ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 88 | ||
§ 88:1 | Ơ Ó Senhor, Deus da minha salvação, dia e noite clamo diante de ti. | |
§ 88:2 | Ƈ Chegue à tua presença a minha oração, inclina os teus ouvidos ao meu clamor; | |
§ 88:3 | ᵽ porque a minha alma está cheia de angústias, e a minha vida se aproxima do Seol. | |
§ 88:4 | Ʝ Já estou contado com os que descem à cova; estou como homem sem forças, | |
§ 88:5 | ɑ atirado entre os finados; como os mortos que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras, e que são desamparados da tua mão. | |
§ 88:6 | Ꝓ Puseste-me na cova mais profunda, em lugares escuros, nas profundezas. | |
§ 88:7 | ᶊ Sobre mim pesa a tua cólera; tu me esmagaste com todas as tuas ondas. | |
§ 88:8 | Ɑ Apartaste de mim os meus conhecidos, fizeste-me abominável para eles; estou encerrado e não posso sair. | |
§ 88:9 | Ꝋ Os meus olhos desfalecem por causa da aflição. Clamo a ti todo dia, Senhor, estendendo-te as minhas mãos. | |
§ 88:10 | ɱ Mostrarás tu maravilhas aos mortos? ou levantam-se os mortos para te louvar? | |
§ 88:11 | ᶊ Será anunciada a tua benignidade na sepultura, ou a tua fidelidade no Abadom? | |
§ 88:12 | ᶊ Serão conhecidas nas trevas as tuas maravilhas, e a tua justiça na terra do esquecimento? | |
§ 88:13 | ⱻ Eu, porém, Senhor, clamo a ti; de madrugada a minha oração chega à tua presença. | |
§ 88:14 | ᶊ Senhor, por que me rejeitas? por que escondes de mim a tua face? | |
§ 88:15 | ⱻ Estou aflito, e prestes a morrer desde a minha mocidade; sofro os teus terrores, estou desamparado. | |
§ 88:16 | ᶊ Sobre mim tem passado a tua ardente indignação; os teus terrores deram cabo de mim. | |
§ 88:17 | Ƈ Como águas me rodeiam todo o dia; cercam-me todos juntos. | |
§ 88:18 | Ɑ Aparte de mim amigos e companheiros; os meus conhecidos se acham nas trevas. | |
O SALMO 88 | ||
I SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Acolhei bem este salmo, do qual nos propusemos falar a V. Caridade, e que trata da esperança que temos em Cristo Jesus nosso Senhor. Tende ânimo, porque aquele que prometeu, tendo realizado muitas de suas promessas, há de cumprir igualmente as restantes. Inculte-nos confiança, não os nossos merecimentos, mas a sua misericórdia. Ele próprio é, a meu ver, a “Instrução de Etan israelita”1, que intitula este salmo. Verificarás, pois, quem foi que teve o nome de Etan. Este nome traduz-se por Robusto. E ninguém neste mundo é robusto, a não ser apoiado na esperança das promessas de Deus. No que toca a nossos merecimentos, somos fracos; quanto a sua misericórdia, somos robustos. Portanto, este fraco em si mesmo, e robusto pela misericórdia de Deus, assim começa: | |
§ 2 | 2 “Eternamente cantarei as tuas misericórdias, Senhor. De geração em geração anunciarei por minha boca a tua verdade”. Obedeçam meus membros a meu Senhor; falarei, mas do que é teu; “anunciarei por minha boca a tua ver-dade”. Se não obedeço, não sou servo; se falo de mim mesmo, sou mentiroso. Em conseqüência, falarei o que vem de ti, e falarei eu mesmo. Duas realidades: uma tua, outra minha; tua verdade, minha boca. Ouçamos qual a verdade que o salmo anunciará, quais as misericórdias que cantará. | |
§ 3 | 3 “Porque disseste: A misericórdia será edificada para sempre”. É isto que canto; tal é tua verdade e minha boca se emprega em anunciá-la. “Porque disseste: A misericór-dia será edificada para sempre”. Dizes: Edifico para não destruir, pois destróis a alguns para não edificar, enquanto a outros destróis para edificar. Se alguns não fossem destruídos para serem edificados, não se diria a Jeremias: “Vê! Eu te constituo para destruir e para construir” (cf Jr 1,10). Com efeito, todos os que adoravam a ídolos e serviam a pedras, não eram edificados em Cristo, se não fossem primeiro destruídos, quando estavam no antigo erro. De outro lado, se alguns não fossem destruídos para serem edificados, não se diria: “Tu os destruirás e não os restabelecerás” (Sl 27,5). Tendo em vista aqueles, pois, que são destruídos para serem edificados, a fim de que não pensassem ser apenas temporal a construção em que entram, como foi temporal a ruína que sofreram, prende-se o salmista, cuja boca serve a verdade de Deus, a própria verdade de Deus. Por isso anunciarei, por isso falo: “Porque disseste”. Sou homem, mas falo com segurança, porque tu, ó Deus, disseste. Embora hesitasse em minha palavra, serei confirmado pela tua. “Porque disseste”. Que disseste? “A misericórdia será edificada para sempre. Nos céus estabeleceste a tua verdade”. A continuação é igual ao que foi dito mais acima. “As tuas misericórdias, Senhor”, diz o salmista, “cantarei eternamente. De geração em geração anunciarei por minha boca a tua verdade”. Falou em misericórdia, falou em verdade. Novamente põe em conexão as duas: “Porque disseste: A misericórdia será edificada para sempre. Nos céus estabeleceste a tua verdade”. Aqui o salmista repetiu misericórdia e verdade. “Pois, todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” (Sl 24,10). Não apareceria a verdade no cumprimento das promessas, se não precedesse a misericórdia no perdão dos pecados. Em seguida, como ao povo de Israel, mesmo segundo a carne, proveniente da raça de Abraão, profeticamente foram feitas muitas promessas, e assim se propagou o povo em que se cumpririam as promessas de Deus, contudo Deus não exauriu a fonte de sua bondade relativamente aos povos estrangeiros, que deixara sob o governo dos anjos, reservando para si o povo de Israel. Entre esses dois povos o Apóstolo distintamente distribui a misericórdia e a verdade do Senhor. Pois assim se exprime: “Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a verdade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais” (Rm 15,8). Eis que Deus não os enganou; ele não repeliu seu povo, que conheceu de antemão. De fato, ao se tratar da queda dos judeus, a fim de que não se julgasse que eles foram reprovados de tal modo que nada do trigo naquela ventilação restasse para ser colocado nos celeiros, disse o Apóstolo: “Não repudiou Deus o seu povo que de antemão conhecera. Pois eu também sou israelita” (Rm 11,2.1). Se o povo todo era espinho, como vos falo de grão? Portanto, fora cumprida a verdade de Deus naqueles dentre os israelitas que acreditaram, e veio uma das paredes, a da circuncisão, apoiar-se na pedra angular (cf Ef 2,20). Mas aquela pedra não fecharia o ângulo se outra parede, a dos gentios, não fosse recebida. Portanto, a primeira parede refere-se propriamente à verdade, e a segunda à misericórdia. “Pois eu vos asseguro que Jesus Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a verdade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais; ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a misericórdia” (Rm 15,8.9). Com razão, “no céu estabelecerás a tua verdade”. Efetivamente, todos aqueles israelitas que foram chamados apóstolos, se tornaram céus que narram a glória de Deus. Destes céus foi dito: “Narram os céus a glória de Deus e proclama o firmamento a obra de suas mãos”. E a fim de que se saiba que se refere a estes céus, é certo que trata deles mais claramente no versículo: “Não são linguagens, nem são discursos, sons imperceptíveis”. À pergunta de quem são esses sons, encontra-se apenas por resposta que eles vêm dos céus. Se, portanto, trata-se dos apóstolos, cuja voz se ouve nas línguas de todos, também é relativo a eles o versículo: “Seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,2.4.5). Não obstante terem sido enunciadas estas palavras antes que a Igreja enchesse o orbe da terra, suas palavras chegaram até os confins da terra. É exato interpretar que neles se realizou o que agora lemos: “Nos céus estabelecerás a tua verdade”. | |
§ 4 | 4 “Concluí uma aliança com os meus eleitos. Porque disseste” (subtende-se) tudo isso: “Concluí uma aliança com os meus eleitos”. Que aliança, testamento, senão o novo? Que testamento senão o que nos renova para obtermos nova herança? Que testamento, a não ser o que nos leva a cantar o cântico novo, devido ao amor e desejo da herança que nos traz? “Concluí uma aliança com os meus eleitos. Jurei a Davi, meu servo”. Quem comprende a certeza com que fala aquele cuja boca serve a verdade? Porque disseste, também falo com toda certeza. Se me sinto seguro porque tu disseste, quanto não será maior a certeza se juraste? Juramento de Deus é a confirmação da promessa. É bom proibir ao homem jurar (cf Mt 5,34) pelo perigo proveniente de cair no perjúrio, levado pelo hábito de jurar, uma vez que o homem pode se enganar. Somente Deus pode jurar com segurança, porque não pode se enganar. | |
§ 5 | 5 Vejamos, então, o que Deus jurou. “Jurei a Davi, meu servo: Para sempre conservarei a tua linhagem”. Qual a linhagem de Davi, a não ser a descendência de Abraão? Qual a descendência de Abraão? “E à tua descendência, que é Cristo” (Gl 3,16). Mas, talvez aquele Cristo, Cabeça da Igreja, salvador do corpo” (cf Ef 5,23), é da descendência de Abraão e por conseguinte, de Davi, enquanto nós não somos da descendência de Abraão? Ao contrário, somos, conforme afirma o Apóstolo: “E se vós sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3,29). Entendamos, irmãos, o presente versículo: “Para sempre conservarei a tua linhagem”, não somente como relativo à carne de Cristo, nascida da virgem Maria, mas também a nós todos, que acreditamos em Cristo; somos membros daquela Cabeça. É impossível degolar este corpo. Se a Cabeça perdura eternamente, eternamente os membros são glorificados, de tal sorte que Cristo permanece íntegro eternamente. “Para sempre conservarei a tua linhagem. De geração em geração firmarei o teu trono”. Temos a opinião de que “para sempre” é sinônimo de: “de geração em geração”. Mais acima, dissera o salmista: “De geração em geração anunciarei por minha boca a tua verdade”. Que significa: “De geração em geração?” Em todas as gerações. Não era preciso repetir a palavra cada vez que uma geração vem e passa. Portanto, a multiplicação das gerações é assinalada pela repetição, que também a relembra. Ou acaso divíamos entender duas gerações, como já sabeis, como vos recordais que foi insinuado a V. Caridade? Pois, existe agora a geração da carne e do sangue: e haverá a geração futura por ocasião da ressurreição dos mortos. Cristo agora é anunciado, e será anunciado então; mas agora é anunciado para que se creia nele, enquanto então será anunciado para ser visto. “De geração em geração firmarei o teu trono”. Agora Cristo em nós tem o seu trono; este foi estabelecido em nós. Se não firmasse em nós o seu trono, não nos governaria. Se por ele não formos governados, por nós mesmos nos lançaremos num precipício. Tenha seu trono em nós, reine em nós. Terá também seu trono em outra geração, a que vem da ressurreição dos mortos. Cristo reinará eternamente em seus santos. Deus o prometeu, o disse. Se ainda é pouco dizer isto, foi Deus quem o jurou. A promessa é firme, não segundo nossos merecimentos, mas segundo sua misericórdia. Ninguém deve anunciar com hesitações, quando não há possibilidade de dúvida. Surja, portanto, em nossos corações aquela força, de onde provém o nome de Etan. Fortes de coração. Preguemos a verdade de Deus, a palavra de Deus, as promessas de Deus, o juramento de Deus; desta forma, robustecidos de todos os lados, e sendo portadores de Deus, sejamos outros céus. | |
§ 6 | 6 “Celebrarão os céus as tuas maravilhas, Senhor”. Os céus não celebrarão seus próprios méritos, mas “celebrarão os céus as tuas maravilhas, Senhor”. Quando se exerce a misericórdia para com os homens perdidos, e são justificados os ímpios, que louvamos senão as maravilhas de Deus? Louvas porque alguns mortos ressuscitaram; deves louvar mais ainda porque foram remidos os que estavam perdidos. Que graça, que misericórdia de Deus! Conheces um homem, ontem preso na voragem da embriaguez e hoje ornado de sobriedade; vês um homem ontem no lodo da luxúria, hoje com a beleza da temperança; vês um homem, ontem blasfemador de Deus, hoje a louvá-lo; vês um homem, ontem escravo de uma criatura, hoje adorador do Criador. De todos estes estados desesperadores, convertem-se homens. Não considerem os próprios méritos; tornem-se céus, confessem os céus as maravilhas daquele que fez os céus. “Quando contemplo os céus, lavor de teus dedos” (Sl 8,4). “Celebrarão os céus as tuas maravilhas, Senhor”. A fim de tomares conhecimento de que os céus celebrarão, vê onde celebrarão. Pois, continua o salmo: “E na assembléia dos santos a tua verdade”. Quanto aos céus não há dúvida, porque representam os pregadores da palavra da verdade. E onde celebrarão os céus as tuas maravilhas e a tua verdade? “Na assembléia dos santos”. A Igreja apanhe o orvalho dos céus; os céus derramem a chuva sobre a terra sedenta, e esta recebendo a chuva fará germinar as boas sementes, as boas obras, a fim de que a chuva boa não faça brotar espinhos, e em vez de ir para o celeiro estes sejam lançados no fogo. “Celebrarão os céus as tuas maravilhas, Senhor, e na assembléia dos santos a tua verdade”. Conseqüentemente, os céus celebrarão as tuas maravilhas e a tua verdade. Tudo o que anunciam os céus provém de ti, deriva de ti, e por isso anunciam com toda segurança. Estão cientes de quem é aquele que anunciam, e não podem se corar dele. | |
§ 7 | 7 Que celebram os céus? Que confessa a Igreja dos santos? “Pois quem nas nuvens se igualará ao Senhor?” Isto é que confessam os céus, como fazem chover? O quê? “Quem nas nuvens se igualará ao Senhor?” Daí se origina a segurança dos pregadores, porque ninguém nas nuvens se iguala ao Senhor. Pode parecer-vos, irmãos, grande louvor dizer que nas nuvens não há quem se iguale ao Criador. Se entendermos isso segundo a letra, abstraindo do mistério, não constitui grande louvor não haver quem se iguale ao Senhor, nas nuvens. E então? As estrelas que se situam além das nuvens se igualam ao Senhor? Como? O sol, a lua, os anjos, os céus, podem ao menos eles ser comparados ao Senhor? Que importância tem a declaração: “Quem nas nuvens se igualará ao Senhor?” Opinamos, irmãos, que estas nuvens, assim como os céus, são os pregadores da verdade: profetas, apóstolos, pregadores da palavra de Deus. Pois, todas essas espécies de pregadores são chamadas nuvens, na profecia em que Deus, irado contra sua vinha, disse: “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela”. O profeta explica que vinha é esta e claramente a designa nestes termos: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel” (Is 5,6.7). No intuito de que não entendas incorretamente, e olhes para a terra em vez de perscrutar os homens aqui representados, disse o profeta: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel”. Não se interprete de outra maneira, mas se entenda que minha vinha é a casa de Israel. Compreendia-se que não deu uvas, mas espinhos; que se demonstrou ingrata àquele que a plantou e cultivou, ingrata para quem a irrigou. Portanto, se “a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel”, que proferiu ele em sua ira? “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela”. E de fato assim agiu. Os apóstolos foram enviados como nuvens que deviam derramar a chuva sobre os judeus; mas estes, repelindo a palavra de Deus, uma vez que produziram espinhos em lugar de uvas, disseram os apóstolos: “Era primeiro a vós que devíamos anunciar a palavra de Deus. Como a rejeitais, nós nos voltamos para os gentios” (At 13,46). Desde então as nuvens começaram a não derramar mais sua chuva sobre aquela vinha. Se, portanto, as nuvens são os pregadores da verdade, perguntemos primeiro por que são nuvens. São, na verdade, céus e são nuvens: céus devido ao fulgor da verdade, nuvens por causa do esconderijo da carne. Pois, as nuvens são nevoentas, devido à mortalidade; vêm e passam. Devido ao esconderijo da carne, isto é, o que as nuvens ocultam, diz o Apóstolo: “Não julgueis prematuramente, antes que venha o Senhor. Ele porá às claras o que está oculto nas trevas” (1 Cor 4,5). Efetivamente, agora ouves o que diz o homem, mas não vês o que ele tem no coração. Ouves o que se exprime de dentro da nuvem, mas não vês o que está reservado dentro dela. Quais os olhos que penetram as nuvens? Por conseguinte, são nuvens os pregadores da verdade em sua carne. O próprio Criador de todos os homens veio encarnado. “Mas quem nas nuvens se igualará ao Senhor? Quem, portanto, nas nuvens se igualará ao Senhor? Quem é semelhante a ele entre os filhos de Deus?” Em conseqüência, ninguém dentre os filhos de Deus será semelhante ao Filho de Deus. Ele foi denominado Filho de Deus, e nós somos chamados filhos de Deus, mas “quem é semelhante a ele entre os filhos de Deus?” Ele é único, nós somos muitos; ele é um só, e nós somos um nele; ele por nascimento, nós por adoção; ele eternamente Filho gerado por natureza, nós no tempo criados por graça; ele sem pecado algum, nós por meio dele libertados do pecado. “Quem, portanto, nas nuvens se igualará ao Senhor? Quem é semelhante a ele entre os filhos de Deus? “Somos denominados nuvens por causa da carne, e somos pregadores da verdade devido à chuva que cai das nuvens; mas nossa carne nos adveio de maneira diferente da carne do Filho de Deus. Chamamo-nos também filhos de Deus, mas ele é Filho de Deus de modo diferente. Sua nuvem provém da virgem, e ele é Filho desde toda eternidade, igual ao Pai. “Quem, portanto, nas nuvens se igualará ao Senhor? Quem é semelhante a ele dentre os filhos de Deus?” Diga-nos o próprio Senhor se ele encontra alguém que lhe seja semelhante. “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” De fato, sou visível, sou visto, porque ando no meio de vós, e talvez depreciado ao estar presente; dizei: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” Eles certamente vêem o Filho do homem, vêem a nuvem; falem; ou antes falai: “Quem dizem os homens que eu sou?” E eles responderam com as palavras dos homens: “Uns afirmam que é Jeremias, outros que é Elias, outros ainda que é João Batista ou um dos profetas” (Mt 16,13-16). Foram mencionadas muitas nuvens e muitos filhos de Deus. Com efeito, são justos e santos, e são filhos de Deus: Jeremias, Elias, João são filhos de Deus; e são nuvens porque pregadores de Deus. Respondestes que espécie de nuvens os homens pensam que eu sou, e entre quais filhos de Deus eles me enumeram; dizei também vós “quem dizeis que eu sou”. Pedro respondeu em nome de todos, um respondeu pela unidade: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,13-16). Porque quem nas nuvens se igualará ao Senhor? Ou quem será semelhante ao Senhor entre os filhos de Deus? “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”, não, porém, como os demais filhos de Deus que não se igualam a ti. Vieste na carne, mas não de modo semelhante às nuvens, que não se igualam a ti. 1 Cf. Com s/ Sl 97, 1,44. | |
§ 8 | 8 Quem, então, és tu, que obtiveste a resposta: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo?” Quem és tu que alguns homens que não eram santos, nem justos, pensaram que era Elias, ou Jeremias, ou João Batista? Quem és tu? Ouve como continua o salmo: “Deus há de ser glorificado no conselho dos justos. Quem, portanto, nas nuvens se igualará ao Senhor? Ou quem semelhante a ele entre os filhos de Deus”, quando ele “é Deus que há de ser glorificado no conselho dos justos?” Visto que não podem ser iguais a ele, o conselho dos justos leva a acreditar nele; uma vez que não podem as nuvens ser iguais a ele, nem os filhos de Deus, resta um conselho à fragilidade humana, o de que aquele que se gloria, se glorie no Senhor (cf 1Cor 1,31). “Deus há de ser glorificado no conselho dos justos. Ele é grande e terrível entre todos aqueles que estão ao seu redor”. Deus está em toda parte. Quem, então, está ao redor daquele que está em toda parte? Pois, se tem alguns ao seu redor, entende-se que é finito de algum lado. Contudo, se é verdade o que foi dito a Deus e a seu respeito: “Sua grandeza não tem limites” (Sl 144,3), como os restantes estarão ao seu redor, a não ser que se pense que aquele que está em toda parte quis, segundo a carne, nascer num determinado lugar, viver num determinado povo, ser crucificado em certo lugar, ressuscitar em outra parte, de um monte subir ao céu? Fez tudo isso, e estava cercado de povo. Mas se ele permanecesse nos lugares onde isto aconteceu, não seria “grande e terrível entre todos aqueles que estão ao seu redor”. Ao invés, tendo ali pregado e dali enviado pregadores de seu nome por todas as nações da terra inteira, fazendo milagres por intermédio de seus servos, ele se tornou “grande e terrível entre todos aqueles que estão ao seu redor”. | |
§ 9 | 9 “Senhor Deus dos exércitos quem te é semelhante? És poderoso, Senhor, e a tua verdade te cerca”. Grande é teu poder; criaste o céu e a terra, e tudo que eles contêm; tua misericórdia, porém, é ainda maior, tendo demonstrado a tua verdade em torno de ti. Se tivesses sido anunciado somente onde quiseste nascer, padecer, ressurgir, e subir ao céu; ter-se-ia verificado a verdade das promessas de Deus, no “cumprimento das promessas feitas aos pais”, mas não se teria realizado a palavra: “Ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a sua misericórdia” (Rm 15,8.9), a não ser que se expandisse aquela verdade, e partindo daquele lugar onde quiseste aparecer, se difundisse ao redor. Tu, com efeito, naquele lugar trovejaste de uma nuvem própria, mas enviaste outras nuvens para que chovesse ao redor, em benefício das nações. Verdadeiramente, cumpriste com poder o que disseste: “De ora em diante, vereis o Filho do homem vir sobre as nuvens do céu” (Mt 26,64; 24,30). “És poderoso, Senhor, e a tua verdade te cerca”. | |
§ 10 | 10 Todavia, ao começar a ser anunciada a tua verdade em torno, as nações se agitaram e os povos tramaram em vão; os reis da terra se sublevaram e os príncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo (Sl 2,1.2). De fato, ao começar a ser anunciada a tua verdade ao redor, como se viesses para tomar uma esposa no meio de um povo estrangeiro, veio ao teu encontro um leão, a rugir, que tu sufocaste. Isto foi prefigurado em Sansão (cf Jz 14,5.6). Se não conhecêsseis a história, não teríeis aclamado quando proferi aquelas palavras, sem o ter nomeado. Ouvistes, como alguém acostumado a receber as chuvas que caem das nuvens de Deus. Portanto, “a tua verdade te cerca”. Mas quando viveu Cristo sem perseguições, sem contradições, tendo sido predito que ele nascera como sinal de contradição? (cf Lc 2,34). Levando em consideração que o povo, onde te dignaste nascer e viver era habitante de uma terra de certa maneira separada das vagas dos gentios, de sorte que parecia sedenta de chuva, as demais nações constituíam um mar devido à amargura de sua esterilidade, como agem os teus pregadores a espalharem a verdade ao redor, enquanto estavam revoltas as ondas do mar? Como agem? “Dominas o poder do mar”. Pois qual o resultado da fúria do mar, senão a festa que hoje celebramos? Ele matou os mártires, espargiu as sementes do sangue e foram abundantes as colheitas da Igreja. Por conseguinte, avancem as nuvens com toda segurança; difundam a tua verdade em torno de ti, não temam as ondas raivosas: “Dominas o poder do mar”. De fato, o mar se agita, se opõe, ruge, mas Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças (cf 1Cor 10,13). Uma vez que é fiel quem não permite sejais tentados acima de vossas forças: “Amainas as ondas revoltas”. | |
§ 11 | 11 Finalmente, para aplacar o mar, ou antes para acalmar a raiva do mar, que fizeste ao próprio mar? “Humilhaste, como a um ferido, o soberbo”. Existe no mar um dragão soberbo, mencionado em outra passagem da Escritura: “Lá eu ordenarei ao dragão que o morda” (Am 9,3). Trata-se do dragão do qual foi dito: “Este dragão que plasmaste para dele zombar” (Sl 103,26), cuja cabeça se debate acima das águas. Tu, diz o salmo, “humilhaste, como a um ferido, o soberbo”. Tu te humilhaste e com isto o soberbo foi humilhado. Pois, o soberbo, pela soberba, prendia os orgulhosos. Aquele que é grande se humilhou e quem nele acreditou se fez pequeno. Enquanto se nutre o pequeno com o exemplo daquele que é grande mas se fez pequeno, o diabo perdeu aquele que ele mantinha preso, porque sendo ele soberbo só podia prender os soberbos. Diante de tamanho exemplo de humildade do Senhor, os homens aprenderam a condenar sua própria soberba, e a imitar a humildade de Deus. Desta forma, o diabo perdendo aqueles que ele conservava prisioneiros, também ele foi humilhado. Não que se tenha corrigido, mas porque foi prostrado. “Humilhaste, como a um ferido, o soberbo”. Tu te humilhaste e também humilhaste; foste ferido e feriste; teu sangue não podia deixar de atingi-lo, porque foi derramado para apagar o título de dívida de nossos pecados (cf Cl 2,14). Por que o diabo se ensoberbecia, senão por estar de posse da caução contra nós? Esta caução, este título de dívida tu solveste com teu sangue. Feriste aquele de quem tudo tomaste. Pois, entenda-se que o diabo foi ferido, não por ter sido traspassado um corpo que ele não possui, mas porque ferido no coração, onde reside sua soberba. “Com braço poderoso dispersaste os teus inimigos”. | |
§ 12 | 12.13 “Teus são os céus, tua é a terra”. Tu lhes dás a chuva, e a chuva cai sobre tua terra. “Teus são os céus” que pregaram a tua verdade em torno; “tua é a terra”, que acolheu a verdade em torno. Finalmente, que produziu aquela chuva? “Criaste o orbe da terra e o que ele contém. Fizeste o aquilão e os mares”. Ele nada consegue contra ti, seu Criador. O mundo, de fato, pode por sua malícia, pela perversidade de sua vontade enfurecer-se; poderia, acaso, exceder a medida imposta pelo Criador, que fez todas as coisas? Então por que receio o aquilão? Por que temo os mares? Com efeito, o diabo acha-se no aquilão, conforme ele declarou: “No aquilão colocarei o meu trono, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo” (Is 14,13.14). Mas, tu humilhaste, como a um ferido, o soberbo. Em conseqüência, mais vale para teu domínio aquilo que tu lhes fizeste do que para malícia deles sua própria vontade. “Fizeste o aquilão e os mares”. | |
§ 13 | 13 “O Tabor e o Hermon exultarão em teu nome”. Tratam-se de montes, mas com outro sentido. “O Tabor e o Hermon exultarão em teu nome”. Tabor significa a luz que vem. Mas, de onde deriva a luz aqui mencionada: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14) senão daquele do qual foi dito: “Era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao mundo”? (Jo 1,9). Por conseguinte, aquela luz que é a luz do mundo, provém daquela luz que não é acesa por outro, de tal sorte que se tema venha a se extinguir. Portanto, a luz veio dele, da lâmpada que não se coloca sob o alquei-re, mas sobre o candelabro, luz que veio, Tabor. Hermon, porém, se traduz por: seu anátema. Com razão a luz veio e se tornou anátema para ele. Para quem, a não ser, para o diabo, o ferido, o soberbo? Vem de ti a nossa iluminação; e vem de ti, em nosso favor, seja anatematizado aquele que nos retinha presos por seu erro e sua soberba. Por conseguinte, “o Tabor e o Hermon exultarão em teu nome”; contudo, não por meus méritos, mas por “teu nome”. Peçam também estes: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá a glória”, por causa do mar enfurecido, a fim de que “não digam as nações: Onde está o seu Deus” (Sl 113,9.10). | |
§ 14 | 14 “Vigoroso é teu braço”. Ninguém arrogue algo para si. “Vigoroso é teu braço”. Tu, que nos fizeste, é que nos defendeste. “Vigoroso é teu braço. Seja firme a tua mão, eleve-se tua destra”. | |
§ 15 | 15 “A justiça e a eqüidade alicerçam o teu trono”. No fim dos tempos aparecerão a tua justiça e o teu juízo. Agora tudo isto está oculto. De teu juízo fala outro salmo: “Pelos segredos do filho” (Sl 9,1). Haverá manifestação de teu juízo e de tua justiça. Alguns serão postos à direita e outros à esquerda (cf Mt 25,33); e os infiéis ficarão apavorados, vendo aquilo de que agora zombam, porque não acreditam. Os justos hão de se alegrar, com a visão do que agora crêem sem ver. “A justiça e a eqüidade alicerçam o teu trono”, isto é, no dia do juízo. E agora? “A misericórdia e a verdade te precedem”. Teria medo do que alicerça o teu trono, tua justiça e teu juízo futuros, se a misericórdia e a tua verdade não te precedessem. Por que hei de temer no fim dos tempos teu julgamento, se a tua misericórdia precede e apagas os meus pecados, enquanto demonstras tua verdade no cumprimento de tuas promessas? “A misericórdia e a verdade te precedem”. Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade (cf Sl 24,10). | |
§ 16 | 16.17 Diante de tudo isso não exultaremos? Ou compreendemos aquilo que nos leva a exultar? Ou nossas palavras são idôneas a exprimir nossa alegria? Ou nossa língua é capaz de explicar nosso gáudio? Se, pois, nenhuma palavra é suficiente: “Feliz o povo que entende o júbilo”. Ó povo feliz! Pensas que entendes o júbilo? De forma alguma és feliz se não entendes o júbilo. Que quer dizer: entender o júbilo? Saibas que não podes explicar com palavras o motivo de tua alegria. Teu gaúdio não deriva de ti, de tal sorte que aquele que se gloria, se glorie no Senhor (cf 1Cor 1,31). Por isso, não exultas em teu orgulho, e sim pela graça de Deus. Verifica ser tão grande a graça que a língua não é idônea para a explicar e entendeste o júbilo. | |
§ 17 | Enfim, se entendeste o júbilo pela graça, ouve a recomendação da mesma graça. Certamente, “feliz o povo que entende o júbilo”. Que júbilo? Examina se não vem da graça, se não provém de Deus, e absolutamente não de ti mesmo. “Andarão, Senhor, à luz de tua face”. Aquele Tabor, luz que vem, se não andar à luz de tua face, verá extinta a sua lâmpada, quando soprar o vento da soberba. “Andarão, Senhor à luz de tua face. E exultarão por teu nome todos os dias”. Estes dois, o Tabor e o Hermon “exultarão por teu nome”. Se o fizerem por teu nome, “todos os dias”; se, porém, exultarem em seu nome, não exultarão todos os dias. Não durará a alegria se eles se alegrarem por si mesmos, e cairão por causa de sua soberba. Portanto, a fim de exultarem todos os dias, “exultarão em teu nome e elevar-se-ão por tua justiça”. Não por sua justiça, mas “por tua”. Que tenham zelo de Deus, mas esclarecido. O Apóstolo denota alguns que têm zelo de Deus, mas não esclarecido; “desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, exultam sem a luz de Deus, e não se sujeitam à justiça de Deus. Por quê? Porque “têm zelo de Deus, mas não é um zelo esclarecido” (Rm 10,2.3). O povo, porém, que entende o júbilo (pois aqueles não são esclarecidos: feliz, contudo, o povo que entende, não ignora, o júbilo), como deve jubilar, como deve exultar, a não ser por teu nome, andando à luz de teu rosto? Com efeito, merecerá ser exaltado, mas por tua justiça; retire-se a tua justiça e será humilhado; venha a justiça de Deus e será exaltado. “Elevar-se-ão por tua justiça”. | |
§ 18 | 18 “Porque tu és o esplendor de sua força e com o teu favor aumentará o nosso poder”, porque foi de teu beneplácito e não por sermos dignos. | |
§ 19 | 19 “Porque o Senhor é o nosso sustentáculo”. Pois, eu como um monte de areia fui empurrado para cair; e cairia se o Senhor não me sustentasse. “Porque o Senhor é nosso sustentáculo; e o santo de Israel, o nosso rei”. Ele é sustentáculo, ele te ilumina; à sua luz estás seguro, andas à sua luz, serás exaltado por sua justiça. Ele te sustenta, guarda a tua fraqueza; ele te faz robusto, não por ti mesmo, por si. | |
§ 20 | 20 “Falaste outrora em visão a teus santos e disseste. Falaste em visão”, revelaste a teus profetas. Falaste em visão, isto é, em revelação. Por isso, os profetas tinham o nome de videntes (cf 1Rs 9,9). Interiormente viam algo que deviam proferir exteriormente e ouviam ocultamente o que deviam pregar em público. “Falaste outrora em visão a teus filhos e disseste: Dei a um poderoso o meu auxílio”. Entendestes que poderoso é este. “Exaltei um escolhido dentre o povo”. Estais cientes de que este escolhido é o mesmo cuja exaltação vos regozijou. | |
§ 21 | 21 “Encontrei Davi, meu servo”. Este Davi é da linhagem de Davi. “Sagrei-o com o meu óleo santo”. A respeito dele foi dito: “Ó Deus, te ungiu o teu Deus com o óleo da alegria, de preferência a teus companheiros” (Sl 44,8). | |
§ 22 | 22 “Assisti-lo-á a minha mão e o meu braço o fortalecerá”, quando Cristo aceitou a condição humana, quando assumiu a carne no seio da virgem (cf Sl 1,31), quando ele que na condição divina é igual ao Pai tomou a condição de servo e fez-se obediente até a morte e morte de cruz (cf Fl 2,6-8). | |
§ 23 | 23 “O inimigo não prevalecerá contra ele”. O inimigo, de fato, se enfurece, mas não prevalecerá contra ele; de fato, costuma prejudicar, mas não prejudicará. Então, por que aflige? Exercita, não prejudica. Será útil a sua fúria, porque serão coroados vencedores aqueles contra os quais se enfurece. Em que venceremos, se nada se exaspera contra nós? Como será Deus o nosso auxílio, se não combatemos? O inimigo, portanto, fará o que lhe compete, mas “não prevalecerá contra ele e o filho da iniqüidade não conseguirá prejudicá-lo”. | |
§ 24 | 24 “Esmagarei diante dele seu adversário”. Será esmagada a sua conspiração e irão se desfazendo à medida que crêem. Porque irão acreditando paulatinamente; como a cabeça do bezerro de ouro que foi esmigalhada, eles servirão de bebida ao povo de Deus. De fato, Moisés triturou a cabeça do bezerro, dissolveu o pó na água e deu de beber aos filhos de Israel (cf Ex 32,20). Todos os infiéis são triturados, crêem paulatinamente; bebe-os o povo de Deus, e eles são assimilados pelo corpo de Cristo. “Esmagarei diante dele seu adversário e afugentarei os que o odeiam”, para que não causem mal. Mas talvez digam alguns desses afugentados: “Aonde irei para longe de teu espírito e aonde fugirei de tua face”? (Sl 138,7). E verificando que não têm aonde fugir do Onipotente, refugiam-se depois de convertidos no Onipotente. “E afugentarei os que o odeiam”. | |
§ 25 | 25 “Minha verdade e minha misericórdia estarão com ele”. Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade (Sl 24,10). Lembrai-vos, à medida do possível, como estas duas coisas nos são recomendadas freqüentemente, para retribuirmos com elas a Deus. Pois, como ele demos-trou-nos misericórdia, apagando nossos pecados, e verdade, cumprindo suas promessas, assim também nós seguindo seu caminho, devemos retribuir-lhe com misericórdia e verdade; misericórdia, compadecendo-nos dos infelizes; verdade, não julgando iniquamente. A verdade não aparte de ti a misericórdia, nem a misericórdia impeça a verdade. Se, por misericórdia julgares contra a verdade, ou por certa rigidez na verdade te esqueceres da misericórdia, não seguirás pelo caminho de Deus, onde a misericórdia e a verdade se encontraram (Sl 84,11). “E em meu nome aumentará o seu poder”. Para que nos determos nisso? Sois cristãos. Reconhecei o Cristo. | |
§ 26 | 26 “Estenderei a sua mão sobre o mar”, isto é, dominará sobre os povos. “E a sua destra sobre os rios”. Os rios correm para o mar. Os homens ambiciosos resvalarão para a amargura deste mundo. Mas todas essas espécies de povos serão submetidas a Cristo. | |
§ 27 | 27.28 “Ele me invocará: Tu és meu Pai, meu Deus e o sustento de minha salvação. Constitui-lo-ei meu primo-gênito, excelso entre os reis da terra”. Nossos mártires, cuja festa de martírio celebramos, derramaram seu sangue por estas verdades em que acreditaram sem ver. Quanto mais fortes devemos ser nós, que vemos aquilo em que eles acreditaram? Eles não viam ainda que Cristo seria mais excelso que os reis da terra. Os príncipes ainda unidos conspiravam contra o Senhor e contra o seu Cristo; ainda não se havia realizado o que se encontra na continuação deste salmo: “Agora, ó reis, entendei. Instruí-vos, ó juízes da terra” (Sl 2,2.10). Pois, agora Cristo já se tornou excelso entre os reis da terra. | |
§ 28 | 29 “Assegurar-lhe-ei sempre a minha misericórdia e meu testamento para com ele permanecerá indissolúvel”. Por causa dele, o testamento é indissolúvel; o testamento foi firmado por meio dele; ele é o mediador do testamento, o signatário do testamento, o fiador do testamento, a testemunha do testamento, a herança do testamento, o cordeiro do testamento. | |
§ 29 | 30 “Farei subsistir pelos séculos dos séculos a sua descendência”. Não somente neste século, mas nos séculos dos séculos. Neste, passará, de fato, a sua descendência, a sua herança, a descendência de Abraão, que é o Cristo. Se, porém, vós sois de Cristo, sois descendência de Abraão; e se eternamente havereis de receber a herança, ele fará “subsistir pelos séculos dos séculos a sua descendência. E o seu trono terá a duração dos dias do céu”. Os tronos dos reis terrenos têm a duração dos dias da terra. Dias do céu são aqueles anos dos quais se disse: “Tu és sempre o mesmo e teus anos não terminam” (Sl 101,28). Os dias da terra são impelidos a se sucederem, excluem-se os precedentes, mas nem os que sucedem permanecem. Eles chegam para partirem, e partem quase antes de chegarem. Assim são os dias da terra. Os dias do céu, porém, e aqueles anos que não terminam, não têm início nem termo. Nenhum desses dias se aperta entre um ontem e um amanhã. Ninguém ali espera o futuro, ninguém perde o passado, mas os dias do céu estão sempre presentes. Seu trono será eterno. Adiemos o comentário do restante. O salmo é longo e ainda temos algo a tratar convosco, em nome de Cristo. Por isso, recuperai as forças; não me refiro às do espírito, pois vejo que espiritualmente sois infatigáveis; mas, falo dos servos da alma, a fim de que perdurem no serviço vossos corpos. Descansai um pouco, e já refeitos voltai a receber alimento. Voltando-nos para o Senhor… | |
II SERMÃO (Proferido na vigília da festa de S. Cipriano) | ||
§ 1 | Dai atenção, animosos, ao restante do salmo, de que falamos de manhã e exigi o pagamento da dívida. Pagará em nosso lugar aquele que nos fez, a nós e a vós. Os salmos anteriores anunciavam o Cristo Senhor, segundo as promessas de Deus, e ainda nas palavras que explicaremos ele é anunciado. A respeito dele, entre outras coisas, fora dito acima: “Constituí-lo-ei meu primogênito, excelso entre os reis da terra. Assegurar-lhe-ei sempre a minha misericórdia e meu testamento para com ele permanecerá indissolúvel. Farei subsistir pelos séculos dos séculos a sua descendência. E o seu trono terá a duração dos dias do céu”. Falamos destes e dos versículos anteriores desde o começo, à medida do possível. | |
§ 2 | 31-35 Prossegue o salmo: “Se abandonarem os seus filhos a minha lei e não seguirem os meus preceitos. Se profanarem as minhas prescrições e não observarem os meus mandamentos. Castigarei com a vara as suas transgressões e com açoites os seus pecados. Mas não hei de retirar-lhe a minha misericórdia, nem o prejudicarei com a minha verdade. Não violarei a minha aliança, nem mu-darei o que proferirem os meus lábios”. Enorme firmeza das promessas de Deus! Os filhos desse Davi são filhos do esposo; portanto, todos os cristãos são chamados seus filhos. É muito o que Deus promete, porque: Se os cristãos, isto é, “os seus filhos abandonarem a minha lei e não seguirem os meus preceitos. Se profanarem as minhas prescrições e não observarem os meus mandamentos”, não os desprezarei, nem os abandonarei na perdição; mas que farei? “Castigarei com a vara as suas transgressões e com açoites os seus pecados”. Pois, não há misericórdia apenas naquele que chama, mas ainda em quem flagela e açoita. Permaneça, pois, a mão paterna sobre ti, e se és bom filho, não repilas a disciplina. Qual é o filho que o pai não educa? Imponha uma disciplina, mas não retire a misericórdia. Fira o contumaz, contanto que lhe atribua a herança. Se tens conhecimento certo das promessas de teu pai, não tenhas medo de ser castigado e sim de ser deserdado. Pois, o Senhor educa a quem ele ama e castiga todo filho que acolhe (cf Hb 12,5-7). Recusará o filho pecador ser castigado, ao contemplar o Filho único, que não tinha pecado, ser flagelado? Pois, “castigarei com a vara as suas transgressões”. É deste modo também que ameaça o Apóstolo: “Que preferis? Que eu vos visite com vara”? (1 Cor 4,21). De forma alguma diriam os filhos dedicados: Se é para vir com a vara, não venhas. É preferível ser educado pela vara paterna do que perecer, sendo acariciado, nas mãos do ladrão. | |
§ 3 | “Castigarei com a vara as suas transgressões e com açoites os seus pecados. Mas não hei de retirar-lhe a minha misericórdia”. De quem? Daquele Davi ao qual fiz tais promessas, que ungi com meu óleo santo, de preferência a seus companheiros (cf Sl 44,8). Reconheceis de quem é que Deus não há de retirar sua misericórdia? No intuito de que alguém talvez preocupado diga: De fato, fala de Cristo, confirma que não há de lhe retirar sua misericórdia. Mas que será de mim, pecador? Acaso teria dito: Não hei de retirar-lhe a minha misericórdia? Ele disse: “Castigarei com a vara as suas transgressões e com açoites os seus pecados”. Esperavas uma garantia para ti: “Mas não hei de retirar-lhes a minha misericórdia”. Efetivamente, alguns códices têm esta versão, mas os mais corretos não a incluem; no entanto, os que trazem esta forma, não vêm ao caso. De que modo Deus não há de retirar de Cristo a sua misericórdia? Acaso aquele que é o Salvador de seu corpo pecou no céu ou na terra? Ele que está sentado à direita de Deus, e intercede por nós? (cf Rm 8,34). Trata-se de Cristo, mas de seus membros, de seu corpo que é a Igreja. Deste modo, como fato importante, diz que não há de retirar dele a sua misericórdia, como se não reconhecêssemos o Filho unigênito que está no seio do Pai; a natureza humana ali não é contada como se fosse sua pessoa, porque ele é uma pessoa só; Deus e homem. Por conseguinte, Deus não lhe retira a sua misericórdia, quando não retira sua misericórdia de seu corpo, no qual ele também na terra sofria perseguição, quando já estava sentado no céu. E do céu clamava: “Saulo, Saulo”, mas não dizia: Por que persegues os meus servos; nem: Por que persegues os meus santos; nem: Por que persegues os meus discípulos, mas: “Por que me persegues”? (At 9,4). A Cabeça conhece seus membros, e a caridade não separa a Cabeça do corpo todo; assim também, quando Deus não retira dele a sua misericórdia, de fato não retira de nós, que somos seus membros e seu corpo. Nem por isso devemos pecar tranqüilos, e prometer-nos perversamente que não haveremos de nos condenar, seja o que for que fizermos. Pois, existem certos pecados e determinadas iniqüidades, acerca dos quais nos é impossível dizer alguma coisa ou dar uma noção definida, ou, mesmo que fosse possível seria longo demais para o tempo de que dispomos. Ninguém pode afirmar que não tem pecado, porque se o disser, mente: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8). Em conseqüência, cada qual necessariamente é castigado por seus pecados; mas pelo fato de ser cristão, não lhe é retirada a misericórdia de Deus. Com efeito, se praticas tantas faltas, e repeles a vara de quem castiga, se rejeitas a mão que açoita, e te indignas da disciplina de Deus, e foges do Pai que bate, e não queres suportar o pai que não poupa ao que peca, tu te apartas da herança e não é ele que te rejeita, porque se aceitas o castigo, não ficarás deserdado. “Mas não hei de retirar-lhe a minha misericórdia, nem o prejudicarei com a minha verdade”. Deus que liberta, não retira a sua mi-sericórdia, a fim de que não prejudique a verdade de quem castiga o pecado. | |
§ 4 | “Não violarei a minha aliança, nem mudarei o que proferirem os meus lábios”. Não serei mentiroso, pelo fato de que seus filhos pecam. Prometi e cumpro. Supõe que eles queriam pecar, desesperados, e assim se entreguem intei-ramente aos pecados, ofendendo os olhos do Pai e merecendo ser deserdados. Acaso ele não é o Deus do qual foi dito: “Destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão”? (Mt 3,9). Por isso, digo-vos, irmãos: muitos cristãos pecam moderadamente, muitos são corrigidos de seus peca-dos pelo açoite, emendam-se, curam-se; muitos, ao invés, totalmente opostos, resistem com dura cerviz à disciplina do Pai, e recusando inteiramente a paternidade de Deus, apesar de terem o sinal de Cristo, caem em tais pecados que se pode apenas declarar contra eles: “Os que tais coisas praticam, não herdarão o reino de Deus” (Gl 5,21). Nem por isso Cristo ficará sem herança, nem por causa da palha também o trigo se perde, nem por causa dos maus peixes nada se retira da rede para colocar nos recipientes (cf Mt 3,12; 13,47.48). O Senhor conhece os que são dele (cf 2Tm 2,19). Pois, prometeu com toda garantia aquele que nos predestinou antes de existirmos: “E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou, e os que justificou também os glorificou” (Rm 8,29-31). Pequem quanto quiserem os que perderam a esperança; respondam os membros de Cristo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” Deus, portanto, não os prejudicará com sua verdade, nem violará sua aliança. Seu testamento permanece indissolúvel, porque ele mesmo, em sua presciência, predestinou os herdeiros; e não mudará o que proferiram seus lábios. | |
§ 5 | 36-38 Ouve para tua confirmação, ouve para tua segurança, se reconheces que estás entre os membros de Cristo. “Jurei uma vez por minha santidade; não mentirei a Davi”. Esperas que Deus há de jurar mais uma vez? Quantas vezes deve jurar, se mente ao jurar uma só vez? Jurou uma só vez em favor de nossa vida aquele que enviou para morrer seu Filho Único, por nós. “Jurei uma vez por minha santidade; não mentirei a Davi. A sua posteridade durará eternamente”. Eternamente durará a sua posteridade, porque o Senhor conhece os que são dele (cf 2Tm 2,19). “Seu trono subsistirá como o sol na minha presença e como a lua, perfeita para sempre, testemunha fiel no céu”. Seu trono, de onde governa, onde se senta, de onde reina. Se são seu trono, aqueles também são seus membros, visto que igualmente em nossos membros assenta nossa cabeça. Vede como os demais membros sustentam nossa cabeça; a cabeça, porém, não carrega coisa alguma, mas é carregada pelos outros membros, como se a cabeça possuísse por trono o corpo humano inteiro. Por conseguinte, seu trono (todos aqueles sobre os quais Deus reina) subsistirá como o sol na minha presença, diz ele, porque então os justos brilharão como o sol no reino de meu Pai (cf Mt 13,43). Mas um sol espiritual, não material, como este que brilha no céu, e que o Pai faz nascer sobre bons e maus (cf Mt 5,45). Enfim, este sol não está apenas diante dos olhos dos homens, mas também dos animais e das moscas insignificantes; pois qual dos animais mais vis não vê este sol? Quanto àquele outro sol, que diz propriamente o salmista? “Como o sol em minha presença”. Não diante dos homens, nem da carne, nem de animais mortais, mas “em minha presença. E como a lua”, mas de que lua se trata? “Perfeita para sempre”. Pois, quanto à lua que conhecemos, aparece perfeita, mas no dia seguinte começa a diminuir, depois de ter estado cheia. “Como a lua”, diz o salmo, “perfeita para sempre”. Seu trono se aperfeiçoa como a lua; mas a lua é perfeita para sempre. Se é sol, por que é como a lua? Na Escritura costuma-se representar a mortalidade da carne pela lua, porque ela aumenta e diminui, em suas fases transitórias. Finalmente, a palavra Jericó significa lua. De fato, um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu em poder de ladrões (cf Lc 10,30). Descia da imortalidade à mortalidade. Por conseguinte, esta carne é semelhante à lua, que em todas as épocas e em cada mês sofre aumentos e diminuições. Mas nossa carne será perfeita na ressurreição. “Testemunha fiel no céu”. Portanto, se nos aperfeiçoássemos somente na alma, seríamos comparados apenas ao sol; de outro lado, se nos aperfeiçoássemos apenas no corpo, seríamos semelhantes somente à lua; mas como Deus nos aperfeiçoa de alma e corpo, segundo a alma foi dito: “Como o sol em minha presença”, porque a alma não vê senão a Deus; “e como a lua”, já se refere à carne, “perfeita para sempre”, na ressurreição dos mortos. “Testemunha fiel no céu”, porque são verdadeiras todas essas afirmações sobre a ressurreição dos mortos. Por favor, escutai mais uma vez esta explicação mais rápida, e guardai na memória. Sei que alguns entenderam, enquanto outros talvez ainda se interroguem sobre o que disse. Nenhuma questão da fé cristã sofre maior contradição do que a da ressurreição da carne. Com efeito, aquele que nasceu como um sinal de contradição (cf Lc 2,34), ressuscitou a própria carne, indo contra seus opositores; e embora pudesse curar inteiramente seus membros, de sorte que não se visse mais que foram feridos, conservou no corpo as chagas, para curar nos corações a ferida da dúvida. Pois, em nenhum outro ponto se contradiz à fé cristã tão veementemente, tão pertinazmente, de modo tão insistente e contensioso, como a respeito da ressurreição da carne. Pois, quanto à imortalidade da alma, até muitos filósofos gentios têm muitas discussões, e deixaram escrito em vários e muitos livros que a alma humana é imortal; mas chegando à ressurreição da carne, não duvidavam, mas claramente contradiziam, e sua contradição chega ao ponto de dizerem que não é possível que esta carne terrena suba ao céu. Por isto, temos esta lua perfeita, para sempre, e contra todos os contraditores uma testemunha fiel no céu. | |
§ 6 | 39.46 Estas realidades a respeito de Cristo foram prometidas, e são certas, firmes, manifestas, indubitáveis. Pois, apesar de algumas terem sido ocultas em mistério, outras, contudo, foram tão manifestas que deduzindo delas facilmente se revelam as obscuras. Assim sendo, vede como continua o salmo: “Mas tu o rejeitaste e reduziste a nada, afastaste o teu Cristo. Rompeste a aliança com teu servo, permitiste se profanasse na terra seu santuário. Destruíste todas as muralhas, introduziste o terror em suas fortificações. Espoliaram-no todos os transeuntes pela estrada e tornou-se opróbrio para seus vizinhos. Exaltaste a destra de seus opressores e regozijaste todos os seus inimigos. Tiraste-lhe o apoio de sua espada e não o sustentaste na guerra. Despojaste-o do brilho de sua pureza e puseste por terra o seu trono. Abreviaste os dias de seu reino e o cobriste de confusão”. Que significa isso? Prometeste todas aquelas coisas, e fizeste tudo ao contrário. Onde estão as promessas, que pouco antes nos alegravam, que tão vivamente aplaudíamos, a respeito das quais nos congratulávamos com segurança? Parece que um foi que prometeu e outro que destruiu. Mas, o que causa admiração é que não foi outro, mas “Tu, tu que prometias, tu que confirmavas, tu que diante da dúvida humana até juravas, prometeste aquelas coisas, e assim agiste. Onde apreenderei o teu juramento, onde encontrarei a realização de tua promessa? Que é isto? Deus prometeria falsamente, ou enganosamente juraria? Por que prometeu uma coisa e fez outra? Digo que assim agiu para confirmar sua promessa. Mas quem sou eu que afirmo isto? Vejamos se aquele que é a verdade o disse; então não será vão o que digo. Era a Davi que tudo isto foi prometido, em relação a sua descendência, que é Cristo. Diante das promessas feitas a Davi, esperavam os homens que elas se cumprissem em Davi. Por conseguinte, a fim de que não acontecesse que ao afirmar um cristão: Referiam-se a Cristo, outro assegurasse: Não, mas são ati-nentes a Davi, e erraria porque vira todas realizadas em Davi. Deus as rompeu em Davi, para que ao se verificar que não foram cumpridas nele, apesar de necessariamente terem de ser cumpridas, se procurasse outro em quem se realizassem. Assim sucedeu também com Esau e Jacó. Vemos o menor se prostrar diante do mais velho, embora esteja escrito: “O mais velho servirá o menor” (Gn 25,23). Ao vires que isto não se realizou naqueles dois homens, mencionados pouco acima, esperarás que se cumpra entre dois povos aquilo que Deus, que não mente, se dignou prometer. Ele disse a Davi: “Do fruto de tuas entranhas, eu porei em teu trono” (Sl 131,11). Fez uma promessa para sempre relativamente à sua descendência. Nasceu Salomão, e se tornou homem de tal sabedoria que se pensava realizada nele a promessa de Deus a respeito da descendência de Davi. Mas Salomão caiu, e deu lugar a que se esperasse o Cristo. Uma vez que Deus não pode se enganar, nem enganar, aquele que ele sabia que haveria de cair não seria o objeto de suas promessas. Mas, depois de sua queda, olhar-se-ia para Deus, pedindo a realização da promessa. Então, Senhor, tu mentiste? Não cumpres o que prometeste? Não mostras aquilo que juraste? Talvez neste ponto te diria Deus: Com efeito, jurei e prometi, mas ele não quis perseverar. E então? Tu, Senhor, não tinhas a presciência de que ele não haveria de perseverar? De fato sabias. Por que, então, me prometias que seria sempre o que não perduraria para mim? Acaso não disseste: “Se abandonarem a minha lei e não seguirem os meus preceitos, e não observarem os meus mandamentos e profanarem a minha aliança”, não obstante manterei a minha promessa e cumprirei meu juramento? “Jurei uma vez por minha santidade”, interiormente, escondido na própria fonte de onde beberam os profetas, que emitiram para nós essas palavras: “Jurei uma vez, não mentirei a Davi”. Mostra o resultado de teu juramento, paga tua promessa. Em Davi não foi realizado, para que não se esperasse o cumprimento nele. Espera, portanto, aquilo que Deus prometeu. | |
§ 7 | O próprio Davi o reconheceu. Aí está o que ele diz: “Mas tu o rejeitaste e reduziste a nada”. Ora, onde está o que prometeste? “Afastaste o teu Cristo”. Apesar de encerrar certo motivo de tristeza, contudo esta palavra nos reconforta: está firme o que Deus prometeu; pois não eliminaste o teu Cristo, mas o “afastaste”. Vede o que sucedeu a este Davi, em quem esperavam os que ignoravam que Deus haveria de cumprir suas promessas, a fim de que estas se realizassem mais firmemente em outro: “Afastaste o teu Cristo. Rompeste a aliança com teu servo”. Onde está, de fato, o Antigo Testamento dos judeus? Onde se acha a terra da promissão, onde pecaram seus habitantes, de onde migraram depois de destruída? Se procuras o reino dos judeus: não existe mais; buscas encontrar o altar dos judeus: não existe mais; o sacrifício dos judeus: já não existe; procuras onde se acha o sacerdócio dos judeus: não existe. “Rompeste a aliança com teu servo; permitiste se profanasse na terra seu santuário”. O santuário que possuíam, era terreno, conforme demonstraste. “Destruíste todas as muralhas”, com as quais o defendias. Como seria saqueado, se suas muralhas não fossem destruídas? “Introduziste o terror em suas fortificações”. Que terror é este? O de se dizer aos pecadores: “Se Deus não poupou os ramos naturais, nem a ti poupará” (Rm 11,21). “Espoliaram-nos todos os transeuntes pela estrada”, isto é, todos os povos, pela estrada, isto é, por esta vida passaram e espoliaram a Israel, espoliaram Davi. Em primeiro lugar, vede os seus espólios em poder de todos os povos. Destes foi dito: “Eles se tornarão presa das raposas” (Sl 62,11). Com efeito, a Escritura denomina raposas os reis ímpios, astutos e tímidos, atemorizados com a virtude alheia. Por isso, o próprio Senhor, tendo em vista as ameaças de Herodes, disse: “Ide dizer a esta raposa” (Lc 13,32). O rei, que não teme homem algum não é raposa, é o leão da tribo de Judá, do qual está escrito: “Sobe, agacha-se, dorme como um leão” (cf Gn 49,9). Sobe com poder, com poder dorme; dormiu porque o quis. Aliás, encontra-se em outro salmo: “Eu adormeci”. Não estaria completo: “Adormeci, caí em sono profundo. Despertei, porque o Senhor me acolherá” (Sl 3,6). Para que acrescentar: “Eu?” E é proferido com muita ênfase: “Eu; Eu adormeci”. Os inimigos se enfureceram, perseguiram, mas se eu não quisesse, não teria adormecido. “Eu adormeci”. Os mesmos dos quais se falara: Eles se tornarão presa das raposas aqui são citados: “Espoliaram-no todos os transeuntes pela estrada e tornou-se opróbrio para seus vizinhos. Exaltaste a destra de seus opressores e regozijaste todos os seus inimigos”. Notai a sorte dos judeus, e vede como se cumpriu tudo o que foi predito. “Tiraste-lhe o apoio de sua espada”. Como se explica que eles, sendo poucos, costumavam combater e prostrar a muitos? “Tiraste-lhe o apoio de sua espada e não o sustentaste na guerra”. Com toda razão foi vencido, aprisionado, desterrado do reino, disperso; perdeu a terra, por cuja posse ele matou o Senhor. “Tiraste-lhe o apoio de sua espada e não o sustentaste na guerra. Despojaste-o do brilho de sua pureza”. Que significa isto? Entre tantos males, isto causa enorme terror. Por mais que Deus fira, por mais que se ire, por mais que açoite, que flagele, ele castigue, mas unido àquele que é purificado; não o despoje de sua pureza; pois se o despoja de sua pureza, não resta como purificar, e sim como lançar fora. De que pureza foi despojado o judeu? Da fé. Pois, vivemos da fé. Dela foi dito: “Purificou os seus corações pela fé” (cf Gl 3,11; At 15,9). Como é somente a fé em Cristo que purifica, os que não creram em Cristo, foram despojados de sua pureza. “Despojaste-o do brilho de sua pureza e puseste por terra o seu trono”; com todo o direito também o quebraste. “Abreviaste os dias de seu reino”. Eles pensavam que reinariam para sempre. “E o cobriste de confusão”. Tudo isso aconteceu aos judeus. Quanto a Cristo, não foi eliminado, mas afastado por algum tempo. | |
§ 8 | 47 Vejamos, então se Deus cumpre as suas promessas. Depois de ter o salmista relembrado esses acontecimentos pesados que advieram àquele povo e àquele reino, para que não se pensasse que Deus havia cumprido o que prometera e não daria outro reino a Cristo, cujo reinado não teria fim, o profeta se dirige a Deus nesses termos: “Até quando, Senhor? Afastar-te-ás para sem-pre?” Talvez não seja para sempre e nem deles; o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios, e assim todo Israel será salvo (cf Rm 11,25). Nesse interim, contudo, “como fogo se inflamará a tua ira”. | |
§ 9 | 48.49 “Lembra-te do que sou”. Fala Davi, segundo a carne pelos judeus, em esperança em lugar de Cristo. “Lembra-te do que sou”. Se os judeus pereceram, nem por isso pereci. De fato, daquele povo saiu a virgem Maria, da virgem Maria veio a carne de Cristo. E aquela carne não é pecadora, mas purificadora dos pecados. Aí está, diz ele, o que sou. “Lembra-te do que sou”. A raiz não secou inteiramente. Virá a descendência, a quem fora feita a promessa, promulgada por anjos, pela mão de um mediador (cf Gl 3,19). “Lembra-te do que sou. Não criaste em vão os filhos dos homens”. Eis que todos os filhos dos homens caíram na vaidade; no entanto, tu não os criaste assim. Tendo os homens, que não criaste para a vaidade, ido após ela, como os purificarias da vaidade? Acaso nada reservaste para ti? Aquilo que reservaste para ti, a fim de purificares os homens da vaidade, o teu santo, eis o que sou. Por meio deste santo todos se purificam, os que não inutilmente criaste isentos da vaidade. A eles se diz: “Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido? Por que amais a vaidade e procurais a mentira”? Talvez eles se tornem solícitos, se convertam da vaidade, vejam-se manchados pela vaidade, procurem purificar-se. Socorre, Senhor. Dá-lhes segurança. “Compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo” (Sl 4,3.4). Deus mostrou admirável o seu santo; deste modo purificou a todos de sua vaidade. Aí está, diz ele, o que sou. Lembra-te dele. “Não criaste em vão os filhos dos homens”. Portanto, reservaste algo para purificá-los. Quem é que reservaste? “Qual o homem que viverá sem ver a morte?” Por conseguinte, aquele homem que viverá sem ver a morte, é ele mesmo que purifica da vaidade. Deus não criou os filhos dos homens na vaidade, nem pode desprezá-los aquele que fez, de sorte que não os converta e purifique. | |
§ 10 | “Qual o homem que viverá sem ver a morte?” Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele (cf Rm 6,9). Enfim, como se lê em outro salmo: “Não entregarás ao inferno a minha alma, nem permitirás que teu santo experimente a corrupção” (Sl 15,10). O apóstolo Pedro em seu ensino adota este testemunho, e assim nos Atos dos Apóstolos discute com os que não criam: “Meus irmãos, sabemos que o patriarca Davi morreu” e sua carne viu a corrupção. Por conseguinte, não foi dele que foi predito: “Nem permitirás que o teu santo experimente a corrup-ção” (At 2,27-31). Se, portanto, não foi relativamente a ele que foi predito: “Qual o homem que viverá sem ver a morte?” talvez não se refira a nenhum. Ao invés, “Qual é?” leva a procurar e não a perder a esperança de encontrar. Mas, acaso trata de alguém que viverá sem ver a morte, mas não de Cristo, que morreu? Não existe absolutamente alguém que “viverá sem ver a morte”, senão aquele que já morreu em favor dos mortais. Pois, no intuito de ficares ciente de que falou dele, vê a continuação do salmo. “Qual o homem que viverá sem ver a morte?” Então, ele nunca passou pela morte? Passou. Como, então, “viverá sem ver a morte? Livrará a sua alma do poder do inferno”. Eis que está verdadeiramente sozinho, absolutamente singular, é o único que “viverá sem ver a morte. Livrará a sua alma do poder do inferno”, porque embora os demais fiéis ressurjam dentre os mortos, e vivam também eles eternamente sem ver mais a morte, contudo eles próprios não livrarão a própria alma do poder do inferno. Aquele que livrou a própria alma do poder do inferno, livra também as almas de seus fiéis, que não podem livrar-se a si mesmos. Uma prova de que ele próprio livrou sua alma: “Tenho poder de entregar a minha vida e poder de retomá-la. Ninguém ma arrebata, porque eu adormeci” (Sl 3,6); “mas eu a dou livremente para retomá-la” (Jo 10,17.18), porque ele próprio livra sua alma do poder do inferno. | |
§ 11 | 50 Mas, a própria fé em Cristo foi um tanto laboriosa. Por muito tempo disseram os povos irados: “Quando há de morrer e extinguir-se o seu nome”? (Sl 40,6). Por causa destes que já acreditam em Cristo, mas que serão um tanto atribulados, segue-se: “Onde estão, Senhor, as tuas antigas misericórdias?” Já conhecemos Cristo que purifica, já temos aquele no qual cumpres tuas promessas; demonstra nele o que prometeste. É ele quem viverá sem ver a morte, ele quem livra sua alma do poder do inferno; e no entanto, nós ainda pelejamos. Assim falaram os mártires, cujo aniversário celebramos. Ele viverá sem ver a morte, ele livra sua alma do poder do inferno; e nós por tua causa somos entregues à morte todo dia e somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro (cf Sl 43,22). “Onde estão, Senhor, as tuas antigas misericórdias, que juraste a Davi em tua verdade?” | |
§ 12 | 51 “Recorda-te, Senhor, do opróbrio de teus servos”. Cristo já vive, já está sentado no céu à direita do Pai, e o opróbrio é lançado contra os cristãos; estes foram longamente incriminados por causa de Cristo. Aquela abandonada, cujos filhos são mais numerosos do que os de uma esposa (cf Is 54,1; Gl 4,27), ouviu ignomínias, ouviu injúrias; mas a Igreja propagada, dilatando-se à direita e à esquerda, não se lembra da ignomínia de sua viuvez. “Recorda-te, Senhor”, que tens em abundância uma recordação cheia de suavidade. “Recorda-te”, não te esqueças. “Recorda-te”, de quê? “Recorda-te do opróbrio de teus servos. Conservo em meu seio o ultraje das nações”. Ia, diz a Igreja, pregar e ouvia ultrajes, que continha em meu peito; em mim se realizava a palavra: Somos caluniados e rezamos; “somos considerados como o lixo do mundo, a escória do universo” (1 Cor 4,13). Longamente contiveram os cristãos os ultrajes em seu peito, em seu coração, sem ousarem resistir aos injuriadores. Anteriormente ao pagão parecia um crime a oposição de um cristão, agora já é um crime permanecer pagão. Graças ao Senhor. Ele se recordou de nossos opróbrios. Ele exaltou a força de seu Cristo, tornou-o admirável aos reis da terra. Agora ninguém ataca os cristãos, ou se insultam não o fazem publicamente; fala de tal modo que parece mais ter medo de ser ouvido do que procurar crédito. “Conservo em meu peito os ultrajes das nações”. | |
§ 13 | 52 “Com os quais insultaram os teus inimigos, Senhor”, judeus e pagãos. “Com os quais insultaram”, o quê? “A mudança operada em teu Cristo”. Foi o que insultaram: “a mudança operada em teu Cristo”. Pois, sua objeção é esta: Cristo morreu, Cristo foi crucificado. Por que objetais, insensatos? Apesar de ninguém já objetar. No entanto, se restaram alguns, porque objetais que Cristo morreu? Ele não foi eliminado, mas transformou-se. Diz-se que morreu, por causa dos três dias. Eis o que atacaram os teus inimigos: não a perda da vida, não a ruína, mas de fato a transformação “de teu Cristo”. Ele trocou a vida temporal pela eterna, transferiu-se dos judeus para os gentios, mudou-se também da terra para o céu. Os teus inimigos vãos avancem até lá, e ainda insultem a “mudança operada em teu Cristo”. Oxalá também eles se transformem e não insultarão a mudança operada em Cristo. Mas desagrada-lhes a mudança operada em Cristo, porque eles próprios não querem mudar. Não há mudança para eles, pois não temem a Deus. “Com os quais insultaram os teus inimigos a mudança operada em teu Cristo”. | |
§ 14 | 53 Insultaram a mudança; e tu, que fizeste? “A bênção do Senhor permaneça para sempre. Assim seja. Assim seja”. Graças sejam dadas à misericórdia do Senhor; graças a sua graça. Pois, nós damos graças; não damos, nem retribuímos, nem referimos, nem restituímos; agradecemos com palavras, retemos em nós a realidade. Ele nos salvou gratuitamente, ele não dá atenção às nossas impiedades. Ele nos procurou quando não o buscávamos, ele nos encontrou, remiu, libertou do jugo do diabo e do poder dos demônios. Prendeu-nos para nos purificar pela fé, e soltos ficaram os inimigos que não crêem e por isso não podem ser purificados. Digam os que ficaram, diariamente, o que quiserem; mas diariamente diminuem. Objetem, zombem, exprobrem. Não se trata de ruína, mas de “mudança de teu Cristo”. Eles não vêem que, ao dizer isto, perecem, seja aceitando a fé, seja morrendo? Sua maldição é temporal; “a bênção, porém, do Senhor, permanece para sempre”. Não haja receio. Confirma-se a bênção: “Assim seja, assim seja”. Esta subscrição é a caução de Deus. Com a garantia, pois, de suas promessas, acreditemos nas realidades passadas, reconheçamos as presentes, esperemos as futuras. O inimigo não nos aparte do caminho. Aquele que nos recolhe como pintinhos sob suas asas, nos agasalha. Não desviemos de suas asas, a fim de que o gavião voador não arrebate pintinhos ainda implumes. O cristão não confie em si mesmo. Se quer firmar-se, fortifique-se com o calor materno. Há uma galinha que agasalha seus pintinhos: aquela que censura à cidade de Jerusalém: “Quantas vezes quis eu recolher os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas, e não o quiseste! Eis que a vossa casa vos ficará abandonada” (Mt 23,27.38). Por isso, disse o salmo: “Introduziste o terror em suas fortificações”. Uma vez que eles não quiseram abrigar-se sob as asas desta galinha, e nos deram tal exemplo que temos medo dos espíritos imundos espalhados no ar, que procuram cada dia a quem arrebatar, refugiemo-nos sob as asas da galinha, a Sabedoria divina, que por nossa causa esteve enferma, até morrer. Amemos o Senhor nosso Deus, amemos sua Igreja; a ele enquanto pai, a esta enquanto mãe. A Deus como Senhor, à Igreja como escrava, porque somos filhos da serva. Mas este matrimônio é contraído por grande caridade. Ninguém ofende a um e apraz ao outro. Ninguém diga: Procuro, na verdade, os ídolos, consulto agoureiros e adivinhos, mas não saio da Igreja de Deus; sou católico. Prendes-te à mãe, mas ofendes o pai. Outro declara, de seu lado: Longe de mim tudo isso; não consulto adivinhos, não procuro agoureiros, não busco adivinhações sacrílegas, não vou adorar demônios, não cultuo pedras; contudo sou do partido de Donato. Que te adianta não ofender o Pai, mas injuriar a mãe? Que utilidade existe em confessar o Senhor, honrar a Deus, anunciá-lo, reconhecer seu Filho, confessar aquele que está sentado à direita do Pai e blasfemar contra sua Igreja? Não servem para tua correção os exemplos dos casamentos humanos? Se tiveres um patrono, ao qual diariamente prestas obséquio, se atravessas sua porta para servi-lo, e cotidianamente já não digo que saúdas, mas diante de quem te curvas e reverencias fielmente, se acusasses sua esposa de um só crime, acaso poderias ainda entrar em sua casa? Deveis manter, portanto, caríssimos, manter todos unanimemente a Deus como pai e a Igreja como vossa mãe. Celebrai os aniversários dos santos com sobriedade, para imitarmos os que nos precederam e alegrem-se por vossa causa os que intercedem por vós, a fim de que “a bênção do Senhor permaneça eternamente sobre vós. Assim seja. Assim seja”. | |