares de manhã a misericórdia, e a verdade pela noite, sempre louvas a Deus, sempre o confessas e cantas salmos a seu nome.



§ 5
4 “No saltério de dez cordas, aos acentos da cítara”.

Não escutastes agora o saltério de dez cordas. O saltério de dez cordas representa os dez preceitos da Lei. Mas é preciso cantar ao seu som, e não somente carregar o saltério. Pois também os judeus têm a Lei; carregam, mas não salmodiam. Quais são os que salmodiam? Os que praticam obras. Ainda é pouco: os que as praticam com tristeza, ainda não salmodiam. Quais os que salmodiam? Os que fazem o bem com alegria. Na salmodia há alegria. Como diz o Apóstolo? “Pois Deus ama a quem dá com alegria(2 Cor 9,7).

Faze com alegria tudo o que fazes; então praticarás bem o que é bom. Se, porém, é com tristeza que o praticas, a obra parte de ti, mas não és tu que a fazes; então, carregas o saltério, mas não cantas.

No saltério de dez cordas, aos acentos da cítara”, quer dizer, por palavras e obras.

Aos acentos”, palavras; “da cítara”, obras. Se somente proferes palavras, tens apenas cânticos, mas não usas a cítara; se obras, e não falas, de certo modo possuis apenas a cítara. Por isso, fala bem, e age bem, se queres ter cânticos e cítara.



§ 6
5 “Com teus feitos me deleitaste, exulto com as obras de tuas mãos”.

Vedes como se exprime o salmista. Tu me fizeste viver bem, tu me formaste; se faço algo de bem, exultarei com as obras de tuas mãos; assim se expressa o Apóstolo:

Pois somos criaturas dele, criados para as boas obras(Ef 2,10).

Se Deus não te tivesse criado para as boas obras, conhecerias apenas tuas obras más.

Pois quem mente, fala do que lhe é próprio(Jo 8,44).

É o que declara o evangelho. Todo pecado é uma mentira. Pois, o que é contra a lei e contra a verdade chama-se mentira. Portanto, o que foi dito? “Quem mente, fala do que lhe é próprio”, isto é, quem peca, peca por si mesmo. Notai a sentença contrária. Se, pois, quem mente, fala do que lhe é próprio, a conseqüência é que aquele que fala a verdade, fala do que lhe vem de Deus. Por esta razão, diz-se em outra passagem:

Só Deus é veraz, enquanto todo homem é mentiroso(Rm 3,4; Sl 115,11).

Esta sentença não te diz o seguinte: Vá, mente com tranqüilidade, porque és homem; ao invés, vê que és homem, porque és mentiroso. E para seres veraz, bebe a verdade, para exalares o que é de Deus, para seres veraz. Uma vez que não podes ter a veracidade por ti mesmo, resta que a bebas na fonte de onde ela flui. Assim também, se te apartas da luz, ficas nas trevas. A pedra por si mesma não queima, mas seu calor vem do sol ou do fogo, enquanto se esfria se a tirares do calor. Assim se nota que queimava, mas não por si mesma; estava quente devido ao sol ou ao fogo. Da mesma maneira tu, se te afastas de Deus, esfrias. Se de Deus te aproximas, esquentas, conforme diz o Apóstolo:

Fervorosos de espírito(Rm 12,11).

Ainda, que diz ele a respeito da luz? Se dele te aproximares, estarás na luz; por esta razão encontra-se em um salmo:

Acercai-vos dele e sereis iluminados e vosso rosto não se cobrirá de confusão(Sl 33,6).

Visto que nada de bom podes fazer, a não ser que te tornes esclarecido pela luz de Deus e fervoroso devido ao Espírito de Deus, ao vires o bem que fazes, louva a Deus, e repete a palavra do Apóstolo, repete a ti mesmo a fim de não te orgulhares:

Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?(1 Cor 4,7).

Por isso, aqui se confessa a Deus e o salmista nos instrui a respeito de uma boa confissão, dizendo:

Com teus feitos, Senhor, me deleitaste, exultarei com as obras de tuas mãos”.



§ 7
Que fazer acerca daqueles que vivem mal e progridem? Daí provém o ânimo perturbado que perde o sábado. Ele vê que diariamente está dedicado às boas obras, e trabalha angustiado, talvez na penúria de bens familiares, provavelmente sofrendo fome, sede e nudez, possivelmente no cárcere, apesar do bem que fez enquanto aquele que o lançou no cárcere está a praticar o mal e a exultar; e em seu coração penetra um pensamento péssimo sobre Deus, e ele diz: Ó Deus, por que te sirvo? Por que obedeço a tuas palavras? Não roubei o alheio, não furtei, não matei, não desejei as coisas alheias, não levantei falso testemunho contra alguém, não injuriei pai e mãe, não me inclinei perante os ídolos, não tomei o nome de Deus em vão. Preservei-me dos pecados. Ele enumera as dez cordas, isto é, os dez preceitos da lei, e interrogando-se a si mesmo em relação a cada um deles, vê que não pecou contra qualquer um deles; e se contrista por padecer tais males. E os outros, não digo que, tocam algumas cordas, mas nem tocam o próprio saltério, nada fazem de bem, consultam os ídolos, e talvez pareçam cristãos, quando sua casa não sofre de mal algum; mas, ao advir qualquer tribulação, correm ao píton, ao adivinho, ao astrólogo. Se o nome de Cristo é proferido diante dele, zomba e torce o nariz. Alguém lhe diz: És um fiel e consultas um astrólogo? Responde: Vá embora; ele entregou-me o que era meu; do contrário o teria perdido e estaria chorando. Bom homem! Não te assinalas com o sinal da cruz de Cristo? A lei proíbe todas essas coisas. Ficas contente porque recuperaste o que era teu; não ficas triste porque perdeste a ti mesmo? Não era muito melhor que se perdesse tua túnica do que a tua alma? Ele ri destas palavras. Injuria os pais, odeia o inimigo, persegue-o até a morte, rouba sempre que pode, não cessa de levantar falso testemunho, arma ciladas ao lar alheio, deseja as coisas de seu próximo. Faz tudo isso, e progride em riquezas, honras, em haveres deste mundo. Ele observa um miserável que age bem, e sofre males; perturba-se e diz: Ó Deus, parece-me que os maus te agradam e odeias os bons; amas os que praticam a iniqüidade. Se ele se abalar, e consentir neste pensamento, perderá o repouso do sábado de seu coração. Começa a não dar atenção ao saltério. Desviou-se. É sem motivo que canta:

É bom confessar ao Senhor e cantar salmos a teu nome, ó Altíssimo”.

Tendo já perdido o sábado do homem interior, expulsado a tranqüilidade do coração e repelido os bons pensamentos, começa a imitar aquele que ele nota próspero, apesar de praticar o mal e ele próprio se transforma, querendo fazer o mal. Deus, porém, é paciente, porque é eterno e sabe qual o dia de seu juízo, quando examinará todas as ações.



§ 8
6 O salmista instruindo-nos a este respeito, como se exprime? “Quão grandiosas, Senhor, as tuas obras! Quão profundos os teus desígnios!” De fato, meus irmãos, nenhum mar é tão profundo quanto os desígnios de Deus, determinando que os malvados prosperem e os bons pelejem; nada de mais profundo, de mais elevado; aqui naufraga todo infiel, nesta altura, nesta profundidade. Queres ultrapassar essa profundidade? Não saltes do madeiro de Cristo. Não mergulhes. Segura-te a Cristo. Que significa o que digo, segura-te a Cristo? Foi para isto que ele quis pelejar na terra. Ouvistes, na leitura do profeta, que ele ofereceu o dorso aos flagelos, não afastou a face diante dos escarros dos homens, não ocultou o rosto de suas bofetadas. Por que razão quis sofrer tudo isso, a não ser para consolar os que sofrem? E poderia ressuscitar sua carne somente no fim do mundo; mas tu não o verias ressuscitado e não terías motivo de esperar. Ele não adiou sua ressurreição a fim de não duvidares mais. Tendo em vista este fim, portanto, sofre, tolera as tribulações no mundo; viste este fim em Cristo. Não te abalem as ações dos maus, que prosperam neste mundo.

Quão profundos os teus desígnios!” Como são os pensamentos de Deus? No presente afrouxa os freios; depois os aperta. Não te alegres como o peixe diante da isca; o pescador ainda não puxou o anzol. Ele já tem o anzol nas guelras. E o que te parece longo, na verdade é breve. Tudo isso passa depressa. Qual o comprimento da vida humana em comparação à eternidade de Deus? Queres ser longânime? Considera a eternidade de Deus. Pois consideras teus poucos dias, e queres que tudo se realize dentro desses poucos dias. O quê? Que os ímpios todos sejam condenados e coroados os bons. Queres que tudo isso se realize dentro de teus dias? Deus as cumprirá no tempo devido. Por que te entedias e o importunas? Ele é eterno; tarda, porque é longânime. Tu, porém, dizes: Mas, eu não sou longânime, porque sou temporal. Mas isto está em teu poder; une teu coração à eternidade de Deus, e com ele serás eterno. Como foi dito a respeito das realidades temporais? “Toda carne é feno, e toda a sua graça como a flor do campo. Seca o feno e murcha a flor”.

Todas as coisas, portanto, murcham e caem; não, porém, a palavra, pois a “palavra do Senhor subsiste para sempre(Is 40,6-8).

Dize-lhe, portanto:

Quão profundos os teus desígnios!” Agarraste a tábua de salvação, atravessas o mar profundo. Vês algo ali? Entendes alguma coisa? Entendo, respondes. Se já és cristão e bem instruído, dizes: Deus reserva tudo para seu juízo. Os bons lutam, porque são flagelados como filhos; os maus exultam, porque serão condenados como estranhos. Um homem tem dois filhos; castiga a um e deixa o outro. Um age mal e não é corrigido pelo pai; outro, mal se mexe, é esbofeteado, flagelado. Qual a razão por que um é deixado e o outro castigado, a não ser que ao que é batido é reservada a herança, e o que é perdoado será deserdado? Vê o pai que este não dá esperanças de melhora e deixa que faça o que quer. O filho castigado, se não tem entendimento e for imprudente e tolo, considera feliz o irmão que não apanha; e geme, dizendo em seu coração: Meu irmão agiu tão mal, faz o contrário das ordens de meu pai, e ninguém lhe diz uma palavra dura; eu, apenas me mexo, apanho. É tolo, não tem prudência. Nota o que sofre, não dá atenção ao que lhe é reservado.



§ 9
7.8 Por isso, o salmo depois de dizer:

Quão profundos os teus desígnios”, logo acrescenta:

O insensato não compreende estas coisas, nem as percebe o estulto”.

O que é que o estulto não percebe, nem compreende o insensato? Ainda que floresçam os pecadores como o feno”.

Que significa:

como o feno?” É verdejante no inverno, mas seca no verão. Observas a flor do feno. Que passa mais depressa que ela? Que há de mais viçoso, mais verdejante? Não te deleite seu viço, mas receie que seque. Ouviste dizer que os “pecadores são como o feno”, ouve o que acontece aos justos:

Porque eis”.

Neste ínterim observa os pecadores. Eles florescem como o feno. Muito bem. Mas quais são os que não compreendem? Os insensatos e estultos.

Ainda que floresçam os pecadores como o feno e observem todos os obreiros do mal”.

Todos os que em seu coração pensam erradamente a respeito de Deus, viram os pecadores florescerem como o feno, isto é, próspero durante certo tempo. Por que os observam? “São destinados ao extermínio pelos séculos dos séculos”.

Dão atenção a sua flor temporal, imitam-nos, e querendo florescer com eles temporariamente, são destinados ao extermínio eternamente, isto é, “são destinados ao extermínio pelos séculos dos séculos”.



§ 10
9.10 “Mas tu, Senhor, és eternamente o Altíssimo”, e tu olhas do alto, de tua eternidade, o passar do tempo dos malvados, e a vinda do tempo dos justos.

Porque eis”.

Atenção, irmãos. Já é Cristo mesmo que fala. Fala em nosso lugar, fala personificando o corpo de Cristo. Cristo fala em seu corpo, isto é, em sua Igreja. Ele já se une à eternidade de Deus; mas como vos dizia um pouco antes, Deus é langânime e paciente, porque tolera todo o mal que praticam os malvados. Por quê? Porque é eterno, e vê o que lhes há de reservar. Queres também tu ser longâ-nime e paciente? Une-te à eternidade de Deus. Olha com ele as coisas inferiores a ti; tendo o teu coração aderido ao Altíssimo, estarão abaixo de ti todas as coisas mortais; e repete o versículo seguinte:

Porque eis que os teus inimigos haverão de perecer”.

Agora prosperam, depois perecerão. Quais são os inimigos de Deus? Irmãos, pensais que são inimigos de Deus somente os que blasfemam? De fato, são eles também, e são cruéis estes que não se abstêm de injúrias a Deus, nem de língua, nem de pensamento. E que fazem com isso ao Deus excelso e eterno? Se bates com o punho numa coluna, tu és que te feres. E pensas que proferindo blasfêmias contra Deus não te dilaceras? Pois a Deus nada atinge. Ora, os inimigos de Deus são abertamente blasfemadores, mas diariamente se encontram alguns ocultos. Cautela sobre tais inimizades contra Deus. A Escritura revela certos inimigos ocultos de Deus; de tal modo que se não podes reconhecê-los em teu coração, reconhece-os nas Escrituras de Deus, e acautela-te de te encontrares no meio deles. Tiago diz claramente em sua epístola:

Não sabeis que a amizade com o mundo é inimizade com Deus?(Tg 4,4).

Ouviste. Não queres ser inimigo de Deus? Não sejas amigo deste mundo; pois, se fores amigo deste mundo, serás inimigo de Deus. Como a mulher adúltera só pode ser inimiga de seu marido, assim a alma adúltera, devido ao amor das coisas mundanas, apenas pode ser inimiga de Deus. Teme-o, mas não o ama. Teme o castigo, mas não se deleita na justiça. Portanto, são inimigos de Deus todos os que amam este mundo, todos os que vão atrás de futilidade, todos os que consultam astrólogos, adivinhos, pítons. Quer entrem nas igrejas, quer não entrem, são inimigos de Deus. Podem prosperar durante algum tempo, como o feno; contudo, perecerão, ao começar o exame de Deus, e de proferir seu juízo sobre toda carne. Adere às Escrituras de Deus, e repete-lhe com este salmo:

Porque eis que os teus inimigos haverão de perecer”.

Não estejas tu lá onde eles perecem.

E de dispersar-se os artesões da maldade”.



§ 11
11 Porque te afliges agora, se os inimigos de Deus perecerão e haverão de dispersar-se os artesãos da maldade? Que te sucederá a ti que no meio destes escândalos, entre as iniqüidades humanas gemes, que estás atribulado segundo a carne, mas te alegras no coração? Que esperança te caberá, ó corpo de Cristo? Ó Cristo, que estás sentado à direita do Pai, mas labutas na terra em teus pés e em teus membros, e dizes:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4).

Que esperança terás, se os teus inimigos haverão de perecer e de dispersar-se os artesões da maldade? Que te acontecerá? “Minha força se erguerá como a do unicórnio”.

Por que diz o salmo:

como a do unicórnio?” Às vezes o unicórnio significa a soberba, outras vezes significa a exaltação da unidade. Exaltada a unidade, perecerão as heresias com os inimigos de Deus.

Minha força se erguerá como a da unicórnio”.

Quando? “E a minha velhice em copiosa misericórdia”.

Que representa:

minha velhice?” Meus últimos fins. Como a velhice é a última de nossas idades, assim tudo o que agora sofre o corpo de Cristo em trabalhos, aflições, vigílias, fome, sede, escândalos, iniqüidades, angústias é ainda na juventude; a velhice, quer dizer, seu final será na alegria. E preste atenção, V. Caridade. Se o salmista fala em velhice, não penseis logo na morte. Pois, o homem carnalmente envelhece para morrer. A velhice da Igreja será cândida pelas ações retas, e não se corromperá na morte. Nossas obras são como a cabeça dos velhos. Observais que à medida que a velhice aumenta a cabeça se cobre de cãs, embranquece. Procuras na cabeça daquele que envelhece normalmente um fio de cabelo negro e não achas; assim se nossa vida for tal que nela não se encontra a cor negra dos pecados, esta velhice será juvenil, esta velhice será viçosa, sempre verdejante. Ouvistes falar do feno dos pecados, ouvi agora o que se diz da velhice dos justos:

E a minha velhice em copiosa misericórdia”.



§ 12
12 “Meus olhos fitam com desprezo os inimigos”.

Quem é que chama de inimigos? Todos os obreiros da iniqüidade. Não queres acreditar que teu amigo é iníquo. Apareça um negócio e terás uma prova. Começas a atacar sua maldade e verificarás que ao te adular era teu inimigo. Mas ainda não o incitavas para manifestar o que era, embora não quisesses estabelecer no seu coração aquilo que ele não era.

Meus olhos fitaram com desprezo os inimigos. Meus ouvidos escutarão o relato da sorte dos maus que se levantam contra mim”.

Quando? Na velhice. Que é: na velhice? Nos últimos fins. E que ouvirá nosso ouvido? De pé à direita, ouviremos o que será dito aos da esquerda:

Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

O justo não receará ouvir esta palavra funesta. Sabeis que diz outro salmo:

A lembrança do justo será eterna; não receará más notícias(Sl 111,7).

Que notícia funesta será? Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos.

Meus ouvidos escutarão o relato da sorte dos maus que se levantam contra mim”.



§ 13
13 É transitório o feno, transitória a flor dos pecadores; que sucede aos justos? “O justo florescerá como a palmeira”.

Eles brotam como o feno; “o justo florescerá como a palmeira”.

Na palmeira se representam as alturas. Talvez também a palmeira representa o seguinte: sua beleza se encontra nas suas extremidades. Começa do chão, e seu fim se encontra no cume, onde se situa toda a sua beleza. A raiz na terra é áspera, mas a fronde bela se levanta para o céu. Tua beleza igualmente acha-se no fim. Seja fixa a tua raiz; mas temos no alto a nossa raiz. Pois nossa raiz é Cristo que subiu ao céu. Depois de humilhado, foi exaltado.

Multiplicar-se-á como o cedro do Líbano”.

Notai quais as árvores que nomeia:

O justo florescerá como a palmeira. Multiplicar-se-á como o cedro do Líbano”.

Por acaso a palmeira seca quando o sol arde? Por acaso murcha o cedro? Mas, ao ardor do sol seca o feno. Virá, portanto o juízo, para que os pecadores sequem e os fiéis reverdeçam.

Multiplicar-se-á como o cedro do Líbano”.



§ 14
14.16 “Plantados na casa do Senhor, nos átrios de nosso Deus hão de florir. Darão frutos ainda na velhice, cheios de seiva: estarão tranqüilos, para anunciar”.

Este é o sábado que pouco antes vos recomendei e que deu origem ao título do salmo.

Estarão tranqüilos, para anunciar”.

Por que anunciam tranqüilos? Porque não os abala o feno dos pecadores. O cedro e a palmeira não se curvam nem durante as tempestades. Por conseguinte, sejam tranqüilos, para anunciarem; de fato, agora deve-se anunciar até aos zombadores. Ó homens infelizes, que amais o mundo. Anunciam-vos aqueles que estão plantados na casa do Senhor, que confessam ao Senhor com cânticos e com a cítara, por palavras e obras. Anunciam-vos, dizendo: Não vos seduza a felicidade dos iníquos, não atendais à flor do feno; não deveis dar atenção aos que são temporariamente felizes, eternamente infelizes. Nem mesmo esta felicidade exterior é verdadeira; nem no coração são felizes, porque atormentados por uma consciência pesada. Tu, porém, estás tranqüilo, à espera da realização das promessas do Senhor teu Deus. Que anuncias com tranqüilidade? “Que o Senhor nosso Deus é reto e nele não há injustiça”.

Atenção, irmãos, se estais plantados na casa do Senhor, se quereis florescer como a palmeira e multiplicar-vos como o cedro do líbano e não murchar como o feno ao ardor do sol, como aqueles que aparentemente florescem quando não há sol. Se, portanto, não quereis ser feno e sim palmeira e cedro, que anunciareis? “Que o Senhor nosso Deus é reto e nele não há injustiça”.

Como não há injustiça? Com tantos males que faz, alguém é sadio, tem filhos, uma casa cheia, muita glória, honra-rias, vinga-se dos inimigos e pratica toda espécie de peca-dos; outro não prejudica a ninguém em seus negócios, não rouba o alheio, nada faz contra os outros e sofre nos vínculos, no cárcere, sua e suspira em sua penúria. Como “nele não há injustiça?” Fica tranqüilo e entenderás; pois tu te perturbas, e em teu aposento apagas a luz. O Deus eterno quer te iluminar; não te cerques da névoa da perturbação. Fica tranqüilo e vê o que te direi. Como Deus é eterno, agora poupa os maus para levá-los à penitência; castiga os bons, instruindo-os a fim de obterem o reino dos céus.

Nele não há injustiça”.

Não temas. Eis que eu sou tão castigado. É claro, confesso, pequei. Não digo que sou justo. Muitos dizem isto. Talvez ao procurares consolar alguém na infelicidade, na dor, ele replica: Pequei, confesso, reconheço meus pecados; mas pequei tanto quanto aquele? Sei quantos pecados ele cometeu, e sei quantos fiz. Confesso a Deus meus pecados, mas são menores do que os dele, que, no entanto, nada sofre. Não te perturbes, fica sossegado, a fim de saberes “que o Senhor é reto e nele não há injustiça”.

E se ele te castiga agora, porque não guarda para ti o fogo eterno? E se ele agora te poupa, porque hás de ouvir:

Ide para o fogo eterno?” Mas quando? Quando estiveres à direita, será dito aos da esquerda:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

Por conseguinte, não te comovas por causa disto. Fica sossegado, observa o sábado, e anuncia “que o Senhor nosso Deus é reto e nele não há injustiça”.