ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 84 | ||
§ 84:1 | Ꝙ Quão amável são os teus tabernáculos, ó Senhor dos exércitos! | |
§ 84:2 | Ɑ A minha alma suspira! sim, desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne clamam pelo Deus vivo. | |
§ 84:3 | Ɑ Até o pardal encontrou casa, e a andorinha ninho para si, onde crie os seus filhotes, junto aos teus altares, ó Senhor dos exércitos, Rei meu e Deus meu. | |
§ 84:4 | Ꞗ Bem-aventurados os que habitam em tua casa; louvar-te-ão continuamente. | |
§ 84:5 | Ꞗ Bem-aventurados os homens cuja força está em ti, em cujo coração os caminhos altos. | |
§ 84:6 | Ꝓ Passando pelo vale de Baca, fazem dele um lugar de fontes; e a primeira chuva o cobre de bênçãos. | |
§ 84:7 | ⱴ Vão sempre aumentando de força; cada um deles aparece perante Deus em Sião. | |
§ 84:8 | ᶊ Senhor Deus dos exércitos, escuta a minha oração; inclina os ouvidos, ó Deus de Jacó! | |
§ 84:9 | Ꝋ Olha, ó Deus, escudo nosso, e contempla o rosto do teu ungido. | |
§ 84:10 | Ꝓ Porque vale mais um dia nos teus átrios do que em outra parte mil. Preferiria estar à porta da casa do meu Deus, a habitar nas tendas da perversidade. | |
§ 84:11 | Ꝓ Porquanto o Senhor Deus é sol e escudo; o Senhor dará graça e glória; não negará bem algum aos que andam na retidão. | |
§ 84:12 | Ơ Ó Senhor dos exércitos, bem-aventurado o homem que em ti põe a sua confiança. | |
O SALMO 84 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | Suplicamos ao Senhor nosso Deus que nos demonstre sua misericórdia, e nos dê a sua salvação. Quando este salmo foi recitado e escrito, essas palavras constituíam uma profecia. No que se refere a nossos dias, Deus já demonstrou aos gentios a sua misericórdia e deu-lhes a sua salvação. Ele, efetivamente, a mostrou, mas muitos não querem ser curados e olhar o que ele mostra. Mas, ele cura os olhos do coração para o verem; por isso, tendo dito: “Demonstra-nos a tua misericórdia”, como se estivesse se dirigindo a muitos cegos que replicariam: Como veremos, quando ele começar a mostrar? acrescenta: “E concede-nos a tua salvação”. Ao nos conceder a sua salvação, cura-nos para podermos ver aquilo que ele mostra. Ele não age como um médico humano que cura e mostra a luz àqueles que curou. Neste caso, uma coisa é a luz que é mostrada, e outra o próprio médico que cura para que se recobre a vista e mostra a luz, porque ele mesmo não é luz. Não acontece o mesmo ao Senhor nosso Deus. Ele próprio é o médico que cura para podermos ver, e é a luz que podemos ver. Percorramos atentamente, contudo, o salmo inteiro, de maneira abreviada, à medida de nossas forças e do dom do Senhor, devido ao tempo limitado. | |
§ 2 | 1 O título é o seguinte: “Para o fim, dos filhos de Coré, salmo”. Não pensemos em outro fim, senão o mencionado pelo Apóstolo: “Porque o fim da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Portanto, o salmista colocando em primeiro lugar no título do salmo: “Para o fim”, assinalou Cristo ao nosso coração. Se atendermos a ele, não erraremos; porque ele mesmo é a verdade, para a qual corremos apressados, e é o caminho por onde havemos de correr (cf Jo 14,6). Que significa: “filhos de Coré?” Coré se traduz do hebraico para o vernáculo por calvo. Por conseguinte, “filhos de Coré” são filhos do Calvo. Quem é este calvo? Não o ridicularizemos, mas choremos diante dele (Sl 94,6). Pois, alguns homens zombaram de um calvo e os demônios os perderam: como no livro dos Reis os meninos zombaram de Eliseu, que era calvo, e gritavam atrás dele: “Careca, careca!” Saíram ursos do bosque, e devoraram os meninos zombeteiros, que foram chorados por seus pais (cf 2Rs 2,23-24). Este fato era um sinal, uma profecia de nosso Senhor Jesus Cristo que haveria de vir. Os judeus zombaram dele como se fosse calvo, porque foi crucificado no Calvário, lugar da caveira. Nós, porém, se nele crermos, seremos seus filhos. Para nós, portanto, canta-se este salmo com a inscrição: “Dos filhos de Coré”, pois somos filhos do esposo (cf Mt 9,15). Com efeito, este esposo, dando a sua esposa uma penhor, seu sangue e o Espírito Santo, que nos enriquece nesse ínterim de nossa peregrinação, ainda conserva ocultas as suas riquezas. Se nos deu tais penhores, que será o que para nós reserva? | |
§ 3 | 2 De fato, o profeta fala no futuro, mas usa verbos no tempo pretérito. Profere como se fossem já realizados os fatos futuros, porque para Deus o que é futuro já está realizado. Ali, portanto, o profeta via o que era futuro para nós, mas, de fato, já realizado pela providência de Deus e pela certíssima predestinação, conforme diz o salmista no salmo 21, que todos reconhecem tratar-se de Cristo. O salmo é recitado de tal modo que parece que se lê o evangelho: “Transpassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Estiveram a olhar-me e me examinaram. Dividiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes” (Sl 21,17-19). Qual o leitor deste salmo que não reconhece aí o evangelho? E no entanto, quando se compôs o salmo, não foi escrito: Haverão de traspassar-me as mãos e os pés, e sim: “Trans-passaram-me as mãos e os pés”. Nem foi escrito: Contarão meus ossos, mas: “Contaram os meus ossos”. Nem foi escrito: Dividirão as minhas vestes, e sim: “Dividiram entre si as minhas vestes”. O profeta via todos esses fatos futuros e os indicava como passados. Assim também aqui: “Abençoaste, Senhor a tua terra”, como se já abençoara. | |
§ 4 | “Afastaste de Jacó o cativeiro”. O antigo povo de Jacó, o povo de Israel, oriundo de Abraão, segundo a promessa, haveria de ser um dia o herdeiro de Deus. Efetivamente era o povo que recebera o Antigo Testamento; mas no Antigo Testamento era figurado o Novo Testamento. O primeiro era figura e o segundo a expressão da realidade. Simbolicamente, em certa prefiguração do futuro, foi dada àquele povo a terra da promissão, em determinada região onde habitou o povo judaico, e onde se situa também a cidade de Jerusalém, cujo nome todos nós já ouvimos. Tendo o povo recebido essa terra, sofria muitos ataques dos inimigos seus vizinhos, que o combatiam de todos os lados. Se pecava contra seu Deus era entregue ao cativeiro, mas não para ruína, mas para sua educação. Castigado pelo pai, mas não condenado. Quando obedecia a Deus era libertado. Algumas vezes foi ao cativeiro, mas foi libertada aquela gente. Agora está em cativeiro, devido ao enorme pecado de ter crucificado seu Senhor. Em que sentido tomamos então a palavra: “Afastaste de Jacó o cativeiro?” Porventura entenderíamos aqui outro cativeiro, do qual todos nós queremos ser libertados? Pois, todos nós estamos relacionados com Jacó, se somos da descendência de Abraão. É o que diz o Apóstolo: “De Isaac sairá a descendência que terá teu nome. Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são tidos como descendentes” (Rm 9,7.8). Se os filhos da promessa são tidos como descendentes, ofendendo a Deus os judeus degeneraram. Nós, contudo, granjeando o favor de Deus, tornamo-nos descendência de Abraão, não quanto à carne, mas relativamente à fé. Imitando-lhe a fé, tornamo-nos seus filhos; os judeus, degenerando por falta de fé, mereceram ser deserdados. No entanto, para que saibais que os judeus perderam o que mereciam como descendentes de Abraão, lemos que, ao se jactarem arrogantemente os judeus diante de Jesus Cristo nosso Senhor, gloriando-se do sangue e não do modo de vida e dizendo ao Senhor: “Nosso pai é Abraão, replicou-lhes o Senhor, como a uns degenerados: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão” (Jo 8,39). Se, portanto, eles já não são filhos por causa disso, a saber, por não praticarem as obras de Abrão, nós somos filhos por praticarmos as obras de Abraão. Quais as obras de Abraão que praticamos? Abraão acreditou em Deus e lhe foi tido em conta de justiça (cf Gn 15,6; Gl 3,6). Por conseguinte, pertencemos todos à raça de Jacó, imitando a fé de Abraão, que acreditou em Deus e lhe foi tido em conta de justiça. Qual o cativeiro, então, de que queremos nos libertar? Acho que nenhum de nós agora mora entre bárbaros, nem foi atacado por um povo armado e levado ao cativeiro. Mas logo mostro certo cativeiro, em que gememos, e do qual queremos nos libertar. Adiante-se o apóstolo Paulo, e diga qual é. Seja ele nosso espelho. Fale, para que nos vejamos ali. Não haverá quem não se reconheça aí. Fala, portanto, o santo Apóstolo: “Compraz-me a lei de Deus, segundo o homem interior”; interiormente a lei de Deus me apraz; “mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão”. Já ouviste qual a lei, ouviste qual a luta; ainda não ouviras falar de cativeiro. Escuta como ele continua: “Que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros” (Rm 7,22-25). Conhecemos qual o cativeiro; quem de nós não há de querer se libertar deste cativeiro? Como se libertará? Este salmo canta a respeito do futuro: “Afastaste o cativeiro de Jacó”. A quem se dirige? A Cristo, porque o salmo é “para o fim”, por causa dos filhos de Coré. É Cristo quem afasta o cativeiro de Jacó. Escuta como o próprio Paulo o confessa. Ao declarar que é arrastado cativo pela lei que existe em seus membros, que peleja contra a lei da razão, exclamou sob o peso da escravidão: “Infeliz de mim. Quem me libertará desse corpo de morte?” Procurou o libertador e logo lhe ocorreu quem seria: “A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rm 7,22-25). Considerando esta graça, diz o profeta a nosso Senhor Jesus Cristo: “Afastaste o cativeiro de Jacó”. Ponderai o cativeiro de Jacó, e notai que é o seguinte: Afastaste nosso cativeiro, não livrando-nos dos bárbaros, em cujas mãos não caímos; mas libertando-nos das obras más, de nossos pecados, por meio das quais Satanás nos dominava. Se alguém for libertado de seus pecados, o príncipe dos pecadores não tem como dominá-lo. | |
§ 5 | 3.4 Como, então, ele afasta o cativeiro de Jacó? Vede que esta libertação é espiritual, observai que ela opera interiormente: “Perdoaste a maldade de teu povo; encobriste todos os seus pecados”. Eis de onde afastou o cativeiro: perdoou a maldade. A iniqüidade te mantinha cativo, e perdoada a maldade ficas liberto. Confessa, portanto, que estás no cativeiro, para mereceres ser libertado; pois quem não conhece seu inimigo, como invocará o libertador? “Encobriste todos os seus pecados”. Qual o sentido de: “encobriste?” Fizeste como se não os visses. Que é: não os visses? Para que não castigasses. Tu não quiseste ver os nossos pecados; e não os viste, porque não quiseste. “Encobriste todos os seus pecados. Acalmaste toda a tua ira; depuseste o ardor de tua indignação”. | |
§ 6 | 5 E como se fala de fatos futuros, embora os verbos estejam no pretérito, continua: “Converte-nos, ó Deus, que nos curas”. O que acabava de narrar como passado, como é que pede que se faça, a não ser para mostrar que os verbos no passado constituem uma profecia? Ainda não estava realizado o que dizia já feito. Mostra-o, porque pede que se faça: “Converte-nos, ó Deus, que nos curas e retira de nós a tua cólera”. Há pouco não dizias: “Afastaste de Jacó o cativeiro. Encobriste todos os seus pecados; acalmaste toda a tua ira; depuseste o ardor de tua indignação?” Como suplica aqui: “E retira de nós a tua cólera?” O profeta te responderá: Pronuncio estas coisas como se já fossem feitas, mas vejo-as futuras. Como, de fato, ainda não se realizaram, suplico que venham conforme já as vi. “Retira de nós a tua cólera”. | |
§ 7 | 6 “Não te irrites contra nós eternamente”. Por causa da ira de Deus somos mortais, e por causa da ira de Deus nesta terra, comemos nosso pão na penúria e com o suor de nosso rosto (cf Gn 3,19). Isto ouviu Adão quando pecou. E em Adão estávamos todos nós, porque em Adão todos morrem. Ele ouviu, mas em conseqüência também nós. Ainda não existíamos, mas estávamos em Adão; por isso, tudo o que aconteceu ao próprio Adão, teve conseqüência para nós, de sorte que havemos de morrer; de fato, todos estávamos nele. Pois, os pecados dos pais não atingem os filhos, se os pais pecam depois que eles nasceram; os filhos já nascidos respondem por si, e os pais por si. Mas, os filhos já nascidos, que seguirem o caminho de seus pais no mal, necessariamente sofrerão o mesmo que seus pais merecerem, se, porém, se converterem, e não imitarem os pais malvados, começam a ter seu próprio merecimento, e não merecem o que os pais mereceram. O pecado de teu pai não te prejudica, se te converteres, e nem prejudicará ao pai, se ele se converter. Mas o fato de que nossas raízes se tornaram mortais, vem de Adão. Que provém de Adão? Esta fragilidade da carne, este tormento das dores, esta casa de pobreza, este vínculo de morte, e as ciladas das tentações. Trazemos tudo isso em nossa carne. E isto é ira de Deus, porque é castigo de Deus. Mas como haveríamos de nos regenerar, e pela fé nos tornaríamos novos homens, e na ressurreição a mortalidade seria consumida e a vida do homem novo há de ser restaurada; assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida (cf 1Cor 15,22). Verificando isto, diz o profeta: “Não te irrites contra nós eternamente, nem estendas a tua ira de geração em geração”. A primeira geração mortal estava sob tua ira; haverá outra geração imortal, segundo tua misericórdia. | |
§ 8 | 7 Que acontece, então? Tu mesmo, ó homem, conseguiste, convertendo-te para Deus, merecer sua misericórdia e os que não se converteram, não alcançaram misericórdia, mas encontraram a ira de Deus? Como te converterias, se não fosses chamado? Não foi aquele que te chamou, quando estavas em atitude contrária, a te converteres? Não arrogues a ti mesmo nem a própria conversão; porque se, ao fugires, ele não te chamasse, não poderias te converter. Por isso, o profeta, atribuindo a Deus o benefício da própria conversão, assim reza: “Ó Deus, voltando-te para nós, restituir-nos-ás a vida”. Ele não afirma que nós espontaneamente, sem a misericórdia de Deus, nos convertemos, e Deus nos restituirá a vida: mas, “voltando-te para nós, restituir-nos-ás a vida”, de tal modo que não somente a restituição da vida vem de ti, mas a própria conversão de ti se origina para nos vivificar. “Ó Deus, voltando-te para nós, restituir-nos-ás a vida e o teu povo se alegrará em ti”. Para seu mal alegra-se em si; para seu bem alegra-se em ti. Enquanto preferiu ter a alegria por si mesmo, encontrou o pranto. Agora, porém, uma vez que toda a nossa alegria é Deus, quem quiser alegrar-se seguramente, alegre-se naquele que não pode perecer. Por que, então, meus irmãos, quereis alegrar-vos com o dinheiro? Ou o dinheiro acaba, ou tu, e ninguém sabe quem terminará primeiro. No entanto, consta que ambos vão perecer; incerto é quem irá primeiro. De fato, nem o homem pode permanecer aqui para sempre, nem o dinheiro dura para sempre; assim sucede ao ouro, à veste, à casa, ao dinheiro, às vastas propriedades, enfim a esta luz. Não ponhas, portanto, tua alegria nestes bens, mas alegra-te com a luz que não tem ocaso; alegra-te com a luz a que não precede um ontem, nem segue um amanhã. Que luz é esta? “Eu sou a luz do mundo”, diz o Senhor (Jo 8,12). Aquele que te fala: “Eu sou a luz do mundo” te chama a si. Ao chamar-te, ele te converte; ao converter-te, cura-te; ao curar-te, verás aquele que te converte, e ao qual foi dito: “E o teu povo se alegrará em ti”. | |
§ 9 | 8 “Demonstra-nos, Senhor, a tua misericórdia”. Foi isto que cantamos e já o expliquei. “Demonstra-nos, Senhor, a tua misericórdia e concede-nos a tua salvação”. A tua salvação, o teu Cristo. Feliz é aquele a quem Deus mostra sua misericórdia. Não pode se orgulhar aquele a quem Deus demonstra sua misericórdia. Pois, ao lhe mostrar sua misericórdia, Deus o persuade de que todo o bem que o homem encontrar em si, recebeu-o daquele que é todo o nosso bem. E ao verificar o homem que todo o bem que possui não vem de si mesmo, mas de seu Deus, vê que tudo o que há de louvável nele provém da misericórdia de Deus e não de seus méritos. Com esta noção, não se ensoberbece, não se ensoberbecendo não se exalta, não se exaltando não cai, não caindo fica de pé, ficando de pé adere, aderindo permanece, permanecendo goza e alegra-se no Senhor seu Deus. Serão suas delícias seu Criador; a estas delícias ninguém pode corromper, interpelar, roubar. Qual o potentado que ameace retirá-lo? Qual vizinho malvado, que ladrão, que homem enganador pode tirar-te teu Deus? Pode tirar-te tudo aquilo que possuis corporalmente, mas não te rouba o que tens no coração. Ele é misericórdia. Oxalá Deus no-la demonstre: “Demonstra-nos, Senhor, a tua misericórdia e concede-nos a tua salvação”. Dá-nos teu Cristo; nele se encontra a tua misericórdia. Digamos também nós: Dá-nos o teu Cristo. Com efeito, ele já nos deu seu Cristo; contudo ainda lhe repitamos: Dá-nos teu Cristo, assim como rezamos: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6,11). Qual o nosso pão, senão ele próprio que disse: “Eu sou o pão vivo descido do céu”? (Jo 6,41). Repitamos: Dá-nos o teu Cristo. Pois, ele nos deu Cristo, mas enquanto homem; aquele que no-lo deu como homem, no-lo dará enquanto Deus. Deu um homem aos homens; deu-o de tal forma qual podia ser captado pelos homens; quanto a Cristo-Deus, homem algum podia captar. Fez-se homem para os homens, e conservou-se como Deus para os deuses. Falei com arrogância? Seria arrogância, se ele mesmo não tivesse dito: “Eu disse: Vós sois deuses e sois filhos do Altíssimo” (Sl 81,6; Jo 10,34). Somos renovados em vista da adoção de filhos, para nos tornarmos filhos de Deus. Já o somos, na verdade, mas através da fé. Somos filhos, de fato, na esperança, mas não ainda na realidade. Segundo se exprime o Apóstolo: “Pois fomos salvos em esperança, e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,24,25). “O que aguardamos na perseverança, se não vemos o que acreditamos? Agora, pois, cremos o que não vemos; perseverando na fé naquilo que não vemos, mereceremos ver o que acreditamos. Por esta razão, como se expressa João em sua epístola? “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou”. Quem não exulta- ria se de repente lhe fosse dito quando estava viajando em região estranha, sem saber qual sua origem, e sofrendo toda espécie de privações, com tribulações e trabalhos: És filho de um senador. Teu pai tem enorme patrimônio em seu poder para vós todos; venho chamar-te para junto de teu pai? Como não pularia de alegria se isso fosse dito por verídico promissor? Veio, então, o Apóstolo de Cristo que não engana e disse: Por que desanimais acerca de vós mesmos? Por que vos afligis e atormentais de tristeza? Por que, seguindo vossas concupiscências, quereis ser esmagados pela penúria ocasionada por esses prazeres? Tendes um pai, tendes uma pátria, tendes um patrimônio. Quem é este pai? “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus”. Por que ainda não vemos nosso pai? “Porque ainda não se manifestou o que nós seremos”. Já somos, mas em esperança; pois “o que nós seremos ainda não se manifestou”. E o que seremos? “Sabemos que por ocasião desta manifestação, seremos semelhantes a ele, porque o veremos como ele é” (1Jo 3,2). Mas, isto em referência ao Pai; não trata do Filho, o Senhor Jesus Cristo? E acaso, vendo o Pai e não o Filho, seremos felizes? Ouve o que afirma o próprio Cristo: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Pois, quando se vê um só Deus, vê-se a Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo. Ouve mais claramente como a visão do próprio Filho nos trará a bem-aventurança, e de que não existe diferença entre vê-lo e ver o Pai. Ele mesmo disse no evangelho: “Quem observa os meus mandamentos é que me ama. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,21). Falava-lhes e dizia-lhes: “A ele me manifestarei”. Como? Não era ele mesmo quem falava? Mas a carne via a carne; o coração não via a divindade. Contudo, a carne via a carne, a fim de que pela fé o coração se purificasse, e visse a Deus. Pois, do Senhor se declarou: “Purificou seus corações pela fé” (At 15,9), e o próprio Senhor afirmou: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Por conseguinte, prometeu-nos manifestar-se a nós. Pensai, irmãos, em sua beleza. Foi ele que criou tudo o que há de belo e que vedes, e amais. Se tudo é belo, que não será ele mesmo? Se é grande, como não será ele grandioso? Portanto, tendo em vista o que amamos aqui na terra, tanto mais o desejemos. Desprezando tudo isso, amemo-lo, a fim de que pelo amor, através da fé, purifiquemos nosso coração, e com o coração puro cheguemos à visão. A luz que se nos manifesta deve nos encontrar sadios; esta é agora a ação da fé. Já o explicamos. “E concede-nos a tua salvação”: dá-nos o teu Cristo. Que conheçamos o teu Cristo, vejamos o teu Cristo, mas não conforme o viram os judeus, que o crucificaram, e sim como o vêem os anjos e se alegram. | |
§ 10 | 9 “Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus”. Disse o profeta. Deus lhe falava interiormente e o mundo fazia ruído do lado de fora. Por isso, ele se abstinha um pouco da agitação do mundo, afastando-se para seu íntimo; e saindo de si, aproximava-se daquele cuja voz ouvia em seu interior. De certo modo tapando os ouvidos à inquietação tumultuosa desta vida, e opondo-se à alma, sobre a qual pesa o corpo corruptível — tenda de argila — oprime a mente pensativa (cf Sb 9,15), disse: “Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus”; e o que ouviu? “Porque falará de paz a seu povo”. A voz de Cristo, portanto, a voz de Deus é paz e chama à paz. Vamos, diz ele; todos a vós que ainda não estais em paz, amai a paz. Que de melhor podeis encontrar em mim do que a paz? Que é a paz? É a ausência de toda guerra. Que significa esta ausência de toda guerra? Encontra-se onde não há contradições, nem resistências, nem contrariedades. Vede se já nos achamos neste ponto. Vede se não há combate contra o diabo, vede se os santos e fiéis não lutam com o príncipe dos demônios. E como lutam com alguém que eles não vêem? Lutam contra suas concupiscências, por meio das quais ele sugere os pecados; e se não consentem em suas sugestões, embora não sejam vencidos, todavia combatem. Por conseguinte, ainda não há paz, uma vez que ainda existe luta. Ou apresentai-me alguém que não sofra tentação alguma carnal, de sorte que possa assegurar que está em paz. Talvez não sinta tentações acerca de prazeres ilícitos, mas ao menos sofre sugestões. Ou terá de rejeitar sugestões, ou conter deleites. Suponhamos que nada de ilícito deleite, mas terá de lutar cada dia contra a fome e a sede. Que justo está isento disso? Ataca-nos, portanto, a fome e a sede, luta contra nós o cansaço do corpo, luta o prazer do sono, luta a angústia. Queremos estar de vigília e cochilamos. Queremos jejuar, e temos fome e sede. Queremos ficar de pé e ficamos cansados. Procuramos sentar-nos, mas se ficarmos muito tempo sentados, sentimos fadiga. Em qualquer providência que tomarmos para nos refazermos, encontramos cansaço. Alguém te pergunta: Tens fome? Respondes: Tenho. Ele te oferece alimento. Era para te refazeres. Continua a tomar alimento que está diante de ti; certamente querias restaurar tuas forças. Faze-o sem cessar; agindo assim, aquilo que empregavas para tua refeição te causa cansaço. Cansaras de estar sentado por muito tempo; levantas-te para descansar andando. Persevera nesse ato de descansar, e sentir-te-ás fatigado de tanto andar; procuras assentar-te de novo. Apresenta-me algo que te restaure e que não te fatigue novamente, se durar muito. Que paz é esta, então, de que gozam os homens na terra, se lhe resistem tantas incomodidades, desejos, penúrias, cansaços? Não é nisto que consiste a paz verdadeira, perfeita. Qual será a paz perfeita? “Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e este ser mortal revista a imortalidade. Então, cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está o teu aguilhão? Morte, onde está tua vitória?” (1 Cor 15,53-55). Onde ainda existe mortalidade, como haverá paz plena? Efetivamente, é um processo de morte esse cansaço que encontramos em nossos atos à procura de refazer-nos. Provém da morte, porque o corpo que temos é mortal. O Apóstolo o considera morte, mesmo antes de sua separação da alma: “O corpo está morto, pelo pecado” (Rm 8,10). Pois, se permaneceres durante muito tempo a te refazeres, morrerás. Fica comendo durante muito tempo; essa própria ação te matará. Persevera longamente no jejum e morrerás. Fica sempre sentado, sem querer te levantar e morrerás por causa disto. Anda seguidamente, sem parar e morrerás. Mantém-te desperto, sem dormir e por este motivo morrerás. Dorme continuamente, sem querer acordar e morrerás precisamente por isso. Mas, quando a morte for absorvida pela vitória, nada disso existirá. Haverá paz plena e eterna. Estaremos numa determinada cidade. Irmãos. Quando começo a falar dela, não tenho vontade de parar. Principalmente quando aumentam os escândalos. Quem não aspirará por aquela cidade, de onde os amigos não saem, onde os inimigos não entram, onde não existe tentador, sedicioso, causador de divisão no povo de Deus, nem ministro do diabo que canse a Igreja? E quando o chefe deles todos for lançado no fogo eterno e com ele todos os que consentem em seus desejos, sem querer apartar-se dele? Haverá então uma paz inteiramente purificada nos filhos de Deus; todos se amarão mutuamente, vendo-se repletos de Deus, quando Deus for tudo em todos (cf 1Cor 15,28). Deus será uma visão comum para todos nós; teremos Deus como nossa comum posse. Deus será nossa paz, em comum. Ele próprio tomará o lugar de tudo aquilo que agora ele nos dá. Ele mesmo será a perfeita e plena paz. É isto que ele diz a seu povo; era isto que queria ouvir o salmista, ao dizer: “Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo, aos seus santos e aos que se convertem de coração para ele”. Vamos, irmãos. Quereis que vos pertença essa paz, de que Deus fala? Convertei-vos para ele de coração; não para mim, nem para outro, ou um homem qualquer. Todo homem que quiser atrair para si os corações dos demais homens, cai com eles. Que é preferível: cair com aquele para o qual te voltas, ou ficar de pé com aquele ao qual te convertes? Nossa alegria, nossa paz, nosso repouso e o fim de todas as nossa aflições só se encontram em Deus, “Felizes os que se convertem de coração para ele”. | |
§ 11 | 10 “Contudo, a salvação está perto dos que o temem”. Entre os judeus encontravam-se homens tementes a Deus. Por toda a terra se adoravam os ídolos, temiam-se os demônios e não a Deus; naquele povo temia-se a Deus. Mas por que razão se temia? No Antigo Testamento, temia-se a Deus para que ele não os entregasse ao cativeiro, não lhes retirasse a terra, o granizo não quebrasse as vinhas, suas mulheres não fossem estéreis, eles não perdessem os filhos. Essas promessas temporais ainda prendiam as almas pequenas, e por causa disso temiam a Deus; mas Deus estava próximo delas, pois que ao menos por este motivo o temiam. Quanto aos pagãos pediam a terra ao diabo; os judeus pediam a terra a Deus. Era idêntico o objeto do pedido, mas não a quem pediam. O judeu, pedindo o mesmo que o pagão, distinguia-se dele, porém, porque o pedia ao Criador de todas as coisas. E Deus estava próximo deles, mas distante dos gentios; contudo, Deus olhou os que estavam longe e os que estavam perto, conforme se exprime o Apóstolo: “Assim ele veio e anunciou a paz a vós que estáveis longe e a paz aos que estavam perto” (Ef 2,17). Quais os que ele disse estarem perto? Os judeus que cultuavam um só Deus. Quais os que estavam longe? Os gentios, porque haviam abandonado seu criador e adoravam os ídolos que eles mesmo haviam feito. O que distancia de Deus não são as terras, mas os afetos. Amas a Deus e estás perto; odeias, e estás longe. Ficando no mesmo lugar, podes estar longe ou perto. Por isso, irmãos, o profeta ponderou estas coisas. Embora tenha visto a universal misericórdia de Deus, observou algo de especial e próprio no povo judaico e disse: “Contudo. Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo”. Seu povo, não somente na Judéia, mas será constituído de todos os povos. “A seus santos falará de paz, e aos que se convertem de coração para ele”, a todos os que haverão de se voltar para ele de todo o orbe da terra. “Contudo, a salvação está perto dos que o temem, a fim de que a glória habite em nossa terra”, isto é, na terra onde nascera o profeta, haverá glória maior, porque dali começou Cristo a ser pregado. Dali saíram os apóstolos e foram mandados a pregar naquela terra. Dali se originaram os profetas, e ali houve primeiro o templo, ali se ofereciam sacrifícios a Deus, ali moravam os patriarcas, ali o próprio Cristo nasceu da descendência de Abraão, ali ele se manifestou, ali Cristo apareceu; dali é oriunda também a virgem Maria, que gerou a Cristo. Ali ele andou, pisou com seus pés, ali fez milagres. Finalmente, conferiu tamanha honra àquele povo que, ao interpelá-lo certa mulher cananéia, pedindo a cura de sua filha, o Senhor lhe respondeu: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Vendo essas coisas, disse o profeta: “Contudo, a salvação está perto dos que o temem, a fim de que a glória habite em nossa terra”. | |
§ 12 | 11 “A misericórdia e a verdade se encontraram”. A verdade em nossa terra diriam os judeus, a misericórdia na terra dos gentios. Então, onde estava a verdade? Onde se encontravam as palavras de Deus. E a misericórdia? Entre aqueles que haviam abandonado seu Deus e se tinham voltado para os demônios. Acaso desprezou a estes? Seria como se dissesse: Chama também esses fugitivos de longe; eles se afastaram muito de mim. Chama a fim de que me encontrem a procurá-los, porque eles mesmos não quiseram procurar-me. Portanto, “a misericórdia e a verdade se encontraram. A justiça e a paz se oscularam”. Pratica a justiça e terás a paz, de tal sorte paz e justiça se oscularão. Se não amares a justiça, não terás a paz. Elas duas se amam, a justiça e a paz, e osculam-se, de tal forma que aquele que praticar a justiça há de encontrar a paz a oscular a justiça. São duas amigas. Talvez queiras uma, mas não pratiques a outra. Não há quem não queira a paz; mas nem todos querem praticar a justiça. Interroga a todos os homens: Queres a paz? Com uma só boca responder-te-á todo o gênero humano: Prefiro, desejo, quero, amo. Ama também a justiça, porque a justiça e a paz são duas amigas e se osculam. Se não amares a amiga da paz, a própria paz não te amará, nem virá a ti. Que vantagem há em desejar a paz? Qualquer malvado a deseja. Pois, a paz é uma boa coisa. Mas, então, pratica a justiça; porque justiça e paz se osculam, não se combatem. Por que entras em litígio com a justiça? Eis que a justiça te ordena: Não roubar, e não ouves. Não adulterar, não queres ouvir. Não fazer a outrem o que não se quer para si, não dizer a outrem o que não queres que te seja dito. A paz te responde: És inimigo de minha amiga; por que me procuras? Sou amiga da justiça. Não me aproximo de quem eu notar que é inimigo de minha amiga. Queres, então, alcançar a paz? Pratica a justiça. Por este motivo, ordena-te outro salmo: “Aparta-te do mal e faze o bem” (Sl 33,15), isto é, ama a justiça. Ao te apartares do mal e praticares o bem, “procura a paz e segue-a”. Então, não a procurarás longamente, porque ela mesma virá a teu encontro, para oscular a justiça. | |
§ 13 | 12 “A verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu. A verdade germinou da terra”: Cristo nasceu de mulher. “A verdade germinou da terra”: o Filho de Deus brotou da carne. Que é a verdade? O Filho de Deus. Que é a terra? A carne. Interroga de onde nasceu Cristo e verás que “a verdade germinou da terra”. Mas esta verdade que germinou da terra, existia antes da terra, e por ela foram feitos o céu e a terra; mas para que a justiça olhasse do céu, isto é, justificasse os homens, pela graça de Deus, a verdade nasceu da virgem Maria, a fim de poder oferecer pela justificação dos homens o sacrifício, o sacrifício da paixão, o sacrifício da cruz. E como ofereceria o sacrifício pelos nossos pecados, se não morresse? Como poderia morrer, se não recebesse de nós a carne para morrer? Se não assumisse nossa carne mortal, Cristo não poderia morrer, porque o Verbo não morre, a divindade não morre, a virtude e a sabedoria de Deus não morrem. Como ofereceria em sacrifício a vítima salutar, se não morresse? Como, porém, morreria, se não se revestisse da carne? Como se revestiria da carne, se a verdade não germinasse da terra? “A verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu”. | |
§ 14 | Podemos aqui encontrar outro sentido. “A verdade germinou da terra”: a confissão brotou do homem. Pois, ó homem, eras pecador. Ó terra, que ao pecares ouviste a sentença: “És pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19), de ti germine a verdade, a fim de que a justiça olhe do alto do céu. Como a verdade brotará de ti, se és pecador, se és iníquo? Confessa teus pecados, e a verdade germinará de ti. Se, pois, sendo iníquo, te dizes justo, como a verdade germinará de ti? Se, porém, sendo iníquo, te confessas iníquo, “a verdade germinou da terra”. Atende àquele publicano, que orava no templo, longe do fariseu, que nem ousava levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: Senhor, “tem piedade de mim, pecador! Eis que a verdade germinou da terra”, porque o homem confessou seus pecados. Como continua o evangelho? “Em verdade, eu vos digo que este último desceu para casa justificado, mais do que o outro. Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,13.14). “A verdade germinou da terra”, pela confissão dos pecados; e “a justiça olhou do alto do céu” de tal modo que o publicano desceu para casa mais justificado do que o fariseu. Pois, a fim de que saibais que a verdade se refere à confissão dos pecados, disse o evangelista S. João: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós”. Ouve como em seguida ele diz como a verdade germina da terra e a justiça olha do alto do céu: “Se confessarmos nossos pecados, ele é fiel e justo, para perdoar os nossos pecados e purificar-nos de toda injustiça” (1Jo 1,8.9). Por conseguinte, “a verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu. Que justiça é esta que olhou do alto do céu?” É a de Deus, que fala de certo modo: Perdoemos a este homem, porque ele não poupou a si mesmo; perdoemo-lo, porque ele reconheceu o pecado. Converteu-se para mortificar seu pecado; voltar-me-ei também eu para libertá-lo. “A verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu”. | |
§ 15 | 13 “O Senhor dará a suavidade, e nossa terra produzirá seu fruto”. Falta só um versículo. Peço-vos escutar sem tédio o que vou dizer. Dai atenção, irmãos, a uma questão necessária. Dai atenção, apreendei, tomai-a convosco, e não fique estéril a semente de Deus em vossos corações. “A verdade germinou da terra”, a confissão feita pelo homem de seus pecados. “E a justiça olhou do alto do céu”, isto é, o Senhor Deus justificou o homem que confessa, para que ele reconheça não poder o ímpio tornar-se piedoso, sem a ação daquele a quem o pecador confessa, acreditando no Senhor que justifica o ímpio (cf Rm 4,5). Podes, portanto, ter pecados; mas, adquirir frutos bons só o poderás se os conceder aquele ao qual confessas. Por isso, depois da palavra: “A verdade germinou da terra e a justiça olhou do alto do céu”, como se alguém dissesse: Que significa a afirmação: “A justiça olhou do alto do céu? O Senhor dará a suavidade e nossa terra produzirá seu fruto”. Examinemo-nos, portanto, e se em nós só encontrarmos pecados, odiemo-los, e anelemos pela justiça. Ao começarmos a odiar os pecados, já o próprio ódio começa a nos tornar semelhantes a Deus, porque odiamos o mesmo que Deus odeia. Quando, pois, começares a odiar os pecados e a confessar a Deus, se deleites ilícitos te arrebatam e levam a ações prejudiciais, geme diante de Deus; e ao confessares diante dele teus pecados, merecerás da parte dele o deleite, a suavidade de praticar a justiça, de tal sorte que a justiça começará a aprazer-te, enquanto anteriormente era a iniqüidade que te deleitava. Primeiro gostavas da embriaguez, agora alegre-te a sobriedade; primeiro gostavas de furtar, tirando a outrem o que não tinhas; agora procures dar ao que não tem o que possuías. Tenha prazer em dar aquele que se comprazia em roubar. Quem gostava dos espectáculos, deleite-se na oração. A quem apraziam as cantigas vãs e impuras, tenha gosto em cantar hinos a Deus. Acorra à Igreja quem primeiro corria para o teatro. De onde se originou esta suavidade, senão porque “o Senhor dará a suavidade e nossa terra produzirá seu fruto?” Assim vedes o que digo: Nós falamos a palavra de Deus para vosso proveito, espalhamos a semente em corações dedicados, como se o arado da confissão tivesse sulcado vossos corações. Recebestes a semente com devoção e atenção. Meditai na palavra que ouvistes, abrindo sulcos profundos, para que as aves não tirem as sementes, e elas possam germinar onde foram semeadas. Mas, se Deus não mandar as chuvas, que adianta ter semeado? Isto é: “O Senhor dará suavidade e nossa terra produzirá seu fruto”. Aceda a vossos corações, onde não penetramos, o Senhor, com suas visitas, seja no lazer, ou na ocupação, em casa, no leito, na refeição, nas conversas, nos passeios. Venha a chuva de Deus, e frutifique o que foi semeado. E quando não estivermos presentes, e descansarmos tranqüilos, ou fizermos outros trabalhos, Deus dê incremento às sementes que espalhamos, de tal modo que ao verificarmos depois vossos bons costumes, possamos nos alegrar também por causa de seus frutos, porque “o Senhor dará a suavidade e nossa terra produzirá seu fruto”. | |
§ 16 | 14 “A justiça caminhará a sua frente, e dará seus passos no caminho”. A justiça seria a que existe na confissão dos pecados, enquanto a verdade está na mesma. Deves ser justo, para castigar-te a ti mesmo. A primeira justiça para o homem consiste em castigar o mal em si para que Deus deposite nele o bem. Sendo a primeira justiça do homem, torna-se caminho para Deus, a fim de que Deus dele se aproxime. Abre-se o caminho pela confissão dos pecados. Por isso, também João, quando batizava nas águas da penitência e queria que o procurassem aqueles que se arrependiam de seus pecados passados, dizia: “Preparai o caminho do Senhor, aplanai as suas veredas” (Mt 3,3). Comprazias-te em teus pecados, ó homem, desagrade-te o que eras, para te tornares o que não eras. “Preparai o caminho do Senhor”. Preceda a justiça que confessa os pecados. Ele virá te visitar, “dará seus passos no caminho”. Terá onde pôr os pés, terá acesso a ti. Antes de confessares os pecados, obstruíras o caminho por onde Deus viria a ti; não havia por onde passar. Toma o caminho da confissão e a estrada se abre, Cristo virá, “dará seus passos no caminho”, para te orientar por suas pegadas. | |