SALMO 𝟭

Ó Deus dos exércitos, volta-te, nós te rogamos; atende do céu, e vê,

e visita esta videira, a videira que a tua destra plantou, e o sarmento que fortificaste para ti.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 80


§ 80:1  Ơ Ó pastor de Israel, dá ouvidos; tu, que guias a José como a um rebanho, que estás entronizado sobre os querubins, resplandece.

§ 80:2  Perante Efraim, Benjamim e Manassés, desperta o teu poder, e vem salvar-nos.

§ 80:3  Reabilita-nos, ó Deus; faze resplandecer o teu rosto, para que sejamos salvos.

§ 80:4  Ơ Ó Senhor Deus dos exércitos, até quando te indignarás contra a oração do teu povo?

§ 80:5  Ŧ Tu os alimentaste com pão de lágrimas, e lhes deste a beber lágrimas em abundância.

§ 80:6  Ŧ Tu nos fazes objeto de escárnio entre os nossos vizinhos; e os nossos inimigos zombam de nós entre si.

§ 80:7  Reabilita-nos, ó Deus dos exércitos; faze resplandecer o teu rosto, para que sejamos salvos.

§ 80:8  Ŧ Trouxeste do Egito uma videira; lançaste fora as nações, e a plantaste.

§ 80:9  Preparaste-lhe lugar; e ela deitou profundas raízes, e encheu a terra.

§ 80:10  Os montes cobriram-se com a sua sombra, e os cedros de Deus com os seus ramos.

§ 80:11  Ela estendeu a sua ramagem até o mar, e os seus rebentos até o Rio.

§ 80:12  Por que lhe derrubaste as cercas, de modo que a vindimam todos os que passam pelo caminho?

§ 80:13  O javali da selva a devasta, e as feras do campo alimentam-se dela.

§ 80:14  Ơ Ó Deus dos exércitos, volta-te, nós te rogamos; atende do céu, e vê, e visita esta videira,

§ 80:15  ɑ a videira que a tua destra plantou, e o sarmento que fortificaste para ti.

§ 80:16  Está queimada pelo fogo, está cortada; eles perecem pela repreensão do teu rosto.

§ 80:17  Seja a tua mão sobre o varão da tua destra, sobre o filho do homem que fortificaste para ti.

§ 80:18  E não nos afastaremos de ti; vivifica-nos, e nós invocaremos o teu nome.

§ 80:19  Reabilita-nos, Senhor Deus dos exércitos; faze resplandecer o teu rosto, para que sejamos salvos.


O SALMO 80


SERMÃO 💬

§ 1
1 Empreendemos falar-vos deste salmo. Vosso silêncio ajude nossa voz, pois estou um pouco rouco; dar-me-á forças a atenção dos ouvintes e o auxílio daquele que me mandou falar. Este salmo tem por título:

Para o fim, para os lagares, no quinto dia da semana. Salmo. Do mesmo Asaf”.

Num título estão reunidos muitos mistérios, de tal modo que o limiar do salmo indica seu conteúdo. Tendo de falar sobre lagares, nenhum de vós espere que havemos de tratar da cuba, da prensa, dos cestos, porque nem o salmo alude a isto e antes indica o seu mistério. Pois, se o texto do salmo contivesse algumas destas coisas, não faltaria quem pensasse que devia tomar lagares à letra, e que não era preciso pesquisar mais, nem que tivesse um sentido místico e sagrado, mas diria: O salmo trata simpesmente de lagares, e não sei o que me queres insinuar mais. Agora, nada disto ouvistes na leitura. Portanto, tomai lagares como sinal do mistério da Igreja, que agora se realiza. Nos lagares notamos três pontos: a prensa, e da prensa saem duas espécies de elementos: um a ser recolhido e outro a ser jogado fora. No lagar, portanto, há pisoteio, tribulação, peso; e assim o óleo se destila ocultamente nas almotolias; a borra corre publicamente nas ruas. Prestai atenção a este grande espectáculo. Deus não deixa de nô-lo apresentar para que a ele assistamos com grande prazer; ele pode ser comparado com a loucura do circo? Esta é borra, aquele é óleo. Quando, pois, ouvis os blasfemos gritarem com insistência, e dizerem na época dos cristãos as tribulações abundam, sabeis que eles têm gosto em repetir o antigo provérbio que, contudo, começou nos tempos cristãos: Deus não envia chuvas, a culpa é dos cristãos1. Embora tenham sido os antigos que o disseram, os inimigos agora o repetem, mesmo quando Deus envia chuvas: A culpa é dos cristãos. Não chove, não semeamos; chove, não trituramos. E serve-lhes de opor-tunidade de orgulho o que deveria fazê-los mais suplicantes. Preferem blasfemar a rezar. Não vos perturbeis se eles relembram estas coisas, se eles se gabam, se o dizem com contumácia; não com temor mas com altivez. Pensa que as angústias abundam. Sê óleo. A borra negra injúria devido às trevas de sua ignorância. Lançada nas praças publicamente injurie. Tu, porém, em teu coração, onde aquele que vê o que ali será oculto te recompensará, destila nas almotolias. As azeitonas na árvore são sacudidas pelas tempestades, mas não são esmagadas, imprensadas nos lagares. Da árvore pendem simultaneamente a parte que será jogada fora e a que será recolhida; mas logo que forem colocadas no lagar e na prensa, uma parte se torna distinta da outra, separam-se e uma é desejada e outra rejeitada. Quereis saber qual a força desses lagares? Direi apenas um fato que leva à murmuração aqueles mesmos que o ocasionam: Quanta rapina, dizem eles, em nossos dias, quanta tribulação dos inocentes, quanta exploração das propriedades alheias! Com efeito, prestas atenção à borra, visto que os bens alheios são roubados; não observas o óleo, aqueles que dão aos pobres o que lhes é próprio. A antiguidade não tinha tais ladrões dos bens alheios; mas também não existiam na antiguidade tais doadores de seus próprios bens. Tem um pouco mais de curiosidade de saber o que passa no lagar; não olhes apenas o que corre publicamente. Há alguma coisa que descobrirás em tua procura. Examina, ouve, conhece quantos são os que praticam aquilo que um rico ouviu da boca do Senhor, mas afastou-se com tristeza. Muitos ouvem do evangelho:

Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois vem e segue-me(Mt 19,21).

Não observas quantos são os que assim procedem? São poucos, diz-se. Todavia, esses poucos são óleo. Aqueles que usam bem as riquezas que possuem são óleo; reúne todos e verás cheios os depóstios de teu pai de família. Encontras quem roube os bens alheios como nunca; vê também quem despreza suas riquezas como nunca. Elogia os lagares. Cumpre-se a profecia do Apocalipse:

Que o justo pratique ainda a justiça e o sujo continue a sujar-se(Ap 22,11).

Eis os lagares indicados nesta sentença:

Que o justo pratique ainda a justiça e o sujo continue a sujar-se”.



§ 2
Por que “quinto dia da semana?” Que é isto? Recorramos às primeiras obras de Deus, pois talvez ali encontremos o que esclareça este mistério. O sábado é o sétimo dia, em que Deus descançou de todas as suas obras (cf Gn 2,2), sugerindo o grande mistério do futuro repouso de todas as nossas obras. Primeiro dia da semana é o primeiro dia que nós denominamos domingo; segundo da semana é a segunda-feira; terceiro, a terça-feira; quarto, a quarta-feira; portanto “quinto-dia” é o quinto a contar do domingo; depois dele o sexto é a sexta-feira; e o sábado é o sétimo dia. Vede, portanto, de que fala aqui o salmo; parece-me que fala aos batizados. Pois, no quinto dia Deus criou os animais aquáticos; no quinto dia, isto é, no “quinto dia da semana” disse Deus:

Fervilhem as águas de seres vivos que rastejam(Gn 1,20).

Vede, portanto, onde as águas produziram seres vivos que rastejam. Pois, vós pertenceis aos lagares. E em vós, que as águas produziram, uma parte destila, outra é lançada fora. Pois, existem muitos que não vivem de maneira digna do batismo que receberam. Quantos batizados hoje enchem o circo, que preferiram a esta basílica! Quantos batizados fazem barracas nas aldeias ou se lastimam porque não são feitas! Este salmo, porém “para os lagares e no quinto dia da semana”, na tribulação que distingue e no sacramento do batismo, é cantado ao mesmo Asaf. Houve certo homem chamado Asaf, como houve Iditun, Coré e outros nomes que encontramos nos títulos dos salmos. No entanto, a tradução desses nomes insinua o mistério da verdade que neles se oculta. Asaf em vernáculo, de fato, significa assembléia. Portanto “para os lagares, no quinto dia da semana” ele é cantado ao “mesmo Asaf”, isto é, separados pela tribulação, os batizados renascidos na água, canta-se o salmo para a assembléia do Senhor. Lemos o título no limiar e entendemos o que significam esses lagares. Agora, se vos apraz, vejamos também a casa de trabalho, isto é, o interior do próprio lagar. Entremos, examinemos, alegremo-nos, temamos, desejemos, fujamos. Tudo isso haveis de encontrar no interior da casa, isto é, no texto do próprio salmo, quando, com o auxílio do Senhor, começarmos a ler e a falar conforme ele nos conceder esse dom.



§ 3
2 Vós, ó Asaf, ó assembléia do Senhor, “exultai em Deus, nosso protetor”.

Vós que vos reunistes hoje, vós que hoje sois o Asaf do Senhor, se de fato é para vós que se canta o salmo, ao próprio Asaf:

Exultai em Deus, nosso protetor”.

Os outros exultam no circo, vós em Deus; os outros exultam em seu sedutor, exultai em vosso protetor; exultam os outros em seu ventre, exultai vós em vosso Deus, vosso protetor.

Cantai jubilosos ao Deus de Jacó”, porque também vós pertenceis a Jacó; ou antes, vós sois Jacó, o povo mais novo que é servido pelo mais velho (cf Gn 25,23).

Cantai jubilosos ao Deus de Jacó”.

Tudo aquilo que não podeis explicar com palavras não vos impeça de exultar; clamai o que podeis explicar; o que não podeis vos leve a “cantar jubilosos”.

Pois, uma alegria exuberante, à qual as palavras não bastam, costuma irromper no júbilo:

Cantai jubilosos ao Deus de Jacó”.

1 Cf Tert. Apol. 40,2; Ag. de civ. Dei II, 3,3.



§ 4
3 “Tomai, entoai um salmo e oferecei, tocai os tím-bales”.

O que “tomais?” O que “ofereceis? Tomai um salmo, e oferecei os tímbales”.

Em determinada passagem o apóstolo Paulo censura e lastima que ninguém teve con-tacto com ele “em relação de dar e receber”.

Que significa:

em relação de dar e receber(Fl 4,15), senão o que ele explanou claramente em outro lugar:

Se semeamos em vosso favor os bens espirituais, será excessivo que colhamos os vossos bens materiais”? (1 Cor 9,11).

De fato, os tímbales, feitos de couro, são de proveniência carnal. O saltério é espiritual, o tímbale é carnal. Junto do altar do santo Mártir1, nós vos exortamos a receber os dons espirituais e a oferecer os carnais. As construções temporá-rias para abrigar os corpos, tanto dos vivos como dos mortos, são necessárias, mas acabam com o tempo. Por acaso, após o juízo de Deus, levantaremos essas edificações? Todavia, não podemos no tempo presente dispensar tais bens que nos ajudam a alcançar o céu. Se, portanto, sois ávidos dos bens espirituais, dedicai-vos a dar os bens materiais.

Tomai um salmo e oferecei os tímbales”.

Acolhei nossas palavras, e estendei as vossas mãos.



§ 5
O saltério melodioso e a cítara”.

Lembro-me de ter, certa vez, explicado a V. Caridade qual a diferença entre o saltério e a cítara. Os mais atentos que se lembrarem, reconheçam a explicação; os que não ouviram, ou os que não se lembram, aprendam. Esses dois instrumentos musicais, o saltério e a cítara, diferem em que o saltério tem a concavidade de madeira, que tornam as cordas canoras, na parte de cima; as cordas são tangidas em baixo para soarem em cima; na cítara, contudo, esta mesma concavidade de madeira ocupa a parte inferior. Seria como se o primeiro fosse do céu, e a segunda da terra. Pois, a pregação da palavra de Deus é celeste; mas se esperamos as coisas celestes, não sejamos negligentes no trabalho terreno, porque “o saltério é melodioso, mas com a cítara”.

É outra maneira de dizer o que exprimia o versículo acima:

Tomai um salmo e oferecei os tímbales”.

Neste versí-culo, em vez de salmo temos o saltério, e em vez dos tímba-les, a cítara. Com isto, o salmista nos adverte a corres-ponder com as obras materiais à pregação da palavra de Deus.



§ 6
4 “Soai a trombeta”.

Isto é, pregai com mais clareza e confiança; não vos atemorizeis, conforme diz o profeta em certo lugar:

Grita e levanta a tua voz como uma trombeta(Is 58,1).

Soai a trombeta no início do mês da trombeta”.

Havia um preceito de que no começo do mês se tocasse uma trombeta; e isto até agora os judeus fazem literalmente, e não o entendem espiritualmente. Pois, o início do mês é a lua nova; lua nova é vida nova. Que é lua nova? “Se alguém está em Cristo, é nova criatura(2 Cor 5,17).

Que quer dizer:

Soai a trombeta no início do mês da trombeta?” Anunciai a vida nova com toda confiança. Não tenhais medo do estrépito que faz a vida antiga.



§ 7
5 “Porque há um preceito para Israel, um juízo do Deus de Jacó”.

Onde há preceito, há juízo. Os que estando sob a Lei pecaram, serão julgados pela Lei (cf Rm 2,12).

Aquele mesmo que promulgou a lei, Cristo Senhor, o Verbo que se fez carne, disse:

Para julgamento é que vim a este mundo: para que os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos(Jo 9,39).

Qual o sentido da afirmação:

Para os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos, senão que os humildes sejam exaltados, e os soberbos sejam derrubados?” Não quer isso dizer que os que vêem se tornarão cegos, mas que aqueles que pensam enxergar, serão convencidos de cegueira. Aqui está em ação o mistério do lagar:

para que os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos”.



§ 8
6 “Testemunho, que foi estabelecido em José”.

Vamos, irmãos. Que é isto? José se traduz por aumento. Vós nos lembrais, sabeis a história de José que foi vendido e levado para o Egito: Cristo que passa para os gentios. Outrora, José foi exaltado após as tribulações, e agora Cristo é glorificado pelo sofrimento dos mártires. Portanto, José se refere mais aos gentios; por isso é aumento, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa (cf Gn 37,28; 41,37 etc; cf Is 54,1; Gn 4,27).

Testemunho, que foi estabelecido em José, ao sair da terra do Egito”.

Vede aqui indicado o quinto dia da semana: Quando José saiu da terra do Egito, isto é, o povo originário de José, que crescera, atravessou o mar Vermelho. E então as águas produziram seres vivos que se arrastam (cf Ex 12,22-31; Gn 1,20).

A passagem do povo pelo mar nada mais figurava que o trânsito dos fiéis pelo batismo. O Apóstolo o atesta:

Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, todos atravessaram o mar e, na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés(1 Cor 10,1.2).

A passagem pelo mar, portanto, não significava outra coisa senão o sacramento do batismo. A perseguição dos egípcios não indicava outra coisa a não ser a abundância dos delitos no passado. Observais, pois, os sacramentos evidentes: os egípcios oprimem, insistem; os pecados constringem, mas somente até junto das águas. Por que temes, então, tu que ainda não vieste, aproximar-te do batismo de Cristo, atravessar o mar Vermelho? Que é vermelho? O sangue consagrado do Senhor. Por que receias vir? Talvez acusa-te a consciência de delitos enormes e atormenta-te o espírito, dizendo-te que é tão grande o que cometeste que deves perder a esperança do perdão. Podes ter medo de que reste ainda algum pecado, se escapou algum egípcio com vida. Quando tiveres atravessado o mar Vermelho, quando fores retirado do meio de teus pecados, por mão poderosa e braço forte (cf Sl 135,12), hás de perceber os mistérios que não conhecias, porque também o próprio José, “ao sair da terra do Egito, ouviu uma língua que não conhecia”.

Ouvirás uma língua que não conhecias, e que agora ouvem e entendem os que sabem, atestam, conhecem. Ouvirás onde deverás ter o coração. Quando disse isto, muitos entenderam e aclamaram. Os outros ficaram mudos, porque ouviram uma língua que ainda não conhecem. Apressem-se, pois, passem, aprendam:

Ouviu uma língua que não conhecia”.



§ 9
7 “Descarregou os fardos de seus ombros”.

Quem “descarregou os fardos de seus ombros” a não ser aquele que clamou:

Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo”? (Mt 11,28).

O significado é idêntico, sob formas diferentes. A perseguição dos egípcios produz o mesmo que o peso dos pecados.

Descarregou os fardos dos seus ombros”.

E como perguntasses: Quais fardos? “As suas mãos serviram, carregando cestos”.

Os cestos representam as obras servis. Limpar, adubar, carregar terra — tudo isso se faz com cestos. São obras servis. Quem comete pecado, é escravo do pecado. Se, pois o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres (cf Jo 8,34.36).

Com razão, as coisas vis deste mundo são comparadas a cestos; contudo, Deus encheu os cestos de pedaços de pão (cf Mt 14,20), porque Deus escolheu o que no mundo é vil para confundir o que é forte (cf 1Cor 1,27).

Mas, quando José servia, carregando cestos, transportava terra, porque fazia tijolos:

As suas mãos serviam, carregando cestos”.



§ 10
8 “Na tribulação me invocaste e eu te livrei”.

Reconheça cada consciência cristã, se atravessou devotamente o mar Vermelho, se com fidelidade em crer e praticar ouviu uma língua que não conhecia; reconheça que foi ouvida na tribulação. Pois, era grande a tribulação do remorso pelos fardos dos pecados. Quanto não se alegra a consciência aliviada! Eis que és batizado. A consciência que ontem se angustiava, hoje congratula-se. Foste ouvido na tribulação. Não te esqueças de tua tribulação. Antes de te aproximares da água, que cuidados te ocupavam? Que jejum apresentavas? Que tribulações trazias no coração, que orações internas, pias, devotas? Teus inimigos foram mortos, todos os teus pecados foram apagados:

Na tribulação me invocaste e eu te livrei”.



§ 11
Na tempestade oculta, eu te escutei”.

Não na tempestade do mar, mas na tempestade do coração.

Na tempestade oculta, eu te escutei; junto às aguas da contradição, eu te provei”.

Efetivamente, irmãos, efetivamente, quem foi ouvido na tempestade oculta, deve ser provado junto às águas da contradição. Encontrará as águas da contradição, quando acreditar, for batizado, começar a trilhar os caminhos de Deus, quando destilar nas almo-tolias, e retirar de si a borra que corre publicamente; terá muitos perseguidores, muitos injuriadores, muitos detra-tores, muitos que o desanimem, que ameacem quanto po-dem, atemorizam, deprimam. Penso que hoje aqui isto acontece. Julgo que alguns aqui queriam arrastar seus amigos ao circo e a não sei mais que futilidades hoje; e talvez eles mesmos foram trazidos para a Igreja. Mas quer aqui eles tenham trazido os amigos, quer não tenham sido arrastados para o circo, foram provados nas águas da contradição. Por conseguinte, não te envergonhes de anunciar o que conheces, de defender mesmo entre os blasfemos aquilo em que acreditaste. Pois, se fores ouvido na tempestade oculta, “quem crê de coração obtém a justiça”; se fores experimentado nas águas da contradição, “quem confessa com a boca obtém a salvação(cf Rm 10,10).

São muitas as águas da contradição? Quase já secaram. Perceberam-nas os nossos maiores, quando os povos resistiam com acrimônia à palavra de Deus, ao mistério de Cristo. As águas se agitavam. A Escritura mostra evidentemente no Apocalipse que as águas às vezes representam os povos. Apareceram ali muitas águas e ao perguntar o vidente que era aquilo, obteve a resposta:

São povos(Ap 17,15).

Nossos maiores, portanto, suportaram as águas da contradição, quando as nações se agitaram e os povos tramaram em vão; quando os reis da terra se sublevaram e os príncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo (Sl 2,1.2).

Quando as nações se agitaram, um leão se aproximava rugindo de Sansão, aquele homem forte que fora tomar por esposa uma mulher dentre os filisteus, a saber, Cristo que descera do céu para tomar por esposa a Igreja, oriunda dos gentios. Mas, como agiu? Pegou, segurou, despedaçou, matou o leão, com suas mãos, como se fosse um cabrito. Que se tornaria o povo enraivecido senão um pecador sem forças? Eliminada aquela ferocidade, já não se enfurece de igual modo o poder dos reis, não se enfurece igualmente o povo gentio que vai ao encontro de Cristo; ao invés, no próprio reino dos gentios, encontramos leis em favor da Igreja, como um favo de mel na boca do leão (cf Jz 14,5-8).

Por que, então, hei de ter medo das águas da contradição, que já secaram quase totalmente? Quase estão mudas, se a borra não contradisser. Por mais que se enfureçam os maus que nos são estranhos, o que seria se não os auxiliassem os maus que são nossos! “Na tempestade oculta, eu te escutei, junto às águas da contradição eu te provei”.

Lembrai-vos de que foi dito a respeito de Cristo: que ele nasceu para a queda e para o soerguimento de muitos e como um sinal de contradição (cf Lc 2,34).

Nós o sabemos e vemos: o estandarte da cruz foi elevado e houve contradição. Houve contradição à glória da cruz; mas havia um título incorruptível sobre a cruz. É o título de um salmo:

Inscrição do título. Não destruas(Sl 57,1).

Era sinal de contradição, pois disseram os judeus:

Não escrevas: O rei dos judeus, mas: Este homem disse: Eu sou o rei dos judeus”.

Vencida foi a contradição; obtiveram a resposta:

O que escrevi, está escrito(Jo 19,19-22).

Na tempestade oculta, eu te escutei, junto às águas da contradição, eu te provei”.



§ 12
9.10 Tudo isso que ouvimos do início do salmo até este versículo, trata do óleo do lagar. O restante causa-nos mais dor e precaução; pertencem à borra que sai do lagar os versículos seguintes até o fim; talvez não foi inutilmente que se intercalou o diapsalma. Mas é útil ouvir também isto, de sorte que pode alegrar-se quem se sentir pertencente ao óleo; acautele-se quem está em perigo de correr no meio da borra. Ouvi ambas as coisas; ama a uma e teme a outra.

Ouve meu povo e eu te falarei e atestarei”.

Não é, portanto, um povo estrangeiro, não é povo que não pertença ao lagar.

Servi de juízes entre mim e minha vinha(Is 5,3).

Ouve meu povo e eu te falarei e atestarei”.



§ 13
Israel, se me ouvires, não haverá em teu meio um deus recente”.

Deus recente é um deus feito para algum tempo. Nosso Deus, porém, não é um deus recente, mas de eternidade em eternidade. E nosso Cristo talvez seja recente enquanto homem, mas enquanto Deus é eterno. Que era antes do princípio? De fato, no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; e o próprio Cristo, o Verbo se fez carne e habitou entre nós (cf Jo 1,1.14).

Está muito longe, portanto, de ser algum deus recente; deus recente, ou é pedra, ou é fantasma. Responde alguém: Não é de pedra; eu tenho um de prata e ouro. Com razão fala de metais preciosos aquele que disse:

Os ídolos das nações são prata e ouro(Sl 113,4.5).

São grandes os ídolos de ouro e prata; são preciosos, são brilhantes; no entanto têm olhos e não vêem. Eles são deuses recentes. Que de mais recente do que um deus fabricado? Apesar de que os já antigos estejam cobertos de teias de aranha, uma vez que não são eternos, são recentes. Isto relativamente aos deuses pagãos. Alguém, com um conceito vão acerca do nome do Senhor, seu Deus, imaginou um Cristo criatura, um Cristo diferente e desigual em relação ao genitor, dizendo que ele é Filho de Deus, mas negando o Filho de Deus. Pois, se é Filho único, é igual ao Pai, desde a eternidade. Tu, porém, imaginaste outra coisa em teu coração; estabeleceste um deus recente. Outro imaginou um deus em luta contra os habitantes das trevas, receoso de uma invasão e empenhado em evitar sua própria ruina; no entanto, em parte é corrompido para ser salvo o todo, mas não inteiramente, porque uma parte está corrompida. São os maniqueus que têm esta opinião; também estes fabricam para si, no coração que têm esta opinião; também estes fabricam para si, no coração, um deus recente. Não é destes o nosso Deus, não é dos tais a tua porção, ó Jacó, mas é aquele que criou o céu e a terra. Este é teu Deus, que não carece de bens, que não receia o mal.



§ 14
Muitos hereges, talharam deuses e mais deuses. Embora não os tenham colocado em templos, fizeram o pior: colocaram-nos em seu coração e tornaram-se eles mesmos templos de falsos e ridículos ídolos. É obra grandiosa quebrar interiormente estes ídolos; e purificar o interior para o Deus vivo, e não para um deus recente. Todos eles, pensando de modo diverso entre si, e criando deuses e mais deuses, falsificam a fé de várias maneiras e mostram mútua discordância; mas todos eles não deixam as cogitações terrenas e nestas chegam a um consenso; a opinião difere, mas a vaidade de todas é uma só. A respeito disso pronuncia-se um salmo:

Vãos, todos juntos(Sl 61,10).

Apesar de discordarem, por diversidade de opiniões, congregam-se, no entanto, por serem vãos de maneira semelhante. E sabeis que a vaidade fica para trás, é passada; por isso, aquele que se esquece do que fica para trás, isto é, está esquecido das coisas vãs, avança para o que está diante, isto é, avança para a verdade, prosseguindo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus (cf Fl 3,13-14).

Por conseguinte, os hereges estão de acordo no que é pior, embora aparentemente discordem entre si. Igualmente Sansão amarrou cauda com cauda das raposas (cf Jz 15,4).

As raposas simbolizam os homens insidiosos, principalmente os hereges; dolosos; fraudulentos, escondidos em cavernas para enganar, exalando cheiro fétido. Ao contrário deste cheiro diz o Apóstolo:

Somos o bom odor de Cristo em toda parte(1 Cor 2,15).

Estas raposas aparecem no Cântico dos cânticos:

Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossas vinhas”; estão escondidas em cavernas tortuosas (Ct 2,15).

Agarrai”, convencei-os por nós; pois agarras aquele que convences de falsidade. Afinal, quando as raposas pequeninas contradiziam ao Senhor, com a pergunta:

Com que autoridade fazes estas coisas? ele replicou: Também eu vou propor-vos uma só questão. O batismo de João, de onde era? Do céu ou dos homens?” As raposas, de fato, costumam ter tal espécie de tocas: entram de um lado e saem do outro. O caçador de raposas colocou redes em ambos os buracos. Dizei-me:

Do céu ou dos homens?” Eles perceberam que Jesus estendera a rede para apanhá-los dos dois lados, e diziam consigo mesmos:

Se respondermos: Do céu, ele nos dirá: Por que então não crestes nele?” Pois, João prestara testemunho a Cristo.

Se respondermos: Dos homens, a multidão nos apedreja, pois todos consideram João como profeta”.

Percebendo, pois, que de um lado e de outro havia uma cilada, responderam:

“Não sabemos. Ao que o Senhor respondeu:

Nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas(Mt 21,23.27).

Dizeis ignorar o que sabeis; eu não digo o que perguntais; como não ousastes sair de nenhum dos dois lados, ficastes em vossas trevas. Obedeçamos, portanto, se pudermos, à palavra de Deus que nos diz:

Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossas vinhas”.

Vejamos se também nós podemos agarrar algumas raposas pequeninas; coloquemos armadilhas junto de ambos os buracos para apanhar as raposas que quiserem sair. Por exemplo, a um maniqueu que cria um deus recente para si, e coloca em seu coração aquilo que não é deus, perguntemos: A substância de Deus é corruptível ou incorrup-tível? Escolhe o que queres, e sai por onde quiseres, mas não fujas. Se disser: É corruptível, serás apedrejado, não pelo povo, mas por ti mesmo; se, porém, disseres que Deus é incorruptível, como é que o incorruptível tem medo dos habitantes das trevas? O que pode fazer um povo corruptível a quem é incorruptível? Que lhe restará senão dizer:

Não sabemos?” Todavia, se responde assim, não por astúcia, mas por ignorância, não permaneça nas trevas; de raposa torne-se ovelha. Creia no Deus invisível, incorruptível, não recente. No único (soli), de: um só (solus), e não da palavra: sol. Não aconteça que aparentemente, abramos outra caverna para a raposa que quer fugir. Embora não tenhamos receio da palavra sol. Pois, acha-se escrito em nossas Escrituras:

O sol de justiça e tem a cura sob suas asas(Ml 3,20).

Fugindo-se do ardor deste sol, procura-se a sombra; mas sob as asas deste sol, escapa-se do calor; a cura está sob suas asas. Trata-se do sol a respeito do qual dirão os ímpios:

Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol(Sb 5,6).

Hão de dizer os adoradores do sol:

Para nós não nasceu o sol”, porque adoram o sol que Deus faz nascer sobre bons e maus (cf Mt 5,45), e não nasceu para eles o sol que ilumina apenas os bons. Cada um deles crie para si deuses recentes, quais desejam. Que impede que a oficina de um coração no erro fabrique um fantasma a seu bel prazer? Mas todos estes estão de acordo acerca das coisas que ficaram para trás, isto é, estão presos por igual futilidade. Por isso, nosso Sansão, nome que significa: o sol deles, a saber, daqueles que ele ilumina e não de todos, como é o sol que brilha para bons e maus; mas é o sol de certos homens, o sol de justiça (figura de Cristo).

Sansão amarrou, conforme começara a dizer, cauda com cauda das raposas, e ateou-lhes fogo; fogo para incendiar as colheitas dos filisteus. Assim também, esses que de comum acordo procuram o que ficou para trás, como que ligados pelas caudas, arrastam o fogo destruidor; mas não incendeiam as messes dos nossos. Pois, “o Senhor conhece os que lhe pertencem”.

E ainda:

Aparte-se da injustiça todo aquele que pronuncia o nome do Senhor. Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata; há também de madeira e de barro; alguns para uso nobre, outros para uso vulgar. Aquele, pois, que se purificar destes erros será vaso nobre, útil ao Senhor, preparado para toda boa obra(2 Tm 2,19-21).

Por este motivo, não tem medo nem das caudas das raposas, nem de suas tochas. Mas, vejamos algo acerca deste povo:

Se me ouvires, não haverá em teu meio um deus recente”.

Desperta-me a atenção a palavra:

em teu meio”; não disse: junto de ti, como um ídolo colocado de fora; mas:

em teu meio”, em teu coração, em tuas idéias, na sedução de teu erro, trarás contigo teu deus recente, enquanto permaneces velho.

Se, portanto, me ouvires (a mim, porque eu sou aquele que é) (Ex 3,14), “não haverá em teu meio um deus recente, nem adorarás um ídolo estranho”.

Se, portanto, não estiver em ti, “não adorarás um ídolo estranho”.

Se não pensares num deus falso, não adorarás um deus fabricado, pois, “não haverá em teu meio um deus recente”.



§ 15
Porque eu sou”.

Por que queres adorar o que não existe? “Eu sou o Senhor teu Deus”, porque eu sou aquele que é. E, na verdade, eu sou aquele que é, acima de todas as criaturas; no entanto o que te concedi no tempo? “Que te retirei da terra do Egito”.

Não se trata apenas do povo hebreu: todos nós fomos retirados da terra do Egito, todos nós atravessamos o mar Vermelho, e nossos inimigos que nos perseguiam pereceram nas águas. Não sejamos ingratos para com nosso Deus; não nos esqueçamos do Deus que permanece, nem fabriquemos para nós um deus recente.

Que te retirei da terra do Egito”, diz Deus.

Abre bem a tua boca e eu te sacio”.

Sofrias angustiado por causa do deus recente estabelecido em teu coração; quebra o ídolo vão, lança fora de tua consciência o ídolo fictício; “abre bem a tua boca”, confessando, amando, “e eu te sacio, porque em mim está a fonte da vida(Sl 35,10).



§ 16
12 Efetivamente, o Senhor assim fala. Mas como prossegue o salmo? “E meu povo não ouviu a minha voz”.

Não falaria deste modo, a não ser a seu povo.

Sabemos que tudo o que a Lei diz é para os que estão sob a Lei que o diz(cf Rm 3,19).

E meu povo não ouviu a minha voz. E Israel não quis saber de me atender”.

Quem? A quem? “Israel a mim”.

Ó alma ingrata! Alma criada por mim, alma por mim chamada, por mim reconduzida à esperança, por mim purificada dos pecados:

E Israel não quis saber de me atender”.

Pois foram batizados e atravessaram o mar Vermelho; mas murmuraram no caminho, contradisseram, queixaram-se, agitaram-se em sedições, ingratos para com aquele que os libertou dos inimigos perseguidores, que os conduziu por terra árida, pelo deserto, dando-lhes alimento e bebida, iluminando-os à noite e colocando-os à sombra durante o dia.

E Israel não quis saber de me atender”.



§ 17
13 “E eu os abandonei aos desejos de seu coração”.

Eis o lagar. Abertos os buracos, a borra corre.

Eu os abandonei”, não segundo a salvação que trazem meus preceitos, mas segundo “os desejos de seus corações” entreguei-os a si mesmos. Diz também o Apóstolo:

Deus os entregou, segundo o desejo dos seus corações (Rm 1,24).

Eu os abandonei aos desejos de seu coração. Seguirão os seus caprichos”.

Daí provém o que pode vos causar horror. Se destilais o óleo nas almotolias escondidas do Senhor, se apreciais os seus depósitos, aí tendes o que pode vos horrorizar. Uns defendem o circo, outros o anfiteatro, outros as barracas nas aldeias, outros o teatro, uns isto, outros aquilo. Outros, enfim, os seus deuses recentes:

Seguirão os seus caprichos”.



§ 18
14.15 “Se meu povo me tivesse ouvido, se Israel tivesse trilhado meus caminhos”.

Talvez diga este Israel: É verdade, eu peço. Está claro. Sigo os desejos de meu coração. Mas que faço? É o diabo que faz isto, os demônios o fazem. Que é o diabo? Que são os demônios? Certamente teus inimigos.

Se Israel tivesse trilhado meus caminhos. Teria reduzido a nada seus inimigos”.

Portanto, “se meu povo me tivesse ouvido”.

Por que é “meu”, se não me ouve? “Se meu povo me tivesse ouvido”.

Qual o “meu povo? Israel”.

Que significa:

me tivesse ouvido? Se tivesse trilhado meus caminhos”.

Queixa-se e geme, sujeito aos inimigos:

Teria reduzido a nada seus inimigos e pesaria minha mão sobre os que o afligem”.



§ 19
16 Agora, por que se queixam dos inimigos? Eles mesmos se tornaram seus piores inimigos. Como? Como continua o salmo? Queixais-vos dos inimigos; e vós, o que sois? “Os inimigos do Senhor lhe mentiram”.

Renuncias? Renuncio. E voltas ao que renuncias. Em verdade, a que renunciastes, senão às obras más, às ações diabólicas, aos feitos que Deus condena: furtos, rapinas, perjúrios, homicídios, adultérios, sacrilégios, abominações sacrílegas, superstições? Renuncias a tudo isso, e de novo és vencido, recaindo. Teu último estado se torna pior do que o primeiro. O cão voltou ao seu próprio vômito e a porca lavada tornou a revolver-se na lama (cf 2Pd 2,20.22).

Os inimigos do Senhor lhe mentiram”.

E como é grande a paciência do Senhor! Por que não são prostrados? Por que não são trucidados? Por que a terra não se abre para engoli-los? Por que não desce fogo do céu para queimá-los? Porque é grande a paciência do Senhor. E ficarão impunes? De forma nenhuma. Que eles não se lisonjeiem acerca da misericórdia de Deus apenas, prometendo-se a si mesmos que ele será injusto. Desconheces que a longanimidade de Deus te convida à conversão? (cf Rm 2,4-6).

Ora, com tua obstinação e com teu coração impenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras (cf Rm 2,4-6).

E se não retribui agora, então retribuirá. Se agora retribui, é retribuição temporária; ao que não se converte, nem se corrige, retribuirá eternamente. Verifica, pois, que não ficarão impunes. Presta atenção ao que segue:

Os inimigos do Senhor lhe mentiram”.

Talvez digas: E que lhes fez Deus? Não vivem? Não respiram ar puro? Não gozam da luz? Não bebem das fontes? Não colhem frutos da terra? “Mas sua sorte será para sempre”.



§ 20
Ninguém, portanto, se iluda, porque pensa pertencer ao lagar. Seria bom para ele, se pertencesse ao óleo que sai do lagar. Não se iluda alguém que cometeu crimes hediondos, os quais impedem a posse do reino de Deus, e diga a si mesmo: Uma vez que sou assinalado por Cristo e recebi seus sacramentos, não me perderei eternamente; e se for purificado, salvar-me-ei através do fogo. Pois, o que é que diz o Apóstolo sobre os que têm um fundamento? “Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Cristo Jesus”.

Qual o sentido do que segue? “Mas cada um veja como constrói sobre o fundamento. Se alguém sobre esse fundamento constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, a obra de cada um será posta em evidência. O Dia a tornará conhecida, pois ele se manifestará pelo fogo e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamento subsistir, o operário receberá uma recompensa”, isto é, será recompensado por ter colocado sobre o “fundamento obras justas: ouro, prata, pedras preciosas”.

Se, porém, colocar pecados:

madeira, feno, palha, será salvo, mas como que através do fogo”, devido ao fundamento (1 Cor 3,10-15).

Irmãos, prefiro ser excessivamente tímido. É melhor não vos dar uma segurança duvidosa. Não darei o que não recebi, porque tenho grande temor. Dar-vos-ia segurança se me tornasse seguro. Tenho medo do fogo eterno.

Mas sua sorte será para sempre”.

Entendo no sentido de fogo eterno, a respeito do qual declara em outra passagem a Escritura:

O seu verme não morrerá e o seu fogo não se apagará(Is 66,24).

Mas, dirá alguém, ele fala dos ímpios, não de mim, porque apesar de pecador, de adúltero, de fraudulento, de ladrão, de perjuro, tenho Cristo por fundamento, sou cristão, sou batizado. Sou purificado pelo fogo, e por causa do fundamento não me perco. Fala-me novamente: O que és? Sou cristão, respondes. Bem; vai avante. O que mais? Ladrão, adúltero, etc. Destes afirmou o Apóstolo:

Os que tais coisas praticam, não herdarão o Reino de Deus(Gl 5,21).

Certamente esperas obter o reino dos céus, sem te corrigires de tais pecados, sem fazer penitência do que cometeste? Acho que não:

Os que tais coisas praticam, não herdarão o Reino de Deus”.

Desconheces que a longanimidade de Deus te convida à conversão? Iludindo-te com não sei o quê, com tua obstinação e com o coração impenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras (cf Rm 2,4).

Fica atento, portanto, ao juiz que vem. Bem; graças a Deus, porque ele não calou qual a sentença definitiva, não lançou os réus, nem fechou o véu. Primeiro quis prenunciar o que dispusera fazer. De fato, “serão reunidas em sua presença todas as nações”.

O que lhes fará? “Ele separará os homens, e porá uns à sua direita e outros à sua esquerda”.

Acaso ficou reservado um meio termo? Que dirá aos da direita? “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino”.

E aos da esquerda? “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,32.33.34.41).

Se não temes ser lançado ali, vê em companhia de quem. Se, por conseguinte, tais coisas não herdarão o reino de Deus, ou antes, não as obras, mas os que as praticam, porque naquele fogo não existirão estas obras, ardendo, naquele fogo, não roubarão, nem cometerão adultério.

Mas, os que tais coisas praticam, herdarão o reino de Deus”.

Com efeito, não estarão à direita com aqueles sobre os quais foi dito:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino, porque os que tais coisas praticam, não herdarão o reino de Deus”.

Com efeito, se não estarão à direita, não lhes resta senão ficar à esquerda. Que dirá o Senhor aos da esquerda? “Ide para o fogo eterno, porque a sorte deles será para sempre”.

1 S. Cipriano.



§ 21
Explica-nos então, diz alguém, como não perecerão, mas se salvarão os que constroem sobre este fundamento com madeira, feno ou palha; mas como que através do fogo. É uma questão, de fato, obscura, mas explanarei brevemente, como puder. Irmãos, existem homens que desprezam inteiramente as coisas deste mundo, e não se adaptam a coisa alguma transitória; não se apegam a obras terrenas, são santos, castos, continentes, justos, talvez ainda distribuam aos pobres o produto da venda de tudo o que possuíam, ou possuem como se não possuíssem e usam deste mundo como se não usassem (cf 1Cor 7,30.31).

Há outros que se apegam um tanto aos bens concedidos a sua fraqueza. Algum deles não rouba a propriedade alheia, mas de tal modo ama a sua que se a perder, perturba-se. Não deseja a mulher do próximo, mas de tal maneira apega-se a sua e a ela se une que não mantém o contrato sobre a procriação dos filhos. Não tira o alheio, mas reclama o que é seu e entra em litígio com seu irmão. A esses tais se diz:

De todo modo, já é para vós uma falta a existência de litígios entre vós(1 Cor 6,7).

Efetivamente, o Apóstolo ordena que os litígios se resolvam dentro da Igreja e não sejam levados ao foro; contudo, chama isto de falta. Pois, é um cristão que disputa por causa de bens terrenos mais do que convém àquele ao qual está prometido o reino dos céus. Não tem o coração totalmente ao alto, mas uma parte dele se arrasta pela terra. Finalmente, se vier a prova que leva ao martírio, aqueles que têm Cristo por fundamento, e constroem sobre ele com ouro, prata, pedras preciosas, que dizem desta oportunidade? “O meu desejo é partir e ir estar com Cristo(Fl 1,23).

Correm ligeiros, e em nada ou muito pouco se contristam devido à fragilidade terrena. Os que amam as próprias riquezas, suas próprias casas, gravemente se afligem; o feno, a palha e a madeira ardem. Tenham, portanto, madeira, feno, palha sobre o fundamento; mas das coisas lícitas, não das ilícitas. Por isso, digo-vos, irmãos: possuís o fundamento; aderi ao céu, calcai a terra. Se és desses, não edificas senão com ouro, prata e pedras preciosas. Ao dizeres, porém: Gosto desta propriedade e receio perdê-la. O prejuízo se torna iminente e tu te contristas. Mas não preferes a Cristo, porque a amas de tal forma que, se alguém te disser: O que preferes, esta propriedade ou Cristo? Apesar de a perderes com tristeza, preferes abraçar a Cristo, que colocaste como fundamento. Tu te salvarás, mas como que através do fogo. Escuta outra proposta: Não podes reter esta propriedade, a não ser que profiras um falso testemunho. Não o faças, e terás Cristo como fundamento. Pois, disse aquele que é a Verdade:

A boca mentirosa mata a alma(Sb 1,11).

Por conseguinte, se amas a tua propriedade, nem por isso, por causa dela, cometes rapina, nem proferes um falso testemunho, nem praticas homicídio, nem juras falso, nem negas a Cristo. Uma vez que assim ages, tens a Cristo por fundamento. Todavia, visto que a amas e te afliges por perdê-la, colocaste sobre o fundamento não ouro, nem prata, nem pedras preciosas e sim madeira, feno, palha. Tu te salvarás, portanto, ao começar a arder o que edificaste, mas como que através do fogo. Ninguém, contudo, que sobre este fundamento constrói adultérios, blasfêmias, sacrilégios, idolatrias, perjúrios pense que se salvará como que através do fogo, como se tudo isso fosse madeira, feno, palha; mas quem constrói com amor dos bens terrenos sobre o fundamento do reino dos céus, isto é, sobre Cristo, arderá o amor das coisas temporais, mas ele mesmo se salvará por causa do fundamento ade- quado.



§ 22
16.17 “Os inimigos do Senhor lhe mentiram”, dizendo:

Eu irei” à vinha, mas não foi (cf Mt 21,30).

Mas sua sorte será para sempre, não temporária, mas para sempre. Quem são eles? “Entretanto, ele os nutriu com a flor do trigo”.

Sabeis qual é a flor do trigo, que alimenta muitos inimigos que lhe mentiram.

Ele os nutriu com a flor do trigo”, acolheu-os em seus sacramentos. Alimentou também a Judas (quando lhe deu o pedaço de pão) com a flor do trigo (cf Jo 13,26); e o inimigo do Senhor lhe mentiu, mas sua sorte será para sempre.

Entretanto, ele os nutriu com a flor do trigo e os fartou com o mel do rochedo”.

Ó ingratos! “Ele os nutriu com a flor do trigo e os fartou como mel do rochedo”.

No deserto o Senhor fez brotar água do rochedo, não mel. O mel representa a sabedoria e tem o primeiro lugar em suavidade entre os alimentos do coração. Quantos inimigos do Senhor, mentindo-lhe, alimentam-se não somente da flor do trigo, mas também do mel do rochedo, da sabedoria de Cristo! Quantos se deleitam em sua palavra e no conhecimento de seus sacramentos, na solução de suas parábolas! Quantos se deleitam, quantos aclamam! E, no entanto, este mel não é de um homem qualquer, mas provém do rochedo:

Essa rocha era Cristo(1 Cor 10,4).

Quantos se saciam, pois, deste mel, exclamam, dizem: É suave! Dizem: Nada de melhor, nada de mais doce se pode entender ou dizer! Entretanto, os inimigos do Senhor lhe mentiram. Não quero me deter mais em coisas tão tristes. Apesar de que este salmo termine de modo tão terrível, peço-vos, deste fim voltemos ao começo:

Exultai em Deus, nosso protetor”.

Para Deus voltados… E, terminado o sermão: Em nome de Cristo, não foi por pouco tempo que os espetáculos divinos ocuparam vossos espíritos, e vos mantiveram suspensos, não somente a desejar alguns bens, mas também a fugir de alguns males. São estes os espetáculos úteis, salutares, edificantes, não destrutivos. Ou antes, destrutivos e edificantes; destroem os deuses recentes, e constroem a fé no Deus verdadeiro e eterno. Convidamos V. Caridade a voltar amanhã. Amanhã, eles terão, conforme ouvimos dizer, um mar no teatro; tenhamos nós um porto em Cristo. Mas, visto que depois de amanhã, isto é, quarta-feira, não podemos nos reunir junto ao altar de S. Cipriano, porque é a festa dos santos mártires, amanhã tenhamos nossa assembléia junto do mesmo altar.