ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 85 | ||
§ 85:1 | ɱ Mostraste favor, Senhor, à tua terra; fizeste regressar os cativos de Jacó. | |
§ 85:2 | Ꝓ Perdoaste a iniqüidade do teu povo; cobriste todos os seus pecados. | |
§ 85:3 | ꭆ Retraíste toda a tua cólera; refreaste o ardor da tua ira. | |
§ 85:4 | ꭆ Restabelece-nos, ó Deus da nossa salvação, e faze cessar a tua indignação contra nós. | |
§ 85:5 | ⱻ Estarás para sempre irado contra nós? estenderás a tua ira a todas as gerações? | |
§ 85:6 | Ɲ Não tornarás a vivificar-nos, para que o teu povo se regozije em ti? | |
§ 85:7 | ɱ Mostra-nos, Senhor, a tua benignidade, e concede-nos a tua salvação. | |
§ 85:8 | ⱻ Escutarei o que Deus, o Senhor, disser; porque falará de paz ao seu povo, e aos seus santos, contanto que não voltem à insensatez. | |
§ 85:9 | Ƈ Certamente que a sua salvação está perto aqueles que o temem, para que a glória habite em nossa terra. | |
§ 85:10 | Ɑ A benignidade e a fidelidade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram. | |
§ 85:11 | Ɑ A fidelidade brota da terra, e a justiça olha desde o céu. | |
§ 85:12 | Ꝋ O Senhor dará o que é bom, e a nossa terra produzirá o seu fruto. | |
§ 85:13 | Ɑ A justiça irá adiante dele, marcando o caminho com as suas pegadas. | |
O SALMO 85 | ||
SERMÃO (Pregado nas vigílias da festa de S. Cipriano, em Mapália) | ||
§ 1 | 1 Dom maior não poderia Deus conceder aos homens do que fazer com que seu Verbo, pelo qual criou todas as coisas, se tornasse Cabeça da humanidade, unindo a si os homens, enquanto seus membros, a ele Filho de Deus e filho do homem, um só Deus com o Pai, um só homem com os homens. Ao nos dirigirmos, suplicantes, a Deus não apartemos o Filho, e ao rezar o corpo do Filho, não se separe da Cabeça. Seja ele o único Salvador de seu corpo, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que suplique por nós, ore em nós, e a quem enderecemos nossas preces. Ora por nós como nosso sacerdote, ora em nós como nossa Cabeça e a ele oramos como a nosso Deus. Reconheçamos, portanto, na sua as nossas vozes, e sua voz em nós. E se algo se diz a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo, especialmente nas profecias, atinente a uma humildade indigna de Deus, não duvidemos atribuí-la àquele que não hesitou unir-se a nós. A ele, efetivamente, serve toda a criação, porque por ele foram feitas todas as criaturas. Por isso, se fixamos o olhar em sua sublimidade e majestade, se escutamos a palavra: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1-3), se contemplamos a supereminente divindade do Filho de Deus, que excede as mais sublimes criaturas, ouvimo-lo, de outro lado também em algumas partes da Escritura a gemer, a orar, confessar. Hesitamos, então, em atribuir-lhe tais palavras, porque o nosso pensamento há pouco impregnado da contemplação da divindade, recusa descer a sua humildade. Parece-lhe injúria reconhecer essas palavras como provindas de sua humanidade, pois dirigia-se a ele quando suplicava a Deus. A mente hesita muito e procura outro modo de explicar. Mas, a Escritura não lhe deixa outro recurso senão referir a Cristo o sentido, sem dele se apartar. Desperte, portanto, e seja vigilante na fé. Verifique que aquele a quem contemplava pouco antes na condição de Deus, assumiu a condição de escravo, à semelhança do homem. E sendo reconhecido como homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz (cf Fl 2,5-8). Crucificado, quis fazer suas as palavras do salmo: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Sl 21,2). A ele se roga, por conseguinte, na condição de Deus, e ele reza na condição de escravo. No primeiro caso, Criador, no segundo, criado, assume a condição de criatura necessariamente mutável, mas permanece imutável e faz de nós consigo um só homem, Cabeça e corpo. Oramos, portanto, a ele, por ele, nele. Falamos com ele e ele fala conosco. Com ele proferimos e ele profere em nós a oração deste salmo, intitulado: “Oração de Davi”. Nosso Senhor, segundo a carne, é filho de Davi; segundo a divindade, todavia, é Senhor de Davi e criador de Davi. É anterior não apenas a Davi, mas até a Abraão, do qual descende Davi. Até mesmo anterior a Adão, do qual se originam todos os homens. Anterior ainda ao céu e a terra, que englobam toda a criação. Ninguém, portanto, ao ouvir estas palavras, assegure: Não é Cristo quem fala. Ou ainda: Não sou eu que falo. Ao contrário se reconhece achar-se no corpo de Cristo, afirme ambas as coisas: Cristo fala, e: Eu falo. Não queiras proferir algo sem ele, e ele nada dirá, excluindo-te. Não é isto que encontramos no evangelho? Ali certamente está escrito: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por ele”; também com toda certeza encontramos ali: Jesus começou a se entristecer (Mt 26,38), Jesus estava fatigado (Jo 4,6), Jesus dormiu (Mt 8,24), teve fome (id 4,2), teve sede (Jo 4,7; 19,28), e pernoitou em oração. “Passou a noite inteira em oração, gotas de sangue escorriam por seu corpo” (Lc 6,12; 22,43-44). O que queria mostrar, quando, ao orar, gotas de sangue escorriam por seu corpo (Lc 22,43.44), senão que o sangue dos mártires começava a ser derramado de seu corpo, a Igreja? | |
§ 2 | 1 “Inclina, Senhor, teu ouvido e escuta-me”. O Senhor fala na condição de escravo e tu, escravo, falas na condição de teu Senhor. “Inclina, Senhor, teu ouvido”. Ele inclina o ouvido se tu não levantas a cabeça. Aproxima-se do homem humilhado e afasta-se para longe daquele que se exalta, a não ser de alguém que se humilhara e ele mesmo exaltou. Por conseguinte, Deus inclina seu ouvido para nós. Ele está no alto e nós em baixo; ele nas alturas, e nós no abaixamento, embora não abandonados. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem haja talvez alguém que se disponha a morrer” (Rm 5,8.7). Nosso Senhor, porém, morreu pelos ímpios. Não tínhamos méritos precedentes, em vista dos quais morresse o Filho de Deus. Tanto maior foi a misericórdia, por serem nulos os méritos. Com que segura e firme promessa reserva para os justos a sua vida, se deu pelos ímpios a sua morte! “Inclina, Senhor, teu ouvido e escuta-me, porque sou desvalido e pobre”. Com efeito, não in-clina seu ouvido para o rico. Inclina-o para o desvalido e pobre, isto é, para o humilde que confessa, para o necessitado de misericórdia. Não o inclina para o saciado, o orgulhoso que se enaltece, como se nada lhe faltasse, dizendo: “Eu te dou graças”, porque não sou como este pu-blicano. O fariseu rico gabava-se de seus méritos, e o publicano pobre confessava seus pecados (Lc 18,11-13). | |
§ 3 | Não quero que interpreteis, irmãos, a afirmação: Não inclina o ouvido para o rico, como se Deus não atendesse os que possuem ouro e prata, família e fundos. Talvez tenham nascido em tal condição e tenham tal posição. Apenas recomendo que se lembrem da palavra do Apóstolo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os a que não sejam orgulhosos” (1 Tm 6,17). Aqueles que não têm mente soberba, para Deus são pobres. E ele inclina seu ouvido aos pobres, indigentes e necessitados. Sabem que sua esperança não deve se apoiar em ouro e prata, nem em bens que eles vêem passarem com o tempo. Basta que as riquezas não os levem à perdição, é suficiente que não os prejudiquem, porque, de fato, em nada aproveitam. Sem dúvida, as obras de misericórdia são úteis ao rico e ao pobre. Ao rico devido à boa vontade e às obras, ao pobre somente pela boa vontade. Quem despreza tudo aquilo que costuma encher de soberba é pobre de Deus. Deus inclina para ele o ouvido, porque conheceu seu coração contrito. Certamente, irmãos, lemos e acreditamos que aquele pobre que jazia coberto de chagas à porta do rico, pelos anjos foi transportado ao seio de Abraão. O rico, porém, que, vestido do púrpura e linho finíssimo, todos os dias se banqueteava e se regalava, foi arrastado ao inferno para ser atormentado (cf Lc 16,19-24). Foi, efetivamente, o pobre, em vista de sua pobreza, levado pelos anjos, enquanto o rico pelo pecado de nadar em riquezas foi entregue aos tormentos? Naquele pobre é honrada a humildade; no rico, no entanto, é condenada a soberba. Brevemente provo que no rico não foram as riquezas que o levaram ao castigo e sim a soberba. Indubitavelmente, o pobre foi levado ao seio de Abraão. Do mesmo Abraão afirma a Escritura que era possuidor de muito ouro e prata, e era muito rico na terra (Gn 13,2). Se qualquer rico é arrastado aos tormentos, como é que Abraão precedera o pobre, para recebê-lo em seu seio, quando este para lá levado? Mas, Abraão, no meio das riquezas, era pobre, humilde, observante dos preceitos e obediente. A tal ponto tinha em conta de nada aquelas riquezas que à ordem do Senhor imolou seu Filho (cf Gn 22,10), para quem reservava as suas riquezas. Aprendei, portanto, a serdes desvalidos e pobres, quer tenhais, quer não alguma coisa neste mundo. Pois, existem também mendigos soberbos, ou, ao invés, possuidores de riquezas que confessam a Deus. Deus resiste aos soberbos, quer revestidos de seda, quer em andrajos; mas dá a graça aos humildes (Tg 4,6), tanto os que têm posses neste mundo quanto os que não possuem. Deus inspeciona o íntimo; ali pesa, ali examina. Não vês a balança de Deus; nela teu pensamento é pesado. Vede o que o salmista apresenta como motivo de ser ouvido, isto é, atendido: “Porque sou desvalido e pobre”. Verifica se és pobre e indigente; se não fores, não serás ouvido. Rejeita tudo o que te diz respeito, ou que há em ti de que possas presumir. Seja Deus todo motivo de pre-sumires. Sente necessidade dele para que ele te cumule. Tudo o que possuíres fora dele é imensamente vazio. | |
§ 4 | 2 “Guarda a minha alma porque sou santo”. Não sei se poderá algum outro assegurar: “Porque sou santo” a não ser quem viveu sem pecado neste mundo. Não cometeu pecado, mas perdoou todos os pecados. Reconhecemos sua voz nestas palavras: “Porque sou santo, guarda a minha alma”. Trata-se, de fato, da condição de escravo que assumira, alma e corpo. Não foi como alguns afirmaram1, que era constituído apenas de carne e Verbo, mas era formado de carne, alma e Verbo. E tudo isto constituía o único Filho de Deus, um só Cristo, um só Salvador; na condição de Deus igual ao Pai, na condição de servo Cabeça da Igreja. Portanto, quando ouço: “Porque sou santo”, reconheço sua voz. Dela separo a minha? Sem dúvida ele não se separa de seu corpo ao se exprimir desta maneira. E eu ousarei dizer: “Porque sou santo?” Se disser alguém que é santo enquanto santificador, sem necessitar de quem o santifique, é soberbo e mentiroso. Se, porém, declarar que é santo por ter sido santificado, segundo a palavra: “Sede santos, porque eu sou santo” (Lv 19,2), ouse afirmar o corpo de Cristo, ouse aquele único homem que clama dos confins da terra (cf Sl 60,3) com sua Cabeça, e a ela subordinado: “Porque sou santo”. Pois, recebeu a graça da santidade, a graça do batismo e da remissão dos pecados. “Eis o que vós fostes”, diz o Apóstolo, enumerando muitos pecados, leves e graves, comuns e horríveis: “Eis o que vós fostes. Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados” (1 Cor 6,11). Se, portanto, ele fala em santificados, diga cada um dos fiéis: “Sou santo”. Não se trata de exaltar-se por soberba, mas de confissão cheia de gratidão. Se, pois, afirmares que és santo por ti mesmo, és soberbo; mas se, enquanto fiel em Cristo e membro de Cristo, disseres que não és santo, és ingrato. O Apóstolo, ao censurar a soberba, não disse: Não tens, mas afirmou: “Que é que possuis que não tenhas recebido?” (1 Cor 4,7). Não te repreendia por dizeres ter o que não tens, e sim porque querias que procedesse de ti mesmo o que tinhas. Ao invés, reconhece que tens, que de ti mesmo nada tens, a fim de não seres nem soberbo, nem ingrato. Dize a teu Deus: Sou santo, porque me santificaste; porque recebi o que não tinha; porque tu deste sem que eu merecesse. De outro modo, começas a injuriar o próprio nosso Senhor Jesus Cristo. Se todos os cristãos fiéis nele batizados dele se revestiram, conforme assevera o Apóstolo: “Todos vós, que fostes batizados em Cristo vos vestistes de Cristo” (Gl 3,27). Se eles se tornaram membros de seu corpo e afirmam que não são santos, injuriam a Cabeça, que não teria membros santos. Vê, portanto, onde já achas, e apreende a dignidade de tua Cabeça. Com efeito, eras treva, “mas agora luz no Senhor. Outrora éreis treva”, diz o Apóstolo (Ef 5,8), mas continuaste a ser treva? O iluminador terá vindo para perma-necerdes nas trevas, ou para nele vos tornardes luz? Por esta razão diga cada um dos cristãos, ou antes, diga todo o corpo de Cristo, clame por toda parte, onde sofre tribulações, diversas tentações, inúmeros escândalos; diga: “Guarda a minha alma porque sou santo; salva, Senhor teu servo, que em ti espera”. Eis o santo que não é soberbo, porque espera no Senhor. 1 Os apolinaristas. | |
§ 5 | 3 “Tem piedade de mim, Senhor, porque clamei por ti todos os dias”. Não foi um dia só: “todos os dias”, quer dizer, em todo tempo. Desde que o corpo de Cristo geme no meio das tentações, até o fim do mundo, quando passarão as angústias, geme este homem e clama a Deus. Cada um de nós tem a sua parte neste clamor de todo o corpo. Clamaste em teus dias e teus dias passaram; outro te sucedeu, e clamou em seus dias; tu aqui, ele ali, outro em outra parte. O corpo de Cristo clama todos os dias, enquanto morrem uns membros e outros sucedem. Um só homem atinge até o fim dos séculos. Os membros de Cristo clamam e uns membros já chegaram ao repouso junto dele, e outros agora clamam. Depois que nós obtivemos o repouso, outros clamarão. Após eles, outros clamarão. Aqui o salmista escuta a voz de todo o corpo de Cristo, a proferir: “Clamei por ti todos os dias”. Nossa Cabeça, porém, à direita do Pai, intercede por nós (cf Rm 8,34). Acolhe determinados membros, a outros castiga, purifica a alguns, a outros consola, cria outros, a outros chama, novamente chama a alguns, a outros corrige a alguns restabelece. | |
§ 6 | 4 “Alegra a alma de teu servo, porque a ti, Senhor, elevo a minha alma”. Alegra a minha alma, porque a ti a elevei. Estava no chão, e ali senti a amargura. Elevei-a a ti para não desfalecer de amargura, não perder a suavidade de tua graça; alegra-a junto de ti. Somente tu és a alegria; o mundo está cheio de amargura. O Senhor, com razão, adverte a seus membros a que tenham o coração ao alto. Que eles ouçam e o pratiquem; elevem para ele o que se sente mal sobre a terra. Se o coração se eleva para Deus, não se corrompe. Se guardaste trigo em subterrâneos, tirá-lo-ias para cima, a fim de não se estragar. Mudarias o lugar do trigo e deixas o coração se estragar no chão? Suspenderias o trigo; eleva ao céu teu coração. Como poderei fazer isto? perguntas. Precisarei de quantas cordas, de que máquinas, de que espécie de escadas? Os degraus são os afetos, o caminho é tua vontade. Amando sobes, negligenciando desces. Se amas a Deus, estás no céu, mesmo habitando na terra. O coração não se eleva da mesma maneira que o corpo. O corpo para se elevar muda de lugar; o coração para se elevar muda a vontade. “Porque a ti, Senhor, elevo a minha alma”. | |
§ 7 | 5 “Porque, Senhor, és suave e manso”. Por isso, alegra-nos. O salmista, aborrecido por causa das amarguras terrenas, quis adoçá-las e procurou a fonte da doçura, mas não a encontrou na terra. Para qualquer lado que se voltasse, achava escândalos, temores, tribulações, tentações. Em quem encontrar segurança? De onde esperar alegria certa? Nem de si mesmo, quanto mais de outro? Ou são maus, e é preciso suportá-los e esperar que mudem de vida; ou são bons, e importa amá-los, mas sempre com receio (uma vez que podem mudar) de se tornarem maus. A malícia dos primeiros amargura a alma; a solicitude e o medo a respeito dos bons também; não resvale quem caminhava bem. Para onde quer que se volte, encontra amargura nas coisas terrenas. Não existe meio de aliviá-la, a não ser elevar-se para Deus. “Porque, Senhor, és suave e manso”. Que significa: “manso?” Que me carregas até que alcance a perfeição. É bem verdade, meus irmãos. Falo como homem entre homens, um dentre eles. Cada qual examine seu coração e considere-se sem adulação, sem afagos. Nada há de mais tolo do que alguém iludir-se a si mesmo com afagos e seduções. Observe e verifique quanto se passa no coração humano. Veja como as próprias orações muitas vezes são perturbadas por pensamentos vãos, de tal modo que mal se mantém o coração junto de Deus. Quer conter-se, parar, de certa maneira fugir de si mesmo, mas não encontra cercados que o prendam, nem obstáculos que impeçam suas divagações e movimentos desordenados, de tal sorte que possa estar com alegria perto de seu Deus. Dificilmente não aparece uma oração dessas entre muitas outras. Talvez digam todos que isso lhes sucede, mas não a um ou outro; contudo encontramos nas Escrituras de Deus que Davi suplica em certa passagem: “Porque, Senhor, encontrei meu coração para te dirigir esta oração” (2Rs 7,27). Disse que encontrou seu coração como se este costumasse fugir, e ele o perseguisse qual fugitivo, sem conseguir apanhá-lo; então clama a Deus: “Desfaleceu-me o coração” (Sl 39,13). Por esta razão, meus irmãos, dando atenção ao texto: “Tu és suave e manso” parece-me ser este o sentido da palavra: “manso. Alegra a alma de teu servo, porque a ti, Senhor, elevo a minha alma. Porque, Senhor, és suave e manso”. Provavelmente diz o salmista que Deus é manso, porque suporta nossos males e não obstante espera nossa oração a fim de aperfeiçoar-nos. E quando lhes oferecemos nossa oração, recebe-a de bom grado e a atende, sem se lembrar de tantas que proferimos inconvenientemente, aceitando a única que conseguimos fazer bem. Quem suportaria, meus irmãos, que um amigo comece a lhe falar e quando ele quiser atender, o amigo lhe vire as costas e se ponha a falar com outro de assunto diferente? Ou um juiz há de te tolerar se recorres a ele, marcas um lugar para te ouvir e de repente, ao lhe falares, o deixas e começas a conversar com um amigo? E Deus tolera tantos corações a orarem, mas a cogitarem de coisas diferentes. Já não falo de questões más, nem falo de coisas perversas e opostas a Deus; trato das supérfluas em que pensas, injuriando aquele com quem começaras a falar. Orar é falar com Deus; se lês, Deus te fala, se oras, falas a Deus. Mas, então? Devemos nada mais esperar para o gênero humano, e afirmar que a condenação aguarda todo homem ao qual, enquanto ora, se insinua algum pensamento, que interrompe sua oração? Se o afirmarmos, irmãos, não vejo mais esperança alguma. Com efeito, como existe uma esperança em Deus, porque é grande a sua misericórdia, peçamos: “Alegra a alma de teu servo, porque a ti, Senhor, elevo a minha alma”. Mas, como? Como pude, como tu me deste força, como consegui prendê-la ao querer fugir. Escapou-te, porque todas as vezes que estiveste diante de mim (imagina que é Deus quem assim se exprime), tiveste tantos pensamentos vãos e supérfluos e mal me apresentaste uma oração firme e estável. “Porque és suave, Senhor, e manso”. És manso, pois me toleras. Desfaleço de fraqueza; cura-me e ficarei de pé; confirma e me firmarei. Até que o faças, suportas-me: “Porque, Senhor, és suave e manso”. | |
§ 8 | “E muito misericordioso”. Não somente misericordioso, mas “muito misericordioso”. Nossa iniqüidade é abundante, mas também abundante é tua misericórdia. “E muito misericordioso para com todos que te invocam”. Então, por que a Escritura afirma em muitas passagens: “Chamar-me-ão, e não os escutarei” (Pr 1,28) (certamente “é misericordioso para com todos que o invocam”), senão porque alguns invocam, mas não invocam a ti? Deles foi dito: “Não invocaram a Deus” (Sl 52,6). Invocam, mas não a Deus. Invocas aquilo que amas; invocas aquilo que chamas a ti, invocas tudo aquilo que queres que venha a ti. De fato, se invocas a Deus, para obteres dinheiro, herança, dignidades mundanas, estás invocando aquilo que ambicionas alcançar; Deus te serve para te ajudar a satisfazer tuas ambições e não para ouvir bons desejos. Deus é bom para contigo, se dá o que queres. Mas, se queres o mal, não seria bom antes se não te conceder o que queres, por misericórdia? Efetivamente, se não te der, Deus não será mais para ti, e dirás: Pedi tanto, tantas vezes e não fui ouvido! Mas, o que pedias? Talvez a morte de teu inimigo. E se ele também pedia a tua? Quem te criou, criou-o igualmente a ele; és homem e ele também. Deus, porém é juiz que ouve a ambos e a ambos não atende. Ficas triste porque não te ouviu contra outro; alegra-te porque não o atendeu contra ti. Mas respondes: Eu não pedia isso. Não pedia a morte de meu inimigo, mas suplicava a vida de meu filho. Que pedia de mal? Nada de mal, conforme teu modo de pensar. Mas, se Deus o arrebatou para que a malícia não lhe pervertesse o julgamento? (cf Sb 4,11). Replicas: Era pecador e queria que continuasse a viver para se corrigir. Tu querias que continuasse a viver para se tornar melhor; e se Deus sabia que no caso de continuar a viver ficaria pior? Como podes saber o que mais útil lhe seria, morrer ou viver? Se, portanto, não sabes, volta a teu coração, entrega a Deus a realização de seu desígnio. Perguntas: O que hei de fazer? Como rezar? Como rezar? Conforme te ensinou o Senhor, conforme te ensinou o mestre celeste. Invoca a Deus enquanto Deus, ama a Deus enquanto Deus. Nada de melhor. Deseja-o, anela por ele. Vê como o invocou outro salmo: “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei”. Que coisa é esta? “Habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida”. Com que finalidade? “Para contemplar as delícias do Senhor” (Sl 26,4). Se, por conseguinte, queres amar a Deus, ama-o com os mais sinceros, profundos e castos suspiros, com dileção, arde de desejo por ele, anela por ele com tanto maior deleite quanto nada podes encontrar de melhor, de mais aprazível, de mais durável. Pode haver algo de mais durável do que aquilo que é eterno? Não tenhas medo de perder um dia aquele que impede tua ruína. Se, portanto, o invocas como Deus, tem certeza de que serás ouvido. Convém-te este versículo: “E muito misericordioso para todos que te invocam”. | |
§ 9 | Não digas, portanto: Ele não me deu determinada coisa. Examina tua consciência; pondera, interroga, não te poupes. Se verdadeiramente invocaste a Deus, tem certeza de que não te era proveitoso aquilo que querias obter no tempo, e por isso não te deu. Edifique-se com isso vossos corações, irmãos, corações cristãos, corações fiéis. Não vos entristeçais, como se tivessem sido frustrados vossos desejos. Não vos irriteis contra Deus; não é bom para vós recalcitrar contra o aguilhão (cf At 9,7). Recorrei às Escrituras. O diabo é ouvido, e o Apóstolo não é atendido. Que vos parece? Como é que os demônios são atendidos? Eles pediram para entrar nos porcos e foi-lhes concedido (cf Mt 8,31.32). Como foi ouvido o diabo? Pediu para tentar Jó e recebeu permissão (cf Jó 1,11.12; 2,5.6). Como não foi ouvido o Apóstolo? “Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne — um anjo de Satanás para me espancar. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2 Cor 12,7-9). O Senhor ouviu aquele que se dispunha a condenar, e não ouviu a quem queria curar. Pois, o médico não dá ao doente muita coisa que este lhe pede. Não atende a vontade do doente para atender a sua saúde. Pensa então que Deus é teu médico; pede-lhe a saúde e ele mesmo se tornará a tua salvação. Não será uma saúde extrínseca, mas ele mesmo será tua salvação. Não aprecies outra salvação fora dele, mas faze conforme encontras no salmo: “Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação” (Sl 34,3). Que existe de importante para ti? Que te dirá ele para se dar a ti? Queres que ele se dê a ti? Como se dará a ti se queres ter o que ele não quer que possuas? Afasta os obstáculos a fim de que ele possa entrar. Refleti e considerai, irmãos, acerca dos bens que Deus concede aos pecadores; e concluireis quais reserva a seus servos. Aos pecadores que o blasfemam cada dia ele dá o céu e a terra, dá as fontes, os frutos, a saúde, os filhos, a fartura, a fertilidade. Somente Deus pode dar todos esses bens. Se aos pecadores concede tais bens, que julgas há de reservar para seus fiéis? Ou talvez deva-se pensar que se dá tais coisas aos maus, nada há de guardar para os bons? Ao contrário, reserva de fato não a terra, mas o céu. Talvez seja muito pouco o que digo, ao falar em céu; ele dará a si mesmo, o criador do céu. O céu é belo; mais belo ainda é quem fez o céu. Mas, vejo o céu, e a ele não vejo. Por conseguinte, tens olhos para ver o céu e ainda não tens coração para ver o criador do céu. No entanto, ele veio do céu à terra a fim de purificar o coração, com o qual se pode ver quem fez o céu e a terra. Espera, contudo, com paciência a saúde. Ele sabe quais os medicamentos que te haverão de curar; sabe com que cortes e cauterizações. Contraíste a enfermidade ao pecares; ele veio não somente fomentar, mas também cortar e queimar. Não notas como os homens sofrem nas mãos dos médicos? É um homem que promete algo de incerto. Vais sarar, diz o médico. Ficarás bom se eu cortar. É um homem que fala e fala a outro homem. Nem aquele que fala está seguro do que diz, nem o que ouve, porque fala a um homem quem não o fez, nem sabe perfeitamente como ele vai reagir. E no entanto, o doente acredita na palavra de um homem que ignora as reações humanas. Ele apresenta os seus membros, deixa-se amarrar, ou as vezes permite que se corte e queime, mesmo sem amarrá-lo. E talvez recupere a saúde por poucos dias, ignorando quando vai morrer depois do tratamento. É possível que morra durante o tratamento; e talvez não poderá sarar. E Deus? Quando foi que prometeu e enganou? | |
§ 10 | 6 “Presta ouvidos, Senhor, a minha oração”. Oração cheia de sentimento. “Presta ouvidos, Senhor, a minha oração”, isto é, guardem teus ouvidos a minha oração. Fixa-a em teus ouvidos. Como proferi-la para gravá-la nos ouvidos de Deus? Responda-nos Deus: Queres que se grave tua oração em meus ouvidos? Grava minha lei em teu coração. “Presta ouvidos, Senhor, a minha oração e atende à voz de minha súplica”. | |
§ 11 | 7 “No dia de minha tribulação clamei por ti, porque me ouviste”. A razão por que ouves está em que “no dia da minha tribulação clamei por ti”. Pouco mais acima dissera: “Clamei todos os dias”, todos os dias estou atribulado. Nenhum cristão, portanto, afirme haver um dia em que não sofra tribulação. Todos os dias, em todo o tempo. Todos os dias sente-se atribulado. Como? Mesmo quando tudo corre bem existe tribulação? Certamente, existe. De onde vem? Porque enquanto habitamos este corpo, estamos fora, longe do Senhor (cf 11 2Cor 5,6). Por maior que seja o bem-estar neste mundo, ainda não estamos naquela pátria, para onde nos apressamos a regressar. Quem acha agradável a peregrinação não ama a pátria. Se a pátria é doce, a peregrinação é amarga; e se é amarga, existe tribulação todos os dias. Quando não haverá mais tribulação? Ao chegarmos aos deleites da pátria. “Delícias infindas acham-se a tua destra. Encher-me-ás de alegria ante a tua face. Para contemplar as delícias do Senhor” (Sl 15,11: Sl 26,4). Ali passarão a labuta e os gemidos; ali não haverá preces e sim louvores. Ali existirá Aleluia, e Amém, em uníssono com os anjos; ali será a visão indefectível e o amor sem tédio. Enquanto lá não chegarmos, verificais que não temos o bem em plenitude. Podes ter abundância de tudo; observa se estás certo de que tudo isso não terminará. Mas, tenho o que não tinha; chegou o dinheiro que não havia. Talvez também tenha chegado o medo que não existia. Provavelmente te sentias mais seguro quando mais pobre. Enfim, haja riquezas, afluam os bens deste mundo; contanto que se tenha garantia de que não acabarão. Deus te dirá do alto: Ficarás eternamente entre essas coisas, elas ficarão eternamente contigo, mas não verás a minha face. Ninguém consulte a carne. Consultai o espírito. Responda vosso coração. Respondam a esperança, a fé, a caridade, que começaram a existir em vós. Então, se recebermos garantia de afluência de bens deste mundo, para sempre, e Deus nos disser: Não vereis a minha face, teremos alegria nestes bens? Pode ser que alguém preferisse isso e dissesse: Tenho bens em abundância, sinto bem-estar, nada mais procuro. Este ainda não começou a amar a Deus; ainda não começou a suspirar como um peregrino. Longe de nós, longe de nós tudo isso. Afastem-se todas as realidades sedutoras, apartem-se as falsas carícias; para longe as coisas que nos perguntam cada dia: “Onde está o teu Deus”? (Sl 41,11). Expanda-se nossa alma acima de si mesma, confessemos com lágrimas, gemamos em confissão, suspiremos em nossas misérias. Fora de nosso Deus, nada é suave; recusamos tudo o que deu, se ele mesmo, doador de tudo, não se der a nós. “Presta ouvidos, Senhor, a minha oração e atende à voz de minha súplica. No dia de minha tribulação clamei por ti, porque me ouviste”. | |
§ 12 | 8 “Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor”. Que disse o salmista? “Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor”. Fabriquem os pagãos para si os deuses que quiserem; procurem artífices que trabalhem em prata, ouro, polimento, escultura e modelem ídolos. Quais? Aqueles que têm olhos e não vêem e tudo o mais que o salmo descreve em seguida (cf Sl 113,5). Mas, nós não adoramos a estes, respondem; não os adoramos. São somente símbolos. E que adorais? Algo de pior: “Porque os deuses das nações são demônios” (Sl 95,5). E então? Replicam: Não adoramos nem os demônios. De fato, não tendes outra coisa nos templos, nada inspira vossos vates senão os demônios. Mas, então, que afirmais? Adoramos os anjos; os anjos são nossos deuses. Com efeito, não conheceis de forma alguma os anjos. Os anjos adoram o Deus único, e não protegem os homens que querem adorar os anjos e não a Deus. Pois, encontramos na Escritura quem honrasse os anjos, mas eles impediram a esses homens que os adorassem, mandando que adorassem ao Deus verdadeiro (cf Ap 19,10). Mas, embora digam que são anjos, que são homens, conforme diz o salmo: “Eu disse: Vós sois deuses e sois todos filhos do Altíssimo, não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor” (Sl 81,6). Pense o homem o que quiser: um ser criado não se compara ao criador. Exceto Deus, tudo o que realmente existe foi feito por Deus. Quem pode calcular exatamente a distância entre o criador e a criatura? O salmista declara, por isto: “Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor”. Não explicou quanto difere de Deus, porque é impossível dizer. V. Caridade preste atenção. Deus é inefável. É mais fácil exprimir o que não é do que aquilo que é. Pensas na terra. Deus não é isto. Pensas no mar. Deus não é isto. Em tudo que existe na terra, homens e animais. Deus não é isto. Tudo que existe no mar, que voa nos ares. Deus não é isto. Tudo o que brilha no céu, as estrelas, o sol e a lua. Deus não é isto. No próprio céu. Igualmente não é Deus. Pensa nos Anjos, Virtudes, Potestades, Arcanjos, Troncos, Sedes, Dominações. Deus não é isto. E o que é então? Somente pude declarar o que não é. Perguntas o que é? “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu” (cf 1Cor 2,9). Por que procuras que exprima a língua o que o coração não percebeu? “Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor, nem que seja comparável a tuas obras”. | |
§ 13 | 9 “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Prenuncia a Igreja. “As nações que criaste”. Se existe nação que Deus não criou, esta não o adorará; não há povo que Deus não tenha criado, porque Deus criou a origem de todos os povos. Adão e Eva. Deles descendem todos os povos. Portanto, Deus criou todos os povos. “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Quando isto foi anunciado? Quando diante dele não se prostravam senão poucos santos de um só povo, o hebreu, é que isto foi anunciado; e agora vê-se a realização: “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Quando isto foi proferido, ainda não se via o fato, mas acreditava-se em sua realização; quando já se verifica, como negá-lo? “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor, e de glorificar o teu nome”. | |
§ 14 | 10 “Porque és grande e operas maravilhas. És tu somente o grande Deus”. Ninguém se gabe de ser grande. Surgiriam homens que se denominariam grandes. Contra eles se disse: “És tu somente o grande Deus”. Que importância há em se declarar que ele somente é o grande Deus? Quem não sabe que ele é o grande Deus? Mas como surgiriam homens que se denominariam grandes, e queriam diminuir a Deus, contra eles se afirma: “És tu somente o grande Deus”. Esta palavra se realiza e não a daqueles que se denominam grandes a si mesmos. Que declara Deus, através de seu Espírito? “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Como se exprime determinado homem que se declara grande? De forma alguma; Deus não é adorado em todas as nações; todas as nações estão perdidas, só escapou a África. É o que afirmas tu, que te dizes grande; aquele que é o único grande Deus assevera outra coisa. Quais as palavras daquele é que é o único grande Deus? “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Noto o que disse o único grande Deus; cale-se o homem de falsa grandeza. É enganosamente grande, porque desdenha ser pequeno. Quem é que não se digna ser pequeno? Quem assim fala. O Senhor, porém, diz: “Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve” (Mt 20,26). Aquele homem, contudo, se quisesse ser o servo de seus irmãos, não os teria separado da Igreja, sua mãe. Mas como quer ser grande, e não pequeno de maneira salutar, Deus que resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes (cf Tg 4,6), porque somente ele é grande, cumpre tudo o que predisse e contradiz aos maldizentes. Maldizem a Cristo esses que dizem ter a Igreja perecido em toda a terra, e ficado apenas na África. Se lhe dissesses: Arruinarás a tua propriedade, certamente não conteria sua mão contra ti; no entanto, ele afirma que Cristo perdeu sua herança, redimida em seu sangue! Vede, irmãos, que enorme injúria! A Escritura declara: “Povo numeroso é glória para o rei, a falta de gente é ruína para o príncipe” (Pr 14,28). Em conseqüência, injurias deste modo a Cristo, quando dizes que seu povo se viu reduzido a esta insignificância. Acaso nasceste, e te dizes cristão para teres inveja da glória de Cristo, cujo sinal afirmas trazer na fronte, mas o eliminaste do coração? “Povo numeroso é glória para o rei”, reconhece teu rei, dá-lhe glória, atribui-lhe povo numeroso. Respondes: Que povo numeroso lhe atribuirei? Não lhe atribuas segundo teu coração, e acertarás. Com que base lhe atribuirei? replicas. Atribui-lhe de acordo com o seguinte: “As nações que criaste hão de vir e prostrar-se diante de ti, Senhor”. Faze esta afirmação, confessa e atribuis-lhe grande multidão, porque, todas as nações constituem uma só, em um só. Aí está a unidade. Como, existe uma Igreja e igrejas, e estas igrejas se identificam com a Igreja, assim aquele povo identifica-se com as nações. Anteriormente havia nações, muitas nações; agora um só povo. Por que um só povo? Porque há uma só fé, uma só esperança, uma só caridade, uma só expectativa. Enfim, por que não seria um só povo, se é uma só pátria? É a pátria celeste; pátria e Jerusalém. Quem não é cidadão dela, não pertence a este povo; quem, porém, é seu cidadão pertence a um só povo de Deus. E este povo se estende do oriente ao ocidente, do norte até o mar, pelas quatro partes de todo o orbe. Diz Deus: Do oriente ao ocidente, do norte ao mar, dai glória a Deus. Foi isto que ele predisse e cumpriu, ele que é o único grande Deus. Aquele que recusou ser pequeno desista de falar assim contra o único que é grande, porque não podem existir dois grandes, Deus e Donato. | |
§ 15 | 11 “Conduze-me, Senhor, em teu caminho e andarei em tua verdade”. Cristo, teu caminho, tua verdade, tua vida. Por conseguinte, o corpo é para ele, e o corpo provém dele. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Qual caminho? “E andarei na tua verdade”. Uma coisa é conduzir ao caminho e outra conduzir no caminho. Olha um homem inteiramente pobre, completamente necessitado de auxílio. Fora do caminho estão os não cristãos, ou ainda não católicos; sejam levados ao caminho; e quando forem levados ao caminho, e se tornarem católicos em Cristo, sejam levados por ele no caminho a fim de não cairem. Certamente já andam no caminho. “Conduze-me, Senhor, em teu caminho”. Sem dúvida, estou no caminho. Conduze-me. “E andarei na tua verdade”. Sob tua conduta não desviarei; se me abandonares, errarei. Suplica, pois, que ele não te deixe, mas te leve até o fim. Como conduzirá? Sempre admoestando, sempre te estendendo a mão. “E a quem se revelou o braço do Senhor”? (Is 53,1). Ao dar Deus o seu Cristo, estende sua mão; estendendo a mão, dá seu Cristo. Conduz ao caminho, levando a seu Cristo; conduz pelo caminho, conduzindo em seu Cristo: pois Cristo é a verdade. “Conduze-me, Senhor, em teu caminho e andarei em tua verdade”, de fato, naquele que disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Tu que conduzes pelo caminho e pela verdade, aonde levas senão à vida? Conduzes, pois, em Cristo, para ele. “Conduze-me, Senhor, em teu caminho e andarei em tua verdade”. | |
§ 16 | “Alegre-se meu coração, com temor de teu nome”. Logo, há temor misturado à alegria. Como pode haver alegria, onde há temor? O temor não costuma ser amargo? Um dia teremos alegria sem temor algum, mas agora com a alegria vem o temor. Ainda não existe plena segurança, nem perfeita alegria. Se não tivermos alegria alguma, desanimamos; se existir plena segurança, não exultaremos bem. Por conseguinte, derrame o Senhor alegria em nós, mas incuta-nos temor, a fim de nos levar da suavidade da alegria à morada segura. Incutindo-nos temor, não nos deixe cair numa exultação malsã, nem desviarmos. Por isso diz o salmo: “Servi ao Senhor com temor, e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Igualmente ordena o apóstolo Paulo: “Operai a vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus quem opera em vós” (Fl 2,12.13). Todo sinal de prosperidade, irmãos, deve causar mais temor, porque o que considerais prosperidade é antes tentação. Veio uma herança, chegaram riquezas, afluíram muitas espécies de acontecimentos felizes. São tentações. Cautela para que não vos corrompam. São acontecimentos agradáveis os que são prósperos de acordo com Cristo e com a genuína caridade de Cristo. Por exemplo, se ganhaste para a Igreja tua esposa que era do partido de Donato; se aderiram à fé teus filhos que eram pagãos; se ganhaste teu amigo que queria te seduzir para ir ao teatro e tu o levaste à igreja; se certo inimigo teu que te contradizia e tinha uma raiva furiosa, acalmou a fúria e ficou manso, reconheceu a Deus, não ladra contra ti, mas grita contigo contra o mal. Se com isto não nos alegramos, com que então? Quais são nossas outras alegrias, se não as dessa espécie? Não obstante, como pululam as tribulações, as tentações, as dissensões, os cismas, etc., que não faltam neste mundo, até que passe a iniqüidade, aquela exultação não nos deixe tranqüilos, mas alegre-se nosso coração de tal modo que tema o nome do Senhor. Não se alegre e ao mesmo tempo se fira. Não é de se esperar segurança durante nossa peregrinação. Se quisermos tê-la aqui na terra, será um visgo para o corpo e não segurança humana. “Alegre-se meu coração, com temor de teu nome”. | |
§ 17 | 12.13 “De todo o meu coração te confessarei, Senhor meu Deus, e glorificarei eternamente o teu nome. Grande foi tua misericórdia para comigo. Arrancaste minha alma das profundezas do inferno”. Meus irmãos. Se não vos expomos com muita certeza o que vamos dizer, peço-vos não levardes a mal. Pois, sou homem, e ouso dizer somente quanto me permitem as Sagradas Escrituras. Nada é meu. Não tenho experiência alguma acerca do inferno. Nem vós. E talvez haja outro sentido e não se trate mesmo do inferno. Tudo isso é incerto. Contudo, como a Esritura traz e não se pode contradizê-la: “Arrancaste minha alma das profundezas do inferno”, entendemos que existem, de certo modo dois infernos: um mais acima e outro mais abaixo. Pois, como falar de profun-dezas do inferno, se não há outro mais acima? Não seria denominado inferno a não ser por comparação com uma parte superior. Supõe-se, irmãos, haver certa moradia celeste dos anjos. Ali a vida é de alegrias inefáveis, ali se encontra a imortalidade e a incorrupção, ali tudo é permanente, segundo o dom e a graça de Deus. Se, portanto, esta parte é superior, a terrena onde existem carne e sangue, onde há corruptibilidade, nascimento e mortalidade, morte e sucessão, mutabilidade e inconstância, temores, ambições, horrores, alegrias incertas, esperança frágil, bens transitórios, não é comparável ao céu, de que falava pouco acima. Se, portanto, o céu não se compara com a terra, o céu é superior, e a terra inferior. E depois da morte, para onde descer, se não há inferno inferior a este em que estamos, segundo a carne e a mortalidade? Pois, segundo a palavra do Apóstolo: “O corpo está morto, pelo pecado” (Rm 8,10). Por conseguinte, aqui na terra há mortos; não te admires de ser chamada inferno, uma vez que os mortos são numerosos. Pois, o Apóstolo não disse: O corpo haverá de morrer, mas: “ O corpo está morto”. Sem dúvida, nosso corpo ainda tem vida; todavia, comparado àquele corpo futuro, quais os dos anjos, encontra-se a verdade de que o corpo do homem está morto, embora ainda tenha alma. Mas, novamente, deste inferno, quer dizer, desta parte inferior, ainda há outra mais abaixo, para onde vão os mortos. De lá Deus quis arrancar nossas almas, enviando seu Filho até lá. Com efeito, irmãos, o Filho de Deus foi enviado por causa destes dois infernos, libertando-nos de ambos. Ao primeiro enviado ao nascer e ao segundo ao morrer. Por isso, temos sua voz naquele salmo, não segundo uma conjectura humana, mas conforme explicado pelo Apóstolo: “Porque não entregarás ao inferno a minha alma” (Sl 15,10; At 2,27). Portanto, aqui se trata ou de sua voz: “Arrancaste minha alma das profundezas do inferno”, ou de nossa voz, por meio do mesmo Cristo, Senhor nosso, porque ele desceu aos infernos para que nós ali não permanecêssemos. | |
§ 18 | Aludo ainda a outra opinião. Talvez no próprio inferno haja uma parte mais abaixo, onde são arrojados os ímpios que pecaram mais. Com efeito, não podemos afirmar com certeza que Abraão não tenha estado em alguma parte do inferno. O Senhor ainda não descera aos infernos, a fim de retirar dali as almas de todos os santos que o haviam precedido. E no entanto, Abraão estava em repouso ali. Certo rico, ao ser atormentado no inferno, levantou os olhos e viu Abraão. Não o teria visto olhando para cima, se Abraão não estivesse no lugar mais alto e ele em baixo. Qual a resposta de Abraão ao seu pedido? “Pai Abraão, manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama. Ele disse: Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E além do mais, entre vós e nós existe um grande abismo, de modo que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o podem, e tampouco atravessarem os de lá até nós” (Lc 16,22-26). Por conseguinte, talvez entre esses dois infernos, dos quais em um descansavam as almas dos justos e no outro eram atormentadas as almas dos ímpios, alguém ora aqui. Já se acha no corpo de Cristo, e reza pela voz de Cristo. Declara que Deus libertou sua alma das profundezas do inferno, porque o libertou de tais pecados que o poderiam lançar nos tormentos das profundezas do inferno. É semelhante ao caso de um médico que vê o perigo iminente de adoeceres devido a algum trabalho e te avisa: Poupa-te, faze um tratamento, descança, usa tais alimentos, porque se assim não fizeres ficarás doente. Se atenderes e te curares, com razão dizes ao médico: Tu me livraste desta doença. Não se tratava de uma doença de que já sofrias, mas que te ameaçava. Um homem qualquer, por exemplo, devido a uma causa judicial incômoda, ia ser lançado no cárcere. Vem alguém e o defende. Ao agradecer ao defensor, que dirá? Arrancaste a minha vida do cárcere. Um devedor ia ser enforcado. Alguém paga sua dívida. Diz-se libertado da forca. Nenhum deles chegou a sofrer os respectivos males; mas os mereciam, e se não tivessem obtido socorro os sofreriam, com razão se diz que foram libertados daquilo a que seus libertadores não permitiam fossem levados. Portanto, irmãos, seja um ou outro o sentido, considerai-me como sendo alguém que perscruta a palavra de Deus, e não que avança afirmações temerárias. “Arrancaste minha alma das profundezas do inferno”. | |
§ 19 | 14 “Contra mim, ó Deus, levantaram-se os transgres-sores da lei”. Quais os transgressores da lei? Não são os pagãos, pois não receberam uma lei. Ninguém transgride uma lei que não recebeu. O Apóstolo o afirma claramente: “Onde não há lei, não há transgressão” (Rm 4,15). Os transgressores da lei são prevaricadores. Quais são, então os designados aqui, irmãos? Se tomamos a palavra como sendo do Senhor, transgressores da lei eram os judeus. “Contra mim levantaram-se os transgressores da lei”. Não observaram a lei e acusaram a Cristo de trans-gressor. “Contra mim levantaram-se os transgressores da lei”. E o Senhor sofreu o que sabemos. És de opinião que seu corpo nada disso sofre agora? Como seria isso possível? “Se chamaram Beelzebu ao chefe da casa, quanto mais chamarão assim aos seus familiares! Não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor” (Mt 10,25.24). Sofre igualmente o corpo da parte dos transgressores da lei que se levantam contra o corpo de Cristo. Quais são os transgressores da lei? Acaso ousam os judeus levantar-se contra Cristo? Não; porque nem nos causam grande tribulação. Pois, ainda não acreditaram, ainda não conheceram a salvação. Levantam-se contra o corpo de Cristo os maus cristãos, que infligem diariamente tribulação ao corpo de Cristo. Todos os cismas, todas as heresias, todos aqueles que vivem pessimamente, e querem impor seus costumes aos que vivem honestamente, iludi-los, porque as más companhias corrompem os bons costumes (cf 1Cor 15,33). Todos esses “transgres-sores da lei levantaram-se contra mim”. Repita-o toda alma piedosa, repita-o toda alma cristã. Não o repita quem não sofre de tais males. Se, porém, é alma cristã, sabe que sofre destes males. Se descobre em si a paixão, reconheça neste versículo a sua voz. Se está isento de sofrimento, fique de fora. Para não estar excluído dos padecimentos, ande pelo caminho estreito (cf Mt 7,14) e comece a viver com piedade em Cristo e há de sofrer esta perseguição. Pois, diz o Apóstolo, “todos os que quiserem viver com piedade em Cristo serão perseguidos (cf 2Tm 3,12). Contra mim, ó Deus, levantaram-se os transgressores na lei e uma assembléia de poderosos atentou contra a minha vida”. Assembléia dos poderosos é assembléia dos orgulhosos. Uma assembléia de poderosos atentou contra a Cabeça, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo, clamando e gritando unânimes: “Crucifica-o, crucifica-o” (Jo 19,6). A respeito deles foi dito: “Armas e flechas são os dentes dos filhos dos homens, espada afiada, a sua língua” (Sl 56,5). Não feriram, mas gritaram; e gritando feriram, clamando crucificaram. Realizou-se a vontade dos que gritavam, quando o Senhor foi crucificado: “E uma assembléia de poderosos atentou contra a minha vida, sem te proporem diante de seus olhos”. Como foi que não propuseram? Não entenderam que era Deus. Que poupassem o homem; agissem de acordo com o que viam. Supõe que não fosse Deus, mas era homem; então devia ser morto? Poupa o homem e reconhece a Deus. | |
§ 20 | 15 “Mas tu, Senhor Deus, és um Deus compassivo e clemente, muito misericordioso e veraz”. Por que se diz que é “clemente e muito misericordioso e compassivo?” Por que estando crucificado, rezou: “Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem” (Lc 23,24). A quem pede? Por quem suplica? Quem pede? Onde pede? O filho suplica ao Pai, o crucificado pelos ímpios, no meio das próprias injúrias, não só de palavras, mas mortais, e quando pendente da cruz; tinha as mãos estendidas, como a orar por eles, a elevar como incenso a sua oração diante do Pai, e a elevação de suas mãos como um sacrifício vespertino (Sl 140,2). “Clemente, muito misericordioso e veraz”. | |
§ 21 | 16 Se, portanto, és “veraz, olha-me e compadece-te de mim; comunica poder a teu servo”. Porque és veraz, comunica poder a teu servo. Passe o tempo da paciência e venha o tempo do juízo. Como se realizará a palavra: “Comunica poder a teu servo? O Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento” (Jo 5,22). Ele, o ressuscitado, que virá à terra para julgar. Aparecerá terrível o que teve a aparência de desprezível. Demonstrará poder aquele que mostrou paciência. Na cruz tinha paciência, no juízo terá poder. Efetivamente, aparecerá como homem para julgar, mas em sua glória; porque “do mesmo modo que para o céu o vistes partir”, disseram os anjos, “virá” (At 1,11). Virá com a mesma forma exterior no juízo; e por isso, vê-lo-ão também os ímpios, que não verão na condição de Deus. Pois, “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Aparecendo na condição de homem, dirá: “Ide para o fogo eterno”, a fim de se cumprir a palavra de Isaías: “Aparte-se o ímpio, sem ver a glória do Senhor” (Is 26,10, seg. LXX). Aparte-se para não vê-lo na condição de Deus. Portanto, vê-lo-ão na condição de homem. Na condição divina era igual a Deus (cf Fl 2,6), e isto os ímpios não verão. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1), isto não verão os ímpios. Se o “Verbo era Deus, e bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”, os ímpios que têm o coração impuro, sem dúvida alguma não verão a Deus. E como está dito: “Olharão para aquele que transpassaram” (Jo 19,37), senão porque aparecerá na condição de homem que eles verão ao serem julgados? A condição divina não será visível senão aos que estão separados à direita. De fato, ao serem separados e colocados à direita, ser-lhes-á dito: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós deste a criação do mundo”. Que será dito aos ímpios à esquerda? “Ide para o fogo eterno, preparado por meu Pai para o diabo e para os seus anjos”. Terminado o julgamento, qual a conclusão? “Irão os ímpios para o fogo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mt 25,34.41.46). E estes, da visão da condição humana partem para a visão da condição divina. Diz o evangelista: “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Subentendes. Ele é o único Deus verdadeiro, porque o Pai e o Filho são um só Deus verdadeiro. O sentido da frase é o seguinte: Eles te conheçam a ti e àquele que enviaste, Jesus Cristo, como único Deus verdadeiro. Alcançarão a visão do Pai e ali verão igualmente o Filho. Se o Filho não estivesse incluído na visão do Pai, não diria o Filho a seus discípulos que o Filho está no Pai, e o Pai no Filho. Responderam-lhe os discípulos: “Mostra-nos o Pai e isto nos basta”. Disse-lhes Jesus: “Há tanto tempo estou convosco e não me conheceis? Filipe, quem me viu, viu o Pai”. Observais que na visão do Pai inclui-se a visão do Filho; e na visão do Filho inclui-se igualmente a visão do Pai. Em conseqüência disso acrescentou: “Não sabeis que estou no Pai e o Pai está em mim?” A saber, quem me vê, vê também o Pai, e quem vê o Pai, vê igualmente o Filho. A visão do Pai não se separa da visão do Filho; não se separa a natureza da substância, portanto, não é possível separar uma visão da outra. Ora, sabeis que deveis preparar o coração para ali ver a divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, na qual acreditamos sem ver, e com a fé purificamos o coração para que possa ver. O próprio Senhor diz mais adiante: “Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,8.9.10.21). Porventura não o viam aqueles aos quais se dirigia? Viam e não viam. Viam uma coisa e acreditavam em outra. Viam o homem e acreditavam em Deus. No juízo, porém, hão de ver, junto com os ímpios, nosso Senhor Jesus, como homem; depois do juízo, com exclusão dos ímpios, verão a Deus. “Comunica poder a teu servo”. | |
§ 22 | “E salva o filho de tua serva”. O Senhor é filho da serva. De qual? daquela que, ao lhe ser anunciado que ele havia de nascer, respondeu: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Deus salvou o Filho de sua serva que é também seu Filho. Seu Filho, na condição de Deus; Filho da serva, na condição de escravo. Da escrava de Deus, portanto, nasceu o Senhor na condição de escravo e disse: “Salva o filho de tua serva”. Foi salvo da morte, como sabeis, depois de ressuscitado o corpo que morrera. Mas para concluíres que é Deus, e não foi ressuscitado pelo Pai como se ele mesmo não se ressuscitasse, pois, de fato, ele ressuscitou seu corpo, encontra-se escrito no evangelho: “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei”. Para que não imaginássemos outra coisa, o evangelista continua: “Ele, porém, falava do templo do seu corpo” (Jo 2,19.21). Portanto, foi salvo o filho da serva. Repita igualmente cada cristão, que se acha no corpo de Cristo: “Salva o filho de tua serva”. Talvez não possa dizer: “Comunica poder a teu servo”, porque foi o Filho que recebeu o poder. Mas, por que não há de dizer também isso? Por acaso não foi dito a alguns servos: “Também vós, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,28)? E dizem os servos: “Não sabeis que julgaremos os anjos”? (1 Cor 6,3). Cada um dentre os santos, portanto, recebe o poder, e é cada um deles filho da serva de Deus. Mas, se nasceu de uma pagã, e se tornou cristão? Como é possível o filho de uma pagã ser filho de uma serva de Deus? Na verdade, é carnalmente filho de uma pagã, mas espiritualmente é filho da Igreja. “E salva o filho de tua serva”. | |
§ 23 | 17 “Mostra-me um sinal de tua bondade”. Que sinal seria a não ser a ressurreição? O Senhor afirmou: “Uma geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal do profeta Jonas. Pois, como Jonas esteve no ventre do monstro marinho três dias e três noites, assim ficará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12,39.40). Uma vez que em nossa Cabeça já mostrou Deus um sinal de sua bondade, diga também cada qual de nós: “Mostra-me um sinal de tua bondade, porque ao som da trombeta final, por ocasião da vinda do Senhor, os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (cf 1Cor 15,52). Será este o sinal da bondade de Deus. “Mostra-me um sinal de tua bondade, para que vejam os que me odeiam e fiquem confundidos”. No juízo ficarão confundidos para sua perdição os que agora não querem ficar confundidos de modo salutar. Por conseguinte, que se confundam agora; acusem seus maus caminhos, mantenham-se no caminho reto. Nenhum de nós vive sem confusão, a não ser que antes se tenha confundido e assim revivido. Deus lhes conceda agora acesso a uma confusão salutar, se eles não menosprezam a medicina da confissão; se, porém, não querem se envergonhar agora, então se envergonharão, quando suas iniqüidades os levarem à ruína (Sb 4,20). Como ficarão confundidos? Quando dirão: “Estes são os de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de ultraje, nós insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura. Como agora são contados entre os filhos de Deus? Que proveito nos trouxe o orgulho?” Assim falarão então; que o digam já agora e de maneira salutar. Cada qual humildemente se converta para Deus e diga agora: Que proveito me trouxe o orgulho? E escute o Apóstolo: “E que fruto colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais”? (Rm 6,21). Verificais haver agora uma vergonha salutar na penitência; então, porém, será tardia, inútil, infrutuosa. “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviam riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,3-9). Como? Quando vivias na terra não vias que tudo passa como uma sombra? Se então deixasses a sombra, ficarias na luz; e não dirias depois: “Tudo passou como uma sombra”, quando da sombra passarás para as trevas. “Mostra-me um sinal de tua bondade, para que vejam os que me odeiam e fiquem confundidos”. | |
§ 24 | “Porque tu, Senhor, me assistes e consolas. Assistes-me no combate, e consolas-me” na tristeza. Ninguém procura consolo se não se sente infeliz. Não quereis ser consolados? Declarai que sois felizes. E ouvireis a palavra: “Ó meu povo” (Já estais completando a frase, e escuto um mur-múrio daqueles que têm na memória as Escrituras. Deus, que inscreveu estas palavras em vossos corações, confirme sua realização em vossas ações. Vedes, irmãos, que aqueles que vos dizem: Sois felizes, vos seduzem). “Ó meu povo”, os que vos dizem que sois felizes, “vos desencaminham, ba-ralham as veredas em que deveis andar” (Is 3,12). Assim também na epístola do apóstolo S. Tiago: “Entristecei-vos e chorai; transforme-se o vosso riso em luto” (Tg 4,9). Notai o que ouvistes. Quando se diria uma coisa destas se estivéssemos numa região de segurança? De fato, nossa região é de escândalos, tentações e de todos os males. Choremos aqui na terra, para merecermos alegrar-nos no céu. Aqui, somos atribulados para nos consolarmos lá e dizermos: “Preservaste-me da morte a alma, das lágrimas os olhos e da queda os pés. Serei agradável ao Senhor na região dos vivos” (Sl 114,8.9). A terra é a região dos mortos. Passa a região dos mortos e vem a região dos vivos. Na re-gião dos mortos há labuta, dor, temor, tribulação, tentação, gemidos, suspiros. Existem falsos felizes e verdadeiros infelizes, porque uma felicidade enganosa é verdadeira infelicidade. Ora, quem reconhece achar-se em verdadeira mi-séria estará também em verdadeira felicidade. E no entanto, porque agora é mísero, ouça o Senhor a dizer: “Bem-aventurados os que choram” (Mt 5,5). “Ó, bem-aventurados os que choram!” Nada tão ligado à infelicidade como o pranto; nada mais distante da infelicidade, mais contrário a ela do que a bem-aventurança. E tu falas dos que choram e os denominas felizes! Respondes: Entendei bem o que digo: chamo de felizes os que choram; por quê? São felizes na esperança. Por que razão choram? Devido à realidade presente. Com efeito, choram diante da morte, destas tribulações em sua peregrinação. Visto que reconhecem achar-se em miséria, e por isso gemem, são felizes. Por que motivo choram? S. Cipriano se contristou em seus padecimentos; agora está consolado, de posse da coroa. Consolado e triste ainda. Nosso Senhor Jesus Cristo ainda intercede em nosso favor; todos os mártires que estão em sua companhia intercedem por nós. Somente terminarão suas intercessões quando passarem nossos gemidos. Terminados esses, todos em uma só voz, um só povo, numa só pátria, seremos consolados, uma miríade a salmodiar em conjunto com os anjos, com os coros das potestades celestes, na cidade dos vivos. Quem ali ainda geme? Quem suspira? Quem peleja? Quem sofre penúria? Quem morre? Quem ainda tem misericórdia? Quem parte o pão com algum faminto, se todos se saciam com o pão da justiça? Ninguém te dirá: Recebe um hóspede, pois ali não haverá peregrino algum, uma vez que todos se acham na pátria. Ninguém te dirá: Reconcilia teus amigos que disputam entre si; todos gozam da paz eterna, na presença de Deus. Ninguém te dirá: Visita um doente. Serão permanentes a saúde e a imortalidade. Ninguém te dirá: Sepulta um morto. Todos terão a vida eterna. Cessarão as obras de misericórdia, porque não existirá miséria alguma. E que faremos ali? Talvez dormir? Se agora, enquanto estamos nesta carne, que é moradia do sono, temos de lutar contra nós mesmos para ficarmos despertos, apesar destas luzes e da solenidade que nos dá ânimo para a vigília, naquele dia quais as vigílias que ainda teremos de sustentar? De fato, estaremos de vigília, não dormiremos. Que faremos então? Obras de misericórdia já não existirão, porque não há miséria. É provável que haja obras necessárias como as que fazemos agora: semear, arar, cozinhar, moer, tecer? Nada disso, porque as necessidades acabarão. Assim, não existirão obras de misericórdia, porque toda miséria passou. Onde não existe necessidade, nem miséria, serão desnecessários os trabalhos para atender carências e as obras de misericórdia. Que haverá então? Qual nossa ocupação? Qual nossa atividade? Ou não haverá ação e sim repouso? Ficaremos então sentados, em torpor, sem fazer coisa algu-ma? Se nosso amor se esfriar, ficará entorpecida nossa atividade. Aquele amor tranqüilo diante de Deus, que agora desejamos, pelo qual anelamos, como não nos abrasará quando o tivermos alcançado? De que modo nos iluminará aquele por quem suspiramos antes de o termos visto, quando chegarmos junto dele? Como nos transformará? Que fará de nós? Que faremos então, irmãos? Diga-nos o salmo: “Felizes os que habitam em tua casa”. Por quê? “Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). Será essa nossa ocupação: louvar a Deus. Amas e louvas. Deixarás de louvar, se deixares de amar. Não deixarás, porém, de amar, porque aquele que vês é tal que não causará tédio algum. Ele te saciará e não te saciará. É um paradoxo. Se disser que te sacia, receio que penses em te afastar, como sais saciado do almoço ou do jantar. Então, que dizer? Não te sacia? Receio ainda que se disser: Não te sacia, pensas que sentirás penúria; como se ficasses com fome, e te faltasse algo para a saciedade. Que direi, então, senão o que é possível falar, embora difícil de pensar? Sacia e não sacia. Ambas as afirmações encontro na Escritura. Tendo dito: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão saciados” (Mt 5,6), ainda acrescenta, a respeito da Sabedoria: “Os que me comem terão ainda fome, os que me bebem terão ainda sede” (Eclo 21,29). De fato, não disse: “de novo, mas ainda”. Pois, ter sede de novo seria primeiro terminar satisfeito, ter assimilado e voltar a beber. Assim se exprime: “Os que te comem terão ainda fome”, comem de tal modo que ainda têm apetite; e os que te bebem, bebem, mas ainda têm sede. Que significa ter sede depois de beber? Nunca se enfastiar. Agora, irmão, que pede de nós esta suavidade inefável e eterna, senão uma fé sincera, uma esperança firme, uma caridade pura e que o homem siga pelo caminho que o Senhor lhe oferece, suporte as provas e receba as consolações? | |