ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 83 | ||
§ 83:1 | Ơ Ó Deus, não guardes silêncio; não te cales nem fiques impassível, ó Deus. | |
§ 83:2 | Ꝓ Pois eis que teus inimigos se alvoroçam, e os que te odeiam levantam a cabeça. | |
§ 83:3 | Ɑ Astutamente formam conselho contra o teu povo, e conspiram contra os teus protegidos. | |
§ 83:4 | Ɗ Dizem eles: Vinde, e apaguemo-los para que não sejam nação, nem seja lembrado mais o nome de Israel. | |
§ 83:5 | Ꝓ Pois à uma se conluiam; aliam-se contra ti | |
§ 83:6 | ɑ as tendas de Edom e os ismaelitas, Moabe e os hagarenos, | |
§ 83:7 | ʛ Gebal, Amom e Amaleque, e a Filístia com os habitantes de tiro. | |
§ 83:8 | Ŧ Também a Assíria se ligou a eles; eles são o braço forte dos filhos de Ló. | |
§ 83:9 | Ƒ Faze-lhes como fizeste a Midiã, como a Sísera, como a Jabim junto ao rio Quisom, | |
§ 83:10 | ⱺ os quais foram destruídos em En-Dor; tornaram-se esterco para a terra. | |
§ 83:11 | Ƒ Faze aos seus nobres como a Orebe e a Zeebe; e a todos os seus príncipes como a Zebá e a Zalmuna, | |
§ 83:12 | ɋ que disseram: Tomemos para nós as pastagens de Deus. | |
§ 83:13 | Ɗ Deus meu, faze-os como um turbilhão de pó, como a palha diante do vento. | |
§ 83:14 | Ƈ Como o fogo queima um bosque, e como a chama incedeia as montanhas, | |
§ 83:15 | ɑ assim persegue-os com a tua tempestade, e assombra-os com o teu furacão. | |
§ 83:16 | Ƈ Cobre-lhes o rosto de confusão, de modo que busquem o teu nome, Senhor. | |
§ 83:17 | ᶊ Sejam envergonhados e conturbados perpetuamente; sejam confundidos, e pereçam, | |
§ 83:18 | ᵽ para que saibam que só tu, cujo nome é o Senhor, és o Altíssimo sobre toda a terra. | |
O SALMO 83 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 Intitula-se este salmo: “Para os lagares”. Como pode ter observado V. Caridade (e percebemos que prestáveis a maior atenção), nada se encontra no texto sobre prensa, ou cestos, ou cuba, ou instrumentos, ou construções de um lagar. Nada disso ouvimos. Daí não ser pequeno problema o sentido de seu título: “Para os lagares”. Na verdade, se após o título fosse enumerada qualquer uma dessas coisas que mencionei, podia-se crer que o salmo cantasse esses lagares materiais e visíveis. Uma vez, porém, que traz o título: “Para os lagares”, e depois os versí-culos do salmo nada referem desses lagares familiares a nossos olhos, não há dúvida de que existam outros lagares, que o Espírito de Deus quis que procurássemos e en-tendêssemos aqui. Por conseguinte, relembremos o que se faz nesses lagares visíveis, e vejamos como isto se realiza espiritualmente na Igreja. Ninguém duvida de que as uvas pendem das videiras, e as azeitonas das árvores. Esses dois frutos é que costumam ser tratados nos lagares. Enquanto pendem das árvores, estão ao ar livre. Antes de serem espremidas, nem as uvas dão vinho, nem as azeitonas dão óleo. Assim também são os homens que antes dos séculos Deus “predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho unigênito” (cf Rm 8,29), cacho de uva que principalmente na paixão foi espremido. Estes homens, com efeito, antes de se darem ao serviço de Deus, gozam no mundo de uma espécie de deliciosa liberdade, como as uvas ou as azeitonas nos troncos; mas como foi dito: “Filho, se te dedicares a servir ao Senhor”, firma-te na justiça e no temor, e “prepara-te para a prova” (Eclo 2,1), pois ao se dedicar alguém ao serviço do Senhor, saiba que entrou no lagar, onde será atormentado, esmagado, comprimido, não para perecer neste mundo, mas para correr para os depósitos de Deus. É despojado do invólucro dos desejos carnais, que são as bagas. Assim sucede aos desejos carnais, conforme diz o Apóstolo: “Despi-vos do velho homem e revesti-vos do novo” (Cl 3,9.10). Somente a pressão realiza tudo isso; por este motivo as Igrejas de Deus no tempo presente se denominam lagares. | |
§ 2 | Mas, nós que estamos nos lagares, quem somos? Filhos de Coré. Houve esta adição: “Para os lagares, para os filhos de Coré”. Filhos de Coré traduz-se por filhos do homem calvo, segundo a explicação de alguns que conhecem o hebraico e fazem desse conhecimento um serviço a Deus. Não deixo de descobrir aí um grande mistério, investigando-o convosco, com o auxílio de Deus. Pois, não é ridícula qualquer calvície, de que zombam homens malvados; não aconteça que alguém ridicularize a calvície de um santo varão e seja arruinado pelos demônios. Com efeito, Eliseu caminhava, e uns meninos insensatos puseram-se a gritar atrás dele: “Careca, careca”; visando a realizar o mistério, ele se dirigiu ao Senhor e pediu que saíssem do bosque ursos para os comerem (cf 2Rs 2,23.24). Foi aniquilada a sua infância, pois veio o termo de sua vida neste mundo; morreram os meninos, que um dia, quando velhos, deveriam morrer; todavia, o terror ocasionado pelo fato serviria de sinal para os homens. Eliseu então figurava alguém de quem somos filhos, filhos de Coré, a saber, nosso Senhor Jesus Cristo. Já deve ocorrer a V. Caridade, de acordo com o evangelho por que um homem calvo era figura de Cristo; recordai-vos de que ele foi crucificado no Calvário (lugar da caveira) (cf Mt 27,33). Quer, portanto, se interprete “filhos de Coré” segundo o que dissemos de acordo com os tradutores que nos precederam, quer tenha outro sentido que talvez nos escape, entretanto ocorra, observai como tudo está cheio de mistério. Filhos de Coré, filhos de Cristo, pois o esposo os chama de filhos, dizendo: Não podem os filhos do esposo jejuar, enquanto o esposo está com eles (cf Mt 9,15). Estes lagares, portanto, são os dos cristãos. | |
§ 3 | No meio das angústia, somos esmagados para que, abandonando o amor que nos atraía aos bens mundanos, seculares, temporais, transitórios e caducos (e sofrendo mesmo com a sua posse, nesta vida, tormentos, tribulações, aflições, inúmeras tentações), começássemos a buscar aquele repouso que não cabe nesta vida, nem nesta terra; e o Senhor se torna, conforme está escrito, “o refúgio do pobre” (Sl 9,10). Que pobre? O desvalido, sem ajuda, sem auxílio, nem coisa alguma de que possa presumir na terra. Junto desses pobres acha-se Deus. Os homens, mesmo que tenham abundância de riquezas nesta terra, atendam ao que diz o Apóstolo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os que não sejam orgulhosos, nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza” (1 Tm 6,17). Ao considerarem quão incerto era o objeto de suas alegrias, antes de acederem ao serviço de Deus, isto é, antes de entrarem nos lagares, verificam que as próprias riquezas lhes trazem pensamentos de angústia, acerca da maneira de administrá-las e conservá-las; se a ambição os levar um tanto a amá-las, terão mais medo do que lucro. Que há de mais incerto do que uma coisa volúvel? Não é sem razão que a moeda é redonda, porque não pára. Esses ricos, embora tenham alguma coisa, são na verdade pobres. Aqueles, porém, que nada possuem, mas desejam possuir, são contados entre os ricos dignos de censura; pois, Deus não olha as posses, mas a vontade. Por conseguinte, os pobres destituídos de qualquer riqueza mundana (porque embora esta aflua, eles compreendem como ela é incerta), gemendo junto de Deus, nada encontram neste mundo que os deleite, ou prenda, e achando-se cercados de aflições e provas, como se estivessem nos lagares, produzam vinho, produzam óleo. Em que consiste este vinho e este óleo, se não os bons desejos? Já não amam a terra, mas resta-lhes de desejável o próprio Deus. Efetivamente, amam aquele que criou o céu e a terra; amam, mas ainda não estão com ele. O cumprimento de seu desejo é diferido, para que possa crescer; e cresce, para apreender. Não é pouca coisa o que Deus há de dar aquele que deseja. Há de ser exercitado um pouco para ser capaz de tão grande bem. Deus não há de dar alguma criatura, mas a si mesmo que tudo criou. Exercita-te para apreender a Deus; deseja longamente aquilo que hás de possuir para sempre. Eram reprovados no povo de Israel aqueles que se apressavam; assiduamente a Escritura condena a pressa. Quais são os que se apressam? Aqueles que, convertidos para Deus, e não encontrando aqui na terra o repouso que procuravam e a alegria que lhes fora prometida, de certo modo desanimam da caminhada, pensando que lhe resta um longo caminho até que este mundo ou esta vida acabe, e buscando aqui um repouso que só pode ser enganoso se obtido, olham para trás, e desistem de seu propósito. Não pensam na grande ameaça contida na palavra: “Lembrai-vos da mulher de Lot” (Lc 17,32; cf Gn 19,26). Com que finalidade se tornou uma estátua de sal, se não tempera os homens, a fim de que tenham sabor? Pois, o exemplo do mal que lhe sucedeu se transforma em bem para ti, se te acautelas. “Lembrai-vos da mulher de Lot”. Ela olhou para trás, para o lugar de onde fora libertada, Sodoma, e permaneceu naquele lugar para onde olhara; ela permaneceu naquele lugar, a fim de condimentar os que por ali passassem. Por conseguinte, nós que fomos libertados da Sodoma da vida passada, não olhemos para trás. Apressar-te seria não dar atenção às promessas de Deus, porque seu cumprimento é longínquo e olhar para trás, para o que está próximo e de onde se foi libertado. Como se exprime o apóstolo Pedro sobre esses tais? “Cumpriu-se neles aquilo do provérbio verdadeiro: O cão voltou ao seu próprio vômito” (1Pd 2,22). A consciência de teus pecados onerava-te o peito; recebido o perdão de certo modo vomitaste e revelou-se o que tinhas no coração. A consciência de pesada fez-se límpa; por que hás de voltar novamente a teu vômito? Se te causa horror ver o cão fazer isto, tu o que serás aos olhos de Deus? | |
§ 4 | Cada um de nós, irmãos caríssimos, olha para trás do lugar de sua viagem aonde chegou, com seus progressos, e que dedicou a Deus, quando o abandona. Por exemplo, decidiu guardar a castidade conjugal (por ela começa a justiça); afasta-se da luxúria e daquela ilícita imundície; se volta à luxúria, olha para trás. Outro, por um dom de Deus maior, fez um voto, decidiu não contrair núpcias. Não se condenaria se quisesse se casar, mas depois do voto que fez a Deus, se contrair matrimônio, será condenado por ter feito o mesmo que aquele que não prometera; este último não é condenado, mas o primeiro, sim. Por que motivo, senão por ter olhado para trás? Pois, estava na frente, ao passo que o outro ali não chegara. Assim também a virgem que se casar não peca (cf 1Cor 7,28); a monja se se casar, cometerá adultério em relação a Cristo. Olhou para trás do lugar a que tivera acesso. Assim acontece também àqueles que querem, depois de abandonar qualquer esperança de bens mundanos e as ações terrenas, entrar na sociedade dos santos, naquele tipo de vida em comum em que ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles e eram um só coração e uma só alma em Deus (cf At 2,44; 4,32); quem quiser sair dali não será tal qual aquele que não entrou. Um ainda não se aproximou; outro olhou para trás. Por tal razão, caríssimos, cada um como puder, fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os (cf Sl 75,12), à medida que puder. Ninguém olhe para trás, nem se deleite no que tinha antes. Ninguém desista do que está avante e se volte para trás. Corra até chegar. Não é com os pés que corremos, e sim com o desejo. Ninguém nesta vida diga que alcançou. Quem pode ser tão perfeito como Paulo? E no entanto ele diz: “Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado, mas uma coisa faço; esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus” (Fl 3,13.14). Como vês, Paulo ainda corre e tu julgas que já chegaste? | |
§ 5 | 2 Por conseguinte, se sentes aflições neste mundo, apesar de seres feliz, entendeste que estás no lagar. Com efeito, meus irmãos, pensais que seja temível a infelicida-de no mundo, e a felicidade não? Muito ao contrário. Nenhuma infelicidade esmaga aquele que não se deixa corromper por felicidade alguma. Como, então, não devemos nos acautelar e ter medo daquela que corrompe, a fim de não sermos seduzidos por suas carícias? Não te apoies num caniço; de fato, está escrito que alguns se apoiam em caniços (cf 2Rs 18,21). Não te fies dele; é frágil o caniço em que te apoias, quebra-se e te mata. Se, portanto, a felicidade te sorri neste mundo, considera-a aflição e dize: “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 114,3.4). Ao declarar: “Encontrei a tribulação” refere-se a uma tribulação latente, pois existe tribulação latente neste mundo para alguns que julgam estar bem enquanto peregrinam longe do Senhor. Pois, “enquanto habitamos neste corpo, estamos fora da nossa mansão, longe do Senhor” (2 Cor 7,28). Se estivesses peregrinando longe de teu pai, um simples homem, serias infeliz; peregrinas longe do Senhor, e serás feliz? Portanto, existem alguns que pensam estar bem. Mas, aqueles que entendem que, embora cercados de abundância de bens e prazeres, embora tenham tudo a sua disposição, embora não surjam incômodos, contrariedades, todavia sabem que sofrem males enquanto estiverem longe do Senhor; seu olhar penetrante encontrou tribulação e dor, e eles invocaram o nome do Senhor. É desse número aquele que canta o presente salmo. Quem é ele? O corpo de Cristo. Quem é ele? Se quiserdes, sois vós. Se quisermos, todos nós; todos os filhos de Coré. E todos constituem um só homem, porque é um o corpo de Cristo. Como não seria um só homem se a Cabeça é uma só? Cristo é Cabeça de todos nós e nós todos formamos o corpo daquela Cabeça. E todos nesta vida estamos no lagar. Se entendemos bem as coisas, já entramos no lagar. Por conseguinte, no meio das angústias das tentações, emitamos esta voz, e apresentemos nosso desejo: “Como são amáveis os teus tabernáculos, Senhor dos exércitos!” O salmista achava-se em certas tendas, isto é, nos lagares; mas desejava outros tabernáculos, onde não existe pressão. Suspirava por eles e dali, pelo canal do desejo de certa maneira fluía. | |
§ 6 | 3 Como continua o salmo? “Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor”. Não basta dizer: “Suspira e desfalece”. Mas por qual lugar desfalece? “Pelos átrios do Senhor”. Desfalece a uva espremida; mas por quê? Para se tornar vinho na cuba, e encontrar repouso no depósito, conservando-se em perfeita tranqüilidade. Aqui deseja, ali obtém; aqui suspira, ali alegra-se; aqui suplica, ali louva; aqui geme, ali exulta. Ninguém rejeite o que disse, tomando-o por coisa dura; ninguém recuse sofrer. É de se recear que a uva, que tem medo do lagar, seja devorada pelas aves e feras. Parece mergulhada em tristeza, ao dizer: “Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor”. Não possui aquilo por que anela; mas não terá alegria alguma? Que alegria? A mencionada pelo Apóstolo: “Alegrando-vos na esperança”. Ali fruirá da realidade, mas agora alegra-se ainda na esperança. Entretanto, os que se alegram na esperança, visto que estão seguros de que haverão de alcançar, toleram no lagar todas as angústias. Por este motivo, também o Apóstolo, tendo dito: “Alegrando-vos na esperança”, como que se dirigindo aos que já estão no lagar, logo acrescenta: “Perseverando na tribulação”. Diz: “Perseverando na tribulação”. E em seguida? “Assíduos na oração (Rm 12,12). Por que: “assíduos?” Porque a oração é atendida com delongas. Orais e o atendimento é adiado. Suportai as delongas. Tolere-se a demora, porque uma vez atendida a súplica, não se perde o que foi dado. | |
§ 7 | 3.4 Ouviste o gemido no lagar: “Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor”. Ouve de onde vem que persevera aquele que se alegra na esperança: “Meu coração e minha carne se regozijam no Deus vivo”. Exul-taram aqui por outro motivo. De onde procede a exultação, a não ser da esperança? Por que exultaram? “No Deus vivo”. O que exultou em ti? “Meu coração e minha carne”. Por que razão exultaram? “Porque o pássaro encontra uma casa e a rola um ninho onde agasalhar seus filhotes”. Que sentido tem isto? Dissera duas coisas, e fizera duas comparações com aves. Dissera que seu coração e sua carne se regozijavam e relacionou com isto o pássaro e a rola. O coração com o pássaro, a carne com a rola. O pássaro encontrou uma casa, e encontrou uma casa o meu coração. Utiliza asas, as virtudes deste tempo, a fé, esperança e caridade, com as quais voa para sua casa; e quando a alcançar, lá ficará e a voz queixosa do pássaro daqui, não haverá ali. Pois, trata-se do mesmo pássaro queixoso, mencionado em outro salmo: “Como o pássaro solitário no telhado” (Sl 101,8). Do telhado voa para a casa. Enquanto no telhado, pouse na casa material; terá um lugar no céu, uma casa perpétua; acabarão as queixas deste pássaro. A rola, porém, tem seus filhotes, isto é, a carne: “a rola um ninho onde agasalhar seus filhotes”. O pássaro tem uma casa e a rola tem um ninho, um ninho onde agasalhar os filhotes. Escolhe-se uma casa para ali se habitar sempre, e um ninho é trançado para pouco tempo. Com o coração pensamos em Deus, como se fôssemos um pássaro a voar para sua casa, e com a carne praticamos as boas obras. Pois, notais como o corpo dos santos praticam tanto bem: Por meio dele fazemos aquilo que nos foi ordenado fazer, e que nos ajuda nesta vida. “Reparte o teu pão com o faminto e recolhe em tua casa os pobres desabrigados, veste aquele que vês nu” (Is 58,7). Estas e outra boas ações de preceitos não as praticamos senão empregando o corpo. Por isso, aquele pássaro que pensa em sua casa não difere de rola a procurar um ninho onde agasalhar os filhotes: não os abandona em qualquer lugar, mas encontra um ninho onde agasalhá-los. Vamos dizer, irmãos, o que já sabeis: Quantos parecem praticar o bem fora da Igreja? Quantos pagãos também alimentam o faminto, vestem o nu, recebem um hóspede, visitam um enfermo, consolam um cativo? Quanto são os que fazem tudo isso? Aparentemente seguem a rola; mas não encontram um ninho para si. Quanto bem não fazem muitos hereges, mas não dentro da Igreja; não colocam os filhoste dentro do ninho. Serão pisados e esmagados; não serão preservados, guardados. Como figura desta carne que opera o apóstolo Paulo apresenta certa mulher: “Não foi Adão que foi seduzido, mas foi a mulher que foi seduzida” (1 Tm 2,14). Em seguida, Adão concordou com a mulher (cf Gn 3,6); pois a mulher foi seduzida pela serpente. Agora também nenhuma persuasão má consegue algo se antes não provocar o desejo da carne; se depois a mente consentir, cai também o pássaro; se, porém, são vencidos os desejos da carne, os membros são mantidos nas boas obras, e a concupiscência perde suas armas; e a rola começa a ter filhotes. Por esta razão, como se exprime o Apóstolo: “Entretanto, ela será salva pela sua maternidade” (1 Tm 2,15). Uma viúva sem filhos que permanecer em sua viuvez (1 Cor 7,40) não é mais feliz? Acaso não se salvará, porque não teve filhos? Uma virgem de Deus não será melhor? Acaso não se salvará por não ter filhos? Ou não pertence a Deus? Será salva a mulher, portanto, que é figura da carne, pela maternidade, isto é, se praticar boas obras. Mas, não é em qualquer parte que a rola encontra um ninho onde agasalhar seus filhotes; que pratique suas obras, com uma fé verdadeira, com a fé católica, na unidade da Igreja. Por isso, ao falar dela o Apóstolo acrescenta: “Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e santidade” (1 Tm 2,15). Se permaneces, portanto, na fé, na própria fé constitui o ninho para teus filhotes. Pois, tendo em vista a fraqueza dos filhotes de tua rola o Senhor se dignou oferecer-te um lugar para fazeres o ninho; revestiu-se do feno da carne, a fim de vir para junto de ti. Coloca teus filhotes ao abrigo desta fé; neste ninho pratica suas obras. Que ninhos são estes, ou qual é este ninho, vê-se pela continuação do salmo: “Os teus altares, Senhor dos exércitos”. Depois de: “E a rola um ninho onde agasalhar seus filhotes”, como se perguntasses: Que ninho? “Os teus altares, Senhor dos exércitos, meu rei e meu Deus”. Que significa: “meu rei e meu Deus?” Tu me governas, tu me criaste. | |
§ 8 | 5 Mas este é o ninho, esta a peregrinação, este o suspiro, esta a trituração, esta a pressão porque aqui está o lagar. O que é, porém, que ele deseja? O que ambiciona? Para onde vai? Para onde tende nosso desejo? Para onde nos arrebata? Medita o salmista, aqui estabelecido, no meio de tentação, entre angústias, colocado nos lagares e suspirando pelas promessas do alto. Como se estivesse prestes a agir lá, já está premeditando as alegrias futuras. Diz ele: “Felizes os que habitam em tua casa”. Por que felizes? O que haverão de possuir? O que fazer? Todos os que são chamados felizes aqui na terra têm algo, e algo fazem. Feliz aquele homem: possui tantas propriedades, tantos servos, tanto ouro e prata. É chamado feliz por possuir. Feliz aquele outro: alcançou honrarias, o proconsulado, a prefeitura. Diz-se que é feliz na sua atividade. Por conseguinte, ou por possuir, ou por atuar. Todavia, como são felizes lá, no céu? Que haverão de ter? Como atuarão? Já declarei acima o que haverão de ter: “Felizes os que habitam em tua casa”. Se possuis uma casa, és pobre; se tens a casa de Deus és rico. Em tua casa tens medo dos ladrões. Na casa de Deus, ele mesmo é seu muro. “Felizes os que habitam em tua casa”. Possuem a Jerusalém celeste sem angústias, sem opressões, sem diversidade nem linhas divisórias; todos a possuem, e cada qual a possui toda inteira. Imensas aquelas riquezas! Um irmão não pressiona a outro. Ali não existe indigência alguma. Pois, o que se há de fazer ali? A necessidade é a mão de todas as ações humanas. Irmãos, já o disse resumidamente: percorrei em espírito quaisquer ações. Vede se há quem as produz, a não ser a necessidade. Mesmo aquelas artes dignas de menção, que parecem grandes ao prestarem socorro: o patrocínio da defesa e os remédios da medicina. São excelentes atividades neste mundo. Mas, extermina os que abrem uma demanda, e a quem há de socorrer o advogado? Extirpa as feridas e as doenças, e o que há de curar o médico? E toda essa atividade na vida cotidiana, que de nós é exigida e por nós realizada, provém da necessidade. Arar, semear, plantar vinha nova, navegar — todas essas obras de onde se originam, a não ser da necessidade e indigência? Extingue a fome, a sede, a nudez; quem precisará de tudo isso? Essas boas obras que nos são preceituadas — pois estas ações que enumerei são honestas, mas são de todos os homens (excetuadas as obras péssimas, detestáveis, maldades e crimes, homicídios, latrocínios, adultérios; nem as considero ações humanas) — essas obras honestas, digo, provêm apenas da necessidade, da necessidade da fragilidade carnal. Também as que disse serem ordenadas: “Reparte o teu pão com o faminto”, com quem haverás de repartir, se ninguém tem fome? “Recolhe em tua casa os pobres desabrigados” (cf Is 58,7), — a quem receberás como hóspede, ali onde todos vivem em sua própria pátria? Como visitarás o doente, onde todos gozam de perpétua saúde? Como apaziguarás um litígio, onde existe paz eterna? Que morto hás de sepultar, onde se vive para sempre? Por conseguinte, nada disso farás, dentre as obras honestas para todos os homens; nada praticarás destas boas obras, porque estes filhotes da rola já terão voado do ninho. Que fazer, então? Já disseste o que teremos: “Os que habitam em tua casa, são felizes”. Dize também o que hão de fazer, porque lá não encontro necessidades que me impilam a agir. Agora mesmo, se falo e discorro, isso provém da necessidade. Acaso, no céu haverá tais explicações, como se fosse preciso ensinar a ignorantes, ou relembrar aos que estão esquecidos? Ou, de fato, naquela pátria se recitará o evangelho, uma vez que lá se haverá de contemplar o próprio Verbo de Deus? Portanto, uma vez que o salmista, cheio de desejos e suspiros, fala em nosso lugar, o que haveremos de ter na pátria pela qual suspiramos: “Felizes os que habitam em tua casa”, fale também o que ali haveremos de fazer. “Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos”. Será toda nossa ocupação indefectível, repetir: Aleluia. Não julgueis, irmãos, que ali haverá fastio, visto que agora não agüentais repeti-lo por muito tempo; a necessidade vos retira aquela alegria. E visto que tanto nos deleita o que não se vê, se com tanto empenho louvamos o que acreditamos, mesmo nas angústias e fragilidade da carne, como não haveremos de louvar o que virmos? Quando a morte for absorvida pela vitória, quando o que for mortal revestir a imortalidade, e o que é corruptível revestir a incorruptibilidade (cf 1Cor 15,53-54), ninguém dirá: Fiquei de pé por muito tempo; ninguém dirá: Jejuei demais, fiz longas vigílias. Ali haverá grande estabilidade e nosso próprio corpo imortal estará suspenso na contemplação de Deus. E se agora esta palavra que vos ministramos conserva de pé nosso corpo tão frágil, por tanto tempo, que nos fará aquela alegria? Como não nos transformará? “Seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (cf 1Jo 3,2). Se já formos semelhantes a ele, quando desfaleceremos? Para onde nos voltaremos? Portanto, irmãos, estejamos seguros; não ficaremos saciados do louvor de Deus, do amor de Deus. Se deixares de amar, deixarás de louvar; se, porém, o amor for eterno, porque aquela beleza não nos saciará, não temas que não poderás louvar sempre aquele que poderás eternamente amar. Por conseguinte: “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos”. Suspiremos por esta vida. | |
§ 9 | 6 Mas como chegaremos lá? “Feliz o homem que de ti recebe socorro, Senhor”. O salmista entendeu onde estava, porque devido à fragilidade de sua carne não podia voar para aquela bem-aventurança; considerou seu peso, porque foi dito em outra passagem: “Um corpo corruptível pesa sobre a alma e — tenda de argila — oprime a mente pensativa” (Sb 9,15). O espírito chama para o alto, e o peso da carne puxa para baixo; entre as duas tendências, uma para cima e outra para baixo, há certa tensão, e esta tensão pertence à pressão do lagar. Ouve como o Apóstolo exprime a luta que há no lagar, porque também ele ali era esmagado, espremido: “Compraz-me a lei de Deus, segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros”. Grande luta, e forte falta de esperança de escapar, a não ser que tenha o socorro que vem em seguida: “Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de morte? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rm 7,22-25). Portanto, também neste salmo o autor viu aquela alegria, e a ponderou interiormente: “Felizes os que habitam em tua casa, Senhor. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos”. Mas quem subirá até lá? Que farei do peso da carne? “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos. Compraz-me a lei de Deus, segundo o homem interior”. Mas que farei? Como voar? Como alcançar? “Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão”. Declara-se infeliz e diz: “Quem me libertará desse corpo de morte”, para que habite na casa do Senhor e o louve pelos séculos dos séculos? “Quem me libertará? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso”. Assim as palavras do Apóstolo vêm ao encontro daquela dificuldade e luta quase inextrincável, acrescentando: “A graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso”. Igualmente aqui, tendo suspirado em ardente desejo pela casa de Deus e seus louvores, e levando em conta o peso de seu corpo e a constituição de sua carne, insinua-se-lhe certo desânimo, mas desperta para a esperança e declara: “Feliz o homem que de ti recebe socorro, Senhor”. | |
§ 10 | 6.7 Que socorro traz a graça de Deus àquele que ele tomou para conduzi-lo ao fim? Continua o salmo: “Em seu coração preparou ascensões”. Dá-lhe uma escada para subir. Onde lhe dá a escada? No coração. Quanto mais amares, portanto, tanto mais subirás. “Em seu coração preparou ascensões”. Quem? Aquele que Deus acolheu: “Feliz o homem que de ti recebe socorro, Senhor”. Aquilo que o homem não pode por si, é preciso que da tua graça receba. E que faz tua graça, Senhor? Prepara ascensões no coração. Onde dispõe ascensões? “No coração, no vale de lágrimas”. Eis o lagar, o vale de lágrimas. As lágrimas piedosas dos aflitos são o mosto daqueles que amam. “Em seu coração preparou ascensões”. Onde preparou? “No vale de lágrimas”. Aí, portanto, dispôs ascensões, “no vale de lágrimas”; aí se chora na semeadura, conforme se acha no salmo: “Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes” (Sl 125,6). Por conseguinte, em teu coração Deus dispôs ascensões por meio de sua graça. Sobe pelo amor; assim se cantam os cânticos graduais. E onde ele te preparou essas ascensões? “No coração, no vale de lágrimas”. O salmista diz onde preparou e para que fim preparou. Que preparou? “Ascensões” Onde? Interiormente, “no coração”. Em que região, em que lugar a servir de moradia? “No vale de lágrimas”. Para onde subir? Ao lugar que ele “preparou”. Que quer dizer isto, irmãos: “Ao lugar que ele determinou?” O salmista diria que lugar é este que Deus determinou, se fosse possível. Ele te disse: “Em seu coração preparou ascensões, no vale de lágrimas”. Perguntas para onde? Que te responderá? “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu” (1 Cor 2,9). É colina, é monte, é terra, é prado. Quase tudo isso foi dito sobre aquele lugar. Mas quem pode explicar o que é propriamente e não em figura? Pois, “agora vemos em espelho e de maneira confusa” o que é aquele lugar, “mas, depois, veremos face a face” (1 Cor 13,12). Em vista disso, não interrogues onde o “lugar que ele determinou”. Ele sabe onde é, conhece-o aquele que determinou para onde te conduzirá, e que preparou ascensões no coração. Como? Receias subir, de medo que erre aquele que te conduz? Eis que ele no vale de lágrimas preparou ascensões, “ao lugar que ele determinou”. Choramos agora. Onde? Onde nos foram preparadas nossas ascensões. Por que motivo choramos, senão pelo mesmo que fazia o Apóstolo exclamar que era infeliz, vendo outra lei em seus membros a pelejar contra a lei de sua razão? (cf Rm 7,23). E de onde nos vem isto? Em castigo do pecado. Pensávamos que facilmente poderíamos ser justos por nossas próprias forças, antes de termos recebido os mandamentos. Uma vez promulgados estes, o pecado reviveu, mas eu morri. Isto é o que diz o Apóstolo. Aos homens foi dada uma lei, não para salvá-los, mas para que eles reconhecessem como jaziam doentes. Ouve as palavras do Apóstolo: “Se tivesse sido dada uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem” (Gl 3,21.22). A graça viria após a Lei, encontraria o homem não somente a jazer, mas ainda a confessar: “Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de morte”? (Rm 7,24). Oportunamente viria o médico ao vale de lágrimas, e declararia: Certamente sabes que caíste. Para te levantares, ouve-me a mim que desprezaste para caíres. A Lei, portanto, foi promulgada a fim de convencer o doente acerca de sua doença, porque se considerava são. Demonstraria o pecado, mas não o apagaria. Demonstrado o pecado pela promulgação da Lei, este agravou-se, porque seria pecado e contra a Lei. Diz o Apóstolo: “Mas o pecado, aproveitando-se da situação, através do preceito gerou em mim toda espécie de concupiscência” (Rm 7,7.8). Que quer dizer: “Aproveitando-se da situação, através do preceito?” Por ocasião do preceito os homens esforçaram-se por agir empregando suas próprias forças; vencidos pela concupiscência, tornaram-se culpados de transgressão do próprio preceito. Mas o que afirma o Apóstolo? “Onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20), isto é, agravando-se a doença, valorizou-se a medicina. Com efeito, irmãos, aqueles cinco pórticos de Salomão, que encerravam uma piscina no meio, porventura curava os doentes? Lemos no evangelho: “sob esses cinco pórticos, estavam deitados no chão numerosos doentes” (Jo 5,3). Aqueles cinco pórticos são a Lei, contida nos cinco livros de Moisés. Para lá eram levados os doentes, retirados de suas casas, para ficarem deitados no chão sob os pórticos. Portanto, a Lei apresentava os doentes, mas não os curava. Com a bênção de Deus, a água se agitava, como se um anjo para lá descesse. Ao se agitar a água, o primeiro que podia descia e era curado. Aquelas águas, cercadas de cinco pórticos, representavam o povo judaico encerrado na Lei. O Senhor, com sua presença, agitou esse povo e ele foi morto. Se a vinda do Senhor não tivesse perturbado o povo judaico, acaso seria crucificado? Por isso, a água agitada significava a paixão do Senhor, que foi realizada pelo povo judaico agitado. O doente que acredita nesta paixão, desce à água agitada e se cura. A Lei, isto é, os pórticos, não curava; cura a graça, pela fé na paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Um só é curado, por causa da unidade. Por este motivo, o que diz aqui o salmista? “Em seu coração preparou ascensões, no vale de lágrimas, ao lugar que ele determinou”. Ali nos alegraremos. | |
§ 11 | 8 Por que “no vale de lágrimas?” De que vale de lágrimas passaremos àquele lugar de alegria? Pois, “dará a misericórdia quem deu a lei”. A Lei nos afligiu, nos pressionou, mostrou-nos o lagar; experimentamos a opressão, a tribulação de nossa carne, gememos ao se rebelar o pecado contra nossa razão e clamamos: “Infeliz de mim!” (Rm 7,24). Gememos sob a Lei; que resta, senão que dê a benção quem deu a lei? Após a Lei virá a graça; esta é a bênção. E que nos trarão esta graça e esta bênção? “Irão de virtude em virtude”. A graça acarreta muitas virtudes: “A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro, a palavra da ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro, a fé; a outro ainda, o dom das curas; a outro, o dom de falar em línguas; a outro, ainda, o dom de as interpretar; a outro a profecia” (1 Cor 12,8.10). Muitas virtudes, mas necessárias aqui na terra. E nós vamos de virtude em virtude. Qual? “Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (cf 1Cor 1,24). Ele concede diversas virtudes aqui na terra, mas dará depois em lugar de todas essas virtudes necessárias e úteis no vale de lágrimas uma só virtude, a si mesmo. Pois, muitos autores enumeram (e as encontramos na Escritura), quatro virtudes que atuam em nossa vida. Fala-se em prudência, que nos leva a distinguir entre bem e mal. Trata-se da justiça que dá a cada um o que é seu, a ninguém ficando a dever, mas amando a todos (cf Rm 13,8). Há referência também à temperança, que refreia os incentivos dos prazeres. Chama-se fortaleza a que nos faz tolerar todas as incomodidades. São essas as virtudes que nos são dadas pela graça de Deus agora, no vale de lágrimas. Destas virtudes partimos para aquela única virtude. E qual será ela, senão unicamente a da contemplação de Deus? No céu não precisaremos da prudência, porque não nos ocorrerá mal algum a evitar. Que pensar, irmãos? Não será necessária a justiça onde não haverá indigência alguma a socorrer. Não se precisará de temperança, onde não haverá atrativos a refrear. Nem fortaleza, onde não existirá mal a tolerar. Por conseguinte, dessas virtudes ativas iremos àquela virtude da contemplação, que nos levará a contemplar a Deus, conforme se acha escrito no salmo: “Desde a manhã estarei de pé diante de ti e verei” (Sl 5,5). E ouve também que passaremos dessas virtudes ativas àquela virtude da contemplação. Continua o salmo: “Irão de virtude em virtude”. Qual? A de contemplar. Que significa: a virtude de contemplar? “Aparecerá o Deus dos deuses em Sião. Deus dos deuses”, o Cristo dos cristãos. Como é “o Deus dos deuses”, o Cristo dos cristãos? “Eu disse: Vós sois deuses e sois todos filhos do Altíssimo” (Sl 81,6). Pois, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (cf Jo 1,12), aquele em quem acreditamos, o esposo belo, que apareceu sem beleza na terra por causa de nossa deformidade, visto que “não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar” (Is 53,2). Terminadas as necessidades todas impostas pela condição mortal, aquele que é Deus junto de Deus, e verbo junto do Pai, por meio do qual tudo foi feito, aparecerá aos puros de coração; “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). “Aparecerá o Deus dos deuses em Sião”. | |
§ 12 | 9 Novamente o salmista deixa a lembrança daquelas alegrias e volta a seus suspiros. Pondera o que alcançou em esperança e onde se acha a realidade. “Aparecerá” então “o Deus dos deuses em Sião”, isto é, onde nos alegra-remos; louvá-lo-emos pelos séculos dos séculos. Mas agora ainda é tempo de rezar, de suplicar; e se um pouco é tempo de se alegrar, é somente em esperança; estamos em peregrinação, no vale de lágrimas. Voltando o salmo a este lugar de gemidos, diz: “Escuta a minha oração, Senhor Deus dos exércitos. Presta ouvidos, Deus de Jacó”, uma vez que transformaste o próprio Jacó em Israel. Pois, Deus lhe apareceu, e ele tomou o nome de Israel, aquele que vê a Deus (cf Gn 32,28). Escuta-me, portanto, Deus de Jacó e tranforma-me em Israel. Quando me tornarei Israel? Quando aparecer o Deus dos deuses em Sião. | |
§ 13 | 10 “Volve teu olhar, ó Deus, nosso protetor”. Eles esperarão à sombra de tuas asas (cf Sl 35,8); por isso, “volve teu olhar, ó Deus, nosso protetor e inclina os olhos para a face de teu Cristo”. Mas, quando é que Deus não olha a face de seu Cristo? Por que “inclina os olhos para a face de teu Cristo?” É a face que nos torna conhecidos; por que então “inclina os olhos para a face de teu Cristo?” Faze com que teu Cristo chegue ao conhecimento de todos. “Inclina os olhos para a face de teu Cristo”: seja teu Cristo conhecido por todos, a fim de que possamos ir de virtude em virtude, a fim de que superabunde a graça, uma vez que o pecado avultou (cf Rm 5,20). | |
§ 14 | 11 “Porque é melhor um dia em teus átrios do que mil outros”. Por esses átrios o salmista suspirava, desfalecia de desejo. Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor; ali um dia é melhor do que mil outros. Os homens desejam milhares de dias, e querem viver muito aqui na terra. Desprezem os milhares de dias e desejem esse único dia que não tem começo nem ocaso, um só dia, o dia eterno, ao qual o dia de ontem não ceda lugar, nem o de amanhã venha empurrar. Anelemos por este único dia. Que temos nós com milhares de dias? Vamos dos milhares a um só, assim como progredimos de virtude em virtude. | |
§ 15 | “Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores”. O salmista descobriu o vale de lágrimas, notou a condição humilde de onde deve subir, sabe que se procurar se exaltar há de cair, e se buscar humilhar-se, será elevado. Quantos são os que fora deste tabernáculo, deste lugar do Senhor, isto é, fora da Igreja católica procuram elevar-se e amando as próprias honrarias não querem conhecer a verdade1? Se tivessem no coração este versículo: “Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores”, acaso rejeitariam as honras e não correriam na direção do vale de lágrimas, para ali encontrarem as ascensões no coração e progredirem de virtude em virtude, pondo em Cristo sua esperança e não num homem qualquer? Boa palavra, alegre, preferível: “Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores”. Preferiu estar no limiar da cada do Senhor; mas o Senhor que convidou para o banquete, chama o que escolheu um lugar inferior para mais acima, dizendo-lhe: “Vem mais para cima” (Lc 14,10). Ele não escolhera senão estar na casa do Senhor, em qualquer lugar, contudo não fora do limiar. | |
§ 16 | Por que preferiu estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores? “Porque Deus ama a misericórdia e a verdade”. Ama o Senhor a misericórdia, com a qual primeiro me socorreu; ama a verdade, dando ao que acreditar aquilo que prometeu. Ouve como concedeu a misericórdia e a verdade ao apóstolo Paulo, que antes era Saulo, um perseguidor. Precisava da misericórdia e declara que esta lhe foi concedida: “A mim que outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia, para que em mim Cristo Jesus demonstrasse toda a sua longanimidade, como exemplo para quantos nele hão de crer, para a vida eterna” (1 Tm 1,13-16). Tendo Paulo recebido o perdão de tamanhos crimes, ninguém perca a esperança de que lhe possam ser perdoados quaisquer pecados. Aí temos a misericórdia. Deus não quis então exercer a justiça, segundo a verdade, punindo o pecador. De fato, se o pecador fosse punido, não seria agir segundo a verdade? Ou ousaria ele dizer: Não devo ser castigado, se não podia afirmar: Não pequei? E se quisesse asseverar: Não pequei, a quem o diria? A alguém a que pudesse enganar? Conseqüentemente, o Senhor primeiro usou da misericórdia para com ele; e depois da misericórdia, a verdade. Escuta como começa a exigir a verdade. Primeiro, diz o Apóstolo: “Mas obtive misericórdia. Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas pela graça de Deus, sou o que sou” (1 Cor 15,10). Declara, depois, já próximo do martírio: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça”. Deus, que usou de misericórdia, age segundo a verdade. E como? “Que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2 Tm 4,7.8). Usou de misericórdia, dará a coroa; doador do perdão, devedor da coroa. Como devedor? Ele recebeu alguma coisa? A quem deve Deus alguma coisa? Eis como Paulo o considera devedor, ele que recebeu a misericórdia e exige o cumprimento da justiça segundo a verdade: “Que me dará o Senhor naquele dia”. Que te retribuirá, senão o que te deve? De que modo ele te deve? Que lhe deste? Quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? (cf Rm 11,35). O pró-prio Senhor se fez teu devedor, não por ter recebido, mas porque prometeu. Não se lhe pode dizer: Devolve o que recebeste; mas: Paga o que prometeste. Diz o Apóstolo: Fez-me misericórdia, para me tornar inocente; pois primeiro fui blasfemo e insolente, mas sua graça me transformou em inocente. Aquele, porém, que antecipou-se com a misericórdia, poderá negar o débito? “Deus ama a misericórdia e a verdade e dará a graça e a glória”. Que graça, a não ser a referida por ele mesmo: “Pela graça de Deus sou o que sou?” Que glória, a não ser a que ele menciona: “Desde já me está reservada a coroa da justiça”. | |
§ 17 | 13 “Não recusa Deus bem algum aos que andam na inocência”. Por que, então, ó homens, não quereis permanecer na inocência, a não ser para assegurardes vossos bens? Não quer manter a inocência aquele que não quer devolver o que lhe foi confiado. Quer ter o ouro e perde a inocência. O que lucra com isso? Qual o prejuízo? Lucra ouro, sofre dano na inocência. Existe algo mais precioso do que a inocência? Mas se me mantenho na inocência, responde, ficarei pobre. A inocência seria pequena riqueza? Se tiveres a caixa repleta de ouro, serás rico; e se tiveres o coração cheio de inocência, serás pobre? Mas, se desejas possuir bens, conserva-te inocente agora, no meio da pobreza, da tribulação, no vale de lágrimas, nas angústias, nas tentações. Posteriormente virá o bem que ambicionas. O repouso, a eternidade, a imortalidade, a impassibilidade virão depois. São estes os bens que Deus reserva para os seus justos. Quanto aos bens que agora consideras importantes, e que te levam a seres nocivo e não inocente, observa que espécie de homens os possuem, e os têm em abundância. Notarás riquezas nas mãos dos ladrões, dos ímpios, dos celerados, dos torpes; nas mãos dos malvados e criminosos encontrarás riquezas. Deus lhes dá desses bens porque eles pertencem ao gênero humano, e devido a sua superabundante bondade, que faz o seu sol brilhar sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (cf Mt 5,45). Ele dá tão grandes bens também aos maus; e para ti nada conserva? É enganoso o que te promete? Ele reserva, sim; podes ficar tranqüilo. Aquele que de ti se compadeceu quando eras ímpio, há de te abandonar depois que te tornaste piedoso? Quem fez ao pecador o dom da morte de seu Filho, o que não há de reservar para aquele que foi salvo pela morte de seu Filho? Por conseguinte, fica tranqüilo. Detém o teu devedor, pois nele acreditaste ao fazer as promessas. “Não recusa o Senhor bem algum” aos que andam na inocência. Em conseqüência disso, o que nos falta aqui na terra, ao estarmos no lagar, nas aflições, nas coisas duras, nos perigos desta vida? O que nos falta, para chegarmos lá no céu? “Senhor, Deus dos exércitos, feliz o homem que em ti confia”. 1 Talvez ainda não tinha saído o decreto do concílio de Cartago, de 401, de que os clérigos donatistas, “fossem recebidos, conservando seus cargos” (Cod. can. Eccl. Africanae, LXVIII, ed. Bruns, p. 173). | |