SALMO 𝟠𝟟

O Senhor ama as portas de Sião mais do que todas as habitações de Jacó.

Coisas gloriosas se dizem de ti, ó cidade de Deus.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 87


§ 87:1  O fundamento dela está nos montes santos.

§ 87:2  O Senhor ama as portas de Sião mais do que todas as habitações de Jacó.

§ 87:3  Ƈ Coisas gloriosas se dizem de ti, ó cidade de Deus.

§ 87:4  Ƒ Farei menção de Raabe e de Babilônia dentre os que me conhecem; eis que da Filístia, e de Tiro, e da Etiópia, se dirá: Este nasceu ali.

§ 87:5  Sim, de Sião se dirá: Este e aquele nasceram ali; e o próprio Altíssimo a estabelecerá.

§ 87:6  O Senhor, ao registrar os povos, dirá: Este nasceu ali.

§ 87:7  Ŧ Tanto os cantores como os que tocam instrumentos dirão: Todas as minhas fontes estão em ti.


O SALMO 87



§ 1
1 O título deste salmo octogésimo sétimo apresenta ao expositor novo problema. Nunca, nos outros salmos, colocou-se o que aqui se lê:

Em favor de melec. Cântico alternado”.

Pois, a respeito da expressão: Salmo de cân-tico ou cântico de salmo, em outro comentário (cf. Sl 87) já expusemos nosso parecer. Também:

Dos filhos de Coré” é um título corrente nos salmos e com freqüência o expliquei. Igualmente:

Para o fim. Mas o que segue: Em favor de melec. Cântico alternado” é um título inusitado.

Em favor de melec”, pode-se traduzir ao vernáculo: para um coro.

Melec” é palavra hebraica que significa coro. Que será, então: para um coro alternado? Será um coro que responde em consonância com o cantor? Pode-se acreditar que não apenas este salmo, mas ainda outros salmos assim eram cantados, embora tenham títulos diferentes. Penso que isto se fazia para que a variedade evitasse o fastio. Pois, não é somente este salmo que merece resposta de um coro, porque não é o único escrito a respeito da paixão do Senhor. Se existe outra causa de grande variedade de títulos, pois se verifica que todos os salmos têm essa nota prévia, diversa para cada um deles, de tal sorte que o título de um não convém a nenhum outro, eu confesso, que apesar de muitos esforços, não consegui penetrar. E algumas explicações sobre o assunto, da parte dos que antes de nós os expuseram, não satisfizeram a minha expectativa ou a minha lentidão. Exporei, portanto, a minha opinião sobre esse mistério: Para o coro alternado, isto é, para que o coro responda ao cantor. Aqui se profetiza a paixão do Senhor. Com efeito, disse o apóstolo Pedro:

Cristo sofreu por nós, deixando-nos exemplo, a fim de que sigamos os seus passos(1Pd 2,21).

Isto é resposta. Declara também o apóstolo João:

Cristo deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos(1Jo 3,16).

Isto é responder. Coro, porém, significa concórdia, que consiste na caridade. Qualquer, portanto, enquanto imitador da paixão do Senhor, que entregar seu corpo às chamas, se não tiver caridade (cf 1Cor, 13,3), não responde em coro; e por isso nada lhe adiantaria. Por conseguinte, conforme se diz em música, na tradução latina de homens doutos, há um praecentor, cantor, que entoa e um succentor, segundo cantor, que responde. Praecentor, portanto, aquele que emite primeiro seu canto, e succentor que em seguida responde cantando. Assim também no cântico da paixão Cristo precede e o coro dos mártires o segue, até o fim, as coroas celestes. Este salmo é cantado para os “filhos de Coré”, isto é, imitadores da paixão de Cristo, porque Cristo foi crucificado no Calvário (cf Mt 27,33), que na língua hebraica corresponde a Coré. E agora vem:

Instrução de Eman israelita”, que está em último lugar no título. Aeman, na verdade, se traduz por: seu irmão. Cristo se dignou tornar irmãos aqueles que entendem que a cruz é um mistério e não só não se envergonham dela, mas se gloriam com fé, sem se exaltarem por seus próprios méritos, mas se mostram gratos à graça, de tal modo que se possa dizer de cada um deles:

Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento(Jo 1,47).

Pois, a Escritura relembra que o próprio Israel não era doloso. Ouçamos agora a voz de Cristo, a entoar na profecia. Seu coro responda imitando-o, ou em ações de graças.



§ 2
2.3 “Senhor Deus de minha salvação, de dia e de noite clamei diante de ti. Chegue a minha oração a tua presença. Inclina teus ouvidos às minhas preces”.

O Senhor também rezou, não na condição divina, mas segundo a condição de servo; foi nesta última condição que ele padeceu. Rezou, alias, nos momentos alegres, designados sob o nome de dia; e na adversidade que, a meu ver, assinalou sob o nome de noite. A oração chega à presença de Deus quando é aceita; os ouvidos de Deus se inclinam quando ele escuta com misericórdia; pois Deus não é provido de membros como os nossos, corporais. Aparece aqui a costumeira repetição, pois:

Chegue a minha oração a tua presença” é idêntico a:

Inclina teus ouvidos às minhas preces”.



§ 3
4 “Porque minha alma está repleta de males e minha vida aproximou-se do inferno”.

Não ousamos afirmar que a alma de Cristo está repleta de males, quando a aflição da paixão atingiu seu corpo o mais possível? Daí provém que ele, inflamando os seus a suportarem os sofrimentos e de certo modo exortando o coro a responder-lhe, disse:

Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma(Mt 10,28).

Acaso os perseguidores não podem matar a alma, podendo, contudo, enchê-la de males? Se assim é, investiguemos de que males. Na verdade, não pode ser de vicíos, pelos quais a iniqüidade domina o homem, que a alma fica repleta. Talvez sejam de dores, porque a alma se compadece do corpo nos sofrimentos. Nem mesmo a chamada dor corporal pode existir onde não está a alma; a dor necessariamente é precedida da tristeza, que é dor apenas da alma. Por conseguinte, a alma pode se condoer mesmo que o corpo não sinta dor; mas é impossível que o corpo tenha dor quando inanimado. Por que, então, não dizer que a alma de Cristo esteve repleta não dos pecados humanos, mas de males humanos? Por isso, outro profeta declara que ele carregou as nossa dores (Is 53,4); e o evange-lista narra:

Levando Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se”.

E o próprio Senhor disse-lhes acerca de si mesmo:

A minha alma está triste até a morte(Mt 26,37-38).

O profeta, que compôs este salmo, prevendo esses eventos futuros, apresenta-o a dizer:

Porque minha alma está repleta de males e minha vida aproximou-se do inferno”.

O Senhor explicou esta sentença, com palavras inteiramente outras:

A minha alma está triste até a morte”.

Quanto a:

A minha alma está triste”, aqui se encontra:

Minha alma está repleta de males”; e a continuação:

até a morte” equivale a:

Minha vida aproximou-se do inferno”.

O Senhor Jesus, não obrigado por necessidade, mas por voluntária compaixão assumiu este sentimento de fraqueza humana, como aceitara a própria carne na condição da humana fraqueza, para tomar em si seu corpo, que é a Igreja, isto é, seus membros, os santos e os fiéis. Dele dignou-se fazer-se a Cabeça. Se a algum deles acontecer contristar-se e condoer-se no meio das tentações humanas, julgando-se assim alheio à graça de Deus, aprenda que isso não constitui pecado, mas são indícios de fraqueza humana: como um coro que canta em harmonia com aquele que entoa, assim é o corpo em relação a sua Cabeça. Lemos e ouvimos que um dos mais destacados membros deste corpo, o apóstolo Paulo, confessa que sua alma está repleta de tais males. Diz que tem uma grande tristeza e uma dor incessante em seu coração, em favor de seus irmãos segundo a carne, que são israelitas (cf Rm 9,2-4).

Não julgo fora de propósito dizer que também o Senhor se contristou por causa deles, ao se aproximar a sua pa-xão, por ocasião da qual eles cometeriam enorme crime.



§ 4
5.6 Finalmente, as palavras que ele proferiu na cruz:

Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem(Lc 23,24), são referidas também em seguida neste salmo:

Sou contado entre os que vão descer à fossa”.

De fato, isso se faria por aqueles que não sabiam o que faziam, que pensavam que ele morreria como morrem os demais, sujeito a uma necessidade e por ela vencido. Chama de “fossa” à profundidade da miséria ou do inferno.



§ 5
Sou como um homem sem amparo, livre entre os mortos”.

Nestas palavras aparece principalmente o Senhor. Pois, quem foi livre entre os mortos, senão o único que não tinha pecado, embora tivesse a semelhança da carne de pecado? (cf Rm 8,3).

Por esta razão, o Senhor disse aos que estultamente se consideravam livres de pecado:

Quem comete pecado, é escravo do pecado”.

E como importava que libertasse dos pecados aquele que não cometera pecado, acrescentou:

Se, pois, o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres(Jo 8,34.36).

Este, portanto, era livre entre os mortos pois tinha a liberdade de dar a sua vida para retomá-la: ninguém a arrebatava, mas ele mesmo a dava livremente; poderia, quando quisesse, ressuscitar seu corpo, como um templo que tivesse sido demolido; estando para sofrer, quando todos o abandonaram, não ficou só, porque o Pai não o deixou, conforme ele mesmo atestou (Jo 10,18; 2,19; 8,29).

Todavia, orou pelos inimigos, que não sabiam o que faziam e diziam:

A outros salvou, a si mesmo não pode salvar! Se é Filho de Deus, desça da cruz, e creremos nele. Deus o salve, se é que se interessa por ele(Mt 27,40-43); tornou-se, isto é, foi considerado, “como um homem sem amparo. Como os feridos que jazem nos sepulcros”.

Mas acrescenta:

dos quais já não te lembras”.

Note-se a diferença que há entre Cristo Senhor e os demais mortos. Pois, também ele foi traspassado, e depois de morto, colocado no sepulcro (Mt 27,50.60).

Mas aqueles que não sabiam o que faziam, ignorando, de fato, quem era ele, julgaram-no semelhante aos outros feridos e mortos, que jazem nos sepulcros, e dos quais Deus já não se lembra, isto é, para eles ainda não veio o tempo de ressuscitar. Por isso a Escritura costuma chamar os mortos de adormecidos, porque hão de despertar, isto é, ressuscitar. Mas este que foi ferido e dorme no sepulcro, despertou ao terceiro dia, e fez-se como o pássaro solitário no telhado (cf Sl 101,8), isto é, está à direita do Pai no céu. Ele já não morre e a morte não tem mais domínio sobre ele (cf Rm 6,9).

Por este motivo, difere muito daqueles dos quais Deus ainda não se lembra para ressuscitá-los. Aquela ressurreição que convinha acontecer primeiro à Cabeça, e no final dos tempos é reservada ao corpo. Diz-se que Deus se lembra quando realiza; e esquece quando não faz; pois, nem cabe esquecimento em Deus, porque de modo algum ele muda, nem recordação, porque não se esquece. Por conseguinte, “sou” para aqueles que não sabiam o que faziam, “como um homem sem amparo”, embora fosse “livre entre os mortos”.

Tornei-me para aqueles que não sabiam o que faziam, “como os feridos que jazem nos sepulcros. E que foram repelidos de tua mão”; isto é, quando para eles tornei-me tudo isso, “foram repelidos de tua mão”.

Foram privados do auxílio de tua mão, por me terem considerado sem amparo. Pois, conforme se acha em outro salmo, “cavaram diante de mim uma fossa. E aí caíram eles(Sl 56,7).

Esta passagem é mais inteligível do que a frase que aqui se encontra:

E foram repelidos de tua mão”, relativamente aos que jazem nos sepulcros, dos quais ainda não lembra, porque entre eles há justos, que embora deles ainda não se lembre para ressurgirem, foi dito a seu respeito:

A alma dos justos está nas mãos de Deus(Sb 3,1), isto é, eles habitam sob a assistência do Altíssimo, e descansam sob a proteção do Deus do céu (cf Sl 90,1).

Mas, foram repelidos da mão de Deus os que acreditaram que isto acontecia a Cristo Senhor, e colocando-o entre os iníquos, mataram-no.



§ 6
7 “Puseram-me num fosso profundo”, ou antes, “no fosso mais profundo”, pois assim está no texto grego. Que significa fosso mais profundo, senão a mais negra miséria, que não tem outra mais abaixo? Daí se dizer em outra passagem:

Retirou-me da fossa da miséria(Sl 39,3).

Nos lugares tenebrosos e na sombra da morte”.

De fato, puseram-no, em seu modo de conceber, quando não sabiam o que faziam, e desconheciam aquele que nenhum dos príncipes deste mundo conheceu (cf 1Cor 2,8).

Quanto à sombra da morte, não sei se aqui se deva entender a morte corporal, ou antes aquela referida na Escritura:

Uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria como a da morte(Is 9,2), porque acreditando na luz e na vida, foram retirados das trevas e da morte da impiedade. Aqueles que não sabiam o que faziam pensavam que o Senhor era contado entre estes, e por ignorância o computaram entre os que eram desta espécie e que ele socorreu para não serem mais assim.



§ 7
8 “Sobre mim pesou a tua indignação”; ou conforme outros códices:

tua ira”, ou ainda outros:

Teu furor”.

Os nossos traduziram de modos diversos a palavra grega:

thimòs”.

Pois, onde o texto grego traz orgè nenhum tradutor hesitou em verter por ira; porém, quando vem thimòs muitos pensaram que devia ser ira, porque importantes autores de eloquência latina verteram para o latim com o nome de ira, quando se tratava de livros de filósofos gregos. Não precisamos nos estender muito sobre isto. Mas, se devemos empregar outro termo, prefiro falar em indignação do que em furor. Na verdade, o furor, conforme a índole da língua latina, não se aplica a mentes sadias. Que significa então:

Sobre mim pesou a tua indignação” senão o que pensaram aqueles que não conheceram o Senhor da glória? Sobre eles, de fato, assim aconteceu. A ira de Deus não só se levantou, mas também se confirmou, sobre aquele que eles puderam levar à morte, não, porém, uma morte qualquer, mas aquela que é considerada a mais execrável, isto é, a morte de cruz. Por isto diz o Apóstolo:

Cristo nos remiu da maldição da Lei tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro(Gl 3,13; Dt 21,23).

Por esta razão, querendo recomendar sua obediência até a extrema humildade, disse:

Humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte”, e como se fosse pouco, acrescentou:

e morte de cruz(Fl 2,8).

Por causa disso, a meu ver, também neste salmo vem em seguida o versículo:

E todos os teus vagalhões”; ou conforme outros traduziram:

todas as tuas ondas”; ou, segundo outros:

Todas as tuas vagas arremeteram contra mim”.

Encontra-se em outro salmo:

Todas as tuas ondas e vagas sobre mim passaram(Sl 41,8).

Ou conforme outros traduziram melhor:

atravessaram sobre mim”.

Pois, encontra-se no grego: dielton e não: eiselton. Onde se encontram ambos os termos: vagalhões e ondas, não puderam substituir vagalhões por ondas. Explicamos vaga-lhões como sendo ameaças, e ondas as próprias paixões2. Ambas provêm do juízo de Deus. Mas ali foi dito:

Todas sobre mim passaram” e aqui:

Todos arremeteram contra mim”.

No primeiro, embora certas coisas aconteceram, no entanto todos os males a que alude, “passaram sobre mim”, diz o salmo; aqui, porém diz:

arremeteram contra mim”.

Passam, não atingindo como os vagalhões, ou tocando como as ondas. Após:

todos os vagalhões” não disse: passaram sobre mim, mas “arremeteram contra mim”.

Quer dizer que todas as ameaças se realizaram; ameaçavam, porém, enquanto estava iminente na profecia do futuro tudo o que foi predito acerca da sua paixão.



§ 8
9.10 “De mim apartaste os meus conhecidos”.

Se tormarmos a expressão:

meus conhecidos” como relativa a todos que o Senhor conhecia, serão todos os homens; pois, a quem ele não conhecia? Mas, a expressão “conhecidos” refere-se aos que o conheciam, na medida que então era possível; certamente sabiam ao menos então que ele era inocente, embora o tivessem por homem apenas, e não por Deus. Aliás, poder-se-ia afirmar que “conhecidos” seriam os bons que aprovaria, enquanto desconhecidos seriam os maus que condenaria, uma vez que lhes dirá no fim do mundo:

Nunca vos conheci(Mt 7,23).

O acréscimo:

Tornei-me para eles objeto de horror”, é aplicável ainda àqueles que o salmista chama de seus conhecidos, porque eles também tinham horror daquela espécie de morte; mas melhor se entende daqueles seus perseguidores, que foram mencionados acima.

Fui entregue, sem poder sair”.

Seria porque os discípulos achavam-se do lado de fora enquanto Cristo era julgado dentro do palácio? (cf Mt 26,56).

Ou seria preferível tomar os termos:

sem poder sair” num sentido mais profundo, isto é, quem eu era, achava-se oculto no meu interior, eu não o mostrava, não divulgava, não revelava? Por isso, continua:

Consomem-se de miséria os meus olhos”.

Que olhos são estes? Se o salmo se refere aos olhos exteriores do corpo em que Cristo sofria, não lemos que na paixão eles se consumiram de miséria, isto é, tenham ficado amortecidos, como costuma acontecer, por causa da fome. Na verdade, ele foi traído depois da ceia e foi crucificado no mesmo dia. Se, porém se trata dos olhos interiores, como se teriam enfraquecido pela miséria, se havia para eles a luz indefectível? Mas, ele denomina especialmente seus olhos os membros do corpo, do qual ele é a Cabeça, que ele amava como sendo os mais ilustres, mais eminentes e principais. O Apóstolo, ao aludir a este corpo, compara-o ao nosso e diz:

Se o corpo todo fosse olho, onde estaria a audição? Se fosse todo ouvido, onde estaria o olfato? Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo? Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo. Não pode o olho dizer à mão: Não preciso de ti. E se a mão disser: Olho eu não sou, logo não pertenço ao corpo, nem por isso deixará de fazer parte do corpo”.

Expressou mais claramente o sentido destas palavras da maneira seguinte:

Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros(1 Cor 12,12-27).

Por isso, também os olhos, isto é, os santos apóstolos, aos quais nem a carne, nem o sangue, mas o Pai que está nos céus revelara, de sorte que Pedro afirmou:

Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo(Mt 16,16.17), vendo-o entregue e sujeito a tantos males, “consumiram-se de miséria”, pois lhes fora arrebatado o alimento, a luz. Assim sucedeu por não o verem conforme desejavam, porque ele estava sem poder sair, isto é, não se revelava com força e poder, mas tudo ocultava interiormente, suportando os padecimentos qual vencido, sem recursos para resistir. 2 Cf Com. s. Sl 41, nº 15.



§ 9
Clamei por ti, Senhor”.

De fato, assim agiu às claras, estando pendente do madeiro. Mas, não seria fora de propósito perguntar qual o sentido do que segue:

Todo o dia estendi minhas mãos a ti”.

Se relacionarmos a expressão:

estendi minhas mãos” ao patíbulo da cruz, como ex-plicar:

todo o dia?” Terá ficado na cruz o dia inteiro, inclu-sive a noite? Se, ao invés designa o salmista nesta passagem por dia o que habitualmente tem este nome, deixando de fora a noite, já passara a primeira parte, e não pequena, do dia em que Cristo foi crucificado. Se, de outro lado, tomarmos a palavra dia como sinônimo de tempo, a questão se torna mais intrincada, principalmente porque este nome vem no feminino, que em latim equivale a tempo; em grego é diferente, pois dia em grego é sempre do gênero feminino e por causa disso os nossos, a meu ver, o verteram deste modo. Como, então, seria em todos os tempos, se Cristo nem ao menos esteve um dia inteiro com as mãos estendidas na cruz? Todavia, se dissermos que o todo aí substitui a parte, uma vez que também a Sagrada Escritura costuma usar este modo de falar, não me ocorre exemplo de que o todo é tomado pela parte quando a própria palavra: todo é enunciada. É verdade que o Senhor disse no evangelho:

Assim ficará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra(Mt 12,40); mas aí o todo não substitui impropriamente à parte, porque ele não disse: Três dias inteiros e três noites inteiras. Na verdade, o dia intermediário foi inteiro e os outros dois se reduzem a partes: a última parte do primeiro, e a primeira parte do último. Se, porém, o salmo nesta profecia não designa a cruz, mas a oração que o Senhor, na condição de servo, apresentou a Deus Pai, conforme atesta o evangelho, lembramo-nos de que ele muito antes da paixão, próximo da paixão e na própria cruz rezou; contudo, nunca lemos que o fizesse o dia todo. Por conseguinte, podemos entender de maneira adequada que as mãos estendidas todo o dia representam a continuação das boas obras, que ele nunca interrompeu devido a sua intenção.



§ 10
11 Mas, uma vez que suas boas obras foram úteis somente aos predestinados à salvação eterna e não a todos os homens, nem mesmo àqueles entre os quais foram praticadas, o salmo acrescenta:

Talvez farás maravilhas para os mortos?” Se pensarmos que a palavra se refere aos corpos exânimes, grandes maravilhas foram feitas para os mortos, porque alguns dentre eles ressuscitaram. E ao penetrar o Senhor na região dos mortos e de lá sair vencedor em favor deles, grande maravilha foi realizada. Portanto, esta palavra:

Talvez farás maravilhas para os mortos” é relativa a homens de tal modo espiritualmente mortos que tamanhas maravilhas operadas por Cristo não induziram à vida da fé. O salmista não declara que as maravilhas não são para eles porque não as vêem, mas porque não lhe são proveitosas. Pois, conforme disse aqui:

Todo o dia estendi minhas mãos a ti”, porque refere suas obras apenas à vontade do Pai, freqüentemente atestando que veio para cumprir a vontade do Pai, assim também como o povo infiel também viu as mesmas obras, outro profeta declara:

Todos os dias estendi as mãos a um povo rebelde e incrédulo(cf Jo 6,38; Is 65,2).

São mortos aqueles para os quais não foram feitas as maravilhas; eles as viram, mas por meio delas não reviveram. Quanto ao versículo seguinte:

Ou os médicos os ressuscitarão e confessar-te-ão?” isto é, os médicos não ressuscitarão os homens para que estes confessem a Deus. Em hebraico afirma-se que não se acha o mesmo, mas emprega-se a palavra: gigantes em vez de: médicos. Com efeito, os Setenta tradutores, cuja autoridade é tão grande que se crê com razão, devido à admirável concordância da tradução, que verteram por obra do Espírito Santo, quiseram indicar como nesta passagem se poderia tomar a palavra gigantes, baseados na semelhança de som em hebraico dos termos gigantes e médicos, que soam quase de modo igual, e se distinguem só por diferença muito pequena; não o fizeram por engano, mas por conveniência. Se, pois, insinuam eles sob o nome de gigantes os soberbos, aos quais alude o Apóstolo nestes termos:

Onde está o sábio? Onde o homem culto? Onde está o argumentador deste século?(1 Cor 1,20), não foi inadequado chamá-los de médicos, como se eles prometessem através de seus conhecimentos científicos a salvação das almas; contra eles se diz:

Do Senhor vem a salvação(Sl 3,9).

Se, ao invés, tomarmos a palavra gigantes no bom sentido, uma vez que foi dito do próprio Senhor:

Deu saltos de gigante a percorrer seu caminho(Sl 18,6), ele seria o gigante dos gigantes, a saber, dos grandes e fortíssimos, que se distinguem em sua Igreja por vigor espiritual, da mesma forma que ele é o monte dos montes, porque a seu respeito foi escrito:

Dias virão em que o monte do Senhor será estabelecido no mais alto das montanhas(Is 2,2); igualmente é denominado santo dos santos. Por tudo isso não é absurdo que os próprios grandes e fortes recebam o nome de médicos. Daí provém a afirmação do apóstolo Paulo:

Na esperança de provocar o ciúme dos da minha raça e de salvar alguns deles(Rm 11,14).

Contudo, mesmo estes médicos, apesar de não curarem por si memos, o que nem os médicos dos corpos fazem, por mais que contribuam para a salvação dos outros através de um ministério fielmente desempenhado, podem curar vivos, mas não ressuscitar mortos. Sobre estes últimos diz o salmo:

Talvez farás maravilhas para os mortos?” A graça de Deus é oculta em extremo. Por meio dela as mentes humanas de certa maneira revivem, de sorte que podem ouvir os preceitos salutares dos ministros de Deus. O evangelho relembra esta graça, ao dizer:

Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair”; e um pouco adiante repete isso mesmo:

As palavras que vos disse são espírito e vida. Alguns de vós, porém, não crêem”.

Em seguida, intercala o evangelista:

Jesus sabia, com efeito, desde o princípio, quais os que haveriam de crer, e quem era aquele que o entregaria”.

Em seguida, acrescenta as próprias palavras do Senhor:

E dizia: Por isso vos afirmei que ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai”.

Mais acima dissera:

Alguns de vós, porém, não crêem”, e expondo de certa forma a causa deste fato, disse:

Por isso vos afirmei que ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai(Jo 6,44.64.65.66), para mostrar que a própria fé que faz crer e reviver a alma, morta espiritualmente, é um dom de Deus. Por mais excelentes pregadores da palavra que forem, e persuadirem à verdade através de milagres, quais médicos bem capazes, assim ajam entre os homens: se estão mortos e não revi-veram pela graça, “talvez farás maravilhas para os mortos? ou de médicos ressuscitados?” E os que eles ressuscitarão “confessar-te-ão”? Pois, este louvor indica que são vivos e não estão na condição daqueles citados em outra passagem:

Para o morto, como se não existisse mais nada, o louvor acabou(Eclo 17,28).



§ 11
12 “No sepulcro narrará alguém a tua misericórdia e a tua verdade na perdição?” Subentende-se o que foi dito antes, de sorte que este versículo também se formularia assim: Acaso narrará alguém a tua verdade na perdição? A Escritura gosta de unir a verdade e a misericórdia, principalmente nos salmos. Quanto a:

na perdição” é repetição por outra palavra do acima referido:

no sepulcro”.

Sob a expressão:

no sepulcro” designam-se os que estão no sepulcro, supra representados pelo nome de mortos:

Talvez farás maravilhas para os mortos?” Para a alma morta o corpo é um sepulcro. Daí vem que o Senhor no evangelho afirma desses tais:

Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície. Assim também vós; por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade(Mt 23,27.28).



§ 12
13 “Nas trevas se revelarão tuas maravilhas e a tua justiça na terra do esquecimento? Nas trevas” é idêntico a:

na terra do esquecimento”.

Os infiéis estão assinalados pelo nome de trevas; conforme diz o Apóstolo:

Outrora éreis treva(Ef 5,8).

Assim terra do esquecimento refere-se ao homem que se esqueceu de Deus; pois, a alma infiel pode cair em tamanhas trevas que diga estultamente em seu coração:

Deus não existe(Sl 13,1).

O sentido completo do salmo tem esta seqüência e contexto:

Clamei por ti, Senhor”, no meio de meus sofrimentos; “todo o dia estendi minhas mãos a ti”, isto é, não desisti de te glorificar, aumentando minhas obras. Por que razão, então, os ímpios se enfurecem contra mim, senão porque não farás maravilhas para os mortos? isto é, aqueles em que tua graça oculta não atua, atraindo-os para que creiam, não são levados à fé, nem os médicos os ressuscitarão; porque ninguém vem a mim, senão aquele a quem tu atrais (cf Jo 6,44).

Pois, “no sepulcro narrará alguém a tua misericórdia”, isto é, a alma morta, cuja morte espiritual está subjacente no corpo? “E a tua verdade na perdição”, isto é, em tal morte em que se torna incapaz de crer e sentir tais realidade? Pois, “nas trevas” desta morte, isto é, no homem que perdeu a luz da vida por ter-se esquecido de ti, “se revelarão tuas maravilhas e a tua justiça?



§ 13
14 Ocorre-nos, porém, a pergunta: Que utilidade se encontra nestes mortos, que faz Deus com eles para a utilidade do corpo de Cristo, que é a Igreja? Existem a fim de que neles se demonstre qual a graça de Deus nos predestinados, chamados segundo o desígnio de Deus. Daí vem que o próprio corpo diz em outro salmo:

Meu Deus! A tua misericórdia antecipa-se a mim. Deus, revelou-me a mim mesmo, no proceder de meus inimigos(Sl 58,11.12).

Por isso, aqui continua:

Mas eu, Senhor, clamei por ti”.

Nestas palavras já se percebe Cristo Senhor a falar em lugar de seu corpo, isto é, da Igreja. Que significa:

Mas eu”, senão que fomos também nós outrora filhos da ira por natureza, como os demais? (cf Ef 2,3).

Mas, “clamei por ti”, para me salvar. Pois, o que me distingue dos filhos da ira, quando ouço o Apóstolo a censurar terrivelmente os ingratos, nesses termos:

Pois, quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido”? (1 Cor 4,7).

Do Senhor vem a salvação(Sl 3,9).

Não se salvará o gigante pela extraordinária força (Sl 32,16), mas como está escrito:

Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas, como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados? Conforme está escrito: Quão maravilhosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam boas notícias!(Rm 10,13-15; Jl 2,32; Is 52,7).

São médicos que curam o homem ferido por ladrões, mas é o Senhor que o leva à hospedaria (cf Lc 10,34).

Eles também trabalham no campo do Senhor; contudo, aquele que planta, nada é, aquele que rega, nada é, mas tão-somente Deus, que dá o crescimento (cf 1Cor 3,7).

Por isso também eu clamei pelo Senhor; isto é, invoquei o Senhor a fim de me salvar. Como, porém, invocaria, se não acreditasse? Como acreditaria, se não ouvisse? Mas para que acreditasse o que ouvira, ele mesmo me atraiu. Ocultamente, ressuscitou-me da morte do coração não um médico qualquer, mas ele próprio. Pois, muitos ouviram, visto que seu som repercutiu por toda a terra e até os confins do orbe as suas palavras (cf Sl 18,5); mas nem todos têm fé e o Senhor conhece os que lhe pertencem (cf 2Ts 3,2; 2Tm 2,19).

Em conseqüência, nem teria podido crer, se Deus não se antecipasse com sua misericórdia, e se ocultamente chamando-me e ressuscitando-me, não me tirasse das trevas e me conduzisse à luz da fé, porque ele ressuscita os mortos e chama o que não é, como o que é (1 Cor 1,28).

Por isso, prossegue o salmo:

E a minha prece desde a manhã subirá a teu encontro”.

Já veio a manhã, após terem passado a noite da infidelidade e as trevas. Tua misericórdia veio a meu encontro a fim de que chegasse para mim a manhã. Mas como ainda falta aquela glorificação, quando o Senhor porá às claras o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações, e então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido (cf 1Cor 4,5), agora, nesta vida, nesta peregrinação, nesta luz da fé, que em comparação com as trevas dos infiéis já é dia, mas ainda é noite em comparação com o dia em que veremos a Deus face a face, ainda “a minha prece subirá a teu encontro”.



§ 14
15 Tenho em vista que esta oração seja praticada com fervor, e isto, a meu ver, não é possível explicar por palavras, a saber, quanto ela nos é proveitosa, é adiada a concessão do bem que nos será dado eternamente, e se intensificam os males passageiros. Por isso, continua o salmo:

Por que, Senhor, repeles a minha oração?” Em outras palavras:

Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste? (Sl 21,2).

Propõe a causa a conhecer, mas não culpa a sabedoria de Deus de ter agido sem motivo; assim também aqui:

Por que, Senhor, repeles a minha oração?” Se examinarmos atentamente, a causa foi indicada mais acima. Parece que a oração dos santos é repelida, devido à prorrogação de tão grande benefício e à adversidade das tribulações, a fim de que se sopre sobre a chama, e esta se inflame com maior ardor.



§ 15
15.19 O salmo toca também rapidamente nas tribulações do corpo de Cristo. Não sobrevieram apenas à Cabeça, conforme foi dito a Saulo:

Por que me persegues”? (At 9,4).

O próprio Paulo, membro escolhido do mesmo corpo também diz:

Completo, na minha carne, o que falta das tribulações de Cristo(Cl 1,24).

Por conseguinte, “por que, Senhor, repeles a minha oração e ocultas de mim o teu rosto? Sou pobre e em labuta desde a juventude. Depois de exaltado fui humilhado e confundido. Sobre mim passaram tuas iras e teus terrores me perturbaram. Cercaram-me como águas todos os dias, cercaram-me simultaneamente. Apartaste de mim o amigo e os meus conhecidos por causa de minha miséria”.

Tudo isto aconteceu e acontece aos membros do corpo de Cristo. Deus aparta seu rosto dos que oram, não atendendo seus pedidos, quando suplicam o que não sabem que não lhes convém. E a Igreja é pobre, ao ter fome e sede em sua peregrinação, devendo ser saciada na pátria. Acha-se em labuta desde a sua juventude; pois o próprio corpo de Cristo reza em outro salmo:

Muito me atacaram desde a minha juventude(Sl 128,1).

Alguns de seus membros são exaltados mesmo neste mundo, a fim de que a humildade neles seja maior. E passam sobre o próprio corpo, isto é, sobre a unidade dos santos e fiéis, que têm Cristo por Cabeça, as iras de Deus; mas não permanecem, porque foi dito a respeito dos infiéis, não dos fiéis:

A ira de Deus permanece sobre ele(Jo 3,36).

E os terrores de Deus perturbam a fraqueza dos fiéis, pois é prudente recear tudo o que pode suceder, ainda que não suceda. Por vezes, o terror perturba a alma que reflete nos males iminentes, que parecem cercar de todos os lados como água e simultaneamente rodear aquele que teme. E como não faltam esses males à Igreja peregrina neste mundo, enquanto ora atinge a estes, ora àqueles de seus membros, disse:

todos os dias”, aludindo à continuação do tempo, até que terminem os séculos. Muitas vezes, os amigos e conhecidos, devido a perigos neste mundo, por medo abandonam os santos; acerca destes se exprime o Apóstolo do modo seguinte:

Todos me abandonaram. Que isto não lhes seja imputado(2 Tm 4,16).

Mas qual a razão disso tudo, senão a fim de que a oração deste santo corpo, de manhã, isto é, depois da noite da infidelidade, alcance a Deus à luz da fé, até que venha aquela salvação, que nos vem em socorro ainda não na plena realidade, mas na esperança e que aguardamos fielmente com paciência? (cf Rm 8,24. 25).

Então o Senhor não repelirá nossa oração, porque nada restará a pedir, mas será obtido tudo o que tivermos pedido retamente. Nem apartará de nós a sua face, porque o veremos tal como ele é (cf 1Jo 3,2).

Não seremos pobres, porque nossa riqueza será o próprio Deus, tudo em todos (cf 1Cor 15,28).

Nem nos afligiremos, porque não permanecerá fraqueza alguma; nem após a exaltação, seremos humilhados e perturbados, porque não haverá mais adversidade. Também não suportaremos a ira de Deus, nem mesmo transitória, porque estaremos de posse de sua duradoura benignidade; nem os terrores do Senhor nos perturbarão, porque estaremos felizes com o cumprimento de suas promessas; nem se apartará de nós, atemorizado, o conhecido e o amigo, pois ali não haverá inimigo algum a temer.