SALMO 𝟭

A duração da nossa vida é de setenta anos; e se alguns, pela sua robustez, chegam a oitenta anos,

a medida deles é canseira e enfado; pois passa rapidamente, e nós voamos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 90


§ 90:1  Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração.

§ 90:2  Antes que nascessem os montes, ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade tu és Deus.

§ 90:3  Ŧ Tu reduzes o homem ao pó, e dizes: Voltai, filhos dos homens!

§ 90:4  Porque mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem que passou, e como uma vigília da noite.

§ 90:5  Ŧ Tu os levas como por uma torrente; são como um sono; de manhã são como a erva que cresce;

§ 90:6  ɖ de manhã cresce e floresce; à tarde corta-se e seca.

§ 90:7  Pois somos consumidos pela tua ira, e pelo teu furor somos conturbados.

§ 90:8  Ɗ Diante de ti puseste as nossas iniqüidades, à luz do teu rosto os nossos pecados ocultos.

§ 90:9  Pois todos os nossos dias vão passando na tua indignação; acabam-se os nossos anos como um suspiro.

§ 90:10  A duração da nossa vida é de setenta anos; e se alguns, pela sua robustez, chegam a oitenta anos, a medida deles é canseira e enfado; pois passa rapidamente, e nós voamos.

§ 90:11  Quem conhece o poder da tua ira? e a tua cólera, segundo o temor que te é devido?

§ 90:12  Ensina-nos a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos corações sábios.

§ 90:13  Volta-te para nós, Senhor! Até quando? Tem compaixão dos teus servos.

§ 90:14  Sacia-nos de manhã com a tua benignidade, para que nos regozijemos e nos alegremos todos os nossos dias.

§ 90:15  Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste, e pelos anos em que vimos o mal.

§ 90:16  Apareça a tua obra aos teus servos, e a tua glória sobre seus filhos.

§ 90:17  Seja sobre nós a graça do Senhor, nosso Deus; e confirma sobre nós a obra das nossas mãos; sim, confirma a obra das nossas mãos.


O SALMO 90



I SERMÃO 💬

§ 1
Foi este salmo que o demônio ousou empregar para tentar nosso Senhor Jesus Cristo. Ouçamo-lo, portanto, a fim de nos instruirmos e podermos resistir ao tentador, não presumindo de nossas forças, mas confiando naquele que foi tentado em primeiro lugar, a fim de não sermos vencidos na tentação. A tentação não lhe era necessária. A tentação de Cristo faz-se ensinamento para nós. Mas, se dermos atenção ao que Cristo respondeu ao diabo, para que também nós respondamos quando ele nos tentar de maneira semelhante, entramos pela porta, conforme ouvistes na leitura do evangelho. Que significa entrar pela porta? Entrar por Cristo. Pois ele disse:

Eu sou a porta(Jo 10,7).

Que é, então, entrar por Cristo? Imitar as pegadas de Cristo. Em que imitaremos os passos de Cristo? Acaso na magnificência de Deus na carne? Acaso ele nos exorta a praticarmos milagres, quais ele fez, ou exige isto de nós? Ou será que nosso Senhor Jesus Cristo não governa agora e sempre com o Pai todo o universo? Será que chama o homem, que quer fazer seu imitador, a governar com ele o céu e a terra e tudo que eles contêm? Ou a ser também ele criador, por quem fará todas as coisas, como tudo foi feito por Cristo? Deus, nosso salvador e Senhor, Jesus Cristo, não te convida também a fazer o que ele fez no princípio, conforme está escrito:

Tudo foi feito por meio dele(Jo 1,3), nem a fazer o que ele realizou na terra. Ele não te diz: Não serás meu discípulo se não andares sobre as águas do mar (cf Mt 14,25), se não ressuscitares um morto há quatro dias (cf Jo 11,38-44), se não abrires os olhos de um cego de nascença (cf Jo 9,1-41).

Nem isto. Que será, então, entrar pela porta? “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração(Mt 11,29).

Deves dar atenção àquilo que ele se tornou por ti, a fim de o imitares. Pois, quanto aos milagres, ele os fez mesmo antes de nascer de Maria; quem os teria feito, senão aquele do qual foi dito:

Só ele opera maravilhas”? (Sl 71,18).

Os que anteriormente fizeram milagres, puderam fazer algo devido a seu poder: em virtude de Cristo Elias ressuscitou um morto (cf 1Rs 17,22).

Acaso Pedro seria maior do que Cristo, porque Cristo reerguia os doentes com uma palavra, enquanto os doentes eram levados à passagem de Pedro para que sua sombra os tocasse? (cf Jo 5,5-9; At 5,15).

Então Pedro era mais poderoso do que Cristo? Qual, o homem completamente louco que o diria? Mas, por que havia tanto poder em Pedro? Porque Cristo estava em Pedro. E por isso, ele disse:

Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e assaltantes(Jo 10,8), isto é, vieram por sua própria vontade, não foram enviados por mim, vieram sem mim, aqueles com os quais não estava, os que eu não introduzi. Por conseqüência, quaisquer milagres que foram realizados, antes ou depois, foi o próprio Senhor quem os fez, porque efetuados em virtude de sua presença. Nem ele exorta a que se façam os mesmos milagres que ele fez, quando ainda não se fizera homem. Mas a que te exorta? A que imites o que ele não poderia realizar se não fosse homem. Acaso poderia suportar os padecimentos se não fosse homem? Não poderia morrer, ser crucificado, ser humilhado, a não ser enquanto homem. Assim também tu diante das incomodidades que sofres neste mundo, ocasionadas pelo diabo, ou abertamente através dos homens, ou ocultamente conforme aconteceu a Jó, sê forte, sê paciente. Habitarás sob a assistência do Altíssimo, conforme se expressa este salmo. Se abandonares o auxílio do Altíssimo, como não tens forças para te auxiliares a ti mesmo, cairás.



§ 2
Muitos se mostram fortes, ao sofrerem perseguições da parte dos homens e virem-nos abertamente enfurecidos contra si; considerem então que imitam a paixão de Cristo, se os homens os perseguem abertamente. Se, porém, são atingidos por oculta perseguição do diabo, julgam que não serão coroados por Cristo. Não temas quando imitas a Cristo. Pois, também quando o diabo tentou o Senhor, ninguém estava no deserto e ele o tentou ocultamente (cf Mt 4,1-11); mas foi superado, e claramente enfurecido foi vencido. Assim também tu, se queres entrar pela porta, ao te tentar ocultamente o inimigo, ao pedir permissão de prejudicar por moléstias corporais, por febres, por doenças, por aflições do corpo, conforme suportou Jó. Ele não via o diabo, mas entendia tratar-se do poder de Deus. Sabia que o diabo nada poderia contra ele, a não ser que o permitisse aquele cujo poder é supremo. Dava a Deus toda glória, e não atribuía poder ao diabo. Pois, mesmo quando o diabo lhe tirou tudo, disse:

O Senhor o deu, o Senhor o tirou(Jó, 1,21).

Não disse: O Senhor o deu, o diabo o tirou, porque nada teria tirado o diabo sem a permissão do Senhor. Deus o permitiu a fim de provar o homem e o diabo ser vencido. Ainda quando a praga o atingiu foi Deus quem o permitiu. Do alto da cabeça até os pés saíam vermes. Nem assim Jó atribuiu ao diabo algum poder; e quando sua mulher, a única que o diabo lhe deixara (não para consolar o marido mas para ser auxiliar do diabo) lhe sugeriu:

Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!” ele retrucou:

Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males(Jó 2,9-10)?



§ 3
2 Portanto, aquele que imita Cristo de tal modo que suporta todas as aflições deste mundo, que põe em Deus sua esperança, que não se deixa prender pelos atrativos do prazer nem se abater pelo temor, este é “que habita sob a assistência do Altíssimo e descansará sob a proteção do Deus do céu”, segundo o que ouvistes do salmo e cantastes, pois é assim que ele começa. As palavras empregadas pelo diabo para tentar o Senhor, vós as reconhe-cereis quando chegarmos lá; são bem notórias.

Dirá ao Senhor: És o meu protetor e o meu refúgio, meu Deus”.

Quem é que assim se dirige ao Senhor? “Aquele que habita sob a assistência do Altíssimo”.

Quem é “que habita sob a assistência do Altíssimo?” Quem não procura auxílio de si próprio. Quem é “que habita sob a assistência do Altíssimo?” Quem não é soberbo, à semelhança daqueles que comeram do fruto proibido para serem como deuses, e perderam a imortalidade em que foram criados. Quiseram confiar em seu próprio auxílio e não habitar sob a assistência do Altíssimo; por esta razão ouviram a sugestão da serpente, desprezaram o preceito de Deus e aconteceu-lhes o que Deus ameaçara e não o que prometera o diabo (cf Gn 3,5).



§ 4
3 Por conseguinte, repete tu igualmente:

Nele esperarei. Ele me há de livrar”, e não eu próprio. Vê se o sal-mista ensina outra coisa senão que não depositemos em nós mesmos a nossa esperança, nem em homem algum. De que ele há de te livrar? “Do laço dos caçadores e da palavra áspera. Do laço dos caçadores”, é importante; mas “da palavra áspera” que importância tem? Muitos caíram no laço dos caçadores devido a uma palavra áspera. Que estou dizendo? Arma laços o diabo e seus anjos, como caçadores armam laços; longe destes laços caminham os homens que caminham em Cristo. O diabo não ousa armar laços contra Cristo; coloca-os à margem do caminho, não no próprio caminho. Teu caminho, de fato, seja Cristo e não cairás nos laços do diabo. Encontra logo o laço quem se desvia do caminho. O diabo arma laços dos dois lados, daqui e dali; andas entre laços. Mas queres andar com segurança? Não desvies nem para a direita nem para a esquerda. Sirva-te de caminho aquele que por ti se fez caminho (cf Jo 14,6), a fim de te conduzir a si por intermé-dio de si mesmo, e não temerás os laços dos caçadores. Mas que significa:

da palavra áspera?” O diabo joga no laço a muitos através de uma palavra áspera. Por exemplo, os que querem ser cristãos no meio de pagãos, sofrem os insultos destes. Sentem vergonha no meio dos que os insultam, e afastando-se do caminho devido a uma palavra áspera, caem nos laços dos caçadores. E o que te pode fazer uma palavra áspera? Nada. Então, nada te fará o laço, para o qual te lança o inimigo através da palavra áspera? Acontece como alguns que armam por vezes redes, no alto de um cercado para apanhar aves. Eles jogam pedras no cercado, mas não para fazer mal às aves. Pois quando é que fere uma ave quem joga pedra no cercado? Mas, a ave assustada com o ruído vão, cai na rede. Assim acontece com os homens que têm medo das palavras ocas e vãs dos que os insultam. Envergonhando-se das injúrias inúteis, caem nos laços dos caçadores e tornam-se cativos do diabo. Mas por que não hei de falar, irmãos, o que não devo calar, o que Deus me impele a dizer? Seja como for que o receberdes, Deus me obriga a dizer: e se não falar, eu é que caio nos laços dos caçadores. Se receio as detrações dos homens e me calo, eu mesmo devido a uma palavra áspera caio nos laços dos caçadores, enquanto vos exorto a não terdes medo das palavras dos homens. Que é, então que vou dizer? Assim como no meio de pagãos quem é cristão ouve deles palavras ásperas e se ele se envergonhar delas, cai nos laços dos caçadores, também entre cristãos quem quiser ser mais aplicado e melhor, ouvirá da parte dos mesmos cristãos ultrajes. O que adianta, irmãos, encontrares por vezes uma cidade, para morar, onde não existem pagãos? Ninguém ali insulta um cristão por ser cristão, porque lá não se encontram pagãos; mas existem muitos cristãos que vivem mal; e se quiser viver bem no meio deles, ser sóbrio entre beberões, ser casto entre adúlteros, sinceramente adorar a Deus e não procurar sortilégios entre os que consultam os agoureiros, somente ir à igreja no meio dos espectadores das futilidades dos teatros, sofre insultos dos próprios cristãos e ouve palavras ásperas. Eles dizem: Tu és importante, justo, tu és Elias, tu és Pedro, vieste do céu. Insultam. Para qualquer lado que se voltar este cristão, ouve daqui e dali palavras ásperas. Se ele se intimidar e se afastar do caminho de Cristo, cai nos laços dos caçadores. Como não se apartar do caminho ao ouvir tais palavras? Que quer dizer não se afastar do caminho? Ao ouvir palavras ásperas, onde encontrar consolo para não dar atenção a estas palavras, não se desviar do caminho e entrar pela porta? Dirá: Que palavras ouço eu, servo, pecador? Meu Senhor não ouviu:

Tens um demônio”? (Jo 8,48).

Acabais de ouvir a palavra áspera dirigida ao Senhor. Não era preciso que o Senhor ouvisse essas coisas, mas quis te advertir contra as palavras ásperas, a fim de não caíres nos laços dos caçadores.



§ 5
4 “Cobrir-te-á com a sombra de suas espáduas, e sob as suas asas esperarás”.

O salmista assim se exprimiu a fim de que tua proteção não a procures em ti mesmo, nem penses que podes te proteger. Ele te protegerá para te livrar e te livrará do laço dos caçadores e da palavra áspera.

Cobrir-te-á com a sombra de suas espáduas”.

É possível entender tanto das costas quanto do peito. As espáduas estão perto da cabeça. Mas como disse:

E sob as suas asas esperarás”, é claro que a proteção das asas abertas faz com que estejas entre as espáduas de Deus, e as asas de um lado e de outro te põem no meio. E não terás medo de que alguém te prejudique. Apenas não saias, dali, onde inimigo algum ousa se aproximar. Se a galinha protege seus pintinhos sob suas asas, quanto mais tu estarás seguro sob as asas de Deus, e contra o diabo e seus anjos, que são potestades do ar onde voam em círculos como os gaviões, a fim de arrebatar o pintinho fraco? Não foi sem razão que a Sabedoria de Deus foi comparada à galinha, pois o próprio Cristo, nosso Senhor e salvador se comparou à galinha, nesses termos:

Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos, e não o quiseste”! (Mt 23,37).

Não o quis aquela Jerusalém; queiramos nós. Ela foi arrebatada pelas potestades espalhadas no ar, ao fugir de debaixo das asas da galinha, presumindo de suas forças, fraca como era. Nós, ao contrário, confessando nossa fraqueza, fujamos para debaixo das asas de Deus. Ele será para nós como galinha que abriga seus pintinhos. O nome de galinha não é injurioso. Observai as demais aves, irmãos. Muitas aves têm os seus filhotes, como vemos. Abrigam, seus filhotes. Mas nenhuma fica choca, como a galinha. Note V. Caridade: andorinhas, pássaros e cegonhas que vemos fora dos respectivos ninhos, não demonstram ter filhotes, ou não; ao invés, conhecemos que a galinha tem pintinhos pela rouquidão e pelas asas caídas. Fica transformada devido ao afeto aos pintinhos. Como eles são fracos, ela se torna fraca. Do mesmo modo, nós éramos fracos, e a Sabedoria de Deus se fez fraca. Uma vez que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (cf Jo 1,14), esperemos sob as suas asas.



§ 6
5 “Sua verdade te cercará qual escudo”.

As asas se identificam com o escudo, porque, de fato, não se trata de asas, nem de escudo. Se fossem tomados em sentido próprio, asas poderiam ser escudo, ou escudo asas? Mas como tudo isso pode ser dito figuradamente, em comparação, pode haver asas e escudo. Se Cristo fosse na verdade pedra, não seria leão; e se fosse leão, não seria cordeiro; no entanto, é leão, e cordeiro, e pedra, e novilho, etc., porque não é efetivamente pedra, nem leão, nem cordeiro, nem novilho, mas é o salvador de todos, Jesus Cristo (cf Ap 5,5; cf Jo 1,29; At 4,10.11; Sl 117,22).

Trata-se de semelhanças e não de termos próprios “Sua verdade te cercará”.

Sua verdade assemelha-se a um escudo, separando os que confiam em si mesmos dos que esperam em Deus. Há pecador e pecador. Mas pensa num pecador que presume de si, desprezador, que não confessa seus pecados, mas diz: Se a Deus desagradassem meus pecados, não me deixaria continuar a viver. Outro, porém, não ousava levantar os olhos, mas batia no peito, dizendo:

Senhor, tem piedade de mim, pecador”! (Lc 18,13).

Ambos eram pecadores; mas um zomba, e o outro chora; um é despre-zador, outro confessa seus pecados. A verdade de Deus, porém, que não faz acepção de pessoas, distingue o penitente daquele que se escusa, distingue o humilde do sober-bo, distingue o que presume de si mesmo do que confia em Deus. Por conseguinte, “sua verdade te cercará qual escudo”.



§ 7
5.6 “Não temerás os terrores da noite, a flecha que voa de dia, a malignidade que se propaga nas trevas, a ruína e o demônio do meio-dia”.

Duas coisas que o salmista disse primeiro redundam em duas referidas em seguida.

Não temerás os terrores da noite, a flecha que voa de dia”; e por causa do medo noturno, “da malignidade que se propaga nas trevas”; e por causa da flecha que voa de dia, “a ruína e o demônio do meio-dia”.

Que representa o medo noturno e o diurno? Ao pecar alguém por ingno-rância, peca como se fosse à noite; ao pecar ciente do que faz, é de dia que peca. Duas coisas, portanto, são mais leves; existem duas mais graves, retomadas em seguida. Atenção, para que possa expor mais cuidadosamente, se o Senhor quiser, essa questão; é obscura, e será de grande vantagem se entenderdes. Chamei de temor noturno as falhas leves cometidas por ignorância; e as leves come-tidas com conhecimento denominei flecha que voa de dia. Quais são as tentações leves? As que não são tão instantes, tão insistentes, por coação, que podem ser logo afastadas e passar. De outro lado, pode haver tentações mais graves. Se o perseguidor insiste e atemoriza com veemência os ignorantes, isto é, os que ainda não estão firmes na fé, nem estão bem cientes de que os cristãos devem esperar a vida futura, ao começarem a ficar apavorados com os males temporais, pensam que Cristo os abandonou e é inutilmente que são cristãos. Ainda não sabem conforme disse, que são cristãos e por isso devem superar os males presentes e esperar os bens futuros. A malignidade que se propaga nas trevas os apanhou. Existem alguns que sabem que são chamados a uma esperança futura, que as promessas de Deus não são para esta terra, não são para esta vida, que todas essas tentações devem ser suportadas para recebermos, para adquirirmos o que Deus nos prometeu eternamente. Sabem estas coisas. Mas quando o perseguidor começar a insistir, a ameaçar de penas e tormentos, cedem um tanto e conscientes caem de dia.



§ 8
Mas, por que motivo ao meio-dia? Porque a perseguição muito se inflama. Os calores mais intensos são ao meio-dia. Preste atenção, V. Caridade, que provarei com a Escritura. Ao narrar o Senhor a parábola do semeador, que saiu a semear, uma parte das sementes caiu no caminho, outra em lugares pedregosos, outra entre espinhos, ele se dignou explicar a parábola, e tratando dos lugares pedregosos disse:

São aqueles que ouvem a palavra e a recebem imediatamente com alegria; quando surge a tribulação por causa da palavra, logo sucumbem”.

Que afirmou acerca das sementes que cairam em lugares pedregosos? Mas, ao surgir o sol, queimou-se, e por não ter raiz, secou. Estes são os que recebem imediatamente a palavra com alegria: quando surge a perseguição por causa da palavra, secam” (Mt 13,3-2).

Por que secam? Porque não tinham raízes. Quais? A caridade; pois diz o Apóstolo: Sejais arraigados e fundados no amor (Ef 3,17).

Como a raiz de todos os males é a ambição (cf 1Tm 6,10), assim a raiz de todos os bens é a caridade. Vós bem o sabeis e isto foi dito muitas vezes; mas por que motivo quis relembrá-lo? No intuito de perceberdes que neste salmo se fala de demônio meridiano por causa do intenso ardor da perseguição. Pois o Senhor disse:

Ao surgir o sol, queimou-se, por não ter raiz”.

E expondo-nos o que significa secar a erva por causa do ardor do sol, declarou que ao surgir a perseguição não persistem os que não têm raiz profunda. É com fundamento que aqui interpretamos o demônio como sendo uma perseguição intensa. Vou re-lembrar, irmãos, que espécie de perseguição houve outrora, e da qual o Senhor libertou a sua Igreja. Digne-se prestar atenção, V. Caridade. Em primeiro lugar, os imperadores e reis do mundo pensavam que conseguiriam por meio da perseguição eliminar da terra o nome de Cristo e o nome dos cristãos. Ordenaram que todo aquele que se confessasse cristão fosse morto. Quem não queria ser executado, negava ser cristão, ciente do mal que fazia; era atingido por aquela flecha que voa de dia. Quem não dava importância à vida presente, mas esperava com segurança a futura, desviara-se da flecha que voa de dia e confessara ser cristão. Ferido era na carne, libertado pelo espírito. Começou a esperar, junto de Deus em repouso, também a redenção de seu corpo, na ressurreição dos mortos; este escapou daquela tentação, da flecha que voa de dia. Por conseguinte, todo aquele que se confessou cristão foi morto; foi a flecha que voa de dia. Ainda não se tratava do demônio meridiano, desencadeando veemente perseguição e provocando calor intenso mesmo para os fortes. Ouvi, pois, o que aconteceu em seguida: Ao observarem os inimigos que muitos se precipitavam para o mar-tírio, e tanto mais aumentavam os que acreditavam em Cristo quanto maior o número dos que padeciam, diziam consigo mesmos: Vamos matar o gênero humano. Tantos milhares acreditam nesse nome. Se matarmos a todos, quase ninguém restará na terra. Começou a arder o sol, começou a se intensificar o calor. Ouvi, pois, quais foram suas ordens. Como antes haviam ordenado: Quem se confessar cristão seja atormentado, e por tanto tempo até que renegue ser cristão1. Comparai a flecha que voa de dia com o demônio meridiano. Que era a flecha que voava de dia? Seja morto quem se confessar cristão. Que cristão não escaparia da flecha pela rapidez da morte? Mas de outra forma, se alguém se confessa cristão não seja morto, mas atormentado até negar; se negar, seja libertado: era o demônio meridiano. Muitos, pois, que não haviam negado, desfaleciam nos tormentos; porque eram torturados até que negassem. Mas, os que perseveraram em não negar a Cristo, que lhes faria a espada, que matava o corpo com um só golpe, e enviava a alma para Deus? O mesmo faziam os longos tormentos; mas, enfim, quem suportaria longamente tantos e tão persistentes suplícios? Muitos pereceram; e creio que cairam os que presumiam de si mesmos, os que não habitavam sob a assistência do Altíssimo e sob a proteção do Deus do céu, nem disseram ao Senhor:

Tu és o meu protetor”; eles não esperaram sob as asas, mas atribuiram muito às próprias forças. Foram abandonados por Deus, que lhes mostrou ser ele quem protege, modera as provas, permite que a tentação seja tão grande quanto pode suportar aquele que é atingido por ela.



§ 9
7 Muitos, portanto, cairam devido ao demônio meri-diano. Quereis saber quantos? Continua o salmo:

Mil cairão a teu lado, dez mil a tua direita, mas não serás atin-gido”.

A quem se dirigem tais palavras, irmãos, senão ao Senhor Jesus Cristo? Pois, foi ao Senhor Jesus que foram dirigidas, não só em si mesmo, mas também em nós. Re-cordai-vos daquelas palavras! “Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4).

Ninguém o tocava e ele dizia:

Por que me persegues?” Não seria por se considerar um de nós? Quando dizia:

Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,40), não se incluía entre nós? Os membros não se separam dos outros; a cabeça não se separa do corpo. Qual é a cabeça e qual o corpo? O salvador e a Igreja. Como, então, foi dito:

Mil cairão a teu lado, dez mil a tua direita?” Eles caem por causa do demônio meridiano. Que pavor, irmãos! Cair ao lado de Cristo, cair a sua direita? Como caem ao lado? Por que uns caem ao lado, outros à direita? Por que mil ao lado, dez mil à direita? Por que mil ao lado? Porque mil é número menor do que dez mil, dos que caem à direita. Quem são estes? Agora se tornará claro, em nome de Cristo; será manifesto. Cristo prometeu a alguns que haveriam de julgar com ele, a saber, os apóstolos, que haviam deixado tudo para segui-lo. De fato, Pedro lhe disse:

Eis que deixamos tudo e te seguimos” e ele lhes prometeu:

Vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel(Mt 19,27.28).

Não deveis pensar que o Senhor prometeu somente a eles. Pois, onde se sentará o apóstolo Paulo, que trabalhou mais que todos (cf 1Cor 15,10), se somente doze se sentarão? Ele é, efetivamente, o décimo terceiro. Dentre os doze caiu Judas; em lugar do traidor Judas foi colocado Matias, conforme lemos nos Atos dos Apóstolos (cf At 1,15,26).

Completaram-se os doze tronos. Então, não se sentará o que trabalhou mais que todos eles? Ou será perfeito o tribunal com doze tronos? Pois, mil se sentarão em doze tronos. Mas dirá alguém: Como provas que Paulo também estará entre os juízes? Ouve como ele se exprime:

Não sabeis que julgaremos os anjos?(1 Cor 6,3).

Julgaremos”, disse ele. E ele não hesitou ao presumir, acreditar, contar a si mesmo entre os que julgarão com Cristo. Com efeito, julgarão com Cristo os príncipes da Igreja, os perfeitos. A esses ele disse:

Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres”.

Que significa:

Queres ser perfeito?” Se queres julgar comigo e não ser julgado. Ele saiu pesaroso (cf Mt 19,21.22).

Mas muitos assim agiram, muitos assim fazem; em conseqüência, estes julgarão com Cristo. Muitos esperam que julgarão com Cristo, porque deixam tudo e o seguem, mas presumem de si mesmos, têm certo orgulho e soberba que somente Deus pode conhecer e não evitam o demônio meridiano, isto é, a queda proveniente do calor excessivo de forte perseguição. Tais foram muitos daqueles que naquele tempo haviam distribuído todos os seus bens aos pobres, e tinham esperança que haveriam de sentar-se com Cristo para julgar os povos; no ardor da perseguição, como um demônio meridiano, eles desfaleceram no meio dos tormentos e negaram a Cristo. São estes que caíram ao lado; como se devessem sentar-se com Cristo para julgar o mundo, no entanto, caíram.



§ 10
Explicarei quais os que caem à direita. Tendes conhecimento de que, ao aparecer o tribunal, onde com Cristo Senhor julgarão os que quiseram ser e foram verdadeiramente perfeitos, arraigados e fundados na caridade, a fim de não secarem devido ao sol e ao demônio meridiano, será como disse o Senhor:

E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda”, e serão julgados. Muitos serão os que julgarão, mas serão em menor número do que os que estarão diante do tribunal; pois eles serão uns mil e estes dez mil. Que dirá Cristo aos que estarão à direita? “Tive fome e me destes de comer; era forasteiro e me recolheste(Mt 25,32-36).

Está claro que ele dirá isto aos que possuem haveres neste mundo, para poderem praticar estes atos de humanidade. No entanto, também estes reinarão com aqueles. Uns como soldados, outros como provedores que distribuem víveres2; contudo, tanto o soldado como o provedor no reino estão sujeitos a um só Imperador. O soldado é forte, o provedor dedicado. O soldado forte luta contra o diabo por meio das orações, o dedicado provedor distribui víveres aos soldados. En- tenda bem, V. Caridade. Ouvirão no fim dos tempos, os que estiverem à direita:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo(id 34).

Havia, portanto, naquela época, quando ardia com veemência o sol da perseguição, o demônio meridiano, muitos que confiavam haveriam eles de julgar com o Cristo; não puderam suportar o ardor da perseguição e caíram a seu lado; existiam outros que não esperavam tronos para julgar, mas confiavam que devido a suas esmolas estariam à direita, entre aqueles aos quais Cristo haveria de dizer:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”.

Como dentre os que esperavam julgar muitos caíram, e muitos, muito mais, caíram dos que contavam estar à direita, por isso foi dito a Cristo:

Mil cairão a teu lado, dez mil a tua direita”.

E uma vez que muitos estavam com ele, que não deram atenção a todas essas coisas, embora Cristo fosse um só e eles fossem seus membros, disse o salmista:

Mas tu não serás atingido”.

Acaso disse somente à Cabeça:

Não serás atingido”? Não; nem Pedro, nem Paulo, nem os apóstolos todos, nem todos os mártires que não renegaram no meio dos tormentos. Como “não serás atingido”, visto que foram atormentados? O tormento atingiu a carne, mas não chegou à base da fé. Na verdade, sua fé estava bem distante dos terrores dos torturadores. Torturem, mas o terror não atingirá; atormentem, eles se rirão dos tormentos, presumindo daquele que venceu primeiro a fim de que os demais também vencessem. Quais os vencedores senão os que não presumiram de si mesmos? Atenta esteja V. Caridade. Foi por isso que o salmo disse tudo aquilo mais acima.

Dirá ao Senhor: És o meu protetor e o meu refúgio”; e:

Nele esperarei. Ele me há de livrar do laço dos caçadores. Ele me há de livrar”, não eu mesmo.

Cobrir-te-á com a sombra de suas espáduas”.

Mas quando? Quando esperares “sob as suas asas. Sua verdade te cercará qual escudo”.

Uma vez que dele presumiste que depositaste nele a esperança inteiramente, qual a conseqüência? “Não temerás os terrores da noite, a flecha que voa de dia, a malignidade que se propaga nas trevas, a ruína e o demônio do meio dia(Sl 90,2-6).

Quem não terá medo? Quem não presumir de si mesmo, mas confiar em Cristo. Os que, de fato, presumem de si mesmos, embora confiassem estar ao lado de Cristo para julgar, apesar de já esperarem ser da direita de Cristo e ser-lhes dito:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”, veio o demônio meridiano, isto é, uma perseguição ardente, aterradora por sua veemência, e caíram muitos, perdendo a esperança de obterem o trono judiciário; deles foi dito:

Mil cairão a teu lado”; e muitos perderão a esperança da remuneração de seus serviços, sendo dito a respeito deles:

E dez mil à tua direita, mas tu”, isto é, a Cabeça e o corpo, “não serás atingido” pela ruína e pelo demônio do meio-dia, porque o Senhor conhece os que lhe pertencem (cf 2Tm 2,19).



§ 11
8 “No entanto, contemplarás com os teus olhos e verás o castigo dos pecadores”.

Como é isto? Por que:

no en-tanto?” Porque foi permitido que os ímpios se ensober-becessem contra teus servos, foi facultado aos malvados perseguir teus servos. Ficarão, de fato, impunes os ímpios que perseguiram teus servos? Não ficarão impunes. Apesar de tua permissão e a coroa dos teus ser maior por isso.

No entanto, contemplarás com os teus olhos e verás o castigo dos pecadores”.

Com efeito, serão remunerados pelo mal que quiseram e não pelo bem que fizeram sem saber. Agora necessitamos dos olhos da fé para vermos que eles são exaltados temporariamente e hão de chorar eternamente. Àqueles que receberam tempora-riamente poder contra os servos de Deus, será dito:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

Mas, para quem tem olhos, como disse o salmista:

contemplarás com os teus olhos” não é fácil ver o ímpio prosperar neste mundo e fixar o olhar nele, considerando pela fé o que há de sofrer no fim dos tempos, se não se corrigir; pois os que agora querem trovejar, serão fulminados depois.

No entanto, contemplarás com os teus olhos e verás o castigo dos pecadores”.



§ 12
12 “Porque és, Senhor, a minha esperança”.

Eis que o salmista vem explicar por que não cairá devido à ruína e ao demônio meridiano:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

Qual a razão de estar no alto o teu refúgio? Muitos pensam que lá se encontra o refúgio em Deus, a fim de escaparem ao calor temporal. No alto está o refúgio de Deus, muito oculto; lá da futura ira. Interiormente “colocaste no Altíssimo o teu refúgio. O mal não se acercará de ti e nenhum flagelo se aproximará de tua tenda. Ele deu ordem a seus anjos, em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos. Levar-te-ão nas mãos, para que teus pés não trope-cem em alguma pedra”.

Tais são as palavras que o diabo disse ao Senhor Jesus Cristo, ao tentá-lo. Mas como precisam ser ponderadas mais intensamente, para não vos cansardes adiemos para amanhã (porque também amanhã devo falar-vos), começando desta passagem do salmo, e assim evitarmos tédio de vossa parte. Se quisermos acabar depressa a explicação dos pontos obscuros, seremos precipitados, e não os atingirá a vossa inteli-gência



II SERMÃO 💬

§ 1
Não tenho dúvidas de que V. Caridade se lembra (refiro-me aos que ontem estiveram presentes) não ter permitido o tempo limitado chegarmos ao fim do salmo que começáramos a comentar. Uma parte ficou para hoje. Os que estiveram ontem presentes recordem-se, e os ausentes fiquem sabendo. Por causa disso, mandamos recitar a lição do evangelho que trata de como o Senhor foi tentado com as mesmas palavras do salmo que aqui ouvistes. Cristo foi tentado a fim de que o cristão não seja vencido pelo tentador. Com efeito o mestre quis sofrer todas as tentações, porque nós também somos tentados; como quis morrer, porque morremos; como quis ressuscitar porque haveremos de ressuscitar. Aquilo que ele manifestou enquanto homem, pois fez-se homem por nossa causa, sendo Deus nosso Criador, ele o mostrou em nosso favor. As coisas que muitas vezes relembramos a V. Caridade, não nos envergonhamos de repeti-las freqüentemente. Talvez muitos de vós não podem ler, porque não têm tempo de ler, ou não sabem ler; ao menos assiduamente ouvindo essas verdades não se esqueçam de sua fé, que lhes é salutar. Certamente a repetição pode parecer aborrecida a alguns, contudo outros se edificam. Temos conhecimento de que muitos têm boa memória e são aplicados ao estudo e à leitura das coisas de Deus; eles conhecem o que havemos de dizer; e talvez preferissem que disséssemos o que não sabem. Mas se são mais rápidos, olhem pelos que andam mais devagar. Quando dois companheiros caminham juntos, sendo um deles mais rápido e outro mais vagaroso, o mais rápido pode acertar o passo com o mais lento, mas este não pode andar com o mais apressado. Se o ligeiro quiser dar quanto pode, o mais lento não conseguirá segui-lo. É preciso, então, que o mais rápido refreie sua velocidade e não deixe para trás o companheiro mais lento. O que expliquei, pois, já o repeti muitas vezes, e novamente o digo, conforme declara o Apóstolo:

Escrever-vos as mesmas coisas não me é penoso e é seguro para vós(Fl 3,1).

Nosso Senhor Jesus Cristo como um homem inteiramente perfeito consta de Cabeça e corpo. Cabeça sabemos ser aquele que nasceu de Maria virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi sepultado, ressuscitou, subiu ao céu, está sentado à direita do Pai, de onde o esperamos como juiz dos vivos e dos mortos; ele é Cabeça da Igreja (cf Ef 5,23).

Corpo desta Cabeça é a Igreja, não a que se acha neste lugar, mas a que está aqui e por todo o orbe da terra. Nem é aquela que existe em nossa época, mas consta dos que existiram desde Abel aos que haverão de nascer até o fim dos tempos e de crer em Cristo, a saber, todo o povo dos santos que pertence a uma só cidade. Esta cidade identifica-se com o corpo de Cristo, que é Cabeça deste corpo. Nesta cidade encontram-se também os anjos, nossos concidadãos. Mas como ainda somos peregrinos, labutamos; eles, porém, estabelecidos na cidade, esperam nossa chegada. E daquela cidade, de onde estamos ausentes como peregrinos, chegaram-nos cartas. São as Escrituras, que nos exortam a viver bem. Por que digo que vieram cartas? O próprio rei desceu, e tornou-se o caminho de nossa peregrinação; andando por ele, não erraremos, não desanimaremos, não cairemos em poder de ladrões, nem seremos apanhados em armadilhas colocadas na estrada. Conhecemos este Cristo total e universal simultaneamente com a Igreja. Somente ele nasceu da virgem, é Cabeça da Igreja, mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus (cf 1Tm 2,5).

Mediador a fim de reconciliar os que se haviam afastado. Pois não há mediador senão entre dois. Havíamos nos apartado da majestade de Deus, e ofendido a ele com nossos pecados. Foi enviado o Filho como mediador, para apagar os pecados em seu sangue, que nos separavam de Deus. Colocando-se como intermediário, nos reconduziu a ele e nos reconciliou, pois estávamos como seus adversários devido a nossos pecados e aprisionados por nossos delitos. Ele próprio é nossa Cabeça, ele que é Deus, igual ao Pai, Verbo de Deus pelo qual tudo foi feito (cf Jo 1,3).

É Deus para criar, homem para nos restaurar; Deus para fazer, homem para refazer. Contemplando-o, ouçamos o salmo. V. Caridade dê atenção. Esta a disciplina, este o ensinamento da escola do Senhor, que vos há de valer não somente para compreender um salmo, mas muitos deles, se vos prenderdes a tal norma. Por vezes o salmo, e não somente os salmos, mas ainda qualquer profecia, fala de Cristo referindo-se apenas à Cabeça, em outros casos vai da Cabeça ao corpo, isto é, à Igreja, sem demonstrar ter mudado a pessoa, porque a Cabeça não se separa do corpo, mas fala como se fosse um só. Note, portanto, V. Caridade, o que estou dizendo. É notório a todos certamente o salmo que alude à paixão do Senhor:

Traspassaram- me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Dividiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes”.

Os judeus, ao ouvirem estas palavras se coram; é tão evidente que a profecia foi proferida acerca da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Este não cometera pecado, todavia, o salmo começa:

Deus, meu Deus, por que me desamparaste? Longe de minha salvação as vozes de meus delitos(Sl 21,17.18.19.2).

Observai, pois, o que fala a Cabeça, o que fala o corpo. Os delitos nos pertencem, a paixão em nosso favor pertence à Cabeça; mas em consideração de sua paixão em nosso favor, os delitos que nos tocam são perdoados. Assim também acontece neste salmo.



§ 2
1.8 Já tratamos dos primeiros versículos ontem; brevemente vamos relembrá-los.

Os que habitam sob a assistência do Altíssimo, descansarão sob a proteção do Deus do céu”.

Recomendávamos à V. Caridade acerca destes versículos, que ninguém ponha sua esperança em si mesmo, mas a deposite toda inteira naquele do qual provêm nossas forças. Vencemos com seu auxílio e não por presunção nossa. Por conseguinte, o Deus do céu nos protege, se repetirmos ao Senhor o que segue:

Dirá ao Senhor: És o meu protetor e o meu refúgio, meu Deus. Nele esperarei. Ele me há de livrar do laço dos caçadores e da palavra áspera”.

Dissemos que muitos, por medo da palavra áspera, caem no laço dos caçadores. Insulta-se a alguém por ser cristão; ele se arrepende de se ter feito cristão, e por causa da palavra áspera cai no laço do diabo. Ataca-se ainda outro, por viver melhor no meio de muitos cristãos; e por medo da palavra áspera dos que o insultam, cai nos laços do diabo, e assim não é trigo na eira, mas acompanha a palha. Quem, contudo, espera em Deus, livra-se dos laços dos caçadores e da palavra áspera. De que maneira Deus te protege? “Cobrir-te-á com a sombra de suas espáduas”, isto é, colocar-te-á junto do peito para te proteger com suas asas. Se agora reconheces tua fraqueza, fugirás qual pintinho a abrigar-te sob as asas da mãe, a fim de não seres arrebatado pelo gavião. Gaviões são as potestades do ar, o diabo e seus anjos; querem se apossar de nossa fraqueza. Fujamos para debaixo das asas de nossa mãe, a Sabedoria, porque a própria Sabedoria se fez fraca por nossa causa, pois o Verbo se fez carne (cf Jo 1,14).

Como a galinha fica doente com seus pintinhos, para protegê-los sob suas asas (cf Mt 23,37), assim nosso Senhor Jesus Cristo, sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas para se tornar fraco conosco e nos proteger sob suas asas, aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, assemelhando-se aos homens e sendo exteriormente reconhecido como homem (Fl 2,6 e 7).

E sob as suas asas esperarás. Sua verdade te cercará qual escudo. Não temerás os terrores da noite”.

As tentações da ignorância são terrores noturnos; os pecados com conhecimento, flecha que voa de dia, pois noite relaciona-se com ignorância e dia com manifestação da verdade. Existem os que pecam por ignorância, e os que pecam com pleno conhecimento. Os que pecam por ignorância, são suplantados pelos terrores da noite: os que pecam com conhecimento, são feridos pela flecha que voa de dia. Estes fatos se dão durante perseguições mais fortes, até que se atinjam os calores do meio-dia; todos os que caírem devido a este calor, caem por causa do demônio do meio-dia. E foram muitos os que caíram devido a este calor, conforme ontem expusemos a V. Caridade; porque no ardor da perseguição foi determinado: Os cristãos sejam torturados até que neguem serem cristãos. Antes, costumava-se matar quem confessasse; depois eram torturados para negarem. Embora todo réu seja torturado enquanto negar, os cristãos eram atormentados ao confessarem, e libertados ao negarem. Era então grande o ardor dos perseguidores. Todos aqueles que caíram naquela prova, caíram devido ao demônio do meio-dia. E quantos caíram! Muitos que esperavam que haveriam de se sentar junto do Senhor para julgar, caíram a seu lado. De igual modo, muitos que esperaram ser colocados à direita, no meio do povo santo tributário, como provinciais, que oferecem provisões aos soldados, e que ouviriam:

Tive fome e me destes de comer(pois à direita havia muitos), caíram, perdendo esta esperança. Estes são em maior número que aqueles. De fato, serão em menor número os que julgarão com o Senhor e mais os que comparecerão diante dele; mas a condição deles não é uma só. Uns estão à esquerda, e outros à direita; uns para reinarem, outros para serem castigados. Uns ouvirão:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino”; e os outros:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,32-41).

Portanto, os que caem devido à “ruína e ao demônio do meio-dia, são mil a seu lado, dez mil a sua direita, Mas tu não serás atingido”.

Como? O demônio meridiano não te derruba. Que há de espantoso se ele não derruba a Cabeça? Mas não derruba também os que aderem à Cabeça, conforme declara o Apóstolo:

O Senhor conhece os que lhe pertencem(2 Tm 2,19).

Com efeito, são predestinados de sorte que o Senhor conhece os que pertencem a seu corpo. Como não os atinge a tentação que possa derrubá-los, é atinente a eles o que foi escrito:

Mas tu não serás atingido”.

No intuito de que alguns irmãos fracos não observem os pecadores aos quais foi facultado praticar tanto mal contra os cristãos e não digam: Aí está; por que permitiu Deus aos ímpios e malvados tanto contra seus servos? Considera um pouco com teus próprios olhos, com os olhos da fé, e verás qual a retribuição que será dada aos pecadores no fim dos tempos, apesar de lhes ser permitido fazer tanto mal, para seres exercitado. Daí, pois, a continuação do salmo:

No entanto, contemplarás com os teus olhos e verás o castigo dos pecadores”.



§ 3
Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio. O mal não se acercará de ti”.

O salmista diz ao Senhor:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio. O mal não se acercará de ti e nenhum flagelo se aproximará de tua tenda”.

Em seguida vêm as palavras que ouvistes terem sido proferidas pelo diabo:

Ele deu ordem a seus anjos, em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos. Levar-te-ão nas mãos, para que teus pés não tropecem em alguma pedra”.

A quem se dirigem estas palavras? Ao mesmo a quem se disse:

Porque és, Senhor, a minha esperança”.

Já sei que não é preciso explicar a cristãos quem é o Senhor. Se entenderem que se trata de Deus Pai, como os anjos o tomarão nas mãos, para que seus pés não tropecem em alguma pedra? Vedes, portanto, que Senhor é Cristo. Falava do corpo e de repente começou a se referir à Cabeça. Agora, refere-se à Cabeça, ao se dizer:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

Por conseguinte, “colocaste no Altíssimo o teu refúgio, porque tu és, Senhor, a minha esperança”.

Que significa isto? V. Caridade preste atenção.

Porque tu és, Senhor a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

Já não é de admirar. Por isso, continua o salmo:

O mal não se acercará de ti, porque colocaste no Altíssimo o teu refúgio. Nenhum flagelo se aproximará de tua tenda”, porque “colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

Contudo, não lemos no evangelho que os anjos tenham em alguma parte carregado o Senhor, para que seus pés não tropeçassem em alguma pedra; mas entendemos isso. Isto realmente se fez, e não foi sem motivo que foi profetizado, senão porque haveria de acontecer. E não podemos dizer: Cristo virá depois, para que seus pés não tropecem em alguma pedra, pois ele virá para julgar. Onde, então, isso aconteceu? V. Caridade preste bem atenção.



§ 4
Em primeiro lugar, ouvi os versículos:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

O gênero humano sabia que o homem há de morrer; mas não tivera conhecimento de que algum homem ressuscitara. Por isso, tinha o que temer, mas não o que esperar. Nosso Senhor Jesus Cristo foi o primeiro e ressuscitar, de sorte que ele, em vista de nosso ensinamento deu-nos o medo da morte, e por causa do prêmio da vida eterna deu-nos a esperança da ressurreição. Ele morreu depois de muitos, mas ressuscitou antes de todos. Ao morrer, sofreu o que muitos já haviam padecido; ao ressuscitar, fez o que nenhum outro fizera antes dele; pois quando receberá a Igreja o poder de ressuscitar, senão no fim dos tempos? Precedeu na Cabeça o que devem os membros esperar. V. Caridade sabe como falam entre si. Diga, portanto, a Igreja a seu Senhor Jesus Cristo, diga o corpo a sua Cabeça:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”, isto é, ressuscitaste dos mortos e subiste ao céu, para colocares no alto o teu refúgio ao subires, e a fim de te tornares a minha esperança, pois na terra tinha perdido a esperança e não acreditava que eu haveria de ressuscitar. Agora já creio, porque tu, minha Cabeça, subiste ao céu. Aonde a Cabeça precedeu, os membros haverão de seguir. Penso que já se evidencia o que foi dito:

Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio”.

Vou dizer mais claramente. No intuito de que eu tivesse esperança na ressurreição que não possuía, ele ressuscitou em primeiro lugar, e assim onde ele me precedeu, devo esperar que para lá o seguirei. Efetivamente, esta é a voz da Igreja que se dirige a seu Senhor, a voz do corpo à sua Cabeça.



§ 5
Por conseguinte, não fiques admirado:

O mal não se acercará de ti. E nenhum flagelo se aproximará de tua tenda”.

Tenda de Deus é a carne. Na carne habitou o Verbo, e a carne se tornou tabernáculo de Deus. Neste tabernáculo o Imperador militou por nós; neste mesmo tabernáculo ele foi tentado pelo inimigo, a fim de que os soldados não perdessem as forças. Uma vez que ele manifestou a carne diante de nossos olhos, pois nossos olhos usufruem desta luz e se deleitam nessa luz visível, e visto que fez sua carne aparecer para que todos a vissem, diz um salmo:

Armou no sol a sua tenda”.

Por que motivo:

no sol?” Abertamente, manifestamente, à luz desta terra; isto é, à luz que se difunde do céu sobre a terra, no sol armou seu tabernáculo. Mas como armaria aí seu tabernáculo, se não saísse como esposo de seu tálamo? Pois prossegue o salmo:

Armou no sol a sua tenda”; e como se alguém o interrogasse: Como? “E este qual esposo que sai do tálamo deu saltos de gigante a percorrer o caminho(Sl 18,6).

Tabernáculo e esposa são uma coisa só. O Verbo é o esposo, a carne é a esposa, e o tálamo é o seio da Virgem. Como se exprime o Apóstolo? “Serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja(Ef 5,31-32).

E o que diz o próprio Senhor no evangelho? Portanto, “já não são dois, mas uma só carne(Mt 19,6).

De dois fez-se um só, do Verbo e a carne uma só pessoa, um só Deus. Seu tabernáculo suportou flagelos na terra; é evidente, porque o Senhor foi flagelado (cf Mt 27,26).

Acaso sente os flagelos no céu? De forma nenhuma. Por quê? Porque colocou no Altíssimo o seu refúgio, para ser nossa esperança, e o mal não se acercasse dele, nenhum flagelo se aproximasse de sua tenda. Ele está muito acima de todos os céus, mas tem os pés na terra; a Cabeça está no céu, o corpo na terra. Ao serem flagelados seus pés e calcados por Saulo, clamou a Cabeça:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4).

Eis que ninguém persegue a Cabeça, eis que a Cabeça está no céu, porque Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele (cf Rm 6,9).

O mal não se acercará de ti e nenhum flagelo se aproximará de tua tenda”.

Mas não pensemos que a Cabeça está separada do corpo; há separação quanto a lugares, mas união no afeto. A união afetiva fez com que ele clamasse do céu:

Saulo, Saulo, por que me persegues?” A voz que o censurava o prostrou, mas a direita compadecida o reergueu. Aquele que perseguia o corpo de Cristo se tornou membro de Cristo, a fim de sofrer aquilo mesmo que ele infligia. 1 Cf Tert. Apol. 2,13 e 1,9. 2 Cf Trat. sobre João XIII, 17, 11-14; 122, 3, 29/30.



§ 6
Então, irmãos? Que foi dito de nossa Cabeça? “Porque és, Senhor, a minha esperança. Colocaste no Altíssimo o teu refúgio. O mal não se acercará de ti e nenhum flagelo se aproximará de tua tenda”.

Isto foi afirmado.

Ele deu ordem a seus anjos, em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos”.

Acabais de ouvir a leitura do evangelho. Atenção. Depois de batizado, o Senhor jejuou (cf Mt 4,2).

Porque foi batizado? Para que não menosprezássemos o batismo. Quando o mesmo João dizia ao Senhor:

Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim? Jesus, porém respondeu-lhe: Deixa estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça(Mt 3,14.15).

Quis praticar completa humildade, lavando-se aquele que não tinha mácula. Para quê? Por causa da soberba dos futuros fiéis. Por exemplo, pode haver um catecúmeno que vença em ciência e costumes a muitos dos fiéis; ele nota que há entre os batizados muitos ignorantes, e muitos que vivem de modo diferente do seu, que não têm tão grande continência, nem tamanha castidade; ele já não procura esposa, e vê talvez um fiel, que se não comete luxúria, no entanto é intem-perante no casamento. Ele pode levantar a cabeça com soberba e dizer: Que necessidade tenho de batizar-me, para receber o que tem este do qual sou melhor em vida e conhecimentos? E o Senhor lhe responderá? Em que prevaleces? Em quanto mais? Tanto quanto eu estou acima de ti? “Não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor. Basta que o discípulo se torne como o mestre e o servo como o seu senhor(Mt 10,24.25).

Não te ensoberbeças, recusando o batismo. Pedes o batismo do Senhor, enquanto eu procurei o do servo. Portanto, o Senhor foi batizado e depois do batismo foi tentado, jejuou quarenta dias de modo misterioso, como várias vezes vos relembrei. Nem tudo se pode explicar de uma vez, para não se tomar o tempo necessário a outras questões. Depois de quarenta dias teve fome. Podia também nunca sentir fome; mas como seria tentado? Ou se ele não vencesse o tentador, como aprenderias a lutar com o tentador? Ele teve fome; e disse-lhe logo o tentador:

Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães(Mt 4,3).

Que dificuldade havia para nosso Senhor Jesus Cristo em transformar pedras em pães, se ele saturou com cinco pães tantos mil? (cf Mt 14,17-21).

Fez pão do nada. Tamanha quantidade de alimento que pôde saciar tantos mil, de onde proveio? As fontes do pão eram as mãos do Senhor. Não é de admirar, pois de cinco pães tirou uma quantidade suficiente para saciar tantos mil aquele que diariamente retira da terra, de poucos grãos messes fartas. Pois, são estes também milagres do Senhor; mas são depreciados devido a sua assiduidade. Por que seria impossível, irmãos, que o Senhor transformasse pedras em pães? Das pedras tirou homens, conforme a palavra de João Batista:

Mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão(Mt 3,9).

Por que razão não o fez? Para te ensinar como responder ao tentador, se acaso estiveres com alguma angústia e o tentador te sugerir: Se fosses cristão e pertencesses a Cristo, ele te abandonaria deste modo agora? Não te mandaria auxílio? Talvez o médico ainda está cortando, e portanto parece que abandona, contudo não está abandonando. Da mesma forma que ele não ouviu Paulo, porque queria atendê-lo. Pois, Paulo declara que não foi ouvido a respeito do aguilhão da carne, com que foi permitido ao anjo de satanás que o espancasse:

A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu- me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder(2 Cor 12,7-9).

Seria como se um doente dissesse ao médico, que lhe impusera um emplastro: Incomoda-me este emplastro; peço-te que o tires. E o médico: Não, é preciso que fique aí durante algum tempo, se não, não ficarás curado. O médico não atende à vontade do doente, porque atende à sua saúde. Diante disso, irmãos, sede fortes. Quando fordes provados por alguma carência, quando Deus vos flagela e instrui, porque vos preserva uma herança eterna, não vos sugira o diabo: Se fosses justo, Deus não te enviaria pão por um corvo, conforme mandou a Elias? (cf 1Rs 17,6).

Onde está a realização do que leste:

Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”? (Sl 36,25).

Responde ao diabo: É verdadeira a palavra da Escritura:

Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”; tenho um pão que não conheces. Qual? Ouve o que diz o Senhor:

Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus(Mt 4,4; Dt 8,3).

Pensas que a palavra de Deus não é pão? Se não fosse pão o Verbo de Deus, pelo qual tudo foi feito, ele não teria dito:

Eu sou o pão vivo descido do céu(Jo 6,51).

Aprendeste o que responder ao tentador quando a fome te angustiar.



§ 7
E se ele te tentar, dizendo: Se fosses cristão, farias milagres como fizeram muitos cristãos? Tu, enganado pela sugestão má, tentarias o Senhor teu Deus, dizendo ao Senhor nosso Deus: se sou cristão, estou diante de teus olhos, e me contas no número dos teus, que eu faça algo conforme muita coisa que teus santos fizeram. Tentaste a teu Deus, como se não fosses cristão se não fizeres tais coisas. Muitos, desejando tais coisas, caíram. Com efeito, aquele Simão mago desejou obter dos apóstolos o poder de fazer milagres, e quis obter o Espírito Santo por meio de dinheiro (cf At 8,18.19).

Apreciou o poder de fazer milagres, mas não quis imitar a humildade. Assim, certo discípulo, ou alguém da multidão queria seguir o Senhor, tendo em vista os milagres que ele operava; o Senhor viu que aquele soberbo não procurava o caminho da humildade, mas o inchaço do poder, e lhe disse:

As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça(Mt 8,20).

As raposas têm tocas em ti; as aves do céu têm em ti os seus ninhos. Raposa é o dolo; aves do céu representam a soberba, pois as aves procuram as alturas como os soberbos. As raposas têm cavernas enganadoras; assim também todos os que armam insídias. Como respondeu o Senhor? Em ti podem habitar a soberba e a mentira; Cristo não tem onde habitar em ti, onde reclinar sua cabeça. Reclinar a cabeça é figura da humildade de Cristo. Se ele não reclinasse a cabeça não serias justificado. Até os discípulos tinham tais desejos, e apeteciam os tronos no reino, antes de entenderem o caminho da humildade. Quando a mãe dos dois discípulos insinuou ao Senhor:

Dize que estes meus dois filhos se assentem um à tua direita e o outro à tua esquerda”, estes procuravam o poder; mas pela paixão da humildade se chega ao poder do reino. O Senhor respondeu:

Podeis beber o cálice que estou para beber?(Mt 20,21.22).

Por que pensais na elevação do reino e não imitais a minha humildade? Portanto, se o diabo te tentar assim: Faze um milagre. Para não tentares a Deus, que deves responder? O mesmo que o Senhor respondeu. O diabo lhe disse:

Atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos e eles te tomarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”.

Se te atirares, os anjos te sustentarão. E era possível, irmãos, se o Senhor se atirasse, que a carne do Senhor recebesse os serviços dos anjos; mas como ele respondeu? “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus(Mt 4,6.7: Dt 6,16).

Pensas que sou homem. O diabo se aproximou para experimentar se ele era o Filho de Deus. Via a carne; mas a majestade transparecia nas obras. Os anjos haviam dado testemunho. O diabo o viu como mortal a fim de poder tentá-lo, e Cristo, sendo tentado, servia de ensinamento para o cristão. Como está escrito? “Não tentarás o Senhor teu Deus”.

Por isso não tentemos o Senhor, dizendo: Se pertencemos a ti, façamos milagres.



§ 8
Voltemos às palavras do salmo.

Ele deu ordem a seus anjos, em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos. Levar-te-ão nas mãos, para que teus pés não tropecem em alguma pedra”.

Cristo foi levado nas mãos dos anjos, quando subiu ao céu; não significa isto que se os anjos não o levassem, ele cairia; mas que prestavam homenagem a seu rei. Ora, talvez diríeis: São melhores os que levavam do que aquele que era carregado. Então, os jumentos são melhores do que os homens? Mas, os jumentos carregam os homens fracos. Nem isso devemos dizer. De fato, se os jumentos recalcitram, caem os que os montam. Mas como devemos nos exprimir? Pois, também a respeito de Deus foi dito:

O céu é o meu trono(Is 66,1; At 7,49).

Uma vez que o céu sustenta, e Deus está sentado, seria melhor o céu? Assim igualmente podemos entender o versículo deste salmo que fala do serviço dos anjos; não se trata de fraqueza da parte do Senhor, mas da honra, do serviço que os anjos lhe prestam. Com efeito, nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou; por que motivo? Ouvi como se expressa o Apóstolo:

Morreu pelas nossas faltas, e ressuscitou para a nossa justificação(Rm 4,25).

Ainda, encontramos sobre o Espírito Santo no evangelho:

Não havia ainda sido dado o Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado(Jo 7,39).

Qual foi a glorificação de Jesus? Ressuscitou e subiu ao céu. Tendo sido glorificado por Deus por meio da ascensão ao céu, ele enviou o Espírito Santo no dia de Pentecostes. Na lei, de fato, no livro do Êxodo escrito por Moisés, contam-se cinqüenta dias desde a imolação e manducação do cordeiro. A lei foi dada, escrita pelo dedo de Deus em tábuas de pedra. O evangelho nos expõe o que significa dedo de Deus; dedo de Deus é o Espírito Santo. Como prová-lo? O Senhor, em resposta àqueles que lhe objetavam que ele expulsava os demônios em nome de Beelzebu, disse:

Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios(Mt 12,28), enquanto outro evangelista narra o fato e declara:

Se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios(Lc 11,20).

Um se exprime claramente, e o outro de modo obscuro. Não sabias o que é o dedo de Deus. Outro evangelista o explica, dizendo tratar-se do Espírito de Deus. Por conseguinte, a lei promulgada no qüinquagésimo dia após a imolação do cordeiro, foi escrita pelo dedo de Deus; e o Espírito Santo veio no qüinquagésimo dia a contar da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. O cordeiro foi imolado, celebrou-se a Páscoa, completaram-se os cinqüenta dias, a lei foi promulgada. Mas aquela lei era do temor, não do amor; a fim de que o temor, porém, se convertesse em amor, foi morto o justo já em plena verdade; tipo deste justo era o cordeiro que os judeus imolavam. Cristo ressuscitou. Do dia da Páscoa do Senhor, como a contar do dia da Páscoa da imolação do cordeiro, enumeram-se cinqüenta dias; e veio o Espírito Santo, já na plenitude do amor, não com a pena do temor. Por que me refiro a isto? Porque o Senhor ressurgiu e foi glorificado, a fim de enviar o Espírito Santo (cf At 2,1-4).

E já disse que a Cabeça está no céu e os pés na terra. Se a Cabeça está no céu e os pés estão na terra, quais são os pés do Senhor na terra, a não ser seus santos que estão na terra? Quais são os pés do Senhor? Os Apóstolos enviados a todo o orbe da terra. Quais são os pés do Senhor? Todos os evangelistas, nos quais é o Senhor que visita todos os povos. Era de se temer que os evangelistas tropeçassem na pedra. A Cabeça estava no céu, mas os pés estavam em labuta na terra e poderiam tropeçar na pedra. Em qual? Na lei promulgada em tábuas de pedra. No intuito de que a lei não criasse homens culpados, sem a graça e sob a lei, pois a própria ofensa acarreta a culpa, o Senhor absolveu os réus sob a lei, para que a lei não lhes fosse tropeço. A fim de que os pés que pertencem a esta Cabeça não incorressem em culpa sob a lei, foi enviado o Espírito Santo para infundir-lhes o amor e afastar o temor. O temor não cumpria a lei, mas o amor a cumpriu. Os homens temiam e não cumpriam; começaram a amar e a cumpriram. Como foi que temiam e não cumpriam, começaram a amar e a cumpriram? Os homens temiam e roubavam os bens alheios, começaram a amar e deram os própios bens. Por isso, não é de admirar que pelas mãos dos sanjos o Senhor subiu ao céu, a fim de que seus pés não tropeçassem em alguma pedra, e para que os membros de seu corpo que na terra estavam em trabalhos, percorrendo toda a terra, não se tornassem culpados sob a lei, o Espírito Santo tirou-lhes o temor e encheu-os de amor. Pedro por medo negou três vezes (cf Mt 26,69-75); ainda não havia recebido o Espírito Santo; após recebê-lo, começou a pregar ousadamente. Aquele que negara três vezes por causa da palavra de uma criada (cf At 5,40), depois de receber o Espírito Santo, confessou a Cristo que negara, no meio dos flagelos dos príncipes. Não é espantoso, porque o Senhor fez desaparecer o tríplice medo por meio de um tríplice ato de amor. Havendo ressuscitado dos mortos, perguntou a Pedro: Pedro, “tu me amas?” Não disse: Tu me temes? Pois, se ainda temesse, seus pés tropeçariam na pedra.

Tu me amas”? perguntou. E ele respondeu:

Amo”.

Bastava dizer uma vez. Talvez bastasse para mim, que não vejo o coração; quanto mais era suficiente para o Senhor, que via como Pedro respondeu de todo o coração:

Amo?” Não bastou ao Senhor que ele respondesse uma vez; interrogou novamente, e ele respondeu:

Amo”.

Interrogou terceira vez, e Pedro já aborrecido, como se o Senhor duvidasse de seu amor, respondeu:

Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo(Jo 21,15-17).

Mas o Senhor agiu para com ele, como se lhe dissesse: Tu me negaste três vezes por temor, confessa por três vezes por amor. Ele encheu seus discípulos com este amor, esta caridade. Por quê? Porque colocou no Altíssimo o seu refúgio; porque depois de glorificado enviou o Espírito Santo, e libertou os fiéis do reato da lei, a fim de que não tropeçassem seus pés em alguma pedra.



§ 9
13 O restante, irmãos, é claro. Já foi explicado muitas vezes.

Andarás sobre a áspide e o basilisco, calcarás o leão e o dragão”1. Sabeis que é a serpente; conheceis como a Igreja a calcará, que ela não é vencida, por que se acautela da astúcia da serpente. Como, porém, esta é leão e dragão, creio que também está ciente V. Caridade. O leão se enfurece abertamente; o dragão arma insídias ocultas. O diabo tem ambas as espécies de poder. Quando matava os mártires era leão enfurecido; quando os hereges armam ciladas, ele é o dragão subreptício. Venceste o leão, vence igualmente o dragão. O leão não te esmagou. Não te engane o dragão. Provemos que era leão, ao ser abertamente cruel. Exortando os mártires, disse Pedro:

Eis que o vosso adversário, o diabo vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar(1Pd 5,8).

Rugindo abertamente, o leão procurava quem devorar. E o dragão, como arma ciladas? Através dos hereges. Temendo Paulo que eles não corrompessem a virgindade da fé da Igreja, que a traz no coração, disse:

Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura. Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a Cristo(2 Cor 11,2.3).

Possuem a virgindade do corpo poucas mulheres na Igreja, mas todos os fiéis possuem a virgindade do coração. Ele temia que o diabo corrompesse a virgindade do coração, que consiste na própria fé; quem a perder, é inútil ser virgem de corpo. Se a corrupção está no coração, que pode conservar no corpo? Por isso, a mulher católica está acima da virgem herética. Aquela não é virgem corporalmente, e esta é esposa no coração; não de Deus, mas da serpente. Que acontece, porém, à Igreja? “Andarás sobre a áspide e o basilisco”.

O basilisco é o rei das serpentes, como o diabo é o rei dos demônios.

Calcarás o leão e o dragão”.



§ 10
14 Logo vêm as palavras de Deus à Igreja:

Esperou em mim, eu o livrarei”.

Não somente, portanto, a Cabeça, que agora está no céu, que colocou no Altíssimo o seu refúgio, à qual não tem acesso os males e nenhum flagelo se aproximará de sua tenda, mas também nós, que pelejamos na terra, ainda vivemos no meio de tentações, cujos passos ainda correm o perigo de resvalarem nos laços, ouçamos a voz do Senhor nosso Deus, a consolar-nos e dizer-nos:

Esperou em mim, eu o livrarei, protegê-lo-ei porque conheceu o meu nome”.



§ 11
15 “Invocar-me-á e eu o escutarei. Com ele estou na tribulação”.

Não tenhas medo na tribulação, como se Deus não esteja contigo. Esteja a fé contigo, e Deus está contigo na tribulação. São ondas do mar. Perturbas-te no navio, porque Cristo dorme. Cristo dormia na barca (cf Mt 8,24,25), os homens estavam em perigo de perecer. Se tua fé dorme em teu coração, é Cristo que dorme em tua barca; porque Cristo habita em ti pela fé. Ao começares a te perturbar, acorda o Cristo que dorme; desperta a tua fé e verás que ele não te abandona. Mas provavelmente jul-gas que te abandona, porque não te livra no momento que queres. Ele livrou os três jovens da fornalha (cf Dn 3,49.50).

Se livrou os três jovens, abandonou os Macabeus? (cf Mc 7).

De forma alguma. Livrou a uns e a outros; aos primeiros corporalmente, a fim de confundir os infiéis; a estes espiritualmente, a fim de que os fiéis os imitem.

Com ele estou na tribulação. Hei de livrá-lo e glorificá-lo”.



§ 12
16 “De longos dias hei de cumulá-lo”.

Que quer dizer: longos dias? A vida eterna. Irmãos, não penseis que o salmista fala em dias longos, conforme falamos de dias curtos no inverno e dias longos no verão. São tais dias que nos serão dados? Trata-se daquela duração que não tem fim, é a vida eterna que nos é prometida nesses dias longos. E na verdade, como bastam, não foi sem motivo que disse o salmista:

Hei de cumulá-lo”.

Não nos basta o que é longo no tempo, se tem fim; por isso nem devem ter o nome de longo. E se somos avaros, devemos ser avaros da vida eterna; desejai tal vida que não tem fim. Eis até onde se estende a nossa avareza. Queres ter dinheiro sem fim? Deseja a vida eterna sem fim. Não queres que tenha fim a tua posse? Procura a vida eterna.

De longos dias hei de cumulá-lo”.



§ 13
E mostrar-lhe-ei a minha salvação”.

Nem isto, irmãos, devemos ver só de passagem.

Mostrar-lhe-ei a minha salvação”, isto é: Mostrar-lhe-ei o próprio Cristo. Por quê? Não apareceu na terra? Tem algo de importante para nos mostrar? Cristo não apareceu tal como o veremos. Apareceu com o aspecto que viram os que o crucificaram; eis que eles viram e o crucificaram; nós não vimos e cremos. Eles tinham olhos e nós não temos? Ainda mais. Temos os olhos do coração; mas vemos ainda pela fé, não na plena realidade. Quando será na realidade? Quando o virmos “face a face(1 Cor 13,12), segundo diz o Apóstolo, o que Deus nos prometeu como grande prêmio de todos os nossos labores. Seja como for que trabalhes, trabalhas para veres. Não sei dizer o que veremos de tão grande que toda a nossa recompensa consistirá nesta visão; este grande objeto de nossa visão é nosso Senhor Jesus Cristo. Ele que apareceu humilde, aparecerá grandioso e nos alegrará, assim como agora é visto pelos anjos:

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus(Jo 1,1).

Dai atenção a quem prometeu essas coisas, o próprio Senhor a dizer no evangelho:

Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei(Jo 14,21).

E como se alguém lhe dissesse: E que darás a quem te ama? Responde:

A ele me manifestarei(ib.).

Desejemos e amemos; amemos com ardor, se somos a esposa. O esposo está ausente, esperemo-lo: virá aquele por quem anelamos. Deu tal penhor. Não tenha medo a esposa de que será abandonada pelo esposo; não deixará seu penhor. Que penhor ele nos deu? Derramou seu sangue. Que penhor deu? Enviou o Espírito Santo. O esposo abandonará a esposa a quem deu tais penhores? Se ele não amasse, não daria tais penhores. Já ama. Oh! Se amássemos desta maneira! “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos(Jo 15,13).

E como podemos dar nossa vida por ele? Que lhe adiantará, se já colocou no Altíssimo o seu refúgio, e o flagelo não se acercará de sua tenda? Mas como se exprime João? “Cristo deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos(1Jo 3,16).

Todo aquele que dá a vida pelo irmão, é por Cristo que a dá; como alimenta a Cristo quem nutre os irmãos:

Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,40).

Amemos e imitemos; corramos ao odor de seus perfumes, como se diz no Cântico dos cânticos :

Corramos ao odor de seus perfumes(Ct 1,3).

O Senhor veio e exalou seu perfume, e seu odor encheu o mundo. De onde veio o odor? Do céu. Segue-o ao céu, se não é falsamente que respondes à interpelação: Corações ao alto, ao alto os pensamentos, ao alto o amor, ao alto a esperança, para que não se corrompa na terra. Não tens coragem de depositar o trigo sobre a terra úmida para que não apodreça, tendo em vista que trabalhaste, colheste, trituraste e ventilaste. Por que procuras um lugar adequado para teu trigo e não procuras um local próprio para teu coração? Não procuras um lugar para teu tesouro? Faze quanto puderes na terra; dá; não perdes, mas depositas. E quem o guarda? É Cristo, que também te guarda. Ele sabe te guardar e não saberá guardar teu tesouro? Ora, porque ele quer que mude de lugar o teu tesouro, senão para que mudes igualmente o lugar adequado a teu coração? Pois, ninguém pensa senão em seu tesouro. Quantos são os que aqui me ouvem agora, e seu coração está apenas em seus saquitéis? Estais na terra, porque amais o que é da terra; seja enviado para o céu, e lá estará vosso coração. Pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração (cf Mt 6,21).

1 Sobre este versículo, cf. Com s/sal. 34,1,21ss.