ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 78 | ||
§ 78:1 | ⱻ Escutai o meu ensino, povo meu; inclinai os vossos ouvidos às palavras da minha boca. | |
§ 78:2 | Ɑ Abrirei a minha boca numa parábola; proporei enigmas da antigüidade, | |
§ 78:3 | ɔ coisas que temos ouvido e sabido, e que nossos pais nos têm contado. | |
§ 78:4 | Ɲ Não os encobriremos aos seus filhos, cantaremos às gerações vindouras os louvores do Senhor, assim como a sua força e as maravilhas que tem feito. | |
§ 78:5 | Ꝓ Porque ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel, as quais coisas ordenou aos nossos pais que as ensinassem a seus filhos; | |
§ 78:6 | ᵽ para que as soubesse a geração vindoura, os filhos que houvesse de nascer, os quais se levantassem e as contassem a seus filhos, | |
§ 78:7 | ɑ a fim de que pusessem em Deus a sua esperança, e não se esquecessem das obras de Deus, mas guardassem os seus mandamentos; | |
§ 78:8 | ⱻ E que não fossem como seus pais, geração contumaz e rebelde, geração de coração instável, cujo espírito não foi fiel para com Deus. | |
§ 78:9 | Ꝋ Os filhos de Efraim, armados de arcos, retrocederam no dia da peleja. | |
§ 78:10 | Ɲ Não guardaram o pacto de Deus, e recusaram andar na sua lei; | |
§ 78:11 | ⱻ Esqueceram-se das suas obras e das maravilhas que lhes fizera ver. | |
§ 78:12 | ɱ Maravilhas fez ele à vista de seus pais na terra do Egito, no campo de Zoá. | |
§ 78:13 | Ɗ Dividiu o mar, e os fez passar por ele; fez com que as águas parassem como um montão. | |
§ 78:14 | Ŧ Também os guiou de dia por uma nuvem, e a noite toda por um clarão de fogo. | |
§ 78:15 | Ƒ Fendeu rochas no deserto, e deu-lhes de beber abundantemente como de grandes abismos. | |
§ 78:16 | Ɗ Da penha fez sair fontes, e fez correr águas como rios. | |
§ 78:17 | Ŧ Todavia ainda prosseguiram em pecar contra ele, rebelando-se contra o Altíssimo no deserto. | |
§ 78:18 | ⱻ E tentaram a Deus nos seus corações, pedindo comida segundo o seu apetite. | |
§ 78:19 | Ŧ Também falaram contra Deus, dizendo: Poderá Deus porventura preparar uma mesa no deserto? Acaso fornecerá carne para o seu povo? | |
§ 78:20 | Ꝓ Pelo que o Senhor, quando os ouviu, se indignou; e acendeu um fogo contra Jacó, e a sua ira subiu contra Israel; | |
§ 78:21 | Ꝓ Pelo que o Senhor, quando os ouviu, se indignou; e acendeu um fogo contra Jacó, e a sua ira subiu contra Israel; | |
§ 78:22 | ᵽ porque não creram em Deus nem confiaram na sua salvação. | |
§ 78:23 | Ƈ Contudo ele ordenou às nuvens lá em cima, e abriu as portas dos céus; | |
§ 78:24 | ᵮ fez chover sobre eles maná para comerem, e deu-lhes do trigo dos céus. | |
§ 78:25 | Ƈ Cada um comeu o pão dos poderosos; ele lhes mandou comida em abundância. | |
§ 78:26 | Ƒ Fez soprar nos céus o vento do oriente, e pelo seu poder trouxe o vento sul. | |
§ 78:27 | ᶊ Sobre eles fez também chover carne como poeira, e aves de asas como a areia do mar; | |
§ 78:28 | ⱻ E as fez cair no meio do arraial deles, ao redor de suas habitações. | |
§ 78:29 | ⱻ Então comeram e se fartaram bem, pois ele lhes trouxe o que cobiçavam. | |
§ 78:30 | Ɲ Não refrearam a sua cobiça. Ainda lhes estava a comida na boca, | |
§ 78:31 | ɋ quando a ira de Deus se levantou contra eles, e matou os mais fortes deles, e prostrou os escolhidos de Israel. | |
§ 78:32 | Ƈ Com tudo isso ainda pecaram, e não creram nas suas maravilhas. | |
O SALMO 78 | ||
§ 1 | Não me parece necessário deter-me no título deste salmo, tão breve e simples. Vemos com toda evidência cumprida a profecia aqui de antemão anunciada. Quando este salmo era cantado, no tempo do rei Davi, nada ainda acontecera das adversidades da parte das nações que atingiram a cidade de Jerusalém, o templo de Deus, que então nem fora edificado. Quem ignora que foi após a morte de Davi que seu filho Salomão construiu o templo de Deus? Diz-se, portanto, como se fosse no passado o que o salmista no espírito viu se realizar no futuro: “Ó Deus, invadiram as nações a tua herança”. Segue este modo costumeiro de falar a profecia sobre a paixão do Senhor: “Deram-me fel por alimento e em minha sede deram-me vinagre a beber” (Sl 68,22) e demais versículos que neste salmo narram acontecimentos futuros como se fossem passados. Não é de admirar que se digam tais coisas a Deus. Não são indicadas a alguém que as desconheça. Elas foram previamente conhecidas por meio de revelação de Deus. Mas, a alma fala a Deus com afeto filial, que ele bem conhece. Também os anjos, se anunciam algo aos homens, levam mensagens a quem as desconhece; se é a Deus, porém, que anunciam, anunciam a quem o conhece, quando lhe apresentam nossas orações e consultam, de modo inefável, sobre seus atos a verdade eterna, qual lei inalterável. Por isso, este homem de Deus diz a Deus o que deve aprender dele, como o discípulo fala ao mestre que não ignora, mas julga. Deste modo, o homem ou fala a quem aprova os atos que ele próprio ensinou ou a quem repreende os que não ensinou. De modo especial o profeta fala em lugar dos que serão contemporâneos desses eventos futuros e que haverão de suplicar a Deus. Costumam-se mencionar na oração os castigos no passado, ausentando-se o pedido de que se compadeça. Desta forma, aqui são anunciados esses fatos pelo profeta que os prediz, como se fossem proferidos por aqueles aos quais eles acontecerão. E a lamentação e súplica constituem uma profecia. | |
§ 2 | 1.3 “Ó Deus, invadiram as nações a tua herança, profanaram o teu templo santo e reduziram Jerusalém a um depósito de frutos. Expuseram os cadáveres de teus servos como pasto às aves do céu e os corpos de teus santos às feras da terra. Derramaram o sangue deles como água ao redor de Jerusalém e não havia quem lhes desse sepultura”. Se algum dos nossos achar que esta profecia é atinente à devastação de Jerusalém realizada pelo imperador romano Tito, quando, após a ressurreição e ascensão de nosso Senhor Jesus Cristo, este já fora anunciado aos gentios, não me ocorre como se pode dizer que aquele povo ainda era a herança de Deus. Tendo se transformado em réprobo por não aceitar a Cristo, mas ao contrário, rejeitá-lo e matá-lo, além disso não quis acreditar nele após a ressurreição e ainda matou os seus mártires. Pois, daquele povo de Israel, pertencem à herança de Deus, todos os que acreditaram em Cristo, aos quais Cristo se apresentou e de certo modo cumpriu em seu favor a promessa salutar e frutuosa, e deles disse o mesmo Senhor: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Eles são do número dos filhos da promessa, que são tidos como descendentes” (Rm 9,8). Entre eles encontram-se José, homem justo, e a virgem Maria, que gerou a Cristo (cf Mt 1,16); deles era João Batista e seus pais, Zacarias e Isabel (cf Lc 1,5); igualmente, o velho Simeão e a viúva Ana, que não ouviram com ouvidos corporais Cristo falar, mas o conheceram pelo Espírito quando ainda não falava (id 2,25.36); de seu número eram os santos apóstolos, e Natanael, em quem não havia fingimento (cf Jo 1,47); entre eles estava outro José, que também esperava o reino de Deus (cf Jo 19,38; Lc 23,51); a eles pertencia a grande multidão que precedia e seguia o jumento que Cristo montava, dizendo: “Bendito o que vem em nome do Senhor” (Mt 21,9); nela estava incluído o grupo de meninos, que o Senhor declarou realizar a palavra: “Da boca das crianças e lactentes tiraste um louvor perfeito” (Sl 8,3). A estes pertenciam também os que, depois da ressurreição de Cristo, foram batizados, a saber, num dia três mil e em outro cinco mil (cf At 2,41 e 4,4), tornando-se um só coração e uma só alma; ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles (cf At 4,32). Entre eles achavam-se os santos diáconos, um dos quais era Estêvão, coroado de martírio antes dos apóstolos (cf At 7,58). Deles eram tantas igrejas da Judéia, que estavam em Cristo, às quais Paulo era pessoalmente desconhecido (cf Gl 1,22), mas era assaz conhecido por sua famosa crueldade, e mais conhecido ainda por misericordiosíssima graça de Cristo. Era, segundo uma profecia a seu respeito “lobo rapace, de manhã devora uma presa, até à tarde reparte o despojo” (Gn 49,27), isto é, primeiro é perseguidor rapace até a morte, e depois pastor e pregador que leva à vida. Eram estes dentre aquele povo que constituíam a herança de Deus. Por que diz o último dos apóstolos, o doutor das nações: “Não teria Deus, porventura, repudiado seu povo? De modo algum! Pois eu também sou israelita, da descendência de Israel, da tribo de Benjamim. Não repudiou Deus o seu povo que de antemão conhecera” (cf 1Cor 15,9; Rm 11,1.2). Esta multidão proveniente daquele povo incorporou-se a Cristo e tornou-se herança de Deus. Pois, o que diz o Apóstolo: “Não repudiou Deus o seu povo que de antemão conhecera”, corresponde ao versículo de outro salmo: “Não há de rejeitar o seu povo, e continua: Nem de desamparar a sua herança” (Sl 93,14). Evidencia-se aqui constituir tal povo e herança de Deus. Para afirmá-lo, o Apóstolo mais acima citara o testemunho do profeta acerca da futura incredulidade do povo de Israel: “Todos os dias estendi as mãos a um povo rebelde e desobediente” (Rm 10,21; Is 65,2). Visando a evitar que se entenda mal esta palavra, pois era possível se considerar que todo aquele povo era culpado de incredulidade e contradição, logo acrescentou: “Pergunto, então: Teria Deus, porven-tura, repudiado seu povo? De modo algum! Pois eu também sou israelita, da raça de Israel, da tribo de Benjamim”. Aqui mostra a que povo se refere, a saber, ao povo primitivo; se Deus o reprovasse e condenasse todo inteiro, ele próprio, israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim, não seria apóstolo de Cristo. Ele aduz, porém, outro testemunho, muito necessário, ao dizer: “Ou não sabeis o que diz a Escritura a propósito de Elias, como ele interpela a Deus contra Israel? Senhor, eles mataram teus profetas, arrasaram teus altares; só fiquei eu e querem tirar-me a vida. Mas o que lhe responde o oráculo divino? Reservei para mim sete mil homens que não dobraram o joelho a Baal. Assim também no tempo atual constituiu-se um resto segundo a eleição da graça”. Este resto do povo de Israel constitui herança de Deus; não é do número daqueles mencionados pouco depois: “Os demais ficaram endurecidos”. Pois, ele assim se exprime: “Que concluir? Aquilo a que tanto aspira, Israel não conseguiu; conseguiram-no, porém os escolhidos. E os demais ficaram endurecidos” (Rm 11,2-7). Por conseguinte, estes escolhidos, esse resto, este povo de Deus que ele não rejeitou, chamam-se herança de Deus. No Israel, porém, que não conseguiu estas coisas, nos demais que ficaram endurecidos, não se encontrava mais a herança de Deus, da qual se podia dizer, após a glorificação de Cristo no céu, no tempo de Tito: “Ó Deus, invadiram as nações a tua herança”, e o restante que se vê predito neste salmo acerca daquele povo, do templo e da destruição da cidade. | |
§ 3 | Conseqüêntemente, estas predições podem ser entendidas a respeito de feitos realizados por outros inimigos, antes que Cristo viesse na carne. Então, outra não era a herança de Deus senão o povo onde se achavam os santos profetas, quando se deu o cativeiro de Babilônia e o povo foi pesadamente devastado; igualmente sob Antíoco, os Ma-cabeus sofreram horrores e foram gloriosamente coroados (cf 2Rs 24,14; 2Mc 7). Na verdade, o salmo descreve as costumeiras devastações das guerras. Ou então, se as predições são atribuíveis na época após a ressurreição e ascensão do Senhor, à mencionada herança de Deus, devemos entender os sofrimentos infligidos pelos adoradores dos ídolos e inimigos do nome de Cristo à sua Igreja, em tão grande número de mártires. Embora Asaf se traduza por sinagoga, isto é, assembléia, e este homem habitualmente se empregue de preferência em relação ao povo judaico, no entanto, a Igreja pode ser dita assembléia e o antigo povo ser denominado Igreja, conforme em outro salmo (cf Sl 77 n. 3) mostramos com muita clareza. Esta Igreja, portanto, isto é, esta herança de Deus foi congregada de circuncisos e incircuncisos, do povo de Israel e das demais nações, pela “pedra que os construtores rejeitaram e tornou-se a pedra angular” (Sl 117,22). Neste ângulo eles se reuniram como duas paredes vindas de lados opostos. “Ele é a nossa paz; de ambos os povos fez um só, a fim de criar em si mesmo um só homem novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a ambos com Deus em um só corpo” (Ef 2,14-16). Neste corpo somos filhos de Deus, que clamam: “Abbá, Pai” (Rm 8,15; Gl 4,6). “Abbá”, em sua língua, “Pai” na nossa. “Abbá” significa “Pai”. Por esta razão o Senhor que disse: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24), mostrando que pagava àquele povo a promessa de sua presença, disse igualmente em outra passagem: “Mas tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; devo conduzi-las também, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16), aludindo aos povos que ele haveria de conduzir, mas não por sua presença corporal, a fim de se realizar a palavra: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”, todavia por meio de seu evangelho, que haveriam de disseminar os maravilhosos pés dos que anunciam a paz, as boas notícias (Rm 10,15). “Seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,5). Concorda com isso a palavra do Apóstolo: “Pois eu vos asseguro que Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais”. Tal o sentido da declaração: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Em seguida acrescentou o Apóstolo: “Ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a sua misericórdia”; eis o que significa: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; devo conduzi-las também, e haverá um só rebanho e um só pastor”. Ambas as asserções estão contidas brevemente na citação do profeta que faz o mesmo Apóstolo: “Nações, exultai junto com seu povo” (Rm 15,8-10). Este único rebanho, portanto, regido por um só pastor, constitui a herança de Deus, não somente do Pai, mas também do Filho. Pois, é o Filho quem fala: “Caíram meus cordéis em parte esplêndida. A minha herança, portanto, é excelente” (Sl 15,6). E fala a própria herança, segundo o profeta: “Senhor nosso Deus, possui-nos” (Is 26,13, sg LXX). O Pai, que não morre, deixa ao Filho esta herança; mas o próprio Filho admiravelmente a adquiriu por meio de sua morte e dela tomou posse em sua ressurreição. | |
§ 4 | Se, portanto, a profecia cantada neste salmo: “Ó Deus, invadiram as nações a tua herança” aplica-se à herança de que falamos, de tal sorte que as nações vieram à Igreja, não tendo a fé, mas perseguindo-a, isto é, invadiram-na com o propósito de eliminá-la e arruiná-la completamente, conforme demonstraram os exemplos de tantas perseguições, necessariamente o versículo seguinte: “Profanaram o teu santo templo” refere-se não a madeiras e pedras, mas a homens, dos quais assevera o apóstolo Pedro que entram, quais pedras vivas, na construção da casa de Deus (cf 1Pd 2,5). Daí dizer o apóstolo Paulo: “o templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1 Cor 3,17). Os perseguidores profanaram este templo naqueles aos quais incutindo terror e torturando, impeliram a negar a Cristo e com veementes instâncias levaram a suplicar aos ídolos. A penitência restabeleceu a muitos deles e os purificou daquela mácula. É a voz de um penitente que clama: “Purifica-me do meu pecado; e Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em minhas entranhas um espírito reto” (Sl 50,4.12). Quanto ao que segue: “Reduziram Jerusalém a um depósito de frutos”, subentende-se bem por este nome a própria Igreja: “Mas a Jerusalém do alto é livre, e esta é a nossa mãe, segundo está escrito: Alegra-te, estéril, que não davas à luz, ergue gritos de alegria, exulta, tu que não sentes as dores de parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa” (Gl 4,26; Is 54,1). “A um depósito de frutos”, a meu ver, significa o aban-dono subseqüente à devastação da perseguição, a saber, como acontece ao depósito dos frutos, pois fica abandonado quando passa a época dos frutos. Sem dúvida, com a per-seguição dos pagãos, a Igreja parecia abandonada, mas as almas dos mártires foram transladadas do horto do Senhor para a mesa celeste, quais frutos deliciosos e abundantes. | |
§ 5 | 2 “Expuseram os cadáveres de teus servos, como pasto, às aves do céu e os corpos de teus santos às feras da terra”. O termo: “cadáveres” é repetido: “corpos”; e: “teus servos” é reiterado por: “teus santos”. Somente variam: “aves do céu e feras da terra”. Foi melhor traduzir por morticina do que, segundo outros, por mortalia. Morticina diz-se apenas sobre os mortos; mortalia, porém, é igualmente atribuível a corpos vivos. Quando afirmei que as almas dos mártires foram transladadas para junto de seu agricultor, quais frutos, e que seus cadáveres e seus corpos foram expostos às aves do céu e às feras da terra, não quis dizer que uma parte deles venha a faltar na ressurreição, pois o todo há de ser reintegrado, depois de retirado dos esconderijos da natureza, por aquele que conta até os nossos cabelos (cf Mt 10,30). | |
§ 6 | “Derramaram o sangue deles como água”, com abundância e desperdício “ao redor de Jerusalém”. Se tomamos aqui na accepção de Jerusalém terrena, entendemos ter sido derramado ao redor da cidade o sangue daqueles que os inimigos puderam encontrar fora dos muros. Se, porém, entendermos daquela Jerusalém, sobre a qual foi dito: “Mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa”, ao redor dela estaria a terra inteira; na lição do profeta, onde se acha escrito: “Mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa” acrescenta-se pouco mais abaixo: “O Deus de israel é teu redentor. Ele se chama o Deus de toda a terra” (Is 54,1.5). As cercanias de Jerusalém, portanto, neste salmo representam o âmbito que a Igreja atingira frutificando e crescendo por todo o mundo, quando em toda a parte se enfurecia a perseguição e o morticínio dos mártires, cujo sangue era derramado como água, constituía enorme lucro para os tesouros celestes. Quanto ao acréscimo: “E não havia quem lhes desse sepultura”, ou não é incrível ter sido tão grande o terror em alguns lugares que não existisse realmente quem enterrasse os corpos dos santos, ou em muitas localidades, sem dúvida, os cadáveres ficaram insepultos muito tempo, até que homens religiosos os tirassem às furtadelas e os sepultassem. | |
§ 7 | 4 “Chegamos a ser objeto de desprezo para nossos vizinhos”. Por isto, era preciosa, não diante dos homens, para os quais era objeto de desprezo, mas na presença do Senhor, a morte de seus santos (cf Sl 115,15). “De escárnio e zombaria”, ou conforme alguns traduziram: “ilusão para os povos que nos cercam”. É repetição da frase anterior; pois, os termos anteriores: “objeto de desprezo” foram repetidos sob a forma: “escárnio e zombaria”; e o que foi dito mais acima: “nossos vizinhos”, na repetição se tornou: “para os povos que nos cercam”. Por conseguinte, segundo a Jerusalém terrena são vizinhos e povos que a cercam, as demais nações; segundo, porém a Jerusalém livre, que é nossa mãe, são vizinhos e povos que a cercam os inimigos, entre os quais habita a Igreja em todo o orbe da terra. | |
§ 8 | 5 Em seguida, faz claramente uma prece que mostra ser a menção acima da tribulação não uma acusação, mas uma lamentação: “Até quando, Senhor? Até o fim irá a tua cólera? Arderá como fogo o teu zelo?” Efetivamente, roga que Deus não se irrite até o fim, isto é, não subsista tão grande aflição, tribulação e devastação até o fim, mas modere sua correção, segundo a palavra de outro salmo: “Nutrir-nos-ás com o pão das lágrimas, dar-nos-ás a beber lágrimas com medida” (Sl 79,6). Pois, “até quando, Senhor? Até o fim irá a tua cólera?” foi proferido de tal modo que soa: Senhor, não te encolerizes até o fim. E nas palavras seguintes: “Arderá como fogo o teu zelo?” deve-se subentender um e outro: “Até quando e até o fim”, como se dissesse o salmista: Até quando arderá como fogo o teu zelo até o fim? Pois, devem ser subentendidas estas duas palavras, da mesma forma como acima um só termo: “Expuseram”. De fato, a primeira frase: “Expuseram os cadáveres de teus servos como pasto às aves do céu” a contém, mas a segunda não: “os corpos de teus santos às feras da terra”; contudo, subentende-se: “Expuseram”, que se acha da primeira frase. Quanto à ira e ao zelo de Deus não são emoções de Deus, conforme alguns acusam as Escrituras de dizer; eles não as entendem1. Pelo nome de ira designa-se o castigo da iniqüidade; e a expressão zelo refere-se à exigência de castidade, a fim de que a alma não despreze a lei do Senhor e não se perca abandonando a Deus, por outros deuses. Estes sentimentos, porém, do homem são turbulentos em seus efeitos, na tribulação; nas disposições de Deus, ao contrário, as ações são tranqüilas, e por isso se lhe diz: “Mas tu, dominando a força, julgas com moderação” (Sb 12,18). Fica assim suficientemente demonstrado que as tribulações advêm por causa dos pecados dos homens, embora se trate de fiéis. Todavia, deste modo floresce a glória dos mártires devido ao mérito da paciência e o Senhor modera piedosamente seu castigo instrutivo. Assim aconteceu aos Macabeus, no meio de cruéis tormentos, sucedeu também aos três jovens nas chamas inócuas da fornalha, e ainda se atesta dos santos profetas no cativeiro (cf 11 Mc 7; Dn 3,21). Apesar de suportarem forte e piissimamente a correção paterna, não calam contudo que estes acontecimentos são merecidos por seus pecados. Aplicam-se-lhes as palavras do salmo: “O Senhor me castigou duramente, mas não me entregou à morte (Sl 117,18). Pois, ele castiga todo filho que ele acolhe. Qual o filho a quem o pai não corrige? (cf Hb 12,6.7). | |
§ 9 | 6 Quanto ao acréscimo: “Desfere a tua ira contra as nações que te não conheceram, e contra os reinos que não invocaram o teu nome”, trata-se também de uma profecia e não de uma imprecação. Não é um voto maligno, mas predição do que se viu em espírito. Assim, a respeito do traidor Judas, foram profetizados os males que lhe adviriam por seus méritos, como se fosse uma imprecação. Igualmente o profeta não emite uma ordem a Cristo, embora fale no modo imperativo: “Cinge a espada a teu flanco, ó poderosíssimo; com tua beleza e teu esplendor, avança, marcha vitorioso e reina” (Sl 44,4.5); aqui também o salmista não deseja, mas profetiza: “Desfere a tua ira contra as nações que te não conheceram”. Repete-o a seu modo, dizendo: “E contra os reinos que não invocaram o teu nome. Reinos” é repetição de: “nações”; e: os “que não invocaram o teu nome”, é repetição de: “não te conheceram”. Como entender então a palavra do Senhor no evangelho: “O Servo que não conheceu a vontade de seu senhor e tiver feito coisas dignas de chicotadas, será açoitado poucas vezes; aquele servo que conheceu a vontade de seu senhor e fizer coisas dignas de chicotadas, será açoitado muitas vezes” (Lc 12,48-47), se for maior a ira de Deus contra as nações que não conheceram o Senhor? Na verdade, tendo dito: “Desfere a tua ira”, mostra suficientemente por esta palavra a medida da ira que quis significar; daí dizer em seguida: “Retribui a nossos vizinhos sete vezes mais”. Ou será porque existe grande diferença entre os servos que apesar de não conhcerem a vontade de seu Senhor, no entanto, invocam seu nome, e os estranhos à família deste importante pai de família, que de tal maneira ignoram a Deus que nem o invocam? Pois, invocam em seu lugar os ídolos, os demônios, ou qualquer criatura, mas não o Criador, que é bendito pelos séculos. O salmista não indica serem estes, dos quais profetiza, ignorantes da vontade de seu Senhor, embora ao mesmo tempo o temam; declara que são tão ignorantes que nem invocam o Senhor e são inimigos de seu nome. Inteiramente diferentes são os servos que não conhecem a vontade de seu senhor, mas são de sua família e vivem em sua casa e os inimigos que não querem saber não somente do próprio senhor, mas não invocam seu nome e além disso atacam seus servos. | |
§ 10 | 7 Enfim, continua o salmista: “Porque eles devoraram Jacó e devastaram a sua morada”. Jacó, de fato, foi figura da Igreja, como Esaú figurou a antiga sinagoga; daí ter sido dito: “O mais velho servirá o menor” (Gn 25,23). Sob tal nome pode-se também reconhecer a herança de Deus, à qual vieram os gentios; para persegui-la, invadindo-a e devastando-a, depois da ressurreição e da ascensão do Senhor. Mas entendamos bem como considerar a expressão: “morada de Jacó”. O lugar que melhor pode ser tido como morada de Jacó é aquela cidade em que se situava o templo, onde o Senhor ordenara que se reunisse todo o povo, para sacrificar, adorar e celebrar a Páscoa. Pois, se o profeta quisesse aludir às assembléias dos cristãos, proibidas e reprimidas pelos perseguidores, deveria ter dito moradas devastadas e não morada apenas. Mas podemos considerar que o singular foi usado em lugar do plural, como se fala em veste em vez de vestes, em soldado em vez de soldados, em rebanho em vez de rebanhos. É usual expressar-se deste modo, não só na linguagem vulgar, mas até empregam-no autores dotados de grande eloqüência. Nem mesmo da Sagrada Escritura esta espécie de locução está ausente; pois fala em rã em vez de rãs, em gafanhoto em vez de gafanhotos (Sl 77,45), e inúmeros outros casos. Quanto à expressão: “Devoraram Jacó” é boa a interpretação de que eles obrigaram a muitos, com ameaças, a entrar em seu corpo maligno, quer dizer, em sua sociedade. | |
§ 11 | 8 O salmista recorda que, embora aos maus a ira de Deus há de retribuir conforme os merecimentos de uma vontade pervertida, eles nada teriam podido contra a herança de Deus, se este não a quisesse corrigir, castigando-lhe os pecados. Daí acrescentar o salmista: “Não te recordes de nossos antigos delitos”. Não fala em delitos passados, que poderiam ser recentes, mas “antigos”, isto é, dos pais. Com efeito, tais delitos merecem condenação, não correção. “Antecipem-se logo em nosso favor as tuas misericórdias”. Antecipem-se, de fato, em relação ao juízo, pois “a misericórdia triunfa sobre o juízo. O juízo”, porém, será sem misericórdia, mas para aquele que não pratica a misericórdia” (Tg 2,13). O que segue: “Porque fomos reduzidos a miséria extrema”, dá a entender que devemos nos antecipar ao encontro das misericórdias de Deus, a fim de que nossa pobreza, isto é, nossa fraqueza seja amparada por sua compaixão no cumprimento dos preceitos, e assim não sermos condenados em seu juízo. | |
§ 12 | 9 Por isso, continua o salmo: “Deus, nosso salvador, valei-nos”. O termo: “nosso salvador” explica suficientemente a que pobreza alude ao dizer: “Porque fomos reduzidos a miséria extrema”. Com efeito, trata-se da fraqueza que necessita de um “salvador”. Ao se referir o salmista ao auxílio, não desconhece a graça, nem afasta o livre-arbítrio, pois quem é auxiliado, faz alguma coisa por si mesmo. Acrescenta ainda: “Pela glória de teu nome, Senhor, livra-nos”, e assim sendo, quem se gloria não se glorie em si mesmo, mas no Senhor (cf 1Cor 1,13). “E perdoa-nos os pecados, por causa de teu nome”, não por nossa causa; pois, que merecem nossos pecados, a não ser suplícios correspondentes e condignos? Mas “perdoa-nos os pecados, por causa de teu nome”. Deste modo nos livras, isto é, libertas dos males, ao nos ajudares a praticar a justiça e perdoares os pecados de que nossa vida não está isenta: “Porque não se justifica na tua presença nenhum vivente” (Sl 142,2). “Todo o que comete pecado comete iniqüidade” (1Jo 3,4). “Se observares as nossas iniqüidades, quem poderá subsistir” (Sl 129,3)? | |
§ 13 | 10 O versículo que segue: “Para que não se diga entre os gentios: Onde está o seu Deus?” é aplicável de preferência aos próprios gentios. Pois, perecem miseravelmente os que perderam a esperança em Deus, pensando que ele não existe, ou não ajuda os seus nem lhes é propício. Quanto à continuação: “Diante de nossos olhos apareça entre as nações a vingança do sangue de teus servos que foi derramado”, entende-se do seguinte modo: Crêem agora em Deus os que perseguiam a sua herança, porque a vingança de Deus consiste em eliminar cruel iniqüidade deles, através da espada da palavra de Deus, acerca da qual foi dito: “Cinge a tua espada” (cf Sl 44,4); ou então, se eles persistem em serem inimigos, serão punidos no fim. Pois, as doenças corporais de que possam sofrer neste mundo são comuns também aos bons. Existe outra espécie de castigo: o pecador, incrédulo e inimigo, verá e se irritará, rangerá os dentes e se consumirá (cf Sl 111,10), diante da dilatação e fecundidade da Igreja neste mundo, após tantas perseguições, com as quais ele pensava que a igreja haveria de perecer. Quem ousará negar que esta será uma gravíssima pena? Não sei se é perfeitamente exato ligar a expressão: “diante de nossos olhos” a esta espécie de castigo que atua nos íntimos dos corações, e atormenta até aqueles que nos adulam, uma vez que não vemos os sofrimentos do íntimo de um homem. O fato, porém, de se extinguir a malícia dos que acreditam, ou de se dar o castigo final aos que perseveram na sua malícia, sem dúvida alguma está assinalado nas palavras: “Diante de nossos olhos apareça entre as nações a vingança”. | |
§ 14 | Efetivamente, trata-se, como já dissemos, de uma profecia e não de uma imprecação. Tendo em vista, contudo, conforme está escrito no Apocalipse, que os mártires, sob o altar de Deus, clamam por ele, dizendo: “Até quando, Senhor, não vingas o nosso sangue”? (Ap 6,9.10). não devemos omitir a explicação de como o clamor deve ser interpretado, para não se pensar que os santos desejam vingança, visando a saciar um ódio, o que de forma alguma condiz com a perfeição deles. Todavia, está escrito: “Alegrar-se-á o justo ao ver o castigo dos ímpios, lavará as mãos no sangue dos malvados” (Sl 57,11), e o Apóstolo diz: “Não façais justiça por vossa conta, caríssimos, mas dai lugar à ira, pois está escrito: A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12,19). Por conseguinte, ele não preceitua que não queiram um castigo, mas que não se vinguem eles mesmos, dando “lugar à ira” de Deus, que disse: “A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei”. E o Senhor no evangelho propõe a parábola da viúva, que querendo obter justiça contra o adversário, interpela o juiz injusto, o qual por fim vencido, não pela justiça, mas pelo tédio, a ouviu (cf Lc 18,3-5). O Senhor propôs esta parábola para mostrar que muito mais fará o Deus justo, imediatamente prestando justiça a seus eleitos, que clamam por ele dia e noite. Igual proveniência tem o clamor dos mártires, sob o altar de Deus, pedindo que sejam vingados no juízo de Deus. Onde fica, então, aquele dito: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem”? (Mt 5,44). E esta outra palavra: “Não pagueis mal por mal, nem injúria por injúria” (1Pd 3,9); “A ninguém pagueis o mal com o mal”? (Rm 12,17). Se pois, não se deve pagar mal por mal, não é somente uma ação má por ação má, mas também nem desejo mau por ação má ou desejo mau. Paga, porém, um voto mau quem, embora não se vingue por si mesmo, no entanto espera e deseja que Deus castigue seu inimigo. Por isso, como se distingue o homem justo do homem mau ao desejarem ambos que Deus retribua a seus inimigos? O justo deseja que seu inimigo seja antes corrigido do que punido. E ao verificar que o Senhor o castiga, não se deleita com esta pena, porque não o odeia, mas alegra-se com a justiça divina, porque ama a Deus. Enfim, se ele é castigado neste mundo, o justo ou se alegra com a sua correção, ou por causa dos outros, porque assim receiam imitá-lo. Ele também torna-se melhor, pois não alimenta ódio diante deste suplício, mas quer ver o erro emendado. Assim, o justo não se alegra por malevolência e sim por benevolência. Ao ver o castigo, lava suas mãos, quer dizer, purifica suas obras no sangue, isto é, pela perda do pecador. Dali não retira motivo de alegria com o mal alheio, mas sim exemplo pela advertência divina. Se, porém, será castigado só no século futuro, no último juízo de Deus, compraz-se no que agrada a Deus, a saber, que os maus não sejam recompensados, os ímpios não usufruam dos prêmios reservados aos bons. Do contrário, seria injustiça, e fora da regra da verdade, que o justo ama. O Senhor, ao nos exortar a amar os inimigos, propôs-nos o exemplo de nosso Pai que está nos céus, que “faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45); acaso, de acordo com isso, ele não emenda por meio de castigos temporais, ou não condena no fim os pertinazes no mal? Por conseguinte, amem-se os inimigos, mas aceitando a justiça de Deus que pune; agrade a justiça punitiva, mas ninguém se alegre do mal infligido ao inimigo, e sim da justiça do juiz bom. Ao contrário, o ânimo malévolo se contrista se o inimigo escapar do castigo por se ter corrigido. Se o vir punido, alegra-se vingativo de tal sorte que não se deleita com a justiça de Deus a quem não ama, mas goza com a infelicidade daquele a quem odeia. Se entrega tudo ao juízo de Deus, deseja que o castigo de Deus seja mais pesado do que o mal que ele poderia fazer ao inimigo. Se der comida ao inimigo faminto e bebida ao sedento, saboreia maliciosamente o que foi escrito: “Agindo desta forma estarás pondo brasas na cabeça dele”. Pois, age visando pesar mais sobre ele, e excitar contra ele a indignação de Deus, que, segundo sua opinião, é figurada pelos carvões ardentes, não entendendo que aquele fogo é o ardor da penitência, dor que persiste até que a cabeça erguida pela soberba se dobre diante dos benefícios do inimigo, tornando-se humilde, e assim o mal que havia nele é vencido pelo bem do inimigo. Por isso, o Apóstolo com vigilância acrescenta: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,20.21). Como, porém, pode o bem vencer o mal, se for superficial e a maldade profunda? Se perdoa em obras, mas o coração está enfurecido, a mão é suave, mas a vontade é cruel? Por conseguinte, o presente salmo profetiza, em forma de súplica, a futura vingança contra os ímpios, de tal sorte que entendamos terem os santos homens de Deus amado seus inimigos, desejando a todos apenas o bem, que é a piedade neste mundo e a eternidade no futuro. Diante do castigo dos maus, comprazem-se não nos males que lhes são impostos, mas no justo juízo de Deus. Sempre que se lê nas Escrituras alusão ao ódio que têm aos homens, entenda-se ódio aos vícios. A estes, deve cada qual odiar em si mesmo, se de fato ama a si mesmo. | |
§ 15 | 11 Em relação ao que segue: “Chegue diante de tua presença” ou conforme alguns códices: “à tua presença o gemido dos cativos em grilhões”. É difícil ouvir-se dizer que alguns dos santos tenham sido presos com grilhões pelos perseguidores. Se aconteceu, em tão grande e múltipla variedade de penas, foi tão raro que não é crível tenha o profeta especialmente se referido a eles, neste versículo. Mas grilhões são principalmente a fraqueza e a corruptibilidade do corpo, que pesam sobre a alma. O perseguidor poderia coagir à impiedade, utilizando a fraqueza, matéria de certas dores e incômodos. Destes grilhões queria o Apóstolo ser libertado, e estar com Cristo (cf Fl 1,23); mas permanecer na carne era mais necessário por causa daqueles que ele evangelizava. Portanto, até que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este corpo mortal revista a imortalidade (cf 1Cor 15,53), quais outros grilhões, a carne fraca impede a prontidão do espírito. Não sentem o peso destes grilhões senão aqueles que gemem acabrunhados, porque querem revestir a veste que vem do céu por cima da nossa (cf 2Cor 5,4), por terem horror da morte, e sentirem tristeza na vida mortal o profeta faz seus os gemidos deles a fim de que cheguem à presença de Deus. É possível ainda aplicarem-se os grilhões àqueles que metem seus pés nos grilhões dos preceitos da sabedoria, os quais, suportados com paciência, se transformam em enfeite precioso. Daí estar escrito: “Mete os teus pés em seus grilhões” (cf Eclo 6,25.29). “Com o poder de teu braço acolhe como adotivos os filhos dos condenados à morte”, ou conforme se acha em alguns códices: “possui os filhos dos condenados à morte”. Parece-me que a Escritura mostra com evidência quais os gemidos desses cativos que pelo nome de Cristo sofreram gravíssimas perseguições, com toda a clareza profetizadas neste salmo. Pois, sujeitos a diversos sofrimentos, rezavam pela Igreja, pedindo não fosse inútil para os pósteros o derramamento de seu sangue. Assim, a messe do Senhor, que os inimigos consideravam perdida, seria por isso mesmo mais abundante. Com efeito, o sal-mista denomina “filhos dos condenados à morte” os que não somente não se atemorizaram com os sofrimentos dos que os precederem, mas ainda inflamados diante da glória deles, a imitá-los, acreditaram, em multidões numerosíssimas, naquele por cujo nome os mártires anteriores haviam sofrido. Por isso, declara o salmista: “Com o poder de teu braço”. Esta coisa tão grande aconteceu ao povo cristão; ele não acreditou de forma alguma que sucederia o que os perseguidores esperavam conseguir em parte. | |
§ 16 | 12 “Retribui a nossos vizinhos em seu seio, sete vezes mais”. Não é imprecação; mas anuncia previamente ações justas e profetiza o que há de acontecer. O salmista dá a entender com o número septenário, isto é, a séptupla retribuição, a perfeição do castigo, porque este número costuma indicar plenitude. De onde se dizer, em relação ao bem: Receberá neste tempo sete vezes mais (cf Mc 10,30). Com isso indica totalidade de bens: “Como nada tendo, embora tudo possuamos” (11 2Cor 6,10). Chama de vizinhos aqueles entre os quais habita a Igreja até o dia da separação; pois agora não se faz a separação naterial. “Em seu seio”, agora, de fato, ocultamente; pois, o castigo aqui nesta vida é oculto; depois “diante de nossos olhos apareça entre as nações”. Pois, o homem entregue a seus sentimentos perversos, recebe no seu íntimo o que há de merecer dos suplícios futuros. “As injúrias com que te ultrajaram, Senhor”. A estas injúrias, retribui com o séptuplo em seu seio, isto é, por estas injúrias, reprova-os inteiramente em oculto. Pois, foi ali que ultrajaram teu nome, pensando eliminar-te da terra, através de teus servos. | |
§ 17 | 13 “E nós, teu povo”, em geral deve ser tomado como sendo toda classe de cristãos verdadeiros e piedosos. “Nós”, portanto, que eles pensaram que podiam arruinar, “teu povo e ovelhas de teu rebanho”, a fim de que aquele que se gloria, no Senhor se glorie (cf 1Cor 1,31), “havemos de te celebrar pelos séculos”. Outros códices, contudo, trazem: “havemos de te celebrar eternamente”. A diversidade provém da ambigüidade do texto grego. A expressão grega eis tòn aiona pode ser vertida por “eternamente” e “pelos séculos”. Pelo contexto pode-se escolher a melhor versão. O sentido da passagem, a meu ver, exige mais “pelos séculos”, isto é, até o fim dos séculos. O versículo seguinte, porém, segundo o costume das Escrituras, especialmente dos salmos, é repetição do anterior, em ordem diferente, trazendo primeiro o que vem depois, e depois o que no versículo primeiro vem antes. Pois, em vez de: “havemos de te celebrar”, aqui está: “anunciaremos teu louvor”. Lá temos: “pelos séculos”, substituído aqui por: “de geração em geração”. A repetição da palavra geração significa a perpetuidade. Ou, conforme entendem alguns, duas gerações, a antiga e a nova. Mas isto se realiza em ambos os séculos; pois quem não renascer da água e do Espírito não entrará no reino dos céus (cf Jo 3,5); em seguida, porque neste século anuncia-se o louvor de Deus, pois como no futuro século nós o veremos como ele é (cf 1Jo 3,2), não haverá a quem anunciar ainda. “E nós, teu povo e teu rebanho”, que eles, perseguindo, pensaram eliminar, “havemos de te celebrar pelos séculos”, pois a Igreja que eles se empenharam por destruir permanecerá até o fim. “De geração em geração anunciaremos teu louvor”. No intuito de fazer calar este louvor, esforçaram-se por nos arruinar. Já insinuamos que em muitos lugares das Sagradas Escrituras coloca-se a palavra confissão em vez de louvor, conforme está escrito: Direis em confissão: “Todas as obras do Senhor são boas” (Eclo 39,33); e principalmente o que disse o próprio Salvador, que não tinha pecado algum a confessar: “Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Declarei-o, para se entender mais claramente que: “anunciaremos teu louvor” é repetição do que fora dito mais acima: “Havemos de te celebrar”. 1 Maniqueus. | |