ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 77 | ||
§ 77:1 | Ł Levanto a Deus a minha voz; a Deus levanto a minha voz, para que ele me ouça. | |
§ 77:2 | Ɲ No dia da minha angústia busco ao Senhor; de noite a minha mão fica estendida e não se cansa; a minha alma recusa ser consolada. | |
§ 77:3 | Ł Lembro-me de Deus, e me lamento; queixo-me, e o meu espírito desfalece. | |
§ 77:4 | Ƈ Conservas vigilantes os meus olhos; estou tão perturbado que não posso falar. | |
§ 77:5 | Ƈ Considero os dias da antigüidade, os anos dos tempos passados. | |
§ 77:6 | Ɗ De noite lembro-me do meu cântico; consulto com o meu coração, e examino o meu espírito. | |
§ 77:7 | ꭆ Rejeitará o Senhor para sempre e não tornará a ser favorável? | |
§ 77:8 | Ƈ Cessou para sempre a sua benignidade? Acabou-se a sua promessa para todas as gerações | |
§ 77:9 | ⱻ Esqueceu-se Deus de ser compassivo? Ou na sua ira encerrou ele as suas ternas misericórdias? | |
§ 77:10 | ⱻ E eu digo: Isto é minha enfermidade; acaso se mudou a destra do Altíssimo? | |
§ 77:11 | ꭆ Recordarei os feitos do Senhor; sim, me lembrarei das tuas maravilhas da antigüidade. | |
§ 77:12 | ɱ Meditarei também em todas as tuas obras, e ponderarei os teus feitos poderosos | |
§ 77:13 | Ꝋ O teu caminho, ó Deus, é em santidade; que deus é grande como o nosso Deus? | |
§ 77:14 | Ŧ Tu és o Deus que fazes maravilhas; tu tens feito notória a tua força entre os povos. | |
§ 77:15 | Ƈ Com o teu braço remiste o teu povo, os filhos de Jacó e de José. | |
§ 77:16 | Ɑ As águas te viram, ó Deus, as águas te viram, e tremeram; os abismos também se abalaram. | |
§ 77:17 | Ɑ As nuvens desfizeram-se em água; os céus retumbaram; as tuas flechas também correram de uma para outra parte. | |
§ 77:18 | Ɑ A voz do teu trovão estava no redemoinho; os relâmpagos alumiaram o mundo; a terra se abalou e tremeu. | |
§ 77:19 | Ꝓ Pelo mar foi teu caminho, e tuas veredas pelas grandes águas; e as tuas pegadas não foram conhecidas. | |
§ 77:20 | ʛ Guiaste o teu povo, como a um rebanho, pela mão de Moisés e de Arão. | |
O SALMO 77 | ||
§ 1 | 1 Este salmo contém a narrativa das gestas do antigo povo de Israel. O povo mais novo, que veio depois, é advertido a precaver-se de ser ingrato para com os benefícios de Deus e de provocar a ira daquele de quem deve receber com obediência e fidelidade a graça, como diz o salmista: “A fim de não serem, como seus pais, uma geração má e provocadora; geração que não tem o coração reto, nem o espírito fiel a Deus”. Este o sentido do salmo, sua utilidade, seus abundantes frutos. Mas, apesar de parecerem claros e evidentes os fatos enumerados e narrados, o título do salmo logo nos toca e torna atentos. Não é em vão que está inscrito: “Inteligência. De Asaf”. Se talvez não impressione superficialmente, seu conteúdo interno desafia o leitor inteligente. Em seguida, narra e relembra todos os fatos que parecem exigir mais um ouvinte do que um expositor. “Abrirei”, diz o salmista, “a minha boca em parábolas; tratarei de proposições desde o início”. Quem não desperta do sono com isto? Quem ousaria ler rapidamente como se fossem claras as parábolas e as proposições, que indicam pelo próprio nome que devem ser examinadas com maior atenção? Efetivamente, a parábola apresenta uma comparação; apesar de ser um vocábulo grego é usado como se fosse latino. É bem sabido que nas parábolas as coisas que se dizem semelhantes servem de ponto de comparação com as coisas reais. As proposições, porém, que em grego se chamam problémata são questões que encerram algo que precisa ser resolvido. Quem, portanto, há de ler superficialmente as parábolas e proposições? Quem, ao ouvi-las, não há de empregar toda a atenção do espírito para entender e chegar a um resultado? | |
§ 2 | “Escutai, ó meu povo, a minha lei”. Quem acreditamos que está falando, a não ser o próprio Deus? Ele deu a lei a seu povo, que ele congregou após havê-lo libertado do Egito. Este aglomerado propriamente chama-se sinagoga, que é tradução do nome de Asaf. Qual o motivo por que foi dito: “Inteligência. De Asaf?” Foi porque Asaf entendeu, ou devemos entender figuradamente que se trata do entendimento da sinagoga, isto é, do mesmo povo ao qual se diz: “Escutai, ó meu povo, a minha lei?” Por que é que, então, o profeta censura o mesmo povo, dizendo: “Israel é incapaz de conhecer, o meu povo não pode entender”? (cf Is 1,3). Todavia existia naquele povo quem entendesse, tendo a fé que posteriormente foi revelada, pertencente à graça do Espírito e não à letra da Lei. Não careciam da fé os que puderam prever e profetizar a futura revelação em Cristo. Aqueles antigos sacramentos significavam os futuros. Acaso somente os profetas tinham tal fé e não o povo? Ao contrário. Aqueles que ouviam fielmente os profetas, com o auxílio da graça, entendiam o que ouviam. Mas na verdade o sacramento do reino dos céus estava velado no Antigo Testamento, que se revelaria na plenitude dos tempos em o Novo Testamento. Diz o Apóstolo: “Não quero que ignoreis, irmãos, que os nosso pais estiveram todos sob a nuvem, todos atravessaram o mar e, na nuvem e no mar, todos foram batizados por Moisés, todos comeram o mesmo alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual, pois bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo” (1 Cor 10,1-5). Na ordem do mistério, o alimento e a bebida são idênticos aos nossos; mas isso quanto à figura, não segundo a realidade, porque é o mesmo Cristo que para eles foi figurado na rocha e para nós se manifestou na carne. “Apesar disso, nem todos agradaram a Deus. De fato, todos comeram o mesmo alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual”, a saber, que significava algo de espiritual; apesar disso, “nem todos agradaram a Deus”. Se afirma: “Nem todos”, havia ali alguns que agradavam a Deus. Apesar de serem comuns os sacramentos, não era comum a todos a graça, que é a virtude dos sacramentos. Agora também, após ter sido revelada a fé outrora velada, é comum o batismo da regeneração a todos os batizados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (cf Mt 28,18). Mas a própria graça produzida por estes mesmos sacramentos, que regeneram os membros do corpo de Cristo, unidos à Cabeça, não é comum a todos. Pois, os hereges têm o mesmo batismo, e os falsos irmãos na comunhão católica. Por conseguinte, é com razão que S. Paulo declara: Mas “nem todos agradaram a Deus”. | |
§ 3 | Nem agora, contudo, nem agora é infrutífera a palavra: “Escutai, ó meu povo, a minha lei”. Esta locução encontra-se em todas as cópias, no plural. Não está: Escuta, mas: “Escutai”. Trata-se de muitos povos. A esses muitos, diz-se no plural: “Inclinai o ouvido às palavras de minha boca”. Do mesmo modo: “Escutai e: Inclinai o ouvido”. Igualmente: “a minha lei” identifica-se com: “as palavras de minha boca”. Pois, escuta piedosamente a lei de Deus e as palavras de sua boca aquele que a humildade faz inclinar o ouvido e não aquele que ergue a cabeça com soberba. Quando se derrama um líquido, o vaso côncavo da humildade o apara, enquanto uma excrescência o expele. Daí encontrar-se em outra passagem: “Inclina teu ouvido e recebe o meu saber” (Pr 22,17). Somos ad- moestados com insistência a recebermos com ouvidos atentos, isto é, com piedosa humildade, o sentido deste salmo de Asaf (porque o título está em genitivo: deste entendimento, e não: esta inteligência). Nem foi dito: De Asaf, mas para Asaf. Verifica-se isto pelo artigo em grego, e que se acha também em alguns códices latinos. Portanto, estas palavras são de entendimento, isto é, da inteligência que foi dada ao próprio Asaf. É melhor tomá-las como dirigidas a todo o povo de Deus reunido, e não a um homem só. Deste povo não devemos de forma alguma alhear-nos. Embora propriamente se diga sinagoga dos judeus e igreja dos cristãos (porque se costuma entender congregação antes relativamente a animais, e convocação relativamente a homens), no entanto vemos que a Igreja aí é denominada congregação, e talvez nos convenha repetir: “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e congrega-nos das nações a fim de confessarmos teu nome santo” (Sl 105,47). Não devemos menosprezar, mas antes dar graças inefáveis a Deus por sermos ovelhas de suas mãos, que ele conhecera de antemão, ao dizer: “Mas tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; devo conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16), unindo o fiel povo dos gentios ao fiel povo dos israelitas, a respeito dos quais anteriormente dissera: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Pois, serão congregadas diante dele todas as gentes e ele as separará como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (cf Mt 25,32). Ouçamos, portanto o que foi dito: “Escutai, ó meu povo, a minha lei, inclinai o ouvido às palavras de minha boca”, não como se fossem palavras dirigidas aos judeus, mas antes a nós, ou certamente também a nós. Tendo dito o Apóstolo: “Nem todos agradaram a Deus”, mostrou que ali achavam-se alguns que apraziam a Deus, e imediatamente acrescentou: Pois caíram mortos no deserto; e em seguida: “Ora, esses fatos aconteceram para nos servir de exemplo, a fim de que não cobicemos coisas más, como eles cobiçaram. Não vos torneis idólatras como alguns dentre eles, segundo está escrito: O povo sentou-se para comer e beber; depois levantaram-se para se divertir. Nem nos entreguemos à fornicação, como alguns deles se entregaram, de modo a perecerem num só dia vinte e três mil. Não tentemos a Cristo, como alguns deles o tentaram, de modo a morrer pelas serpentes. Não murmureis, como alguns deles murmuraram, de modo que pereceram pelo Exterminador. Estas coisas aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos” (1 Cor 10,5-11). Estas palavras, portanto, foram cantadas mais para nós. Por isto, neste salmo entre outras coisas foi dito: “A fim de que a nova geração as conhecesse e os filhos que dela nascessem se levantassem”. Na verdade, se a mortandade ocasionada pelas serpentes e a ruína trazida pelo Exterminador e as mortes pela espada foram figuras, como diz com evidência o Apóstolo, pois é claro que tudo aquilo lhes sucedeu, ele não afirma: Foram ditas em figura, ou: Foram escritas em figura, mas: “Estas coisas aconteceram para servir de exemplo”, com quanto maior piedade não devemos nos acautelar das penas que aqueles fatos representavam! Sem dúvida alguma, como nas coisas boas encontra-se um bem muito maior naquilo que as figuras representavam do que nas próprias figuras, assim nas coisas más são muito piores, de fato, as coisas que as figuras significam, embora sejam ruins as figuras que servem de exemplo. Pois, como a terra da promissão, para onde o povo hebraico era conduzido nada é em comparação com o reino dos céus, para onde é levado o povo cristão, assim aqueles castigos que eram figuras, apesar de atrozes, nada são em comparação com os castigos que representam. Enquanto o Apóstolo as denomina figuras, este salmo, na medida que podemos julgar, as chama de parábolas e proposições. Não têm seu termo nos fatos que aconteceram, mas referem-se aos eventos que com eles são racionalmente comparados. Ouçamos, pois, a lei de Deus, nós que somos seu povo, e inclinemos nosso ouvido às palavras de sua boca. | |
§ 4 | 2 “Abrirei a minha boca em parábolas. Falarei de proposições desde o início”. Aparece suficientemente nos versículos seguintes a que início se refere. Pois, não se trata do início em que foram feitos o céu e a terra, ou em que foi criado o gênero humano no primeiro homem, mas daquela multidão de povo que foi tirada do Egito, de tal modo que o sentido é atinente a Asaf, que se traduz por assembléia. Mas, oxalá aquele que disse: “Abrirei a minha boca em parábolas” digne-se também abrir nosso intelecto para compreendê-las! Se, pois, como abriu a boca em parábolas, explicasse também as próprias parábolas; e como profere proposições, pronunciasse igualmente as explicações das mesmas, não estaríamos aqui suando. Agora, efetivamente, de tal forma estão encobertas e trancadas todas as coisas que mesmo se conseguimos, com seu auxílio, encontrar algo que nos alimente de modo salutar, comeremos o pão com o suor de nosso rosto (cf Gn 3,19), e pagamos a pena da antiga sentença, com o labor do corpo e do espírito. Diga ele, portanto, ouçamos as parábolas e proposições. | |
§ 5 | 3 “Quantas coisas ouvimos e aprendemos e relataram-nos nossos pais”. Mais acima era o Senhor quem falava. Pois, de quem acreditamos serem as palavras: “Escutai, ó meu povo, a minha lei?” Por que é, pois, que agora de repente fala um homem? Pois são palavras de um homem: “Quantas coisas ouvimos e aprendemos e relataram-nos nossos pais”. Com efeito, Deus haveria de falar pelo ministério humano, conforme se exprime o Apóstolo: “Pois procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim”? (2 Cor 13,3). Em primeiro lugar quis se manifestar por palavras, a fim de que, falando as palavras de Deus, o homem não fosse desprezado enquanto homem. Assim acontece com as palavras de Deus, que nos são transmitidas pelos sentidos de nosso corpo. O Criador move a criatura que lhe é sujeita, de maneira invisível. Não quero dizer que sua substância se converta em algo de corporal e temporal, como se fosse por sinal corporal e temporal, quer sejam os que atingem os olhos, ou os ouvidos, que faz conhecida sua vontade, na medida que os nomes podem captá-la. O anjo pode utilizar o éter, o ar, a nuvem, o fogo e qualquer outra natureza ou figura corporal. O homem usa do rosto, da língua, da mão, da pena, das letras e de outros sinais para represen-tar os segredos de sua mente. Finalmente, como é homem, envia mensageiros, outros homens, e diz a um: “Vai! e ele vai; e a outro: Vem! e ele vem; e a seu servo: Faze isto! e ele o faz” (Lc 7,8). Com quanto maior poder e mais eficazmente Deus, a cujo domínio tudo se acha sujeito, utilizará um anjo ou um homem para anunciar o que lhe agrada! Embora, portanto, um homem possa dizer: “Quantas coisas ouvimos e aprendemos e relataram-nos nossos pais”, ouçamos como sendo palavras de Deus e não como fábulas humanas. Foi por isso que precederam as palavras: “Escutai, ó meu povo, a minha lei. Inclinai o ouvido às palavras de minha boca. Falarei de proposições desde o início. Quantas coisas ouvimos e aprendemos e relataram-nos nossos pais. Ouvimos e aprendemos equivale a: “Ouve, filha, vê” (Sl 44,11). Pois, foram ouvidas no Antigo Testamento e conhecidas em o Novo; ouvidas quando eram profetizadas, conhecidas quando cumpridas. Não se engana a audição quando se cumpre a promessa. “E nossos pais”. Moisés e os profetas, “nos relataram”. | |
§ 6 | 4 “Não as ocultaram a seus filhos, à nova geração”. Trata-se de nossa geração, à qual foi dada a regeneração. “Publicando os louvores do Senhor, o seu poder e as mara-vilhas que operou”. A ordem das palavras é a seguinte: “Relataram-nos nossos pais, publicando os louvores do Senhor”. O Senhor é louvado para que seja amado. Que amor seria mais salutar? | |
§ 7 | 5 “Estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel”. Aí temos o início acima mencinado: “Falarei de proposições desde o início”. Início é, portanto, o Antigo Testamento, e fim o Novo. Pois, o temor prevalece na lei: “O começo da sabedoria é o temor do Senhor” (Sl 110,10). “O fim, porém, da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Por seu dom “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5); o perfeito amor lança fora o temor (1Jo 4,18), porque agora, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus (Rm 3,21), testemunhada pela Lei e pelos profetas. Por isso, estabeleceu um testemunho em Jacó e instituiu uma lei em Israel”. Aquele tabernáculo constituído de maneira tão insigne e repleta de sentido denomina-se tabernáculo do testemunho, onde havia um véu diante da arca da Lei, do mesmo modo que foi posto um véu sobre o rosto do ministro da Lei (cf Ex 40,2). Isto constituía no plano de Deus parábolas e proposições. Com efeito, tudo o que era anunciado e realizado, continha significados velados, e não se via como revelação clara. Afirma o Apóstolo: “É somente pela conversão ao Senhor que o véu cai” (2 Cor 3,13.16). “Todas as promessas de Deus encontrara nele o seu sim; por isto, é por ele que dizemos: Amém” (2 Cor 1,20). Todo aquele, portanto, que adere a Cristo, possui todo bem, mesmo o que não entende sob a letra da Lei; quanto ao que de Cristo se afasta, nem entende nem tem. Por isso, “estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel”. O salmista repete, como lhe é habitual. Pois: “Estabeleceu um testemunho equivale a: instituiu uma lei; e em Jacó” é equivalente a: “em Israel”. Com efeito, estes dois nomes pertencem a um só homem; assim também Lei e testemunho são dois nomes de uma só realidade. Dirá alguém: Há diferença entre: “estabeleceu e instituiu”. Sim; do mesmo modo que há pequena diferença entre “Jacó e Israel”. De fato, não eram dois homens, mas os dois nomes foram impostos a um só homem por diversos motivos. Jacó, por causa da suplantação, pois ao nascer segurou o pé do irmão; Israel, porém, por causa da visão de Deus (cf Gn 25,25; 32,28). Assim diferem: “estabeleceu e instituiu”. Diz o salmista: “estabeleceu um testemunho”, a meu ver, porque ele estabeleceu alguma coisa. Declara o Apóstolo: “Sem a Lei, o pecado está morto. Outrora eu vivia sem Lei; mas sobrevindo o preceito o pecado reviveu”. Eis o que foi estabelecido pelo testemunho, pela Lei, de sorte que apareceu o que estava oculto, conforme o Apóstolo afirma mais adiante: “Mas foi o pecado que, para se revelar pecado, produziu em mim a morte através do que é bom” (Rm 7,8.9.13). “Instituiu uma Lei”, um jugo para os pecadores; daí dizer: “A Lei não é destinada ao justo” (1 Tm 1,9). É testemunho, portanto, enquanto demonstra alguma coisa; Lei, porém, enquanto ordena, embora seja uma só e mesma realidade. Da mesma forma, Cristo é uma pedra; mas para os fiéis é pedra angular (cf Sl 117,22), para os que não crêem, pedra de tropeço, pedra de escândalo. Assim o testemunho da Lei é para os que seguem a Lei, mas não legitimamente. É testemunho enquanto convence os pecadores de que devem ser punidos; para os que legitimamente se submetem à Lei, o testemunho demonstra a quem devem os pecadores pedir refúgio para serem libertados. Pois, é em seu favor a “justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos profetas” (Rm 3,21), que justifica o ímpio; alguns “desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (Rm 10,3). | |
§ 8 | 5.8 “Quantas coisas mandou a nossos pais para que as transmitissem a seus filhos; a fim de que a nova geração as conhecesse e os filhos que dela nascessem se levantassem e contassem a seus filhos. Assim poriam em Deus a sua confiança, não se esqueceriam de suas obras e observariam os seus mandamentos. A fim de não serem como seus pais, uma geração má e provocadora; geração que não tem o coração reto, nem seu espírito foi fiel a Deus”. Tais palavras indicam dois povos: um pertencente ao Antigo Testamento e outro ao Novo Testamento. Pois, com as palavras: “Quantas coisas mandou a nosso pais, para que as transmitissem a seus filhos”, assevera que eles receberam mandamentos: “para que as transmitissem a seus filhos”, mas não que eles os conheceram ou praticaram, “a fim de que a nova geração as conhecesse”, o que a primeira não conheceu. “Os filhos que dela nascessem se levantassem”. Pois, aqueles que nasceram não se levantaram, porque não tinham o coração ao alto, mas antes sobre a terra. É de fato com Cristo que se ressuscita; daí vem a palavra: “Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto (Cl 3,1). E contassem a seus filhos. Assim poriam em Deus a sua confiança”. Assim os justos não querem estabelecer a sua própria justiça, mas expõem a Deus o seu caminho; confiam nele para que ele possa agir (cf Sl 36,5). “E não se esqueceriam das obras de Deus”, a saber, exaltando suas próprias obras e gabando-se delas, como se proviessem deles mesmos, quando é Deus quem opera neles o bem que eles fazem, e lhes dá o querer e o agir, segundo a sua vontade (cf Fl 2,13). “E procurariam os seus mandamentos”. Se já haviam aprendido os mandamentos, como os procurariam? “Quantas coisas mandou a nossos pais, para que as transmitissem a seus filhos; a fim de que a nova geração conhecesse”. O quê? Certamente os preceitos que ordenou. Como, portanto, ainda procuram senão pondo em Deus a sua esperança e então busquem observar seus mandamentos e os cumpram, com o auxílio do mesmo Deus? “A fim de não serem como seus pais, geração má e provocadora, que não tem o coração reto”. E profere qual a razão disso, acrescentando imediatamente: “Nem seu espírito foi fiel a Deus”, isto é, não tinha a fé que impetra o que a lei ordena. Pois, quando o espírito do homem coopera com a operação do Espírito de Deus, Deus realiza o que ordena; e isto não se faz senão pela fé naquele que justifica o ímpio (cf Rm 4,5). Não possuiu tal fé a geração má e provocadora, e por isso foi dito a seu respeito: “Nem seu espírito foi fiel a Deus”. Isto foi dito de maneira muito mais clara a respeito da graça de Deus, que não só opera a remissão dos pecados, mas ainda faz com que o espírito do homem coopere nas boas obras. Seria como se dissesse: Seu espírito não acreditou em Deus. Ter o espírito fiel a Deus é não acreditar que seu espírito possa praticar a justiça sem o auxílio de Deus, mas só com a sua graça. Isto se chama acreditar em Deus, o que é mais do que confiar em Deus. Pois, muitas vezes se deve dar crédito a um homem, embora não se deva nele acreditar. Crer em Deus é aderir com fé a Deus que opera o bem, para cooperar neste mesmo bem. “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). Que teria o Apóstolo podido acrescentar a isto, depois de ter dito: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito”? (1 Cor 6,17). Aliás, a Lei é um testemunho pelo qual o réu não é absolvido, mas condenado. A letra é ameaçadora e convence de mal os prevaricadores; ela não é o espírito que ajuda a livrar e justificar os pecadores. Aquela geração, portanto, de cujo exemplo devemos nos precaver, foi má e provocadora, porque “seu espírito não foi fiel a Deus”. Embora tenha confiado algum tanto em Deus, contudo não acreditou em Deus; não aderiu a Deus pela fé, a fim de que, depois de curada por Deus, cooperasse bem com Deus que nela obrava. | |
§ 9 | 9 Finalmente: “Os filhos de Efraim, hábeis em armar e disparar os arcos, retrocederam no dia do combate”. Empenhados em observar a lei da justiça, não chegaram a esta lei da justiça. Por quê? Porque não vinha da fé seu esforço. Pois, era uma geração, cujo espírito não era fiel a Deus, mas confiava de certo modo em suas obras. Se armou e disparou o arco (que é visível exteriormente, figurando as obras da Lei), não fez o mesmo para tornar reto o coração, onde o justo vive da fé, que opera pela caridade, a qual faz com que o homem adira a Deus. Ela também produz no homem o querer e o obrar, segundo a sua vontade. Pois, que significa tender o arco e o lançar, e retroceder no dia do combate, a não ser atender e prometer no dia em que se escuta e abandonar no dia da tentação? Exercitar-se nas armas, e na hora do combate não querer lutar? Quanto ao que, de fato, o salmista disse: “armar e disparar os arcos”, quando parece que devia ter dito: armar o arco e disparar as flechas (efetivamente, não se lança o arco, mas com o arco se projetam as flechas), ou se trata da expressão sobre a qual dissertamos acima, no versículo: “Estabeleceu um testemunho”, porque estabeleceu algo através do testemunho: assim também aqui: “disparar arcos” porque alguma coisa foi lançada por meio dos arcos, ou então a ordem das palavras é obscura, e ainda mais com a omissão de uma palavra que se deve subentender, de tal forma que a ordem seria: “Os filhos de Efraim, hábeis em armar os arcos e disparar” (subentendem-se: as flechas). Mais completo seria: Tender os arcos e disparar as flechas. Pois, se tivesse dito: Tender e disparar as flechas, certamente não deveríamos entender: armar as flechas, mas tendo ouvido dizer: tender, entenderíamos antes: arco, embora não tivesse sido dito. Alguns códices gregos trazem, no dizer de alguns: armar e disparar os arcos; mas sem dúvida devemos subentender: flechas. Se o salmista quis representar por filhos de Efraim toda aquela geração provocadora, é uma locução que pela parte significa o todo. Talvez tenha sido escolhida esta parte, com a qual todo aquele povo era representado, porque deles principalmente devia se esperar algo de bom. Eles nasceram de Efraim, que seu avô Jacó, embora seu pai José o tivesse colocado à esquerda por ser o menor, abençoou com a mão direita, e o preferiu ao irmão mais velho, por meio de uma bênção misteriosa (Gn 48,14). Se, nesta passagem aquela tribo é acusada, e mostra-se que nela não apareceu a realização da promessa contida naquela bênção, entendamos bem que as palavras do patriarca Jacó então figurava coisa bem diferente do que podia esperar a prudência carnal. Estava figurado que os últimos haveriam de ser os primeiros, e os primeiros seriam os últimos (cf Mt 20,16), através da vinda do Salvador, do qual foi dito: “Aquele que vem depois de mim, existia antes de mim” (Jo 1,27.30). Assim o justo Abel foi anteposto a seu irmão mais velho (Gn 4,4.5), assim a Ismael Isaac (Gn 21,12), assim Jacó foi prefrido a seu gêmeo. Esau, que contudo nasceu primeiro (Gn 25,23); assim Farés a seu irmão gêmeo, que primeiro tirara a mão do útero materno e começara a nascer, também precedeu no nascimento (Gn 28,27-29); assim Davi foi preferido a seus irmãos mais velhos (1Rs 16,12). Como estas parábolas todas e outras semelhantes, não só por palavras, mas também por fatos, foram propostas antes, assim o povo cristão foi preferido ao povo judaico. Para sua redenção, Cristo foi morto pelos judeus, como Caim matou Abel (cf Gn 4,8). Isto também foi prefigurado quando Jacó estendeu as mãos cruzadas, e tocou com a direita Efraim colocado a sua esquerda. Preferiu-o a Manassés, colocado à direita, tocando-o com a esquerda. Pois, segundo a carne, “os filhos de Efraim, hábeis em armar e disparar os arcos, retrocederam no dia do combate”. | |
§ 10 | 10 Os versículos seguintes instruem a respeito do sentido do versículo: “Retrocederam no dia do combate”. Expõem-no com toda clareza: “Não guardaram a aliança de Deus, recusaram observar a sua lei”. Eis o que significa: “Retrocederam no dia do combate”, não observaram a aliança de Deus. Os que tendiam o arco e disparavam, proferiram também com a maior prontidão as palavras da promessa: “Tudo o que o Senhor nosso Deus disse, nós o faremos” (Ex 19,8). “Retrocederam no dia do combate”, porque comprova a promessa de obediência a tentação, não apenas a audição. Aquele, porém, cujo espírito confia em Deus, Deus o mantém na fidelidade, não permitindo que seja tentado mais do que ele pode suportar, mas com a tentação dará os meios de sair dela e a força para sus-tentá-la (cf 1Cor 10,13), para que não retroceda no dia do combate. Quem se gloria em si mesmo, e não em Deus, por mais que se gabar da promessa, de seu valor, como se armasse o arco e o disparasse, retrocede no dia do combate. Quem não tem o espírito fiel a Deus, também o Espírito de Deus não está com ele, e conforme está escrito: “Não acredita, por isso não será protegido” (Eclo 2,13). Quanto a ter dito: “Não guardaram a aliança de Deus” e acrescentado: “recusaram observar a sua lei”, é repetição da sentença anterior, com alguma explicitação. Denominou: “sua lei” ao que designara sob o termo: “aliança de Deus”; a expressão: “não guardaram” foi repetida com: “recusaram observar”. Mas como se poderia falar mais brevemente: E não observaram a Lei, parece- me que o salmista quis que procurássemos algo sob este modo de se expressar, pois preferiu dizer: não quiseram, “recusaram observar” a: não observaram. Poder-se-ia pensar que bastam as obras da lei para a justificação, pois as coisas que são preceituadas são observadas exteriormente pelos homens que preferem não lhes seja ordenado o que não fazem espontaneamente, apesar de fazê-las; deste modo, parecem observar a lei de Deus, mas não querem observar, pois não a praticam de coração. De forma alguma se faz de coração o que se pratica por medo do castigo e não por amor da justiça. Pois, relativamente a atos exteriores, tanto os que não amam a justiça e os que temem o castigo não roubam; por conseguinte, são iguais no uso das mãos e desiguais no coração; iguais nas obras, desiguais na vontade. Por isso, eles assim foram apontados: “Geração que não tem coração reto”. Não se disse: obras, e sim: “coração”. Pois, se o coração é reto, retas são as obras; se, porém, o coração não é reto, não são retas as obras, em-bora pareçam ser. Suficientemente mostrou o salmista porque a geração má não tem reto o coração, ao dizer: “nem seu espírito foi fiel a Deus”. Efetivamente, Deus é reto; em conseqüência, o coração do homem, que em si foi perverso, pode tornar-se reto aderindo àquele que é reto, uma regra imutável. Deve o homem aproximar-se dele, não com os pés, mas com a fé, a fim de estar com ele o seu coração, e desta maneira, ser reto. Por isso, a epístola aos Hebreus se refere a esta geração má e provocadora nesses termos: “A palavra que ouviram, contudo, de nada lhes aproveitou, por não se unirem pela fé àqueles que a tinham ouvido” (Hb 4,2). A vontade, portanto, que procede de um coração reto, é preparada pelo Senhor, mas precedida pela fé, que dá acesso ao Deus reto. Assim se torna reto o coração. Esta fé, que é despertada por prévia misericórdia de Deus, é suscitada através da obediência. O coração começa a aderir a Deus, para ser dirigido; e quanto mais é dirigido tanto mais vê o que não via, e pode fazer o que não podia. Não foi assim que agiu Simão, a quem disse o apóstolo Pedro: “Nesta questão, não tens parte nem herança, porque o teu coração não é reto diante de Deus” (At 8,21). Ele mostra aí que não é possível ser reto sem Deus, a fim de que os homens comecem a observar a lei, não como escravos, por medo, mas andar segundo a lei como filhos, voluntariamente. Os outros não quiseram observá-la assim, e ficaram sob a lei. O temor não desperta tal vontade, e sim a caridade, que é difundida em nossos corações fiéis pelo Espírito Santo (cf Rm 5,5). A eles se diz: “Pela graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho. Pois somos criaturas dele, criadas em Cristo Jesus para as boas obras, que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos” (Ef 2,8-10). Não como estes que “recusaram observar a sua lei”, não acreditando nele, nem manifestando-lhes seus caminhos e confiando nele para ele mesmo agir. | |
§ 11 | 1.12 “Esqueceram-se de seus benefícios e das maravilhas que lhes mostrara. Na presença de seus pais operou maravilhas”. Qual o sentido disto não é uma questão desprezível. Pouco acima havia dito que os próprios pais constiuíam uma geração má e provocadora. “A fim de não serem como seus pais, uma geração má e provocadora, que não tem o coração reto”, e as demais observações acerca da mesma geração. O salmista preceitua à nova geração que se acautele de imitá-la. “Assim poriam em Deus a sua confiança, não se esqueceriam das obras de Deus, e procurariam os seus mandamentos”. Acerca disso já dissertamos suficientemente, dando nosso parecer. Por que motivo, então, ao se referir à mesma geração má, mostrando como “esqueceram-se de seus benefícios e das maravilhas que lhes mostrara”, acrescentou o salmista: “Na presença de seus pais operou maravilhas”. Que pais são estes, se não quer o salmista que os seus descendentes lhes sejam semelhantes? Se tomamos na acepção de serem aqueles dos quais nasceram estes últimos, como Abraão, Isaac e Jacó, eles já haviam adormecido havia muito quando Deus mostrou maravilhas no Egito. Pois, continua o salmo: “Na terra do Egito, no campo de Tânis”, dizendo que aí Deus mostrou-lhes maravilhas, na presença de seus pais. Por acaso estavam presentes em espírito, porque o Senhor no evangelho fala a respeito deles: “Todos, com efeito, vivem para ele”? (Lc 20,38). Ou entendemos serem pais acomodaticiamente Moisés, Aarão e outros anciãos mencionados na Escritura, que diz terem eles recebido o mesmo espírito que Moisés, para ajudá-lo no governo e no atendimento do mesmo povo? Por que, então, não seriam denominados pais? Não seriam como Deus Pai, o único que regenera pelo seu Espírito aqueles que ele transforma em filhos, para obterem a herança eterna, mas como título honorífico, em vista da idade e do cuidado da piedade filial, conforme dizia Paulo, já ancião: “Não vos escrevo tais coisas para vos envergonhar, mas para vos admoestar como a filhos bem-amados” (1 Cor 4,14-15). Ele sabia, efetivamente, que o Senhor dissera: “A ninguém na terra chameis pai, pois um só é o vosso Pai, Deus” (Mt 23,9). Ele não se exprimiu assim para que se retirasse este vocábulo honroso do modo humano de falar, mas para que não se atribuísse a graça de Deus, que nos regenera para a vida eterna, à natureza, ou ao poder, ou mesmo à santidade de alguém. Por isso, ao declarar: “Eu vos gerei”, disse antes: “em Cristo e pelo evangelho”, a fim de que não se pensasse que era dele o que vinha de Deus. | |
§ 12 | Por conseguinte, aquela “geração má e provocadora” consta daqueles “que se esqueceram de seus benefícios e das maravilhas que lhes mostrara. Na presença de seus pais operou maravilhas, na terra do Egito, do campo de Tânis”. E começou a narrar as lembranças daquelas maravilhas. Se elas constituem parábolas e proposições, de fato devem ser relacionadas a alguma comparação. Não devemos desviar nossa atenção daquilo que o salmo se propõe demonstrar. O fruto a retirar das coisas que foram ditas, e a razão do aviso a ouvirmos atentamente as palavras de Deus: “Escutai, ó meu povo, a minha lei. Incli-nai o ouvido às palavras de minha boca”, estão em pormos em Deus a nossa esperança, não nos esquecermos das obras de Deus, e procurarmos seus mandamentos; não nos tornemos, como seus pais, uma geração má e pro-vocadora; geração que não tem o coração reto, nem seu espírito foi fiel a Deus. A isto, portanto, essas coisas devem se referir. Tudo o que essas ações figuradamente significam pode-se realizar espiritualmente no homem; pela graça de Deus se são coisas boas, por juízo de Deus se são más, como aqueles eventos bons se realizaram nos israe-litas e os infelizes se deram neles mesmos e em seus inimigos. Não nos tornaremos como seus pais, geração má e provocadora se não nos esquecermos destes fatos, mas poremos em Deus nossa esperança, e não formos ingratos a sua graça; se o temermos sem temor servil, que só tem medo dos males corporais, mas com temor casto, que permanece pelos séculos dos séculos. Este temor considera grande castigo ser privado da luz da justiça. A terra do Egito, portanto, figura o mundo presente. Campo de Tânis é a planície do humilde mandamento. Pois, Tânis significa mandamento humilde. Neste mundo, portanto, acolhamos o mandamento humilde, a fim de que mereçamos receber no outro a exaltação prometida por quem se fez humilde por nossa causa. | |
§ 13 | 13.16 Pois, aquele que “dividiu o mar para abrir-lhes passagem, e represou as águas como num odre”, de tal forma que as ondas parassem como se estivessem represadas, pode por sua graça conter as concupiscências carnais, fluidas e escorregadias, quando o povo fiel renuncia a este mundo; seus pecados todos (seus inimigos) são apagados. Assim, pelo sacramento do batismo, o povo atravessa o mar. Quem “os guiou de dia por uma nuvem e de noite com um clarão de fogo” pode também espiritualmente guiar no caminho, se a fé clamar por ele: “Dirige os meus passos segundo a tua palavra” (Sl 118,133). Acerca disso encontra-se em outra passagem: “Aplainará o trilho sob os teus passos, e dirigirá na paz todos os teus caminhos” (Pr 4,26), por Jesus Cristo nosso Senhor. Seu mistério se manifestou neste mundo, como que de dia, através da carne, qual nuvem; no juízo, porém, como aparecerá num terror noturno, porque haverá então grande tribulação, qual fogo, que brilhará para os justos e queimará os injustos. Ele “fendeu o rochedo no deserto e deu-lhes de beber em mananciais. Da pedra fez jorrar água, que correu como um rio”, e pode, de fato, fazer jorrar da rocha espiritual que os seguia, quer dizer, Cristo, para os fiéis sedentos o dom do Espírito Santo, que é o sentido espiritual daquele acontecimento (cf 1Cor 10,4). Jesus, de pé, disse em alta voz: “Se alguém tem sede, venha a mim” E: “Quem beber da água que eu lhe darei, de seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,37; 4,14; 7,38). “Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem” (Jb, 39). O lenho da paixão tocou a Cristo, qual vara, a fim de que manasse a graça para os fiéis. | |
§ 14 | 17 E, no entanto, eles, qual “geração má e provocadora, continuaram a pecar contra ele”, isto é, a não acreditar. Este é o pecado, de que o Espírito argue o mundo, conforme se exprime o Senhor: “Do pecado, porque não crêem em mim” (Jo 16,9). “E a se revoltar contra Deus no deserto”; alguns códices trazem: “na terra árida”. Em grego é mais claro, e significa: seca. Seria a seca no deserto, ou antes a aridez em si mesmos? Apesar de beberem da água que brotara da rocha, haviam secado não as entranhas, mas as mentes, que não verdejavam com a fertilidade da justiça. Durante esta seca deviam com maior fidelidade suplicar a Deus que, assim como os saciara corporalmente, desse-lhes costumes justos. A Deus clama a alma fiel: “Meus olhos vejam a eqüidade” (Sl 16,5). | |
§ 15 | 18.20 “E tentaram a Deus nos seus corações, pedindo-lhe iguarias para suas almas”. Uma coisa é pedir com fé e outra pedir para tentar. Por isso, continua o salmista: “Falaram contra Deus: Deus será capaz de nos preparar a mesa no deserto? Ele feriu o rochedo e romperam as águas e fluíram torrentes. Mas poderia dar-nos pão e preparar a mesa para seu povo?” Como não acreditavam, pediram alimento para suas almas. Não foi assim que o apóstolo S. Tiago mandou pedir o alimento do espírito; mas admoesta a pedi-lo com fé e não tentando a Deus ou falando dele maldosamente: “Se alguém dentre vós tem falta de sabedoria, peça a Deus, que a concede generosamente a todos, sem recriminações, e ela ser-lhe-á dada, contanto que peça com fé, sem duvidar” (Tg 5.6). Não possuía tal fé aquela geração que não tinha coração reto, nem seu espírito era fiel a Deus. | |
§ 16 | 21 “Mas o Senhor ouviu e aguardou. Acendeu-se o fogo contra Jacó e inflamou-se a ira contra Israel”. O salmo expõe a qual fogo aludia. Deu à ira o nome de fogo, embora tenha mesmo um fogo queimado a muitos. Por que razão se diz: “O Senhor ouviu e aguardou?” Teria diferido a sua introdução na terra prometida, para onde eram conduzidos, pois em poucos dias teria podido realizá-la, mas por causa de seus pecacos eles deviam ser triturados no deserto, onde de fato o foram por quarenta anos? Se assim é, ele diferiu, relativamente ao povo, não propriamente aqueles que, tentando a Deus, falaram contra eles; pois todos estes pereceram no deserto, e foram seus filhos que entraram na terra prometida. Ou teria aguardado momento para o castigo, de tal modo que primeiro saciou a concupiscência do povo infiel, a fim de que não se pensasse que ele se irritou por não poder atender ao pedido daquele povo, apesar de ser tentador e detrator? “Ouviu”, portanto, “e aguardou” para se vingar. Depois, realizando aquilo que se pensara ele não pudesse fazer. “inflamou-se a ira contra Israel”. | |
§ 17 | 23.31 Enfim, brevemente expostos um e outro ponto, daqui em diante prossegue claramente a narração. “Porque não creram em Deus, nem esperaram dele a salvação”. Pois, tendo dito a razão por que o fogo acendeu-se contra Jacó e inflamou-se a ira contra Israel, a saber, “porque não creram em Deus, nem esperaram dele a salvação”, imediatamente acrescenta como foram ingratos diante de benefícios evidentes: “Do alto deu ordem às nuvens e abriu as portas do céu. Para nutri-los fez chover o maná e deu-lhes um pão do céu. O homem comeu o pão dos anjos.2 Enviou-lhes manjares abundantes. Fez soprar no céu o vento do sul e por seu poder levantou o vento da África. Sobre eles fez chover carne como pó e aves como areia do mar. Caíram em seu acampamento, ao redor de suas tendas. Eles comeram e fartaram-se; satisfez-lhes o desejo e não foram frustrados”. Eis por que aguardara. Ouçamos o que aguardara: “Estando ainda a comida em sua boca, desencadeou-se contra eles a ira de Deus”. Eis o que ele adiara. Pois, primeiro “aguardou” e depois “acendeu-se o fogo contra Jacó e inflamou-se a ira contra Israel”. Por conseguinte, adiara, para fazer primeiro o que eles haviam acreditado não lhe ser possível fazer, em seguida infligir-lhe o mal que deviam sofrer. Pois, se houvessem depositado em Deus a sua esperança, ele saciaria não somente seus desejos carnais, mas também os do espírito. Aquele, de fato, que “do alto deu ordens às nuvens e abriu as portas do céu, para nutri-los fez chover o maná e deu-lhes um pão do céu”, a fim de que “o homem comesse o pão dos anjos, e que lhes enviou manjares abundantes” para saciar os incrédulos, não é incapaz de dar aos fiéis o verdadeiro pão do céu que o maná figurava. Ele é verdadeiramente o alimento dos anjos. O Verbo de Deus os alimenta de maneira incorruptível, pois eles são incorruptíveis. A fim de que o homem comesse este pão, o Verbo se fez carne e habitou entre nós (cf Jo 1,14). É o mesmo pão que as nuvens do evangelho fazem chover em todo orbe. Abrem-se os corações dos pregadores, quais portas celestes, e o anunciam não à sinagoga que murmura e tenta, mas à Igreja que acredita e nele coloca sua esperança. Aquele que “fez soprar no céu o vento do Sul e por seu poder levantou o vento da África, e fez chover sobre eles carne como pó e aves como areia do mar; e caíram em seu acampamento, ao redor de suas tendas; eles comeram e fartaram-se; satisfez-lhes o desejo e não foram frustrados” pode de carne alimentar também os que não o tentam, mas com fé vacilante nele acreditam, emitindo palavras que atravessam o ar, como aves. Elas não provêm do norte, onde prevalecem o frio e a névoa, isto é, eloqüência aprazível ao mundo, mas quando sopra no céu o vento sul. Para onde, senão para a terra? Deste modo os pequeninos na fé, ouvindo palavras terrestres, são nutridos de maneira a captar as celestes. “Se não acreditais quando vos falo das coisas da terra, como acreditareis quando vos falar das coisas do céu”? (Jo 3,12). O Apóstolo de certo modo fora transladado do céu, aonde seu espírito fora arrebatado para junto de Deus, a fim de governar aqueles aos quais dizia: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais” (1 Cor 3,1). Pois, ali ouvira palavras inefáveis, que não é lícito repetir na terra, por sons perceptíveis (cf 2Cor 12,4), como se fossem “seres alados. Por seu poder levantou o vento da África”, isto é, levantou ventos do meio-dia, os espíritos brilhantes e ardentes dos pregadores, e isto “por seu poder”, a fim de que o vento da África não atribua a si mesmo aquilo que recebeu de Deus. Aliás, esses ventos alcançam os homens e trazem-lhes as palavras enviadas por Deus a fim de que em seu lugar e em torno de suas próprias tendas, cada qual apanhe “as aves”, e prostrem-se diante do Senhor, em seu próprio lugar, todas as ilhas das nações (cf Sf 2,11). | |
§ 18 | Mas, quanto aos infiéis, geração má e provocadora, estando ainda a comida em sua boca, “desencadeou-se contra eles a ira de Deus e matou a muitos deles”. Muitos deles, ou conforme alguns códices: “os mais robustos dentre eles”. Não encontramos isto, contudo, em alguns códi-ces gregos que temos em nosso poder. Mas se esta forma for a genuína, que entenderemos por: “os mais robustos dentre eles”, senão os que se exaltam com orgulho, acerca dos quais foi dito: “Sua iniqüidade brotará de sua abundância”? (Sl 72,7). “E prostrou o escol de Israel”. Existiam ali também eleitos, cuja fé não era diminuída pela geração má e provocadora. Foram impedidos, porém, de beneficiarem àqueles que desejavam atender com afeição paterna. Que pode dar a misericórdia humana àqueles contra os quais Deus está irado? Ou o salmista quis dizer que os eleitos estavam presos com eles, de tal sorte que os que se distinguiam pelo espírito e pela vida, suportavam os mesmos males, não somente para servirem de modelo de justiça, mas ainda de paciência? Pois, estamos cientes de que os santos foram levados ao cativeiro com os pecadores não por outro motivo, certamente, senão este, porque nos códices gregos não se encontra enepódisan que significa estar preso, mas lemos sounepódisem que seria antes estar preso em companhia de outros. | |
§ 19 | 32.22 Mas, “geração má e provocadora, apesar disto persistiram em pecar e não acreditaram em suas maravilhas. Seus dias passaram como um sopro”, ao passo que poderiam, se acreditassem, ter dias transcorridos numa verdade indefectível junto daquele a respeito do qual foi dito: “Teus anos não terminam” (Sl 101,28). “Seus dias passaram como um sopro. E rapidamente os seus anos diminuíram”. Com efeito, toda vida dos mortais é rápida, e a que parece mais longa dura pouco mais do que um sopro. | |
§ 20 | 34.35 Efetivamente, “quando os extinguia, eles o procuravam”, não por terem em vista a vida eterna, mas pelo medo de acabarem mais depressa do que um sopro. Procuravam-no, portanto, não, porém, aqueles que ele extinguira, mas os que, vendo seu exemplo, tinham medo de morrer. A Escritura se refere a eles de tal modo que parece terem procurado a Deus os que eram mortos, porque o povo era um só, e trata-se de um só corpo. “Convertiam-se e de manhã se voltavam para Deus. Lembravam-se de que Deus era o seu auxílio e o Deus Altíssimo o seu redentor”. Mas tudo isto visava à aquisição de bens temporais e à fuga de males temporais. De fato, os que procuravam a Deus tendo em mira benefícios terrenos, na verdade não procuravam a Deus, mas ambicionavam aqueles benefícios. Assim cultuavam a Deus por temor servil, e não por amor liberal. Não é deste modo que se cultua a Deus; cultua-se a quem se ama. Daí se conclui que Deus é maior e melhor do que todas as coisas e por isto há de ser amado acima de tudo para ser devidamente adorado. | |
§ 21 | 36.37 Finalmente vejamos a continuação do salmo: “Amavam-no de palavras e mentiam com a língua. Seus corações não eram sinceros, nem se mostraram fiéis à aliança com Deus”. Deus encontrava uma coisa na língua deles e outra em seu coração, porque o íntimo do homem é descoberto para ele, e vê sem dificuldade o que mais ama o homem. Com efeito, o coração é sincero para com Deus quando procura a Deus por causa dele mesmo. Na verdade, pediu ao Senhor uma só coisa e a procurou: habitar na casa do Senhor sempre, para contemplar as delícias do Senhor (cf Sl 26,4). O coração dos fiéis lhe diz: Saciar-me-ei, mas não com as panelas de carne dos egípcios, nem com os melões, pepinos, alhos e cebolas, que uma geração má e provocadora preferia até mesmo ao pão do céu, nem com o maná visível e aves (cf Ex 16,3; Nm 11,5); mas serei saciado ao se manifestar a tua glória (cf Sl 16,15). Tal é a herança do Novo Testamento, que aqueles fiéis não tiveram. Esta fé, contudo, era então velada nos escolhidos, e agora, já revelada, encontra-se em não muitos chamados: “Com efeito, muitos são chamados, mas poucos escolhidos” (Mt 22,14). Assim era a geração má e provocadora, mesmo quando parecia procurar a Deus, pois o amava de boca, mentindo com a língua; seu coração não era reto diante de Deus, amando de preferência os bens, em vista dos quais procurava o auxílio de Deus. | |
§ 22 | 38.39 “Mas ele, misericordioso, perdoará seu pecado e não os exterminará. Não se cansará de reter a sua cólera, nem se entregará inteiramente à ira. Recordou-se de que eles eram carne; sopro que passa e não volta”. Diante dessas palavras, muitos prometem a si mesmos a impunidade, devido à misericórdia divina, apesar de continuarem a ser tal como está descrita à “geração má e provocadora, que não tem o coração reto, nem seu espírito foi fiel a Deus”. Não é lícito concordar com eles. Se, portanto, para falar como eles, Deus talvez não condene nem os maus, sem dúvida não condenará os bons. Então, por que não preferimos tomar o partido que não oferece dúvida alguma? Pois, aqueles que mentem com sua língua, tendo outro desígnio no coração, julgam, de fato, e querem, quando são ameaçados com as penas eternas, que Deus esteja mentindo. Mas, enquanto eles não o enganam ao mentir, ele também não engana ao falar a verdade. Estas palavras, portanto, da Sagrada Escritura não sejam deturpadas, como perverso é o coração da geração má que se lisonjeia com elas. Este coração se deprava, mas elas continuam retas. Em primeiro lugar, elas podem ser entendidas de acordo com o que está escrito no evangelho: “Deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). Quem não vê com quanta misericórdia e paciência Deus poupa os maus! mas antes do juízo. Assim, portanto, poupou o povo hebraico, não permitindo que toda a sua ira se inflamasse para completamente o exterminar e eliminar. Evidencia-se isto nas palavras e na intercessão em favor deles da parte de Moisés, servo de Deus, a quem Deus responde: Eu os consumirei “e farei de ti uma grande nação” (Ex 32,10). Moisés intercede, disposto a perecer em lugar deles, sabendo que tratava com um Deus misericordioso, que de modo algum haveria de exterminá-los, embora os poupasse em consideração a ele. Vejamos, pois, quanto poupou, e ainda poupa. Pois, introduziu-os na terra da promissão, e manteve aquele povo até que, pela morte de Cristo, cometesse o maior dos crimes. Tendo-os tirado daquele reino, dispersou-os por todos os povos. Não os exterminou, mas o mesmo povo permanece, preservado em sua prole, como Caim que recebeu um sinal, a fim de que ninguém o matasse, isto é, perecesse inteiramente (cf Gn 4,15). Eis como se cumpriu o que foi dito: “Mas ele, misericordioso, perdoará seu pecado e não os exterminará. Não se cansará de reter a sua cólera, nem se entregará inteiramente à ira”. Se ele quisesse inflamar sua cólera até o ponto que eles mereciam, ninguém restaria daquele povo. Assim Deus, cuja misericórdia e justiça são cantadas (cf Sl 100,1), neste mundo “faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus”, e no fim do mundo, pelo juízo, pune os maus, que retira da luz eterna, nas trevas eternas. | |
§ 23 | Em seguida, para não parecermos forçar o sentido das palavras, em vez do que foi dito: “Não os exterminará”, digamos nós: Mas depois, os exterminará. A propósito do que está dito neste salmo, notemos a expressão muito usada na Sagrada Escritura, de sorte a resolver esta questão mais apurada e verdadeiramente. Sem dúvida, o salmo se refere a isto pouco mais adiante, ao lembrar o que os egípcios sofreram por causa dos hebreus, descrevendo a última praga: “Feriu todos os primogênitos na região do Egito, as primícias de todo o seu trabalho nas tendas de Cam. Retirou seu povo como ovelhas e conduziu-o qual rebanho pelo deserto. Dirigiu-os cheios de confiança sem temor e no mar sepultou seus inimigos. Guiou-os até o monte santo, monte que sua direita conquistou. E expulsou diante deles as nações. Distribuiu-lhes por sorte a terra como herança”. Se alguém levantar uma questão diante destas palavras, dizendo-nos: Como é que o salmista afirma que tudo isso lhes foi concedido, se não foram levados à terra da promissão aqueles que foram libertados do Egito, porque morreram no deserto? Que responderemos senão que se fala deles, porque o povo era o mesmo, através dos filhos, que lhes sucederam? Assim, portanto, ao ouvirmos estas coisas, principalmente porque os verbos estão no futuro: “Mas ele, misericordioso, perdoará seu pecado e não os exterminará. Não se cansará de reter a sua cólera, nem se entregará inteiramente à ira”, entendamos realizada a declaração do Apóstolo: “Assim também no tempo atual constituiu-se um resto segundo a eleição da graça”. Por isso, declara ainda: “Pergunto, então: Não teria Deus, porventura, repudiado seu povo? De modo algum! Pois eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus” (Rm 11,5.1; Fl 3,5). A Escritura, por conseguinte, previu aqueles dentre este povo que haveriam de crer em Cristo e receber a remissão dos pecados, até do máximo delito, o de matar, por loucura, o próprio médico. Daí vem especialmente a palavra: “Mas ele, misericordioso, perdoará seu pecado e não os exterminará. Não se cansará de reter a sua cólera”, uma vez que perdoou-lhes o delito de matar seu Filho único: “Nem se entregará inteiramente à ira”, porque “um resto foi salvo”. | |
§ 24 | “Recordou-se de que eles eram carne; sopro que passa e não volta”. Por isso, chamando e tendo compaixão por meio da graça, ele atraiu para junto de si aqueles que não podiam voltar por si mesmos. Como voltará a carne, sopro que passa e não volta, arrastando-a para baixo e para longe o peso de suas culpas, se não pela escolha da graça? Não se trata de recompensa pelos méritos, mas é dom gratuito a justificação do ímpio e a volta da ovelha perdida. Ela não vem por suas próprias forças, mas é carregada nos ombros do pastor. Pôde perder-se ao vagar espontaneamente, mas não pôde encontrar o caminho; de modo nenhum seria encontrada se a misericórdia do pastor não a procurasse (cf Lc 15,5). É também ovelha perdida aquele filho, que voltando a si disse: “Vou-me embora, procurar o meu pai”. Aquele que vivifica todas as coisas, por chamado e inspiração ocultos, procurou-o e ressuscitou-o. Por quem foi encontrado, a não ser por aquele que veio procurar e salvar o que estava perdido? Ele “estava morto e tornou a viver: ele estava perdido e foi reencontrado”? (Lc 15,18.24; 19,10). Com isto resolve-se uma questão difícil, a de estar escrito no livro dos Provérbios, ao aludir a Escritura ao caminho da iniqüidade: “Os que ali entram não retornam” (Pr 2,19). Exprime-se de tal modo que parece necessário perder a esperança acerca de todos os iníquos. De fato, a Escritura recomenda a graça, porque o homem pode por si mesmo seguir o caminho do mal, mas não pode por si mesmo voltar, a não ser que a graça o traga de volta. | |
§ 25 | 40-51 Estes malvados, portanto, e provocadores “quantas vezes o provocaram no deserto e irritaram-no na terra árida! Recomeçaram a tentar a Deus e a encolerizar o santo de Israel”. Reitera a menção à infidelidade deles, mais acima relatada; mas o motivo da repetição está em relembrar as pragas do Egito, infligidas por causa dos israelitas. Deviam ser rememoradas para que eles não fossem ingratos. Enfim, como prossegue? “Não se lembraram do seu poder, no dia em que os livrou da mão do opressor”. E o salmista começa a enumerar o que Deus fez aos egípcios: “Quando operou os seus sinais no Egito e os seus prodígios na planície de Tânis. E converteu em sangue os seus rios e as chuvas, para que eles não bebessem”, ou antes, “suas águas que manam”, conforme alguns preferem ler o texto grego: tà ombrémata que em latim se denominam fontes, águas que jorram da terra. Pois, os egípcios cavavam e encontravam sangue em vez de água. “Enviou moscas para devorá-los e rãs que infestaram a terra. Abandonou suas colheitas às pragas e os produtos de seu trabalho aos gafanhotos. Arrazou as suas vinhas com granizo e suas figueiras com a geada. Extinguiu o gado com a saraiva e com fogo suas propriedades. Descarregou contra eles o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, uma legião de ministros da desgraça. Deu razão a sua ira. Não os preservou da morte. Entregou à peste os seus animais. Feriu todos os primogênitos da terra do Egito, as primícias de todo o seu trabalho nas tendas de Cam”. | |
§ 26 | Todas essas pragas do Egito podem ser interpretadas alegoricamente, conforme cada um entender ou quiser compará-las com os fatos a que se referem. É o que também nós tentaremos fazer; nós o executaremos tanto melhor quanto maior for o auxílio divino. Impele-nos a isto as palavras deste salmo: “Abrirei a minha boca em parábolas. Falarei de proposições desde o início”. Esta é a razão por que narram-se aqui eventos que de forma alguma lemos ter sucedido aos egípcios, embora todas as pragas que os atingiram estejam descritas por ordem com muitas minúcias no livro do Êxodo. Em conseqüência disto, tudo o que lá não foi descrito, estejamos certos de que não foi inutilmente dito no presente salmo. Somente no sentido figurado podemos interpretá-lo. Simultaneamente compreendamos ter sido em sentido figurado que foram realizados ou escritos os fatos restantes, que consta terem acontecido. A Escritura assim procede em muitas passagens das profecias. Profere algo que não se encontra naquele feito comemorado, ou até se encontra coisa bem diversa, a fim de que se perceba que não quer dizer o que pode aparentar, e sim o que antes se deve notar, como, por exemplo, no versículo de outro salmo: “E dominará de um a outro mar e desde o rio até os confins da terra” (Sl 71,8). Consta que isto não se cumpriu no reinado de Salomão; pode-se supor que este salmo é relativo a ele, mas, de fato, se refere a Cristo Senhor. Nas pragas do Egito, enumeradas no livro do Êxodo, onde a Escritura cuidou especialmente de narrar por odem todos os castigos que os afligiram, não se encontra o que traz este salmo: “Abandonou suas colheitas à praga da ferrugem”. Igualmente, tendo dito: “Extinguiu o gado com a saraiva”, acrescentou: “e com o fogo as suas propriedades”. Quanto aos animais mortos pela saraiva, lê-se no Êxodo, mas absolutamente não se lê que suas propriedades tenham se incendiado. Apesar de que habitualmente o granizo venha acompanhado de ruídos e raios, e também os trovões vêm com relâmpagos, contudo não está escrito que tenha havido incêndio. Quanto à erva rasteira que o granizo não pudera prejudicar, não se disse que foi batida, isto é, atacada com golpes duros; ela foi posteriormente comida pelos gafanhotos. De igual modo, as “suas figueiras com a geada”, não se vê no Êxodo. A geada é muito diferente do granizo, pois a geada branqueia a terra nas noites serenas do inverno. 1 Cf Hier. Liber interpret. hebr. nom. 2 Os versículos 24 e 25 foram explicados mais acima, no Com. ao Sl 33, s. 1, nº 6. | |
§ 27 | Quem explanar o salmo diga o que tudo significa, como puder; julgue o leitor e o ouvinte, como é justo. A água que se converteu em sangue, a meu ver, significa o pensar carnalmente a respeito das causas das coisas. As moscas são os costumes semelhantes aos dos cães, que ao nascerem não vêem nem os pais. As rãs representam a loquacidade unida à vaidade. A praga da ferrugem rói ocultamente; alguns traduziram por canícula. Comparam-se a este mal de preferência os vícios que aparecem dificilmente, como, por exemplo, o vício de confiar demais em si mesmo. Os ventos prejudicam se atuam ocultamente nos frutos, como a soberba escondida nos bons costumes, quando alguém pensa que é alguma coisa, mas nada é. O gafanhoto figura a iniqüidade que fere com a boca, a saber, com um testemunho falso. Granizo é a iniqüidade que rouba o bem alheio; dela provêm os furtos, as rapinas, as depredações. Mas, este vício a ninguém mais devasta do que ao próprio devastador. A geada significa o vício que esfria a caridade para com o próximo com as trevas da insensatez, esse gélido frio noturno. Quanto ao fogo, porém, se não se trata daquele lembrado aqui, o que vinha das nuvens, raios junto com o granizo, conforme diz o salmo: “E com fogo as suas propriedades”, onde ele foi aceso, não está escrito; parece-me que significa a crueldade da raiva, com a qual se pode até cometer homicídio. Pela morte do rebanho é figurada, a meu ver, a perda do pudor. De fato, temos em comum com os animais a concupiscência, que acompanha a origem dos fetos. A virtude da pudicícia a doma e ordena. A morte dos primogênitos é a perda da própria justiça, que possibilita a vida social. Mas, quer sejam tais os significados dessas figuras, quer haja um sentido melhor, quem não perceberá que são dez as pragas infligidas aos egípcios e dez são os preceitos inscritos nas tábuas que regem o povo de Deus? Uma vez que em outra obra1 comparamos em contraposição as pragas e os mandamentos, não precisamos onerar a explicação deste salmo com esta questão. Basta que notemos serem citadas aqui também, embora não na mesma, as dez pragas do Egito. Relativamente às três que se encontram no Êxodo e não aqui, a saber, os mosquitos, as úlceras e as trevas (cf Ex 8,17; 9,10; 10,22), são mencionadas outras três que lá não constam, isto é, a praga da ferrugem, a geada e o fogo, não dos relâmpagos, mas o que consumiu suas propriedades, e que ali não se lê. | |
§ 28 | Suficientemente aqui está expresso que estas pragas foram infligidas por juízo de Deus, através de anjos maus, a este mundo maligno, quais outros Egito e planície de Tânis, onde devemos ser humildes, até vir o mundo futuro onde mereceremos ser exaltados devido a nossa humildade. Pois, Egito na língua hebraica significa trevas ou tribulações de Tânis, conforme relembrei, mandamento humilde. Não passemos por alto, terem sido intercalados neste salmo os anjos maus entre as pragas; “Descarregou contra eles o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, intervenção de anjos maus”. Nenhum dos fiéis ignora que existam o diabo e seus anjos, de fato tão malvados que lhes está preparado o fogo eterno; mas que o Senhor Deus utilize a intervenção deles junto de alguns, dignos de tal castigo, parece duro aos menos capazes de pensar como a suprema justiça de Deus usa bem até dos maus. No atinente a sua substância, quem a criou senão ele? Mas ele não os fez maus; sendo bom, utiliza-os bem, isto é, conveniente e justamente, da mesma forma que, em sentido contrário, os iníquos usam mal de suas criaturas boas. Por conseguinte, Deus emprega os anjos maus não somente para punir os maus, como vimos nestes acontecimentos narrados pelo salmo, ou como contra o rei Acab, a quem o espírito de mentira, por vontade de Deus, seduziu para que caísse na guerra (cf 1Rs 22,22), mas ainda para provar e manifestar os bons, conforme sucedeu a Jó. Quanto à matéria corporal dos elementos visíveis, penso que podem utilizá-la tanto os anjos bons, quanto os maus, na medida do poder de cada um; igualmente os homens bons e maus a utilizam, quanto é possível à fraqueza humana. Pois, empregamos a terra, a água, o ar, o fogo não somente no necessário a nosso sustento, mas também em muitas coisas supér- fluas, recreativas e em admiráveis obras de arte. Efetivamente, ao se trabalhar com arte esses elementos, modificam-se inumeráveis objetos, denominados mecsanémata. Mas em tudo isso, o poder dos anjos, bons e maus, é muito maior, especialmente o dos bons; mas, somente quanto, por seu sinal ou ordem, Deus manda ou permite, como acontece também conosco. Também nós não podemos agir sobre eles na medida que queremos. Lemos num livro da Escritura, digno de fé, que o diabo pôde enviar fogo do céu para consumir com admirável e horrível violência o numeroso rebanho do santo varão Jó; nenhum dos fiéis talvez ousaria atribuí-lo ao diabo, não fosse a autoridade da Sagrada Escritura. Mas aquele varão, por dom de Deus justo forte e piedoso, não disse: O Senhor deu o diabo tirou, mas: “O Senhor deu, o Senhor tirou” (cf Jó 1,16.21). Estava bem ciente de que o diabo não faria o que tinha podido fazer a estes elementos e não ao servo de Deus, a não ser o que o Senhor quisesse e permitisse. Ele confundia a malícia do diabo, porque sabia quem usaria dela para prová-lo. Opera o diabo, contudo, nos filhos da desobediência (cf Ef 2,2), como em seus escravos, da mesma forma que os homens atuam sobre os animais; contudo, operam somente enquanto lhes permite o justo juízo de Deus. Mas é bem diferente quando um poder maior proíbe que ele use de seu poder, conforme lhe apraz, até no trato com os seus; e quando lhe é dado poder contra os que lhe são alheios. O homem também faz o que quer de seu animal, conforme entende; mas não fará nem isto, se um poder maior o proibir; para tratar assim um animal que pertence a outrem, espera que este lhe conceda faculdade para tal. Lá, portanto, é impedido o poder que existia; aqui se dá o que não existia. | |
§ 29 | Sendo assim, se Deus infligiu aos egípcios aquelas pragas, através de anjos maus, ousaremos dizer que os mesmos anjos converteram a água em sangue e que as rãs os infestaram por ação dos mesmos anjos, tendo podido os magos do faraó produzir coisas semelhantes com seus artifícios? Assim os anjos maus estariam presentes nos dois casos, aqui afligindo, ali enganando, segundo o juízo e o plano do Deus justo e onipotente, que utiliza com justiça até mesmo a malícia dos iníquos? Não ouso afirmá-lo (cf Ex 7,20.22; 8,6.7.17.18). Qual o motivo por que os magos do faraó não conseguiram produzir os mosquitos? Seria porque não foi isto permitido aos anjos maus? Ou seria mais verdade dizer que a causa é oculta e transcende as forças de nosso raciocínio? Pois se pensarmos que Deus realizou isto através dos anjos maus porque se tratava de infligir penas e não de prestar benefícios, como se Deus não castigasse por intermédio dos anjos bons, mas empregasse os outros como carrascos do exército celeste, seria consentâneo crer que Sodoma foi destruída por meio dos anjos maus, e opinar que Abraão e Lot receberam como hóspedes também anjos maus; longe de nós pensar assim, de modo contrário à clareza da narração das Escrituras (cf Gn 18,19). Evidencia-se, portanto, que tais coisas podem acontecer aos homens por intermédio de anjos bons ou maus. Ignoro o que ou quando se realizam convenientemente. Não o ignora aquele que assim age, nem aquele a quem ele quiser revelar. Toda-via, na medida que a Sagrada Escritura orienta nossos esforços, lemos que os maus são castigados também por meio de anjos bons, como no caso dos sodomitas, e através de anjos maus, como no caso dos egípcios. Quanto aos justos, não me ocorre que tenham sido experimentados e provados com penas corporais, por meio de anjos bons. | |
§ 30 | No que toca à presente passagem deste salmo, se não ousamos atribuir aos maus anjos os prodígios realizados nas criaturas, temos o que lhes atribui, sem dúvida alguma: as mortes dos animais, as mortes dos primogênitos e o pior de tudo, a que se prendem todos esses eventos, o endurecimento de seu coração, não querendo permitir a saída do povo de Deus. Não se diz que Deus é o autor desta tão iníqua e maligna obstinação, instigando e inspirando, mas abandonando-os faz com que se opere nos filhos da desobediência o que Deus devida e justamente permite (cf Ex 4,21; Ef 2,2). Pois, assim se explica a palavra do profeta Isaías: “Senhor tu te irritaste contra nós e, com efeito, nós pecamos; por isso erramos e nos tornamos como seres imundos” (Is 64,4). Precedeu um fato, em vista do qual Deus irado em sua justiça, retira suas luzes, de sorte que a cegueira da humana mente, desviando do caminho da justiça, se fizesse errante e incidisse em pecados que por nenhum pretexto podem se desculpar como se não fossem pecados. Acredita-se com justeza que Deus tenha obrado por intermédio dos anjos maus o que em outro salmo está escrito a respeito dos egípcios, a saber, que Deus mudou-lhes o coração para detestarem o seu povo e empregarem dolo contra os seus servos (cf Sl 104,25), de tal modo que suas já viciadas mentes de filhos da incredulidade, por meio daqueles anjos afins com os vícios, fossem excitadas ao ódio contra o povo de Deus, e aqueles prodígios acontecessem em seguida para atemorizar e corrigir os bons. Com toda razão se acredita que mesmo aqueles costumes viciosos, representados por estas pragas materiais, e a respeito dos quais foi dito acima: “Abrirei a minha boca em parábolas”, são incitados pelos anjos maus naqueles que lhes estão sujeitos, por efeito da justiça de Deus. Ao se realizar o que declara o Apóstolo: “Deus os entregou, segundo o desejo de seus corações, à impureza” (Rm 1,24), os anjos maus lidam com o material peculiar a suas obras e se regozijam com isto. Com toda justiça a malícia humana lhes está sujeita, à exceção daqueles que a graça liberta. Quem é capaz disso? (cf 2Cor 2,10). Por isso, após ter dito: “Descarregou contra eles o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, intervenção de anjos maus”, acrescentou: “Deu vazão a sua ira”. Quem terá engenho suficiente para penetrar o sentido das frases, entendendo e apreendendo a sentença que se esconde tão profundamente? Foi numa vazão da cólera de Deus que foi punida a impiedade dos egípcios por uma justiça oculta. Deu vazão à ira de tal maneira que retirando os seus crimes de seus esconderijos para a publicidade, por meio dos anjos maus, castigasse manifestamente os ímpios declarados. Somente a graça de Deus pode libertar o homem do poder dos anjos maus. Dela trata o Apóstolo: “Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado” (Cl 1,13). Deste fato era figura o povo hebraico, ao ser libertado do poder dos egípcios e ser transladado ao reino da terra prometida, onde corria leite e mel, o que significa a suavidade da graça. | |
§ 31 | 52.53 Após a citação das pragas do Egito o salmo prossegue: “Retirou seu povo como ovelhas e conduziu-o qual rebanho pelo deserto. Dirigiu-os cheios de confiança, sem temor e no mar sepultou seus inimigos”. Realiza-se isto tanto melhor quanto mais intimamente. É assim que somos transferidos do poder das trevas para o reino de Deus, e nas pastagens espirituais somos ovelhas de Deus, que caminham neste mundo como num deserto, porque nossa fé não é evidente para os outros; daí a afirmação do Apóstolo: “A vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Somos conduzidos, porém, na esperança, porque “fomos salvos em esperança” (Rm 8,24) e não devemos temer; pois, “se Deus está conosco, quem estará contra nós”? (Rm 8,31). Ele sepultou no mar os nossos inimigos; aboliu no batismo nossos pecados, perdoando-os. | |
§ 32 | 54 Em seguida, diz: “guiou-os até o monte santo”. Quanto melhor à santa Igreja? “Monte que sua direita conquistou”. Quão mais sublime a Igreja adquirida por Cristo, do qual foi dito: “A quem se revelou o braço do Senhor”? (Is 53,1). “E expulsou diante deles as nações”, e diante de seus fiéis. De certo modo são nações os espíritos malignos dos erros pagãos. “Distribuiu-lhes por sorte a terra como herança. Em nós isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz” (1 Cor 12,11). | |
§ 33 | 55-58 “Fez habitar em suas tendas as tribos de Israel”. Nas tendas das nações fez habitar as tribos de Israel. A meu ver, esta passagem se explica melhor no sentido espiritual, de sorte que somos elevados pela graça de Cristo à glória celeste, de onde os anjos, ao pecarem, foram expulsos e lançados fora. Pois, os componentes daquela “geração má e provocadora”, uma vez que diante destes benefícios materiais não tiravam a antiga veste, “ainda tentaram a Deus e exasperaram o Deus Altíssimo e não observaram os seus preceitos. Transviaram-se e foram rebeldes ao pacto, como seus pais”. Haviam feito certo pacto e acordo: “Tudo o que o Senhor nosso Deus disse, nós o faremos e ouviremos” (Ex 19,8). É bom notar o que foi dito: “como seus pais”, uma vez que o texto de todo o salmo parece referir-se aos mesmo homens, e contudo aqui se vê que se trata daqueles que já estavam na terra prometida, sendo denominados seus pais aqueles que no deserto provocaram o Senhor. | |
§ 34 | “Desviaram-se como um arco péssimo”, ou como trazem alguns códices: “arco enganador”. O sentido da frase torna-se claro no versículo seguinte: “Incitaram-no à ira em seus lugares altos”. Quer dizer que eles caíram na ido-latria. “Arco enganador”, portanto, não a favor mas con-tra o nome do Senhor, que ordenou ao mesmo povo: “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3). O arco representa a intenção do espírito. Enfim, expõe mais claramente a questão: “Moveram-no ao zelo com seus ídolos”. | |
§ 35 | 59.60 “Deus ouviu e indignou-se contra eles, isto é, percebeu e castigou, e reduziu a nada Israel”. Que restou deles quando Deus os rejeitou, se com o auxílio de Deus foram o que foram? Efetivamente, comemora-se aquilo que aconteceu quando os israelitas foram vencidos pelos filisteus no tempo do sacerdote Heli, e a arca do Senhor foi aprisionada, tendo sido enorme a devastação (cf 1Rs 4,10.11). Este o sentido do versículo: “Abandonou o taberná-culo de Silo. A tenda onde residia entre os homens”. Expôs com elegância o motivo de ter o Senhor rejeitado seu tabernáculo, nos seguintes termos: “Onde residia entre os homens”. Se eles não eram dignos desta moradia do Senhor, por que não haveria de rejeitar o tabernáculo, que não estabelecera por sua causa, mas em favor daqueles que o Senhor já julgara indignos de tê-lo a morar entre eles? | |
§ 36 | 61 “Entregou ao cativeiro a sua força e a sua glória às mãos do inimigo”. Denomina o salmista força e glória deles a arca, que eles supunham torná-los invictos e disso se gloriavam. Posteriormente, enfim, o profeta atemoriza os que viviam mal e ao mesmo tempo se gloriavam do templo do Senhor, dizendo: “Vede o que fiz de Silo, onde estava meu tabernáculo” (cf Jr 7,12). | |
§ 37 | 62.63 “Abandonou à espada o seu povo e indignou-se contra a sua herança. O fogo devorou os seus jovens”, isto é, a sua ira. “E suas virgens não foram choradas”. O medo do inimigo não o permitia. | |
§ 38 | 64 “Seus sacerdotes pereceram pelo gládio e suas viú-vas não entoaram lamentações”. Os filhos de Heli caíram, prostrados pelo gládio e a viúva de um deles, que logo morreu de parto, em sua aflição não pôde prestar ao defunto a honra dos funerais (cf 1Rs 4,19.20). | |
§ 39 | 65 “E o Senhor se despertou como de um sonho”. Ele aparenta dormir quando entrega seu povo às mãos daqueles que os odeiam e que lhes perguntam: “Onde está o teu Deus”? (Sl 41,11). “Despertou como de um sonho, como um guerreiro dominado pelo vinho”. Ninguém ousaria dizer tal a respeito de Deus, a não ser o seu Espírito. Pois, o salmista fala, como opinam os ímpios blasfemadores, que ele dorme como um ébrio, quando não socorre tão depressa como supõem os homens. | |
§ 40 | 66 “E feriu pelas costas os inimigos”, aqueles que se regozijavam por terem podido cativar a arca; pois foram feridos em seus assentos. Seu castigo, a meu ver, assinala os que atormentarão aqueles que olharem para trás. Essas coisas, como diz o Apóstolo, devem ser consideradas como esterco (cf 1Rs 5,6; Fl 3,8). De fato, os que aceitam o testamento de Deus, sem se despojarem das antigas vaidades, tornam-se semelhantes aos inimigos do povo de Deus que colocaram a arca da aliança, que haviam tomado, junto de seus ídolos. Mas aqueles ídolos antigos, mesmo contra a vontade deles, caem, porque “toda carne é feno e toda a sua graça como a flor do feno. Seca o feno e murcha a flor: a arca do Senhor, porém, subsiste para sempre” (Is 40,6-8), quer dizer, o segredo do testamento, o reino dos céus, onde se encontra a eterna “Palavra de Deus”. Mas aqueles que amaram as coisas que ficaram para trás, por causa delas serão atormentados com toda justiça: “Infligiu-lhes vergonha sempiterna”. | |
§ 41 | 67.68 “Rejeitou o tabernáculo de José e não escolheu a tribo de Efraim. Mas escolheu a tribo de Judá”. O salmista não disse: Rejeitou o tabernáculo de Rubem, o primogênito de Jacó; nem daqueles que nasceram em seguida, antes de Judá, de tal forma que estes tenham sido repelidos, não escolhidos, e tenha sido eleita a tribo de Judá. Poder-se-ia com razão dizer que eles foram repelidos, porque nas bênçãos outorgadas por Jacó a seus filhos, ele profundamente detesta os pecados deles, embora entre eles a tribo de Levi tenha-se tornado a tribo sacerdotal, da qual se originou Moisés (cf Gn 49,1-7; Ex 2,1). Também não disse: Rejeitou o tabernáculo de Benjamim; ou: Não escolheu a tribo de Benjamim, da qual teve início o reinado, pois dela foi escolhido Saul (1Rs 9,1.2). Depois, devido à época próxima, quando após ter sido Saul repelido e rejeitado, foi escolhido Davi (1Rs 16,1.13), conviria assim falar; no entanto, isso não foi dito, mas foram nomeados principalmente os que pareciam sobressair-se por méritos mais evidentes. Pois, José alimentou no Egito a seus pais e a seus irmãos. Impiamente vendido, foi exaltado com toda justiça devido ao mérito de sua castidade e sabedoria (Gn 41,40). Efraim, em vista da bênção de seu avô Jacó foi preferido a seu irmão mais velho (cf Gn 48,19). Todavia, Deus “rejeitou o tabernáculo de José e não escolheu a tribo de Efraim”. Com a menção destes ilustres nomes, que entendemos senão aquele povo todo, repelido e reprovado em vista da antiga ambição de pedir ao Senhor prêmios terrenos, enquanto a tribo de Judá, foi escolhida, mas não por causa dos méritos do próprio Judá? Com efeito, os méritos de José são muito maiores; mas citando a tribo de Judá, uma vez que dela se originou o Cristo segundo a carne, a Escritura atesta (isto é, o Senhor abre em parábolas a sua boca), que o novo povo cristão foi preferido ao antigo povo. Daí vem a seqüência: “o monte de Sião que muito amou”, aplicável antes à Igreja de Cristo, que adora a Deus, não tendo em vista os benefícios carnais do tempo presente, mas contemplando de longe com os olhos da fé os futuros prêmios eternos; pois Sião se traduz por contemplação. | |
§ 42 | 69 Em seguida vem: “E edificou como o dos unicórnios seu santuário (sanctificationem)” ou, conforme alguns tradutores, o neologismo: “sanctificium”. O sentido correto de unicórnios seria: aqueles cuja firme esperança se ancora naquele único bem, mencionado em outro salmo: “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei” (Sl 26,4). Santuário de Deus, porém, segundo o Apóstolo Pedro, entende-se que é “a nação santa, o sacerdócio real” (1Pd 2,9). Quanto à continuação: “Estável como a terra eternamente”, os códices têm eis tòn aiona. À escolha dos tradutores, é possível verter: “eternamente ou pelos séculos (seculum)”, porque significa ambas as coisas; por isso, nos códices latinos encontra-se uma ou outra expressão. Alguns têm no plural: “pelos séculos (saecula)”. Não encontramos no plural, nos códices gregos que possuímos. Qual dos fiéis, de fato, duvidará de que a Igreja, apesar de saírem uns e outros entrarem, passa de maneira mortal por esta vida, contudo está fundamentada eternamente? | |
§ 43 | 70.71 “Escolheu Davi, seu servo”. Escolheu, portanto, a tribo de Judá por causa de Davi; Davi por causa de Cristo; por conseguinte, a tribo de Judá por causa de Cristo. À sua passagem clamaram os cegos: “Filho de Davi, tem compaixão de nós”; e logo, por ação de sua misericórdia, eles receberam a vista, porque gritavam uma verdade (Mt 20,30.34). O Apóstolo não o afirma de passagem, mas cuidadosamente o relembra, escrevendo a Timóteo: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi, segundo o meu evangelho, pelo qual eu sofro, até às cadeias, como malfeitor. Mas a palavra de Deus não está algemada” (2 Tm 2,8.9). O Salvador, por conseguinte, segundo a carne era da descendência de Davi; figura neste lugar sob o nome de Davi. O Senhor abre em parábolas a sua boca. Não é de admirar que tendo dito: “Escolheu Davi”, assinalando a Cristo, acrescentou: “seu servo” e não: seu filho. Ao invés, reconheçamos aqui não a substância do Unigênito coeterna ao Pai, mas a condição de servo, recebida da descendência de Davi. | |
§ 44 | “Tirou-o do aprisco das ovelhas, tomou-o do meio das que aleitavam, para apascentar a seu servo Jacó e Israel, sua herança”. Efetivamente, aquele Davi, de cuja descendência é Cristo segundo a carne, foi transferido do ofício de pastor de ovelhas ao de rei entre homens. Nosso Davi, porém, o próprio Jesus transladou-se de homens a outros homens, dos judeus aos gentios; no entanto, segundo a parábola, foi tirado dentre as ovelhas e transladado a outras ovelhas. Agora, pois, não existem naquela terra igrejas da Judéia em Cristo. Pouco depois da paixão e ressurreição de nosso Senhor existiam igrejas de circuncisos ali. Sobre elas diz o Apóstolo: “Eu era desconhecido às igrejas da Judéia que estão em Cristo. Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia, agora evangeliza a fé que antes devastava, e por minha causa glorificavam a Deus” (Gl 1,22-24). Ali aquelas igrejas dos circuncisos não existem mais; deste modo, na Judéia atual Cristo não se acha, foi afastado dali; agora ali apascentam os rebanhos dos gentios. Com efeito, foi tomado “do meio das que aleitavam”. Elas antes eram tais quais descreve o Cântico dos cânticos: a Igreja unida que consta de muitos membros, isto é, um rebanho cujos membros são muitos rebanhos. Destes rebanhos se diz ali: “Teus dentes”, que te ajudam a falar, ou a mastigar para teu corpo assimilar alimentos, têm este sentido: “teus dentes, um rebanho tosquiado, que sobe após o banho. Cada ovelha com seus gêmeos; nenhuma delas sem cria” (Ct 4,2). Foram tosquiadas dos encargos deste mundo, quando venderam seus bens e depositaram aos pés dos apóstolos o preço da venda (cf At 2,25; 4,34), subindo daquele banho, acerca do qual os admoesta o apóstolo Pedro, quando estavam preocupados por terem derramado o sangue de Cristo: “Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado em nome do Senhor Jesus Cristo, e serão perdoados os vossos pecados” (At 2,38). Tiveram dois gêmeos, a saber, as obras correspondentes aos dois mandamentos sobre a dupla caridade, o amor a Deus e ao próximo; por isso não havia estéril entre eles. Nosso Davi, tirado do meio das ovelhas que aleitavam, agora apascenta outros rebanhos, os dos gentios, também eles Jacó e Israel. Assim efetivamente foi dito: “Para apascentar o seu servo Jacó e Israel, sua herança”. Não são alheias àquela descendência, isto é, a Jacó e a Israel, estas ovelhas por serem provenientes dos gentios. Constituem a descendência de Abraão, a descendência da promessa, a repeito da qual declarou o Senhor a Abraão: “É por Isaac que uma descendência perpetuará o teu nome” (Gn 21,12). O Apóstolo explicita esta afirmação: “Não são os filhos da carne, mas são os filhos da promessa que são tidos como descendentes” (Rm 9,8). Provinham dos gentios os fiéis aos quais se dirigia o Apóstolo: “E se vós sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa? (Gl 3,29). Quanto à locução: “Seu servo Jacó e Israel, sua herança”, segundo seu costume, a Escritura repete a mesma sentença. A não ser que alguém queira distinguir assim: no tempo atual Jacó serve, mas receberá a eterna herança de Deus ao contemplar a Deus face a face, de cuja visão deriva o nome de Israel. | |
§ 45 | 72 “E os apascentou na inocência de seu coração”. Quem mais inocente do que aquele que não cometeu pecado algum? Não somente não foi vencido pelo pecado, mas não tinha pecado a vencer. “E conduziu-os na inteligência de suas mãos”, ou como em alguns códices: “nas inteligências de suas mãos”. Opinaria alguém ser mais conveniente dizer: Na inocência de suas mãos e na inteligência do coração. O salmista, porém, sabia melhor que ninguém como se exprimir; preferiu unir inocência ao coração e inteligência às mãos. Talvez seja, quanto posso julgar, que muitos se consideram inocentes porque não praticam o mal que fariam se não fosse o medo do castigo; gostariam de fazê-lo, mas impunemente. Esses tais podem aparentar inocência de suas mãos, não, contudo, do coração. Que inocência é esta, de que valor, se não vem do coração, onde se acha a imagem de Deus, segundo o qual o homem foi criado? Quanto aos termos: “No intelecto”, ou na inteligência “de suas mãos conduziu-os”, a meu ver, refere-se à inteligência que ele confere aos fiéis e por isso: “de suas mãos”. O fazer liga-se às mãos. É possível entender-se aqui: as mãos de Deus, porque Cristo é homem, mas também Deus. O rei Davi, de cuja descendência é Cristo, certamente não podia fazer isto no meio do povo, sobre o qual reinava como homem; mas realiza-o aquele, ao qual a alma fiel pode dizer com razão: “Dá-me inteligência e perscrutarei a tua lei” (Sl 118,34). Por conseguinte, submetamo-nos pela fé às suas mãos para não suceder que dele nos desviemos, por confiarmos em nosso entendimento, como se proviesse de nós mesmos. Realize ele em nós o seguinte: que a inteligência de suas mãos nos conduza, após libertar-nos do erro e nos faça chegar aonde nenhum erro é mais possível. Tal é o fruto que colhe o povo de Deus, atento à sua lei, com os ouvidos inclinados às palavras de sua boca: ter o coração reto e o espírito fiel a Deus, a fim de não se transformar numa geração má e provocadora. Mas, depois de ouvir todas essas mensagens, deposite sua esperança em Deus, não só durante a presente vida, mas também tendo em vista a eterna, não apenas para receber os prêmios às boas obras, mas ainda para praticar essas mesmas boas obras. 1 Cf Sermo de decem plagis et praeceptis, de Sto. Agostinho, PL 38,67 ss ou ed. emendada de G. Morin, Sermones post Maurinos reperti; pp. 169 ss. | |