SALMO 𝟠𝟡

Ó Senhor, Deus dos exércitos, quem é poderoso como tu, Senhor, com a tua fidelidade ao redor de ti?

Tu dominas o ímpio do mar; quando as suas ondas se levantam tu as fazes aquietar.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 89


§ 89:1  Ƈ Cantarei para sempre as benignidades do Senhor; com a minha boca proclamarei a todas as gerações a tua fidelidade.

§ 89:2  Ɗ Digo, pois: A tua benignidade será renovada para sempre; tu confirmarás a tua fidelidade até nos céus, dizendo:

§ 89:3  Ƒ Fiz um pacto com o meu escolhido; jurei ao meu servo Davi:

§ 89:4  Estabelecerei para sempre a tua descendência, e firmarei o teu trono por todas as gerações.

§ 89:5  Os céus louvarão as tuas maravilhas, ó Senhor, e a tua fidelidade na assembléia dos santos.

§ 89:6  Pois quem no firmamento se pode igualar ao Senhor? Quem entre os filhos de Deus é semelhante ao Senhor,

§ 89:7  um Deus sobremodo tremendo na assembléia dos santos, e temível mais do que todos os que estão ao seu redor?

§ 89:8  Ơ Ó Senhor, Deus dos exércitos, quem é poderoso como tu, Senhor, com a tua fidelidade ao redor de ti?

§ 89:9  Ŧ Tu dominas o ímpio do mar; quando as suas ondas se levantam tu as fazes aquietar.

§ 89:10  Ŧ Tu abateste a Raabe como se fora ferida de morte; com o teu braço poderoso espalhaste os teus inimigos.

§ 89:11  São teus os céus, e tua é a terra; o mundo e a sua plenitude, tu os fundaste.

§ 89:12  O norte e o sul, tu os criaste; o Tabor e o Hermom regozijam-se em teu nome.

§ 89:13  Ŧ Tu tens um braço poderoso; forte é a tua mão, e elevado a tua destra.

§ 89:14  Justiça e juízo são a base do teu trono; benignidade e verdade vão adiante de ti.

§ 89:15  Bem-aventurado o povo que conhece o som festivo, que anda, ó Senhor, na luz da tua face,

§ 89:16  ɋ que se regozija em teu nome todo o dia, e na tua justiça é exaltado.

§ 89:17  Pois tu és a glória da sua força; e pelo teu favor será exaltado o nosso poder.

§ 89:18  Porque o Senhor é o nosso escudo, e o Santo de Israel é o nosso Rei.

§ 89:19  Ɲ Naquele tempo falaste em visão ao teu santo, e disseste: Coloquei a coroa num homem poderoso; exaltei um escolhido dentre o povo.

§ 89:20  Achei Davi, meu servo; com o meu santo óleo o ungi.

§ 89:21  A minha mão será sempre com ele, e o meu braço o fortalecerá.

§ 89:22  O inimigo não o surpreenderá, nem o filho da perversidade o afligirá.

§ 89:23  Eu esmagarei diante dele os seus adversários, e aos que o odeiam abaterei.

§ 89:24  A minha fidelidade, porém, e a minha benignidade estarão com ele, e em meu nome será exaltado o seu poder.

§ 89:25  Porei a sua mão sobre o mar, e a sua destra sobre os rios.

§ 89:26  Ele me invocará, dizendo: Tu és meu pai, meu Deus, e a rocha da minha salvação.

§ 89:27  Ŧ Também lhe darei o lugar de primogênito; fá-lo-ei o mais excelso dos reis da terra.

§ 89:28  Ƈ Conservar-lhe-ei para sempre a minha benignidade, e o meu pacto com ele ficará firme.

§ 89:29  Ƒ Farei que subsista para sempre a sua descendência, e o seu trono como os dias dos céus.

§ 89:30  Se os seus filhos deixarem a minha lei, e não andarem nas minhas ordenanças,

§ 89:31  ʂ se profanarem os meus preceitos, e não guardarem os meus mandamentos,

§ 89:32  Então visitarei com vara a sua transgressão, e com açoites a sua iniqüidade.

§ 89:33  ɱ Mas não lhe retirarei totalmente a minha benignidade, nem faltarei com a minha fidelidade.


O SALMO 89



§ 1
1 “Oração de Moisés, homem de Deus”, é a nota prévia deste salmo. Através de Moisés Deus promulgou a lei para seu povo, e por seu intermédio libertou-o da casa da servidão, conduzindo-o pelo deserto por quarenta anos. Moisés, portanto, foi ministro do Antigo Testamento e profeta do Novo Testamento.

Esses fatos lhes aconteceram para servir de exemplo”, conforme diz o Apóstolo, “e foram escritos para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos(1 Cor 10,11).

Examinemos este salmo, que recebeu o título de oração de Moisés, segundo o desígnio de Deus que nele se realizou.



§ 2
Senhor, foste nosso refúgio de geração em geração”.

É possível tratar-se de todas as gerações, ou de duas gerações, a antiga e a nova. Pois, como disse, Moisés foi ministro do Testamento atinente à antiga geração, e profeta do Testamento referente à geração nova. Jesus Fiador deste Testamento e esposo no matrimônio que saiu daquela geração, declarou:

Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mim, porque foi a meu respeito que ele escreveu(Jo 5,46).

Não é de se crer que o próprio Moisés, absolutamente, tenha escrito este salmo, que não está incluído nos livros em que foram inscritos seus cânticos; mas deve ter algum sentido que o nome do tão benemérito servo de Deus aqui tenha sido empregado, de sorte a despertar a atenção de quem lê ou ouve. Portanto, “Senhor, foste nosso refúgio, de geração em geração”.



§ 3
2 Em seguida o salmo acrescenta que espécie de refúgio ele se tornou, porque efetivamente começou a ser para nós o que não era, isto é, refúgio; mas não quer dizer que ele não existisse antes de ser nosso refúgio e por isso, acrescentou:

Antes que se formassem os montes e se fizessem a terra e o orbe, desde os séculos dos séculos, tu és”.

Tu, portanto, que sempre eras, mesmo antes de que nós fôssemos, e antes que o mundo existisse, tu te tornaste o nosso refúgio desde que nos convertemos para ti. A meu ver, não se deve entender de qualquer modo a palavra:

Antes que se formassem os montes, e se fizesse a terra”; ou segundo outros códices, traduzindo uma só palavra grega: se “plasmasse a terra”.

Na verdade, os montes são as partes mais elevadas da terra. Se antes que se fizesse a terra Deus era, ele que fez a terra, que importância tem falar de montes, ou de quaisquer outras partes da terra, pois Deus existia não somente antes da terra, mas ainda antes do céu e da terra, antes de todas as criaturas corporais e espirituais? Mas talvez esta diferença torne distintas as criaturas racionais, de tal forma que sob o nome de montes se representem as mais excelentes, os anjos, e sob o vocábulo de terra a condição humilde dos homens. Por isso, embora todas tenham sido criadas, não é sem certa conveniência que se afirme que foram feitas ou formadas; se há certa propriedade de palavras, os anjos foram feitos, porque ao se enumerarem as obras de Deus, assim se conclui a mesma enumeração:

Porque ele falou e foram feitas; ele ordenou e foram criadas(Sl 148,5).

Pois, como o homem foi feito segundo o corpo, a terra foi formada. De fato, a Escritura usa essa palavra, conforme lemos, ou:

Deus modelou, ou: Formou o homem com a argila do solo(Gn 2,7).

Portanto, antes de fazer as criaturas supremas e maiores na criação; que há de maior do que a criatura racional celeste? E isso antes que se plasmasse a terra, a fim de existir quem te conhecesse e louvasse na terra. Mas, isto é pouco, porque essas criaturas começaram a ser, seja no tempo, seja com o tempo, enquanto, ó Deus, “desde os séculos dos séculos tu és”.

Seria mais conveniente dizer: De eternidade em eternidade; pois Deus não começou num século. Ele é antes dos séculos. Nem até os séculos, o que indica um fim, porque ele é sem fim. Mas, uma palavra grega ambígua, na Escritura, é traduzida muitas vezes ou por século em vez de eterno, ou por eterno em vez de século, pelos tradutores latinos. Todavia, não foi dito e com muita propriedade: Eras desde os séculos e serás até os séculos; mas o verbo está no tempo presente, insinuando que a substância de Deus é inteiramente imutável. A ele não se aplica: foi e será, mas apenas: é. Daí a razão da palavra:

Eu sou aquele que é”: e:

Eu sou me enviou até vós(Ex 3,14).

E ainda:

Mudá-los-ás e se transformarão. Tu és sempre o mesmo e teus anos não terminarão(Sl 101,27.28).

Eis que a eternidade se tornou o nosso refúgio. Permanecendo nela, fujamos da instabilidade do tempo presente.



§ 4
3 Mas como estamos na terra, vivemos no meio de muitas tentações. É de se temer que elas nos afastem deste refúgio; por isso, olhemos o que pede em seguida a oração deste homem de Deus.

Não reduzas o homem à abjeção”, isto é, que o homem, afastando-se das coisas eternas e sublimes, não ambicione as coisas terrenas, saboreando-as. Ele pede a Deus aquilo mesmo que o próprio Deus ordenou; é inteiramente semelhante ao que pedimos na oração:

Não nos deixes cair em tentação(cf Mt 6,13).

Por fim, o salmista prossegue:

E disseste: Filhos dos homens, convertei-vos”.

Parece dizer o salmista: peço aquilo mesmo que mandaste fazer. Ele dá glória à sua graça, de sorte que aquele que se gloria, no Senhor se glorifique (cf 1Cor 1,31).

Sem o auxílio de Deus, pelo arbítrio da vontade, não podemos superar as tentações desta vida.

Não reduzas o homem à abjeção”, e no entanto, tu “disseste: Filhos dos homens, convertei-vos”.

Mas, Senhor, dá aquilo que mandaste fazer, ouvindo a prece do suplicante e ajudando a fé daquele que o quer.



§ 5
4 “Mil anos a teus olhos são qual o dia de ontem, que se foi”.

Por isso, devemos voltar-nos, das coisas passageiras e fugazes, para refugiar-nos em ti. Tu és, sem qualquer mutabilidade. Por mais que se anele por uma longa vida, “mil anos a teus olhos são qual o dia de ontem, que se foi”, nem ao menos, como o dia de amanhã, que está para vir. Deste modo, tudo o que tem fim no tempo, deve ser tido na conta de passado. Daí vem que a intenção do Apóstolo deixa tudo isso, e ele se esquece do que ficou para trás, a saber, todos os bens temporais; e avança para o que está adiante, isto é, possui o anelo pelos bens eternos (cf Fl 3,13).

No intuito de evitar que pensassem alguns que os mil anos Deus os avalia qual um só dia, como se Deus tivesse dias tão longos enquanto a expressão significa que é desprezível a longa duração do tempo, o salmista acrescentou:

qual uma só vigília noturna”.

A vigília não consta de mais de três horas. Todavia, houve homens que ousaram presumir ter conhecimento da duração dos tempos; o Senhor diante do desejo de saber isso da parte dos discípulos, disse:

Não vos compete conhecer os tempos que o Pai reservou a seu poder(At 1,7).

Aqueles, porém, marcaram seis mil anos para este mundo, como se terminasse em seis dias. Não deram atenção à palavra:

como um só dia, que se foi”.

Quando isso foi proferido, não haviam transcorrido apenas mil anos. E teve o salmista de exortá-los principalmente para não se deixarem iludir pela incerteza dos “tempos, que são qual uma só vigília noturna”.

Assim como não é verossímil a opinião sobre os seis dias, tomando por base os seis primeiros dias, nos quais Deus terminou sua obra, tampouco podem eles ajustar seu parecer a seis vigílias, isto é, a dezoito horas.



§ 6
5.6 Em seguida, este homem de Deus, ou antes o espírito do profeta parece narrar o desígnio de Deus inscrito nos segredos de sua sabedoria, onde estabeleceu de antemão o modo de decorrer a vida pecadora dos mortais e as tribulações da mortalidade, ao dizer:

Seus anos são tidos por nada. De manhã passam como a erva, ao amanhecer viceja e passa, à tarde cai, endurece e seca”.

Por conseguinte, a felicidade dos herdeiros do Antigo Testamento, que eles pediam ao Senhor seus Deus como imenso bem, mereceu tal desígnio na oculta providência de Deus, que Moisés parece narrar:

Seus anos são tidos por nada”.

São tidos por nada os anos que antes de chegarem ainda não são; quando tiverem vindo, já não serão; eles não vêm para serem, mas para não serem.

De manhã”, isto é, ante-riormente, “passam como a erva; ao amanhecer viceja e passa; à tarde”, isto é, “depois, cai, endurece e seca”.

Cai, de fato, pela morte; endurece, como um cadáver; seca, reduzida a pó. Quem, senão a carne, onde habita a concupiscência condenada dos carnais? Toda carne é feno, e toda a glória humana é como a flor do feno: seca o feno, cai a flor, mas a palavra do Senhor subsiste para sempre (cf Is 40,6.8).



§ 7
7 Declarando que esta pena deriva do pecado, imediatamente o salmista acrescentou:

Somos consumidos por tua ira e perturbados com a tua indignação. Consumidos” de fraqueza; “perturbados”, devido ao medo da morte. Tornamo-nos enfermos e temos medo de que a enfermidade termine.

Outro te cingirá”, diz o evangelista, “e te conduzirá aonde não queres(cf Jo 21,18), embora o martírio não seja castigo, mas coroa. A alma do Senhor, em lugar de todos nós, estava triste até a morte e do Senhor apenas “são as saídas da morte(cf Mt 26,38; Sl 67,21).



§ 8
8 “Puseste diante de ti os nossos pecados”, isto é, não os dissimulaste.

E a nossa vida à luz de teu rosto”, subentende-se:

puseste”.

À luz de teu rosto” equivale ao que disse mais acima:

diante de ti”; e “nossa vida” equivale a:

nossos pecados”.



§ 9
9.10 “Porque os nossos dias desvaneceram e sob a tua ira desfalecemos”.

Suficientemente demonstram estas pala-vras que a mortalidade presente é penal. Diz o salmista que os nossos dias desvaneceram, ou porque os homens neles desfalecem amando as coisas transitórias, ou porque foram reduzidos a poucos. Parece declará-lo em seguida, nesses ter-mos:

Nossos anos são como teias de aranha. A duração de nossos anos em si de setenta anos; no máximo para os mais fortes oitenta. Os excedentes são de trabalho e dor”.

São palavras que evidentemente exprimem a brevidade e miséria da vida presente; é denominado longevidade viver setenta anos. Até aos oitenta ainda se possuem certas forças; mas quem viver mais, viverá com multiplicados trabalhos e dores. Mas muitos são os que aos setenta levam uma velhice cheia de fraquezas e tribulações, e muitas vezes há velhos com mais de oitenta anos que comprovam admirável vitalidade. É preferível, portanto, sob esses números perscrutar algo de espiritual. A ira de Deus não é maior sobre os filhos de Adão, este único homem, por meio do qual o pecado entrou no mundo, e, pelo pecado, a morte, e assim a morte pas-sou a todos os homens (cf Rm 5,12), tendo em vista que eles vivem muito menos do que viveram os antigos. A duração longa de sua vida é objeto de irrisão, comparando-se mil anos com o dia de ontem que se foi, e com as três horas de uma vigília; e, de fato, então viviam muito, quando provocaram a ira de Deus a ponto que pereceram no dilúvio.



§ 10
Na verdade, setenta mais oitenta anos fazem cento e cinqüenta; o livro dos salmos insinua bastante que este número é sagrado. Têm o mesmo sentido cento e cinqüenta e quinze, número resultante da soma de sete e oito. O primeiro insinua, por causa da observância do sábado, o Antigo Testamento; o segundo, o Novo Testamento tendo em consideração a ressurreição do Senhor. No templo também havia quinze degraus. Os cânticos graduais entre os salmos são igualmente quinze. A água do dilúvio ultrapassou de quinze côvados os mais altos montes (cf Gn 7,20).

E este número sagrado é recomendado em algumas outras passagens. Portanto, “nossos anos são como teias de aranha”.

Estávamos em trabalhos no meio das coisas corruptíveis, e tecíamos obras corruptíveis. Estas, conforme diz Isaías profeta, não nos cobriam de forma alguma (cf Is 59,6).

A duração de nossos anos é em si de setenta anos, no máximo, para os mais fortes oitenta”.

Difere:

em si” e:

para os mais fortes”.

Em si”, isto é, por dias e anos se entendem as coisas temporais. Por isso são “setenta”, porque o Antigo Testamento parece prometer bens temporais, “E para os mais fortes”, não quanto aos anos em si, a saber, não quanto aos bens temporais, mas em relação aos eternos, “oitenta”, visto que o Novo Testamento contém a esperança da renovação e da ressurreição eternamente.

Os excedentes são de trabalho e dor”, isto é, quem vai além da fé e procura algo mais, encontra trabalho e dor. É possível interpretar também assim: Embora estejamos estabelecidos no Novo Testamento, significado pelo número oitenta, esta nossa vida tem além disso trabalho e dor, porque gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois fomos salvos em esperança; e se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos (cf Rm 8,23-25).

E isto é devido à misericórdia de Deus; daí vem que o salmista prossegue:

Pois sobrevém a debilidade e somos corrigidos”.

O Senhor educa a quem ele ama, e castiga todo filho que ele acolhe (cf Hb 12,6).

E dá aguilhão na carne, para espancar, a fim de que ele não se encha de soberba devido à grandeza das revelações, de tal sorte que a virtude se aperfeiçoe na fraqueza (cf 2Cor 12,7-9).

Na verdade, alguns códices não trazem “somos corrigidos”, mas “instruídos”, o que reverte na mesma debilidade. Não se recebe instrução sem trabalho e dor, porque a virtude se aperfeiçoa na fraqueza.



§ 11
11.12 “Quem conhece o poder de tua ira e sabe avaliá-la de acordo com o temor que inspiras?” São muito poucos os homens que conhecem o poder de tua ira; porque na maior parte dos casos de tal modo poupas ao te irares que mais convém à tua mansidão o trabalho e a dor, com os quais corriges e instruis aqueles que amas, a fim de não serem eternamente atormentados; pois assim se lê em outro salmo:

O pecador irritou o Senhor. Na intensidade de sua cólera, nada exigirá(Sl 10,4).

Quem, portanto, conhece”, isto é, quantos são os que conhecem “o poder de tua ira e sabe avaliá-la de acordo com o temor que inspiras?” Também aqui se subentende:

Quem conhece?” Como é difícil encontrar quem saiba avaliá-la de acordo com o temor que inspiras, de tal modo que se acrescente (e se entenda que pertence a esta ira) que aparentemente poupas a alguns, contra os quais a tua ira é mais intensa, a fim de que o pecador prospere em seu mau caminho, mas receba castigos maiores nos últimos tempos? Efetivamente, quanto à ira humana, uma vez que mate o corpo não tem mais o que fazer; Deus, porém, tem o poder de punir aqui, e depois da morte lançar na geena (cf Mt 10,28).

E poucos são os bem instruídos que compreendem ser maior a ira de Deus quando ele concede aos ímpios uma felicidade vã e sedutora. Não tinha conhecimento disso aquele cujos pés quase escorregaram, ao ter inveja dos maus, observando a paz dos pecadores, mas que o soube ao entrar no santuário de Deus e perceber qual a sua sorte final (cf Sl 72,2.3.17).

Poucos entram nesse santuário, de sorte a perceberem como avaliar a ira de Deus de acordo com o temor que ele inspira, e considerarem a prosperidade dos maus como sendo do número de seus castigos.



§ 12
Manifesta assim a tua destra”.

Esta formulação se encontra mais nos códices gregos; não é conforme se acha em alguns latinos:

Manifesta-me a tua destra”.

Que significa:

Manifesta assim a tua destra”, a não ser teu Cristo, do qual foi dito:

A quem se revelou o braço do Senhor?(Is 53,1).

Manifesta de tal modo que aprendam teus fiéis que é de ti que devem pedir e esperar os prêmios concedidos à fé. Eles não aparecem no Antigo Testamento, mas se revelam em o Novo Testamento. Que eles não tenham em grande conta, como algo de desejável e aprazível, a felicidade dos que possuem bens terrenos e temporais. Seus pés não resvalem ao verificarem que a têm mesmo aqueles que não te adoram, e seus passos não os arrastem a uma queda, porque não sabem avaliar qual a tua ira. Enfim, de acordo com a prece deste homem de Deus, ele manifestou seu Cristo, de sorte que na paixão demonstrou não serem desejáveis aqueles dons, sombras dos bens futuros, que o Antigo Testamento parece anunciar, e sim os eternos. É possível ainda entender a destra de Deus no sentido de que ela há de separar os justos dos ímpios. Ela assim se manifesta claramente, quando Deus castiga todo filho que ele acolhe (cf Hb 12,6), não o deixando pro-gredir no meio de seus pecados, por uma ira maior, mas com mansidão o castiga à esquerda, a fim de que, depois de emendado, seja colocado à direita (cf Mt 25,32.33).

Também a forma que se encontra em alguns códices:

Manifesta-me a tua direita” pode referir-se aos dois sentidos: a Cristo ou à eterna felicidade; pois Deus não possui uma direita corporal, como não sofre emoções tumultosas de ira.



§ 13
Quanto ao acréscimo:

E os corações dos que têm os pés presos nos grilhões pela sabedoria”.

Alguns códices não trazem:

presos em grilhões”, mas “instruídos”.

As palavras gregas que têm um e outro sentido soam de modo quase igual, diferindo apenas um pouco numa silaba só. Mas, como são instruídos pela sabedoria os que têm presos, conforme está escrito:

os pés nos grilhões(Eclo 6,25), (não os pés do corpo, mas os do coração), e assim aprisionados como que com vínculos de ouro não desviam do caminho de Deus, nem dele fogem, seja como for que se leia, fica salvo o sentido verdadeiro. Pois, foi a estes “que têm os pés nos grilhões”, ou que não são instruídos pela sabedoria” que Deus fez conhecidos em o Novo Testamento, de tal modo que eles por causa da fé que a impiedade dos judeus e dos gentios detestava, tudo desprezavam. Também suportavam serem privados dos bens prometidos no Antigo Testamento, que eram tidos por muito importantes por aqueles que julgavam carnalmente.



§ 14
13 E como eles se mostravam de tal modo que tudo desprezavam e seus sofrimentos atestavam seus anelos pelos bens eternos (daí serem denominados testemunhas, sentido da palavra grega: mártires) padeceram muitos tormentos e muitos males e torturas temporais. A isto dá a atenção devida este homem de Deus, e o espírito profético, figurado no vocábulo Moisés, dizendo:

Volta-te para nós, Senhor. Até quando? E sê propício a teus servos”.

Trata-se da voz daqueles (ou de uma voz em seu favor) que, devido às perseguições deste mundo, toleram muitos males, e revelam que estão seus corações presos por grilhões impostos pela sabedoria, de sorte que nem coagidos por tantos males abandonam o Senhor, procurando os bens deste mundo. Conforme as palavras de outra passagem:

Até quando me esconderás a tua face?(Sl 12,1), aqui se diz:

Volta-te para nós, Senhor. Até quando?” E para que saibam os que de maneira muito carnal atribuem a Deus a forma de um corpo humano que não é por movimentos semelhantes aos de nosso corpo que Deus esconde a sua face ou a volta para nós, recordem-se das palavras mais acima do mesmo salmo:

Puseste diante de ti os nossos pecados e a nossa vida à luz de teu rosto”.

Como, então, diz aqui o salmista:

Volta-te para seres propício, como se houvesse escondido a sua face quando estava irado, enquanto ali, no outro versículo, se insinua que ele estava irado de tal modo que não apartava a sua face diante das iniqüidades e da vida que os pecadores levavam irritando-o, mas ao contrário punha os pecados diante de si e à luz de seu rosto? A expressão:

Até quando” demonstra a justiça daquele que ora e não a impaciência de alguém que estivesse indignado. Com efeito, o termo que aqui se encontra:

Sê propício” foi traduzido por alguns por um derivado do verbo “rogar”.

Mas a versão:

Sê propício” evita uma ambigüidade, porque o verbo rogar (deprecari) tem sentido ativo e passivo; pois roga (depre-catur) aquele que faz a prece e roga-se aquele que é rogado. Pois, diz-se em latim: Deprecor te, rogo-te, e: Desprecor a te, tu me rogas.



§ 15
14.15 Em seguida, declara o salmista, antecipando pela esperança e considerando como já obtidos os bens futuros:

De manhã fomos cumulados com tua misericórdia”.

Por conseguinte, em meio aos labores e dores por assim dizer noturnos, a profecia é para nós uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações (cf 2Pd 1,19).

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Então os justos serão repletos daquele bem pelo qual agora têm fome e sede (cf Mt 5,8.6), pois caminham pela fé, longe do Senhor (cf 2Cor 5,6.7).

Daí provém igualmente a palavra:

Encher-me-ás de alegria ante a tua face(Sl 15,11).

Desde a manhã estarão diante de ti e verão (Sl 5,5).

Conforme escreveram alguns tradutores:

De manhã fomos saciados com tua misericórdia”, então serão saciados, segundo foi dito em outra passagem:

Serei saciado ao se manifestar a tua glória(Sl 16,15).

Daí também:

Mostra-nos o Pai e isto nos basta” e o Senhor disse:

A ele me manifestarei(Jo 14,8.21).

Até que isto se realize, nada de bom nos basta, nem deve bastar, a fim de que nosso desejo não se extinga no caminho, enquanto devia se estender até alcançar o fim.

De manhã fomos cumulados com tua misericórdia. Exultamos e nos alegramos em todos os nossos dias”.

Aquele dia é o dia sem fim. São dias simultâneos e por isso saciam. Não são dias que se sucedem; e não dias que ainda não existam porque não vieram ainda, e quando chegam deixam de existir. Todos são simultâneos, porque é um só dia que permanece e não passa: isto é eternidade. Desses dias é que se disse:

Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?(Sl 33,13).

Em outro trecho esses dias são denominados anos; ali dirigimo-nos a Deus:

Tu és sempre o mesmo e teus anos não terminam”.

Não são anos que são tidos por nada, ou dias que passam como sombra (Sl 101,28.12), mas são dias cujo número queria saber aquele que assim suplicava:

Fazei-me conhecer, Senhor, o meu fim(que eu o alcance e lá permaneça, sem mais nada desejar), “e qual é o número de meus dias”; isto é, aqueles “que são” e não os que não são. Pois, estes dias, citados logo em seguida:

Eis que reduziste meus dias à velhice(Sl 38,5.6), não são porque não param, não perduram, mas transcorrem com rapidíssima mutabilidade. Nem uma só hora neles se encontra em que estamos de tal forma que alguma parte dele não deixe de passar, que não venha outra, e que nenhuma persista em existir. Todavia, anos e dias que não passam são aqueles em que nós não desfaleceremos, mas seremos refeitos sem defi-ciências. Que nossa alma se inflame no desejo daqueles dias, com ardor e veemência tenha sede deles, de sorte que lá então sejamos cumulados, saciados e repitamos o que aqui proferimos de antemão:

De manhã fomos cumulados com tua misericórdia. Exultamos e nos alegramos em todos os nossos dias. Regozijamo-nos pelos dias em que nos humilhaste, pelos anos em que experimentamos males”.



§ 16
16 Agora, porém, em dias que ainda são maus, digamos o que segue:

Olha teus servos e tuas obras”.

Teus servos são tuas obras, não apenas enquanto homens, mas também como teus servos, isto é, obedientes às tuas ordens. Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus (não somente em Adão), para as boas obras que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos (cf Ef 2,10).

Pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade (cf Fl 2,13).

E dirige os filhos deles”, para que sejam retos de coração. Pois, para eles Deus é bom. Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração. Não como aquele cujos pés se abalaram, porque observando a paz dos pecadores começara a Deus a lhe desagradar; como se Deus desconhecesse estas coisas, ou delas não se preocupasse, descuidando do governo do gênero humano (cf Sl 72,1-14).



§ 17
17 “Sobre nós repouse o esplendor do Senhor nosso Deus”.

Daí também a palavra:

Está assinalada, em nós, Senhor, a luz de tua face(Sl 4,7).

Governa as obras de nossas mãos”, de tal maneira que não obremos tendo em vista lucro terreno, pois então não seriam retas, mas curvas. Assim este salmo consta em muitos códices; mas em alguns lê-se mais outro versículo no fim:

Sim, favorece a obra de nossas mãos”.

Os estudiosos e peritos marcam este versículo com uma estrela, chamada asterisco, assinalando as palavras que se encontram no texto hebraico, ou em traduções gregas, mas não na versão dos Setenta. Se quisermos expor o sentido deste versículo, a meu ver, tem o significado de que todas as nossas boas obras constituem a obra única da caridade, pois a caridade é a plenitude da lei (cf Rm 13,10).

Pois, no versículo anterior tendo dito:

Governa as obras de nossas mãos”, neste último não traz:

obras” e sim:

favorece a obra de nossas mãos”.

Parece no último versículo querer mostrar que as obras constituem uma só, isto é, encaminham para uma só. São retas as obras que se encaminham para um único fim: o fim dos preceitos é a caridade, que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia (cf 1Tm 1,5).

Por conseguinte, uma só é a obra, que encerra todas as outras, a fé que age pela caridade (cf Gl 5,6).

Por isso, diz o Senhor no evangelho:

A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou(Jo 6,29).

Tendo em mira que neste salmo encontram-se bem e claramente distintas a vida antiga e a vida nova, a vida mortal e a vida vital, os anos que são tidos como nada e os dias que contêm a plenitude da mi-sericórdia e da verdadeira alegria, isto é, a pena do primeiro homem e o reino do segundo, julgo que o salmo tem inscrito no título o nome de Moisés, homem de Deus, a fim de que fosse insinuado aos que com piedade e retidão perscrutam as Escrituras que também a lei de Deus, promulgada através de Moisés, onde aparentemente Deus promete em recompensa às boas obras somente ou quase só bens terrenos, sem dúvida contém veladamente tais prêmios quais este salmo manifesta. Mas ao se converter alguém a Cristo, o véu cai (cf 2Cor 3,16), e abrem-se seus olhos para contemplar as maravilhas da lei de Deus, por dom daquele ao qual suplicamos:

Desvenda meus olhos para contemplar as maravilhas de tua lei(Sl 118,10).