SALMO 𝟠𝟞

Ó Deus, os soberbos têm-se levantado contra mim,

e um bando de homens violentos procura tirar-me a vida; eles não te puseram diante dos seus olhos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 86


§ 86:1  Inclina, Senhor, os teus ouvidos, e ouve-me, porque sou pobre e necessitado.

§ 86:2  Preserva a minha vida, pois sou piedoso; o Deus meu, salva o teu servo, que em ti confia.

§ 86:3  Ƈ Compadece-te de mim, ó Senhor, pois a ti clamo o dia todo.

§ 86:4  Alegra a alma do teu servo, pois a ti, Senhor, elevo a minha alma.

§ 86:5  Porque tu, Senhor, és bom, e pronto a perdoar, e abundante em benignidade para com todos os que te invocam.

§ 86:6  Ɗ Dá ouvidos, Senhor, à minha oração, e atende à voz das minhas súplicas.

§ 86:7  Ɲ No dia da minha angústia clamo a ti, porque tu me respondes.

§ 86:8  Entre os deuses nenhum há semelhante a ti, Senhor, nem há obras como as tuas.

§ 86:9  Ŧ Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão diante de ti, Senhor, e glorificarão o teu nome.

§ 86:10  Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade; dispõe o meu coração para temer o teu nome.

§ 86:11  Ł Louvar-te-ei, Senhor Deus meu, de todo o meu coração, e glorificarei o teu nome para sempre.

§ 86:12  Pois grande é a tua benignidade para comigo, e livraste a minha alma das profundezas do Seol.

§ 86:13  Pois grande é a tua benignidade para comigo, e livraste a minha alma das profundezas do Seol.

§ 86:14  Ơ Ó Deus, os soberbos têm-se levantado contra mim, e um bando de homens violentos procura tirar-me a vida; eles não te puseram diante dos seus olhos.

§ 86:15  ɱ Mas tu, Senhor, és um Deus compassivo e benigno, longânimo, e abundante em graça e em fidelidade.

§ 86:16  Volta-te para mim, e compadece-te de mim; dá a tua força ao teu servo, e a salva o filho da tua serva.

§ 86:17  ɱ Mostra-me um sinal do teu favor, para que o vejam aqueles que me odeiam, e sejam envergonhados, por me haveres tu, Senhor, ajuntado e confortado.


O SALMO 86


SERMÃO 💬

§ 1
O salmo que acabamos de cantar, é curto pelo número de palavras, mas longo pelo peso das sentenças. Pois, foi lido por inteiro e vedes como chegou o termo em poucos instantes. Propôs-me nosso beatíssimo pai, aqui presente1 que o explicasse a V. Caridade, quanto o Senhor se dignar nos conceder. Esta proposta repentina seria um peso para mim se não me amparasse logo a oração de quem a fez. Por conseguinte, V. Caridade dê-me atenção. O salmo cantou e recomendou determinada cidade. Dela somos cidadãos, na qualidade de cristãos e dela estamos ausentes em peregrinação, enquanto formos mortais, e para ela tendermos. O caminho que a ela conduz, achava-se quase completamente interdito por espinhos e abrolhos. O rei desta cidade fez-se ele mesmo o caminho para a alcançarmos. Caminhando, portanto, por Cristo, e ainda peregrinos até chegarmos, suspirando de desejo de possuir o inefável repouso de que gozam os habitantes desta cidade, repouso do qual foi dito que “os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu(1 Cor 2,9), caminhando, portanto, cantemos de maneira a aumentar nosso desejo. Pois, em quem deseja, mesmo que a língua cale, o coração canta; aquele, porém, que não tem desejos, mesmo que fira os ouvidos humanos com seus clamores, está mudo diante de Deus. Notai quanto amavam ardentemente os habitantes desta cidade, aqueles que proferiram estas palavras do salmo, e que nô-las transmitiram. Com quanto afeto eles as cantaram! O amor a sua cidade despertava neles este afeto. Era o Espírito de Deus que infundira o amor a esta cidade:

O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,5).

Inflamados por este Espírito, portanto, ouçamos como se descreve esta cidade.



§ 2
1.2 “Seus alicerces estão sobre as montanhas santas”.

O salmo ainda não se referira a ela. Assim inicia:

Seus alicerces estão sobre as montanhas santas”.

Quais alicer-ces? Não há dúvida de que os fundamentos, principalmente lançados nas montanhas, pertencem a uma cidade. O salmista, cidadão desta cidade, repleto do Espírito Santo, e raciocinando longamente acerca do amor e do desejo desta cidade, e tendo meditado muito, irrompe nessas palavras:

Seus alicerces estão sobre as montanhas santas”.

Parece já ter dito alguma coisa antes. Mas, como nada dissera, se nunca se calara no coração? Como fala seus, se nada referira a seu respeito? Mas, conforme mencionei, concebera muita coisa em silêncio acerca daquela cidade, e clamando diante de Deus, irrompe igualmente em palavras que atingem os ouvidos humanos:

Seus alicerces estão sobre as montanhas santas”.

Parece que havia ouvintes que perguntaram: De quem? “Ama o Senhor as portas de Sião”.

Aí temos a cidade de Sião, cujos fundamentos se situam nas santas montanhas e cujas portas Deus ama, conforme se diz em seguida:

acima de todos os tabernáculos de Jacó”.

Mas qual o sentido da frase:

Seus alicerces estão sobre as montanhas santas?” Quais as montanhas santas sobre as quais se acha fundada esta cidade? Outro cidadão, o apóstolo. Ambos falavam para exortarem os demais cidadãos. Mas estes, isto é, os profetas e os apóstolos, como são cidadãos? Talvez porque eles também são os montes, sobre os quais estão os alicerces desta cidade, cujas portas o Senhor ama. Diga, portanto, outro cidadão mais claramente isto que dizemos, para não parecer que inventamos. Falando aos gentios, e exortando-os a voltarem, para que servissem de pedras no levantamento do edifício sagrado, diz o Apóstolo:

Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas”.

Visto que nem os próprios apóstolos e os profetas, sobre os quais se alicerça a cidade, se mantêm por si mesmos, prossegue a passagem:

Do qual é Cristo Jesus a pedra angular(Ef 2,20).

Não queria que pensassem os pagãos que não pertenciam a Sião. Havia, de fato, uma cidade de Sião terrena, sombra e imagem de outra Sião, aqui mencionada, a Jerusalém celeste, da qual afirma o Apóstolo:

Esta é a nossa mãe(Gl 4,26).

No intuito de que eles não dissessem que não pertenciam a Sião, porque não eram do povo hebreu, disse-lhes o seguinte: Portanto, “já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas”.

Aí tens a construção desta grande cidade. Mas esta volumosa construção onde se apoia, onde assenta, onde repousa para jamais cair? Diz o Apóstolo:

Do qual é Jesus Cristo a pedra angular(Ef 20,19.20).



§ 3
É possível que diga alguém: Se Cristo Jesus é a pedra angular, nele efetivamente se unem as duas paredes. Pois, não se constrói um ângulo a não ser que duas paredes, de lados opostos, se unam. Assim acontece também com os dois povos, um de circuncisos e outro de incircuncisos, que firmam entre si a paz cristã, numa só fé, numa só esperança, numa só caridade. Mas se o Cristo Jesus forma o ângulo superior, fica parecendo que os fundamentos são anteriores e posterior a pedra angular. Então, poder-se-ia dizer que é antes Cristo que se apoia nos profetas e apóstolos, e não o inverso, se estes estão nos fundamentos e Cristo no ângulo superior. Mas pondere quem o afirmar que o ângulo vem desde o alicerce. O ângulo não é só a parte aparente, que se levanta até o Ápice; ele começa nos alicerces. Pois, o Apóstolo declara, dando a conhecer que Cristo constituiu o primeiro e o máximo fundamento:

Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Cristo Jesus(1 Cor 3,11).

Como, então, seriam alicerces os profetas e apóstolos, se os fundamento é Cristo e nenhum outro? Como pensar, a não ser que da mesma forma que se diz adequadamente: santo dos santos, se empregue figuradamente a expressão: fundamento dos fundamentos? Se, portanto, pensares no mistério, Cristo é o santo dos santos; se cogitares de um rebanho, Cristo é o pastor dos pastores; se imaginas um edifício, Cristo é o fundamento dos fundamentos. Nos edifícios materiais uma mesma pedra não pode estar bem profundamente colocada e ao mesmo tempo bem no alto. Se estiver no fundo, não pode estar no ápice; e se estiver no ápice não pode estar colocada no fundo. Todos os corpo têm seus limites; não podem estar em toda a parte e sempre. A divindade, contudo, que está presente em toda parte, pode ser comparada a todas as posições. Numa comparação pode-se empregar qualquer posição, porque nenhuma delas se apresenta no sentido próprio. Por acaso seria Cristo uma porta conforme vemos as que o marceneiro fabrica? Absolutamente não. E no entanto, ele disse:

Eu sou a porta”.

Ou seria ele pastor, como os pastores que vemos à frente dos rebanhos? Ele disse:

Eu sou o pastor”.

Num mesmo lugar disse ambas as coisas. No evangelho ele disse que o pastor entra pela porta; e também:

Eu sou o bom pastor”, e ainda:

Eu sou a porta(Jo 10,9.11).

O pastor entra pela porta. Qual é o pastor que entra pela porta? “Eu sou o bom pastor”.

E qual a porta por onde entras, bom pastor? “Eu sou a porta”.

Então, és tudo? Sim, porque tudo foi feito por mim. Por exemplo, se Paulo entra pela porta, não é Cristo que entra pela porta? Por quê? Não digo que Paulo seja Cristo, mas que o Cristo está em Paulo e Paulo entra por Cristo. O próprio Apóstolo disse:

Procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim”? (2 Cor 13,3).

Ao entrarem os santos e fiéis de Cristo pela porta, não é Cristo que entra pela porta? Como se prova isto? Quando Saulo, que ainda não era Paulo, perseguia os santos de Cristo, ele clamou do céu:

Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4).

Com efeito, ele próprio é o fundamento e a pedra angular, que surge de baixo; se é que é de baixo. Ora, a origem deste alicerce está no cume. Como o fundamento do edifício material acha-se em baixo, o fundamento espiritual do edifício encontra-se no ápice. Se estivéssemos a edificar para a terra, teríamos de colocar o fundamento bem profundo; mas uma vez que o edifício é celeste, nosso alicerce nos precedeu nos céus. Por conseguinte, ele que é a pedra angular, os apóstolos que são os montes, os grandes profetas, que suportam a cidade, constituem de certo modo um edifício vivo. Este edifício agora clama de vossos corações? A habilidosa mão de Deus faz com que, por intermédio de nossas palavras, vós vos adapteis ao volume do edifício. Não foi em vão que a arca de Noé foi construída de madeiras quadradas (cf Gn 6,14 sg, LXX).

Ela, efetivamente, era figura da Igreja. Que é cortar em quadro? Observai uma pedra quadrada, para servir de comparação. O cristão lhe deve ser semelhante. Apesar das tentações, o cristão não cai; pode ser empurrado, quase revirado, mas não cai. Pois, uma pedra quadrada, pode ser virada para qualquer lado; ela fica firme. Os mártires pareciam cair, ao serem feridos; mas como se exprime certo cântico? “O justo ainda que caia não ficará prostrado, porque o Senhor o ampara com a mão(Sl 36,24).

Talhados em quadrado, estejais prontos para qualquer provação. Seja para qualquer lado que for que nos revirem, não nos derrubam. Encontre-te firme qualquer acontecimento. Erguer-te-ás nesta construção por piedoso afeto, religião sincera, fé, esperança e caridade. Edificar assim é caminhar. Nas cidades materiais, os edifícios são uma coisa e outra os habitantes. Aquela cidade, é edificada de cidadãos, os próprios cidadãos são as suas pedras, pedras vivas. Diz S. Pedro:

Também vós, como pedras vivas, constituí-vos em um edifício espiritual(1Pd 2,5).

Esta palavra nos foi dirigida. Portanto, acerca desta cidade; sigamo-la.



§ 4
Seus alicerces estão sobre as montanhas santas. Ama o Senhor as portas de Sião”.

Já vos preveni a fim de não imaginardes que alicerce é uma coisa e porta, outra. Por que motivo os apóstolos e profetas são os alicerces? Porque sua autoridade carrega nossa fraqueza. Por que razão são portas? Porque através deles entramos no reino de Deus. Eles nô-lo anunciam. E ao entrarmos através deles, entramos por Cristo, que é, de fato, a porta. Diz-se que Jerusalém tem doze portas, e uma só porta que é Cristo, porque Cristo se acha nas doze portas; e por isso o número dos apóstolos é doze (Jo 10,9; cf Ap 21,12).

Esse número representa um grande mistério.

Também vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel(Mt 19,28).

Se ali existem doze tronos, o décimo terceiro apóstolo, Paulo, não tem onde se sentar nem como julgar; e no entanto ele afirmou que há de julgar não apenas os homens, mas também os anjos. Que anjos, senão os apóstatas? “Não sabeis que julgaremos os anjos?(1 Cor 6,3).

Mas, poderia responder a multidão: Por que te gabas de que hás de julgar? Onde te sentarás? O Senhor alude a doze tronos para os doze apóstolos. Um, Judas, caiu, no lugar dele foi colocado Matias (cf At 1,15-26); ficou completo o número de doze tronos. Em primeiro lugar, procura onde te sentares, e depois ameaça que hás de julgar. Vejamos o sentido dos doze tronos. É um sinal de universalidade. A Igreja se difundiria por todo o orbe da terra, de onde são chamados os que constituem este edifício, unido a Cristo. Por isso, de todas as partes vêm os que serão julgados; portanto, doze tronos: como de todas as partes se entra naquela cidade, fala-se em doze portas. Não somente, portanto, aqueles doze e o apóstolo Paulo, mas quantos haverão de julgar, por causa do significado de universalidade, referem-se àqueles doze tronos. De igual modo, todos os que entrarem relacionam-se com as doze portas. Com efeito, as partes do mundo são quatro: oriente, ocidente, norte e sul. Estas quatro partes assiduamente são nomeadas nas Escrituras. Em relação a elas estão os quatro ventos, conforme no evangelho diz o Senhor que dos quatro ventos há de reunir seus eleitos (cf Mc 13,27).

A Igreja, portanto, se constitui dos que são chamados dos quatro ventos. Como são chamados? De todas as partes são chamados em nome da Trindade. Não se chama senão no batismo, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Quatro vezes três produz doze. 1 Talvez Aurélio, bispo de Cartago.



§ 5
Batei, portanto, com afeto, a estas portas, e Cristo clame em vós:

Abri-me as portas da justiça(Sl 117,19).

Pois, isto se realizou primeiro na Cabeça; seguir-se-á no corpo. Vede o que disse o Apóstolo, porque nele Cristo padecia:

Completo, na minha carne, o que falta das tribulações de Cristo(Cl 1,24).

Completo”, o quê? “O que falta”.

De quê? “Das tribulações de Cristo”.

Onde? “Na minha carne”.

Por acaso faltou algo nas tribulações que sofreu a carne, que assumira o Verbo de Deus, nascido da virgem Maria? Pois, ele sofreu tudo o que devia padecer, voluntariamente, não necessariamente devido ao pecado. E parece que tudo. Crucificado, provou por fim o vinagre, e disse:

Está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito(Jo 19,30).

Que quer dizer:

Está consumado?” Nada falta à paixão. Realizou-se tudo o que foi profetizado a meu respeito. Parecia esperar que se cumprisse. Quem parte deste mundo como ele deixou o corpo? Quem pode agir assim? Ele dissera anteriormente:

Tenho o poder de entregar a minha vida e poder de retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente para retomá-la(Jo 10,17.18).

Entregou quando quis: retomou-a quando quis. Ninguém a tirou, nem estorquiu. Portanto, cumpriram-se todos os sofrimentos, em nossa Cabeça; restavam vir ainda padecimentos de Cristo em seu corpo. Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros (cf 1Cor 12,27).

Como o Apóstolo era contado entre esses membros, disse:

Completo, em minha carne, o que falta das tribulações de Cristo”.

Portanto, vamos para onde Cristo nos precedeu, e ainda é Cristo que se dirige para lá onde nos precedeu. Precedeu Cristo enquanto Cabeça, e segue-o o corpo. Cristo aqui na terra ainda labuta; era Cristo que aqui sofria da parte de Saulo, quando este ouviu-o falar:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4).

Costuma a língua fazer o mesmo, quando reclama se o pé é pisado: Tu me pisas. Ninguém tocou a língua; ela grita de compaixão, e não por que é pisada. Cristo aqui na terra ainda sofre penúria, Cristo aqui é peregrino, Cristo aqui está doente, Cristo aqui é encerrado no cárcere. É injuriá-lo dizer que não é ele quem assim se exprimiu:

Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes. Então os justos responderão: Quando foi que te vimos sofrendo essas coisas e te servimos? E ele replicará: Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,35-40).

Por conseguinte, sejamos edificados em Cristo sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual Cristo é a pedra angular (cf Ef 2,20), porque “ama o Senhor as portas de Sião acima de todos os tabernáculos de Jacó”.

Até parece que Sião não se encontra entre os tabernáculos de Jacó. Onde se situava Sião se não entre o povo de Jacó? Pois Jacó era neto de Abraão, do qual se origina o povo judaico, que se denomina povo de Israel, porque o próprio Jacó foi apelidado Israel. V. Santidade conhece bem tudo isso (cf Gn 32,28).

Mas, como se trata de certos tabernáculos temporais e fictícios, o salmista fala de determinada cidade, entendida em sentido espiritual, de que aquela cidade terrena era sombra e figura:

Ama o Senhor as portas de Sião acima de todos os tabernáculos de Jacó”.

Ama aquela cidade espiritual acima de todas as cidades simbólicas, com as quais se representava aquela cidade permanente, sempre celeste e em paz.



§ 6
3.4 “Coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus”.

Quase já via aquela cidade de Jerusalém na terra. Pois, observai de que cidade fala e de qual são ditas coisas glo-riosíssimas. Quanto à Jerusalém da terra, foi destruída. Invadida pelos inimigos, caiu e já não é o que era; a imagem cessou e passou a sombra. Como então:

Coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus?” Ouve qual a razão disso:

Lembrar-me-ei de Raab e recordar-me-ei de Babi-lônia, que me conhecem”.

Naquela cidade, fala Deus, lembrar-me-ei de Raab e recordar-me-ei de Babilônia. Raab não pertence ao povo judaico; Babilônia não pertence ao povo judaico. Por isso, continua o salmista:

Aí se encontram também os estrangeiros, Tiro, e o povo etíope. De direito, “coisas gloriosas são ditas de ti cidade de Deus”.

Ali não se encontra apenas o povo judaico, oriundo, segundo a carne, de Abraão; mas acham-se todos os povos, sendo nomeados alguns a fim de que se subentendam todos os povos. Diz o salmista:

Lembrar-me-ei de Raab”, a meretriz que morava em Jericó e ali acolheu os mensageiros e os despediu por outro caminho. Ela teve confiança na promessa, temeu a Deus, e foi-lhe dito que pussese na janela um cordão escarlate (Js 2,6,25), isto é, tivesse na fronte o sinal do sangue de Cristo. Ela se salvou assim, e representava a igreja dos gentios. Ora, o Senhor disse aos fariseus soberbos:

Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas estão vos precedendo no reino dos céus(Mt 21,31).

Precedem, porque são violentos; impelem pela fé e todos cedem à sua fé, sem poderem resistir, porque os violentos se apoderam do reino dos céus, pois encontra-se no evangelho:

O reino dos céus sofre violência, e violentos se apoderam dele(Mt 11,12).

Assim agiu o ladrão, mais forte na cruz do que nas estradas (cf Lc 23,40-43).

Lembrar-me-ei de Raab e Babilônia”.

Babilônia é o nome de uma cidade deste mundo. Assim como existe uma cidade santa, Jerusalém, há uma cidade iníqua, Babilônia; todos os iníquos pertencem a Babilônia, como todos os santos a Jerusalém. Mas, também se passa de Babilônia para Jerusalém. De que modo, a não ser por intermédio daquele que justifica o ímpio? (cf Rm 4,5).

A cidade dos homens piedosos é Jerusalém e a dos ímpios, Babilônia. Mas veio aquele que justifica o ímpio, porque disse ele:

Lembrar-me-ei” não somente “de Raab”, mas igualmente “de Babilônia”.

De quais se lembrará ao recordar-se de Raab e Babilônia? “Dos que me conhecem”.

Por este motivo, certa passagem da Escritura diz:

Desfere a tua ira sobre as nações que te não conhecem(Sl 78,6).

Se aqui pede:

Desfere a tua ira sobre as nações que te não conhecem”, suplica em outro salmo:

Estende a tua misericórdia aos que te conhecem(Sl 35,11).

E a fim de que saibais que Raab e Babilônia figuravam os gentios, ao salmista se diz mais ou menos isto: Por que dizes:

Lembrar-me-ei de Raab e Babilônia, que me conhecem?” Por que assim te exprimiste? Responde:

Os estrangeiros”, isto é, os que pertencem a Raab, a Babilônia, “e Tiro”.

Até onde? Até os confins da terra. Pois, escolheu um povo que mora nos confins da terra:

E o povo etíope, aí se encontra”.

Se, portanto, ali está Raab, alí estão os de Babilônia, porque ali se acham os estrangeiros, ali está Tiro, ali o povo etíope, com toda razão “coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus”.



§ 7
5 Já notai um sacramento bem grande. Por meio dele, ali está Raab, por meio dele, Babilônia. Mas já não é Babilônia; deixa de ser Babilônia e começa a ser Jerusalém. A filha se opõe à mãe e passa a ser contada entre os membros daquela rainha, à qual foi dito:

Esquece o teu povo e a casa de teu pai. De tua beleza se encantará o rei(Sl 44,11.21).

Mas, de onde vem que Babilônia anele por Jerusalém? Como Raab alcançaria aqueles alicerces? Como o fariam os estrangeiros, Tiro, o povo etíope? Ouve, como:

Sião, minha mãe, dirá um homem”.

Um determinado homem diz:

Sião, minha mãe”; e por meio dele aproximam-se todos esses. Mas quem é este homem? O salmo o diz, se o ouvirmos, se apreendermos:

Sião, minha mãe, dirá um homem”.

O salmo prossegue, como se tu perguntasses por meio de quem vieram Raab, Babilônia, os estrangeiros, Tiro, os etíopes. Eis por intermédio de quem eles vieram:

Sião, minha mãe, dirá um homem; nasceu nela e o próprio Altíssimo a fundou”.

Podia falar mais claramente, irmãos? Verdadeiramente “coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus”.

Eis:

Sião, minha mãe, dirá um homem”.

Que homem? “O que nela nasceu”.

Nela nasceu, e ele mesmo a fundou. Como nasceu nela e ele mesmo a fundou? Para que nela se fizesse homem, já era fundada. Entende, se podes. De fato, “Sião, minha mãe, dirá”; mas é um “homem”, que “dirá: Sião, minha mãe”.

Um homem “nela nasceu”; fundou-a, não um homem, mas o “Altíssimo”.

Fundou a cidade em que nasceria, como criou a mãe, da qual nasceria. Que significa isto, irmãos? Que promessas, quanta esperança temos! Eis que, por nossa causa, o Altíssimo fundou a cidade, e diz a esta cidade:

Minha mãe. Nasceu nela e o próprio Altíssimo a fundou”.



§ 8
6 Podia alguém dizer: Como conheceis isto? Todos nós cantamos essas palavras, e Cristo homem canta em todos. Homem por nossa causa, Deus muito antes de nós. Mas que importância tem que existisse antes de nós? Existia antes da terra e do céu, antes dos séculos. Este homem, portanto, por nossa causa nasceu nela, e o próprio Altíssimo a fundou. De onde sabemos estas coisas? “No livro dos povos escreverá o Senhor”.

Continua o salmo:

Sião, minha mãe, dirá um homem; nasceu nela e o próprio Altíssimo a fundou. No livro dos povos e dos príncipes escreverá o Senhor”.

Quais são esses príncipes? Os que nela nasceram. Os príncipes que nela nasceram, nela se fizeram príncipes. Mas, antes de se fazerem príncipes nela, Deus escolheu o que é vil e desprezado no mundo para confundir o que é forte (1 Cor 1,27.28).

Acaso o pescador era príncipe? Era príncipe o publicano? Certamente eram príncipes, porque nela nasceram. Quais são estes príncipes? Vieram príncipes de Babilônia, príncipes do mundo que acreditaram, e vieram a Roma, uma espécie de capital de Babilônia. Não foram procurar o templo do imperador, mas o túmulo do pescador. De onde vieram estes príncipes? Deus escolheu o que é fraco no mundo para confundir o que é forte, Deus escolheu o que é vil e o que não é para reduzir a nada o que é. Assim age aquele que levanta do pó o indigente e do estrume o pobre (cf Sl 112,7.8).

Para que o levanta? Para colocá-lo com os príncipes, com os príncipes do seu povo. Coisa grandiosa, grande alegria, enorme regozijo. Depois, vieram a esta cidade também os oradores; mas só vieram depois que os pescadores os precederam. É um grande acontecimento. Onde se deu, senão naquela cidade de Deus, da qual foram ditas coisas gloriosas?



§ 9
7 Por isso, depois de conferidas e produzidas todas as alegrias, como encerra o salmo? “Habitar em ti é como o conjunto de todas as alegrias”.

Conjunto de todas as alegrias é habitarem ali todos os que se alegram nesta cidade. Na peregrinação terrestre somos triturados. A única alegria será nossa morada. Perecerão os trabalhos e os gemidos; passarão as preces e a estas sucederão os louvores. Pois, o céu é a morada dos que se regozijam, e não haverá gemidos de quem ainda deseja, e sim a alegria da fruição. Estará presente Deus por quem agora suspiramos.

Seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é(cf 1Jo 3,2).

Nossa única ocupação será louvar a Deus e dele fruir. Que mais procuraremos? Basta-nos aquele por quem tudo foi feito. Seremos habitados e habitaremos. Tudo estará submisso a Deus, para que ele seja tudo em todos (cf 1Cor 15,28).

Felizes os que habitam em tua casa”.

Por que felizes? Teriam ouro, prata, numerosa família, muitos filhos? Por que felizes? “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos(Sl 83,5).

Felizes devido a esta única ocupação, este lazer. Somente ela, irmãos, desejaremos quando lá estivermos. Preparemo-nos para alegrar-nos junto de Deus, para louvar a Deus. As boas obras que lá nos conduzem, não existirão mais ali. Nós o explicamos ontem1, o mais possível. Não existirão ali obras de misericórdia, pois não haverá miséria alguma. Não encontrás pobre, não haverá nu, ninguém virá sedento a teu encontro, nenhum peregrino, nenhum doente para visitares, nenhum morto a ser sepultado, nem contenda a ser apaziguada. Que farás ali? Talvez as necessidades corporais nos obrigarão a plantar vinhas, a arar, negociar, viajar? Ali será completo o repouso, pois ali todas as obras impostas pela necessidade terminarão; extinta a necessidade, eliminam-se os trabalhos impostos por ela. Como será, então? A língua humana, na medida do possível, o declara, nos seguintes termos:

Habitar em ti é como o conjunto de todas as alegrias”.

Que quer dizer:

como?” Por que disse:

como?” Porque o regozijo será tal como na terra não se conhece. Vejo aqui muito regozijo, e muitos se alegram neste mundo, cada qual a seu modo. Mas, não há comparação com aquele regozijo, que será uma espécie de alegria. Pois, se disser: Alegria, logo ocorre a alguém um prazer qual o ocasionado pela bebida, os banquetes, a avareza, as honrarias mundanas. Os homens se orgulham e parecem loucos de alegria; “mas para os maus não há alegria(Is 48,22, sg. LXX), diz o Senhor. Existe outra alegria, que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu (cf 1Cor 2,9).

Habitar em ti é como o conjunto de todas as alegrias”.

Preparemo-nos para outra espécie de alegria, porque aqui na terra encontramos algo semelhante, mas não idêntico. Não nos preparemos, pois, para fruir no céu de alegrias iguais às terrenas. Do contrário, nossa abstinência será avareza. Há homens, convidados a um lauto banquete, onde serão oferecidas muitas e caras iguarias; não almoçam. Se lhes perguntas por que não almoçam, respondem: Estamos jejuando. É uma coisa bem importante o jejum cristão. Mas, não elogies muito depressa. Pergunta qual o motivo do jejum. Trata-se de bom apetite, não de religião. Por que motivo jejuam? Para não encherem o estômago de alimentos comuns, e não poderem ingerir os apetitosos. Portanto, é questão de apetite o seu jejum. De fato, o jejum é importante: é uma luta contra o estômago e a garganta; às vezes luta em favor deles mesmos. Portanto, meus irmãos, se imaginais que tereis algo de semelhante na pátria à qual nos chama a trombeta celeste, e por causa disto vos privais de bens presentes, a fim de os receberdes lá com maior abundância, estais agindo como os que jejuam tendo em vista banquetear-se melhor e abstêm-se devido a maior incontinência. Não procedais desta maneira. Preparai-vos para algo de inefável. Purificai o coração de todas as afeições terrenas e mundanas. O que veremos nos fará felizes, e só isto nos bastará. Que será? Não comeremos? Ao contrário, nós comeremos. O nosso alimento nos há de refazer sem se consumir.

Habitar em ti é como o conjunto de todas as alegrias”.

Já foi dito como nos alegraremos:

Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos”.

Agora também louvemos o Senhor, quanto possível, no meio de gemidos, porque ao louvá-lo aumenta nosso anelo por ele, e ainda não o possuímos. Quando o alcançarmos, cessará todo gemido e permanecerá somente puro e eterno louvor. Voltando-nos para o Senhor, etc. 1 Cf Com. s. Sl 85, 24.