SALMO 𝟟𝟞

Glorioso és tu, mais majestoso do que os montes eternos.

Os ousados de coração foram despojados; dormiram o seu último sono; nenhum dos homens de força pôde usar as mãos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 76


§ 76:1  Ƈ Conhecido é Deus em Judá, grande é o seu nome em Israel.

§ 76:2  Em Salém está a sua tenda, e a sua morada em Sião.

§ 76:3  Ali quebrou ele as flechas do arco, o escudo, a espada, e a guerra.

§ 76:4  ʛ Glorioso és tu, mais majestoso do que os montes eternos.

§ 76:5  Os ousados de coração foram despojados; dormiram o seu último sono; nenhum dos homens de força pôde usar as mãos.

§ 76:6  A tua repreensão, ó Deus de Jacó, cavaleiros e cavalos ficaram estirados sem sentidos.

§ 76:7  Ŧ Tu, sim, tu és tremendo; e quem subsistirá à tua vista, quando te irares?

§ 76:8  Ɗ Desde o céu fizeste ouvir o teu juízo; a terra tremeu e se aquietou,

§ 76:9  ɋ quando Deus se levantou para julgar, para salvar a todos os mansos da terra.

§ 76:10  Ɲ Na verdade a cólera do homem redundará em teu louvor, e do restante da cólera tu te cingirás.

§ 76:11  Ƒ Fazei votos, e pagai-os ao Senhor, vosso Deus; tragam presentes, os que estão em redor dele, àquele que deve ser temido.

§ 76:12  Ele ceifará o espírito dos príncipes; é tremendo para com os reis da terra.


O SALMO 76



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 No limiar deste salmo acha-se a inscrição:

Para o fim, em favor de Iditun, salmo. De Asaf”.

Sabeis o significado de:

Para o fim. Porque o fim da Lei é Cristo para justificação de todo o que crê(Rm 10,4).

Iditun significa aquele que atravessa. Asaf significa assembléia. Portanto, fala aqui a assembléia que atravessa, a fim de chegar ao fim que é Cristo Jesus. O texto do próprio salmo nos demonstra quais os obstáculos a atravessar, a fim de alcançarmos o fim, onde já não teremos o que ultrapassar. Pois, por muito tempo devemos ultrapassar tudo o que nos impede, nos enlaça, nos prende com visco, e deprime pesadamente nosso vôo, até que cheguemos àquilo que nos basta, além do qual nada há, sob o qual se encontram todas as coisas, e do qual tudo provém. Filipe queria ver o próprio Pai, e dizia ao Senhor Jesus Cristo:

Mostra-nos o Pai e isto nos basta”.

Parecia que haveria de ultrapassar por muito tempo tudo o mais, até chegar ao Pai, onde com segurança contemplaria e nada além teria a procurar; é isto que quer dizer:

Basta”.

Com efeito, aquele que afirmara com toda verdade:

Eu e o Pai somos um(Jo 10,30), advertiu a Filipe e ensinou a todo homem que entenda quem é o Cristo a ver nele seu fim, porque ele e o Pai são um. Disse:

Há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces? Filipe, quem me viu, viu o Pai(Jo 14,8.9).

Todo aquele, portanto, que quiser apreender, imitar e seguir o sentido deste salmo, ultrapasse todos os desejos carnais, calque aos pés toda a pompa e prazeres deste mundo e não se proponha repousar senão naquele do qual tudo provém. Em tudo isso ele labuta até chegar ao fim. Que nos indica, pois, este homem que ultrapassa?



§ 2
2 “Elevei a minha voz ao Senhor e clamei”.

Mas, muitos clamam ao Senhor, tendo em vista adquirir rique-zas, evitar danos, obter a saúde para os seus, a estabilidade de sua casa, a felicidade temporal, as dignidades mundanas; enfim, a própria saúde corporal, que é o patrimônio do pobre. São muitos os que clamam ao Senhor para obter tais coisas; raros os que pedem o próprio Senhor. É fácil, de fato, para o homem, desejar alcançar alguma coisa do Senhor, e não almejar o próprio Senhor; como se fosse possível ser mais agradável o dom do que o próprio doador. Quem, portanto, clama ao Senhor para conseguir alguma coisa, ainda não ultrapassou. Aquele que ultrapassa, o que diz? “Elevei a minha voz ao Senhor”.

A fim de não pensares que o salmista eleva a voz ao Senhor visando a outra coisa do que ele mesmo, continua:

Ele-vei a minha voz a Deus”.

Emite-se um som para clamar a Deus, e no entanto visa a outra coisa, e não a Deus. Clama-se, tendo em vista o motivo da emissão da voz. Quem, porém, amava a Deus gratuitamente, e que de bom grado sacrificava a Deus (Sl 53,8), que ultrapassara tudo o que lhe é inferior, e nada vira acima de si a que apegar-se a sua alma, a não ser aquele de quem, por quem, em quem fora criado, e a quem clamara a sua alma, a este dirigira a sua voz:

Elevei a minha voz a Deus”.

Acaso foi sem razão? Vê como continua:

E ele me atendeu”.

Na verdade, ele te atende quando o procuras e não quando procuras obter dele outra coisa. Foi dito a respeito de alguns:

Clamaram e ninguém os salvou, ao Senhor, mas ele não os ouviu(Sl 17,42).

Por quê? Porque não clamaram ao Senhor. A Escritura em outra passagem o exprime:

Não invocaram o Senhor(Sl 13,5).

Não deixaram de clamar por ele; contudo, não invocaram o Senhor. Que significa:

Não invocaram o Senhor?” Não chamaram o Senhor para junto de si; não o convidaram a vir a seu coração; não quiseram que o Senhor habitasse neles. Por isso, que lhes sucedeu? “Tremeram de medo, quando não havia o que temer”.

Tremeram de medo de perder os bens presentes, porque não estavam repletos daquele a quem não invocaram. Não amaram gratuitamente, de tal sorte que, tendo perdido os bens temporais pudessem declarar:

Como foi do agrado do Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor(Jó 1,21).

Por conseguinte, disse o salmista:

Elevei a minha voz ao Senhor e ele me atendeu”.

Ensine-nos como isso se faz.



§ 3
3 “No dia de minha tribulação procurei a Deus”.

Quem é que assim age? Vê o que hás de procurar no dia de tua tribulação. Se é o cárcere que te aflige, procuras sair do cárcere; se a tribulação provém de febre, buscas recuperar a saúde; se sofres de fome, procuras saciar-te; se são os prejuízos que atribulam, procuras obter lucro; se é devi-do a uma peregrinação, procuras voltar a tua pátria temporal. Por que hei de relembrar tudo, ou quando hei de relembrá-lo? Queres ultrapassar? No dia de tua tribulação procura a Deus; não queiras alcançar outro bem por intermédio de Deus, mas por causa da tribulação, procura a Deus. Deus afaste de ti a tribulação, para poderes tranqüilamente aderir a ele.

No dia de minha tribulação procurei a Deus”; não outra coisa qualquer, mas busquei a Deus. E como o buscaste? “De noite, levantei as mãos diante dele”.

Repete o que disseste; vejamos, entendamos, imitemos, se o pudermos. No dia de tua tribulação que procuraste? “A Deus”.

Como o procuraste? Com “minhas mãos”.

Quando foi a tua busca? De noite. Onde? “Diante dele”.

E que fruto desejaste? “E não fiquei decepcionado”.

Em conseqüência disso, irmãos, vejamos tudo, consideremos tudo, interroguemos a tudo. Que é a tribulação, durante a qual procuraste a Deus, que significa elevar as mãos diante de Deus, que é a noite, e por que diante dele. Segue-se o que todos entendem:

E não fiquei decepcionado”.

Que quer dizer:

E não fiquei decepcionado?” Encontrei o que procurava.



§ 4
Não se pense nesta ou naquela tribulação. Efetivamente, qualquer um que ainda não tenha ultrapassado tudo, considera tribulação apenas o que acontece nesta vida em ocasião triste; no entanto, aquele que já ultrapassou, tem a vida inteira na conta de uma tribulação. Ama de tal modo a pátria celeste que a própria peregrinação terrena é para ele a maior tribulação. Pergunto-vos: Como não será tribulação esta vida? Como não será tribulação se ela toda é denominada uma tentação? Está escrito no livro de Jó:

Não é uma prova a vida humana sobre a terra?(Jó 7,1).

Teria ele dito: É provada a vida humana sobre a terra? A própria “vida, é uma prova”; se é prova, é tribulação. Portanto, nesta tribulação, isto é, nesta vida, o salmista que ultrapassa, procura a Deus. Como? Com “minhas mãos”.

Que quer dizer:

minhas mãos?” Minhas obras. Ele não procurava objeto corpóreo, de sorte que pudesse encontrar o que perdera, apalpando. Procuraria com as mãos moedas, ouro, prata, veste, e outras coisas semelhantes que se possam tocar com as mãos. Embora o próprio nosso Senhor Jesus Cristo tenha querido que o discípulo hesitante o tocasse com as mãos, mostrando-lhe as cicatrizes. E ao exclamar ele, tocando as chagas:

Meu Senhor e meu Deus!” não ouviu a resposta:

Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram”? (Jo 20,27-29).

Se, portanto, aquele que o procurava com as mãos, mereceu ouvir esta resposta de Cristo, em censura de ter procurado assim, nós que fomos declarados felizes por termos acreditado sem ter visto, por que haveremos de procurar com as mãos? Conforme disse, temos de procurar com as obras. Quando? “De noite”.

Que quer dizer:

De noite?” Neste mundo. É noite enquanto não surge o dia da vinda gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois quereis ver como é noite? Se aqui não tivéssemos uma lanterna, ficaríamos nas trevas. Pois, diz Pedro:

Temos, também, por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em vossos corações(2Pd 1,19).

Depois desta noite, portanto, há de surgir o dia; por enquanto, nesta noite, não nos falte a lâmpada. Talvez seja o que agora estamos fazendo: expondo o sentido das Escrituras, trazemos a lâmpada para nos alegrarmos nesta noite. Esteja ela sempre acesa em vossas casas. Pois, vos é dito:

Não extingais o Espírito”.

À guisa de explicação, prossegue:

Não desprezeis as profecias(1 Tss 5,19), isto é, brilhe sempre a vossa lâmpada. Mas, esta luz, em comparação com determinado dia, que é indescritível, chama-se noite. A vida dos fiéis, porém, em comparação com a vida dos infiéis é dia. Já dissemos, contudo, como é noite, e apresentamos o testemunho do apóstolo Pedro. Ele se referiu a uma lâmpada, e nos exortou a lhe darmos atenção, quer dizer, à palavra dos “profetas, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações”.

Paulo demonstra como a vida dos fiéis já é dia em comparação com a vida dos ímpios, ao dizer:

Deixemos as obras das trevas e vistamos as armas da luz. Como de dia, andemos decentemente(Rm 13,12).

Conseqüentemente, vivendo com honestidade, somos dia em comparação com a vida dos ímpios. Mas este dia da vida dos fiéis não basta a Iditun; quer ir além deste dia, até que venha aquele dia em que não terá de recear absolutamente alguma tentação da noite. Aqui, pois, apesar de ser dia a vida dos fiéis, é “uma prova a vida humana sobre a terra(Jó 7,1).

É noite e é dia: dia em comparação com a vida dos infiéis; noite em comparação com a vida dos anjos. De fato, os anjos têm um dia que nós ainda não temos; nós já possuímos um dia que não possuem os infiéis. Mas, os fiéis ainda não têm o dia que têm os anjos. Te-lo-ão quando forem iguais aos anjos de Deus, conforme lhes foi prometido para a ressurreição (cf Mt 22,30).

Nesta vida, portanto, já é dia, e ainda é noite; noite em comparação com o dia que há de vir e que desejamos, dia em comparação com a noite do passado a que renunciamos; nesta noite, portanto, digo, procuremos a Deus, elevando nossas mãos. Não cessem as obras; procuremos a Deus; não tenhamos desejo inútil. Se estamos a caminho, paguemos as despesas para podermos chegar ao fim: procuremos a Deus, erguendo nossas mãos. Apesar de procurarmos na noite o que buscamos com as mãos, não somos decepcionados, porque procuramos “diante dele”.

Que quer dizer:

diante dele? Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Se o fizerdes, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando deres uma esmola, com aquelas mãos que procuram a Deus, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas; a tua esmola fique em segredo; e o teu Pai, que vê o que está oculto, te recompensará(Mt 6,1.2.4).

Portanto, “de noite levantei as mãos diante dele e não fiquei decepcionado”.



§ 5
Ouçamos atentamente quantas aflições Iditun sofreu nesta terra e nesta noite e como teve necessidade de ir além, pois teve de ultrapassar as tribulações que o atacavam e o incitavam da parte inferior.

Minha alma recusou consolar-se”.

Foi tão grande o tédio que me tomou que minha alma se fechou para qualquer consolação. De onde se originou tal tédio? Talvez porque caiu granizo sobre a vinha, ou as oliveiras não deram fruto, ou, a chuva impediu a colheita. De onde proveio tamanho tédio? Ouve a resposta de outro salmo; ali se encontra a palavra:

Senti tédio por causa dos pecadores que abandonam a tua lei(Sl 118,53).

O salmista diz que foi atacado de tamanho tédio que sua alma recusou consolo. O tédio quase o absorveu, e a tristeza irremediavelmente o submergiu; recusa consolo. Que lhe restava, então?



§ 6
4 Primeiramente vê como se consola. Não esperara quem com ele se contristasse e não houve? (cf Sl 68,21).

Para onde se voltar para encontrar consolo aquele que sentira tédio por causa dos pecadores que abandonam a Lei de Deus? Para onde se voltar? Para algum homem de Deus? Provavelmente já experimentara grande tribulação da parte de muitos, e tanto maior quando deles esperara algum deleite. Por vezes, os homens parecem justos, e eles nos alegram. É preciso que nos alegrem, porque a caridade não pode existir sem esta alegria. Mas, se acaso acontecer algo de mau da parte daqueles com os quais alguém se alegrou, como costuma acontecer freqüente-mente, a tristeza será tanto maior quanto fora grande o prazer. Assim, depois, o homem tem medo de soltar as ré-deas da alegria, receia entregar-se ao prazer, para não acontecer que na medida que se alegrara, tanto mais há de se entristecer, se acontecer alguma coisa. Ferido, portanto, com a freqüência dos escândalos, quais outras feridas, fecha-se a todo consolo humano, e recusa sua alma qualquer consolação. E de onde vem a vida? De onde a respiração? “Lembrei-me de Deus e me deleitei”.

As mãos não agiram inutilmente; encontraram um grande consolador. Não foi inativo “que me lembrei de Deus e me deleitei”.

Deus, portanto, deve ser anunciado. Lembrando dele deleitei-me e consolei-me em minha tristeza e refiz-me da falta de esperança na salvação. Deus deve ser anunciado. Enfim, consolado, o salmista diz em seguida:

Falei excessivamente”.

Pela consolação, lembrou-se de Deus e de prazer falou excessivamente. Que quer dizer:

Falei excessivamente?” Alegrei-me, exsultei ao falar. Propriamente chamam-se loquazes os que vulgarmente são denominados faladores; quando alegres, não podem nem querem calar-se. O salmista se tornou um desses. E que diz ainda? “E meu espírito desfaleceu”.



§ 7
5 Consumira-se de tédio, lembrando-se de Deus se deleitara, e novamente ao falar demais desfalecera; como continua? “Todos os meus inimigos se anteciparam às vigílias”.

Os meus inimigos me vigiaram: estavam mais vigilantes do que eu; anteciparam-se a mim nas vigílias. Onde não colocam ciladas? Acaso todos os meus inimigos se anteciparam às vigílias? Quem são pois estes inimigos, a não ser os mencionados pelo Apóstolo:

Pois nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne; mas contra os principados, contra as potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que povoam as regiões celestiais”? (Ef 6,12).

Por conseguinte, temos inimizade com o diabo e seus anjos. O salmista os denomina dominadores do mundo, porque eles governam os que amam o mundo; pois eles não dominam o mundo como se governassem o céu e a terra; mas chama de mundo os pecadores.

O mundo não o conheceu(Jo 1,10).

Eles governam este mundo que não conhece a Cristo. Contra esses temos inimizade perpétua. Finalmente, cuidas de terminar com quaisquer inimizades que tenhas contra um homem, seja por meio da satisfação que ele dê, se te lesou; seja por satisfação de tua parte se tu lesaste; seja de ambos se vos lesastes mutuamente. Esforças-te por satisfazer e entrar em acordo. Com o diabo e seus anjos nenhuma concórdia é possível. Eles nos invejam por causa do reino dos céus. Absolutamente não podem amansar em relação a nós, porque “todos os meus inimigos se anteciparam às vigílias”.

Eles foram mais vigilantes em me enganar do que eu em guardar-me. “Todos os meus inimigos se anteciparam às vigílias. Como não se anteciparam às vigílias os que antepuseram em toda parte tropeços e ciladas? O tédio invade o coração. É de temer que a tristeza o absorva, ou que a alegria, com a loquacidade o faça desfalecer:

Todos os meus inimigos se anteciparam às vigílias”.

Por fim, na própria loquacidade, enquanto falas e com toda segurança, quanta coisa encontram muitas vezes os inimigos a apreender e censurar, a incriminar e caluniar: Ele disse isso, pensa aquilo, falou assim? Que fará o homem a não ser o seguinte:

Perturbei-me e faltou-me a palavra?” Perturbei-me, portanto, e para não acontecer que os inimigos, antecipando-se às vigílias, procurassem e encontrassem motivo de calúnias, calei-me. Nunca cessaria de falar dentro de si mesmo aquele que atravessa; e se, talvez, desistiu da loquacidade, porque se insinuava nele o desejo de agradar aos homens por esta mesma loquacidade, contudo, não deixou, não cessou de se esforçar por ultrapassar também esse desejo. E como se exprime?



§ 8
6 “Pensava nos dias do passado”.

Este homem que batia do lado de fora, já entrou, e age no interior de sua mente. Diga-nos ele o que faz ali:

Pensei nos dias do passado”.

Ali está bem. Vede, por favor, o que pensa. Está no seu íntimo e pensa nos dias do passado. Ninguém lhe diz: Falaste mal. Ninguém lhe diz: Falaste muito. Ninguém lhe diz: Pensaste maldosamente. Que se sinta bem consigo mesmo, Deus o ajude: pense nos dias do passado e conte-nos o que fez no seu apartamento interior, aonde chegou, o que ultrapassou, onde permanecer:

Pensava nos dias do passado. Repassava na mente os anos eternos”.

Quais são os anos eternos? Pensamento sublime! Vede se este pensamento não exige grande silêncio. Quem quiser repassar na mente os anos eternos, renuncie a todo ruído exterior, a todo tumulto interior das coisas humanas. Porventura são eternos os anos que passamos, ou os de nossos maiores, ou os dos nossos pósteros? De forma alguma os consideremos eternos. O que permanece destes anos? Eis que falamos: Este ano. O que seguramos deste ano além do dia em que estamos? Pois, os dias anteriores deste ano já passaram, não os mantivemos; os futuros ainda não vieram. Estamos num só dia e dizemos: Este ano. Dize melhor: Hoje, se queres exprimir algo de presente. Pois, o que reténs presente de todo o ano? Tudo o que já passou dele, já não existe; todo o futuro ainda não existe. Como, então, dizer: Este ano? Corrige a frase e dize: Hoje. Dizes, de fato: Hoje, concordo. Mas, ainda presta atenção. As horas matutinas de hoje já passaram e as futuras ainda não vieram. Corrige também este modo de falar e dize: Esta hora. Mas, o que reténs desta hora? Certos momentos dela já passaram; ainda não vieram os minutos futuros. Fala: Este minuto. Que minuto? Enquanto pronuncio as sílabas. Se profiro duas sílabas, uma não soa antes que a outra tenha sido pronunciada; enfim, a própria sílaba, se tiver duas letras, não soa a segunda letra antes que a primeira se vá. De fato, o que retemos destes anos? Estes anos são mutáveis. Devemos pensar nos anos eternos, nos anos que permanecem, que não se perfazem com a vinda e partida dos dias. São anos, sobre os quais a Escritura diz a Deus:

Tu és sempre o mesmo e teus anos não terminam(Sl 101,28).

Este homem que ultrapassa, pensou nos anos em silêncio e não com uma loquacidade externa:

Repassava na mente os anos eternos”.



§ 9
7 “Refletia à noite no coração”.

Ninguém, mesmo caluniador, procura descobrir ciladas nas palavras daquele que meditou em seu coração.

Falava excessivamente”.

Novamente aquele falar. Observa mais uma vez, para não desfaleceres espiritualmente. Não, diz o salmista. Não falava exteriormente; agora falo de outra maneira. Como falo agora? “Falava excessivamente e esquadrinhava meu espírito”.

Ninguém diria que está louco aquele que esquadrinhasse a terra para encontrar veios de ouro. Ao contrário, muitos o considerariam sábio, por querer obter ouro. Quantas riquezas o homem tem no seu interior, e não esquadrinha? O salmista esquadrinhava seu espírito, e confabulava com seu espírito, e se excedia nessa conversa. Interrogava-se a si mesmo, examinava-se, era juiz de si mesmo. E continua:

Esquadrinhava meu espírito”.

Seria de se recear que parasse em seu próprio espírito; pois falara excessivamente do lado de fora; e como todos os seus inimigos anteciparam-se às vigílias, encontrou tristeza e seu espírito desfaleceu. Aquele que falava excessivamente de fora, começou a falar assim com segurança no seu interior, onde sozinho, em silêncio, repassava na mente os anos eternos:

E esquadrinhava meu espírito”.

Agora, é de temer que permaneça parado em seu espírito e não passe além. Já procede melhor do que fazia exteriormente. Ultrapassou algumas coisas; vejamos o quê. Este homem que ultrapassa não pára antes de alcançar “o fim”, que intitula o salmo:

Falava excessivamente e esquadrinhava meu espírito”.



§ 10
8 E que encontraste? “Deus não rejeitará para sempre”.

Sentira tédio nesta vida; em nenhuma parte consolo seguro e fiável. Em qualquer que examinasse encontrava ocasião de tropeço, ou receava encontrar. Portanto, segurança em parte alguma. Era um mal calar, para não silenciar as coisas boas; falar e expandir-se exteriormente era molesto, para que todos os inimigos não se antecipassem às vigílias, nem o caluniassem devido a suas palavras. Angustiado demais nesta vida, meditava muito acerca da outra vida, onde não existe tal provação. E quando é que lá se chega? Consta que nossos sofrimentos aqui são provenientes da ira de Deus. É o que afirma Isaías:

Com efeito, não contenderei para sempre, nem estarei perpetuamente encolerizado”.

E declara o motivo disso:

Pois o espírito de mim procede e criei todas as almas. Contristei-o um pouco por causa de seu pecado, feri-o, e desviei dele a minha face; e ele se foi triste, e seguiu os seus caminhos(cf Is 57,16.17).

Então esta ira de Deus será perpétua? Não foi isto que o salmista descobriu em seu silêncio. Pois, o que diz? “Deus não rejeitará para sempre; nem se disporá mais a que isto lhe agrade”, isto é, que lhe agrade ainda repelir, e não se disporá a rejeitar para sempre. Forçoso é que chame novamente a si os seus servos, que receba os fugitivos que retornam para o Senhor, forçoso que ouça a voz dos cativos:

Deus não rejeitará para sempre, nem se disporá mais a que isto lhe agrade”.



§ 11
9.10 “Ou nos privará de sua misericórdia eternamente, de geração em geração? Ou se esquecerá Deus de ter piedade?” Em ti, por ti mesmo, não tens misericórdia alguma para com os outros, se Deus não te conceder; então; o próprio Deus há de se esquecer da misericórdia? O rio corre e a própria fonte há de secar? “Ou se esquecerá Deus de ter piedade? Ou em sua ira reterá suas comise-rações?”, isto é, há de se encolerizar de tal sorte que não terá mais compaixão? É mais fácil que ele retenha a ira do que a misericórdia. Isso dissera Isaías:

Não conten-derei para sempre, nem estarei perpetuamente encolerizado”.

Em seguida, acrescenta:

Ele se foi triste, e seguiu os seus caminhos. Vi o seu caminho e o curarei(Is 57,18).

Ao saber disto, o salmista foi além e deleitou-se em Deus, de sorte que mais falava por estar ali e por causa das obras de Deus. Não o fazia com seu espírito, nem com aquilo que era, mas com aquele que o criara. Daí, portanto, foi além, ultrapassou. Vede aquele que atravessa, vede se pára em alguma parte antes de chegar a Deus.



§ 12
11 “Eu disse”.

Já tendo ultrapassado a si mesmo, o que disse? “Agora começo”.

Excedera-me.

Agora, começo”.

Aqui, já não encontro perigo algum; pois foi um perigo ficar em mim mesmo.

Eu disse: Agora começo. Esta mudança vem da direita do Altíssimo”.

O Altíssimo começou agora a me transformar. Agora começo a estar seguro, agora entrei em certo palácio de alegrias, onde não temerei inimigo algum, agora comecei a estar naquela região onde todos os meus inimigos não se antecipam às vigílias:

Agora começo. Esta mudança vem da direita do Altíssimo”.



§ 13
12 “Trouxe à memória as obras do Senhor”.

Vede como se expande nas obras do Senhor. O salmista falava excessivamente do lado de fora, mas seu espírito desfaleceu de tristeza; falou interiormente em seu coração, e com seu espírito, e tendo examinado seu próprio espírito, lembrou-se dos anos eternos, lembrou-se da misericórdia do Senhor, porque ele não rejeita para sempre, e começou a se alegrar, a exultar com segurança em suas obras. Ouçamos quais são as obras e exultemos também nós; mas pelos afetos também nós ultrapassemos tudo, e não ponhamos nossa alegria nos bens temporais. Temos também nós nosso quarto. Por que não entramos lá? Por que não nos entregamos ao silêncio? Por que não examinamos nosso espírito? Por que não meditamos nos anos eternos? Por que não nos alegramos nas obras de Deus? Agora ouçamos e nos deleitemos com suas palavras, de tal modo que ao sairmos daqui façamos o mesmo que fazíamos ao ouvi-lo; e isto, se começarmos como aquele que disse:

Agora começo”.

Alegrar-se nas obras de Deus é esquecer-te mesmo de ti, se podes deleitar-te somente nele. Que há de melhor? Não vês que, ao voltares a ti, voltas para um estado pior? “Trouxe à memória as obras do Senhor. Recordar-me-ei de tuas maravilhas desde o início”.



§ 14
13“E meditarei sobre todas as tuas obras e falarei excessivamente dos afetos por ti”.

É o terceiro modo de falar excessivamente. Falou em demasia externamente e desfaleceu; falou demais em seu espírito interiormente, e progrediu; falou excessivamente das obras de Deus, e chegou ao termo do progresso.

E falarei excessivamente dos afetos por ti”, e não de meus afetos. Quem vive sem afetos? E pensais, irmãos, que os que amam a Deus, que temem a Deus, que adoram a Deus, não têm afeições? Assim pensais e ousais imaginar que são objeto de afeição a mesa de jogo, o teatro, a caça, a captura de aves, a pescaria, e não o são as obras de Deus? Não terá a meditação sobre Deus suas afeições interiores, quando se olha o mundo, e se põe diante dos olhos o espetáculo da natureza, e se procura seu autor, e se descobre que nunca nos causa desprazer, mas é mais aprazível do que tudo o mais?



§ 15
14 “Santos são os teus caminhos, ó Deus”.

O salmista já considera as obras da misericórdia de Deus para conosco, fala delas em excesso e exulta com esses afetos. Em primeiro lugar, daí começa:

Santos são os teus caminhos”.

Quais são esses caminhos santos? “Eu sou o caminho, a verdade e a vida(Jo 14,6).

Retornai, ó homens, de vossos afetos. Aonde ides? Para onde correis? Porque fugis não somente de Deus, mas ainda de vós mesmos? Voltai, prevaricadores, ao vosso coração (cf Is 46,8), examinai vosso espírito, relembrai-vos dos anos eternos, encontrai a misericórdia de Deus para covosco, atendei às obras de sua misericórdia.

Santos são os teus caminhos. Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido?” Que procurais com vossos afetos? “Porque amais a vaidade e procurais a mentira? E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo(Sl 4,3-4).

Santos são os teus caminhos”.

Voltemos nossa atenção para ele, para Cristo; aí está o caminho de Deus:

Santos são os teus caminhos. Haverá Deus tão grande como nosso Deus?” Os gentios têm afeto a seus deuses, adoram os ídolos, que têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem; têm pés e não andam” (cf Sl 113,5-7).

Por que andas em busca de um Deus que não anda? Respondes: Não o adoro. E que adoras? O nume que ele encerra? Certamente adoras aquele do qual foi dito em outra parte:

Porque os deuses das nações são demônios(Sl 95,5).

Adoras os ídolos ou os demônios. Replicas: Nem os ídolos, nem os demônios. E que adoras? As estrelas, o sol, a lua, os corpos celestes. Como não é melhor aquele que fez os seres terrenos e celestes! “Haverá Deus tão grande como nosso Deus?



§ 16
15 “É o único Deus que opera maravilhas”.

Tu, verdadeiramente, és o grande Deus, que operas maravilhas nos corpos e nas almas, o único que as opera. Os surdos ouviram, os cegos viram, os doentes sararam, os mortos ressuscitaram, os paralíticos andaram (cf Mt 11,5; Lc 7,22).

Mas estes milagres são corporais; vejamos os operados nas almas. Tornaram-se sóbrios os que pouco antes eram beberrões; são fiéis os que pouco antes eram adoradores dos ídolos; dão aos pobres seus próprios bens os que anteriormente roubavam o alheio:

Haverá Deus tão grande como nosso Deus? É o único Deus que opera maravilhas”.

Moisés fez milagres, mas não sozinho; operou-os também Elias, Eliseu e os apóstolos; mas nenhum deles os fez só por si mesmo. Para que eles os operassem, estavas com eles; mas os que fizeste, fizeste-os sozinho, sem eles. Pois não estavam contigo quando os fizeste, quando os fizeste a eles mesmos.

É o único Deus que opera maravilhas”.

Como estava sozinho? Acaso teria sido o Pai e não o Filho? Ou o Filho e não o Pai? Ao contrário, foi o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo.

É o único Deus que opera maravilhas”.

Não são três deuses, mas é um só Deus que faz maravilhas, só ele, mesmo no salmista, que ultrapassa. Pois, a fim de que ele fosse além, e chegasse a este ponto, houve milagre de Deus. Foi ele quem fez maravilhas quando o salmista interiormente falou em excesso, em si mesmo e se deleitava nas obras de Deus. Mas, que fez Deus? “Deste a conhecer aos povos o teu poder”.

Visto que ele deu a conhecer o seu poder aos povos, criou-se uma assembléia e Asaf ultrapassou. Qual o poder que ele deu a conhecer aos povos? “Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que, para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus(1 Cor 1,23;24).

Se, portanto, Cristo é o poder de Deus, ele deu a conhecer aos povos o Cristo. Talvez também nós ainda não o conhecemos? E por isso somos insensatos, jazemos nas coisas inferiores, nada ultrapassamos, para poder vê-lo? “Deste a conhecer aos povos o teu poder”.



§ 17
16 “Por teu braço resgataste o teu povo”.

Teu braço, isto é, teu poder.

A quem se revelou o braço do Senhor”? (cf Is 53,1).

Por teu braço resgataste o teu povo, os filhos de Israel e de José”.

Seriam dois povos, “os filhos de Israel e de José?” Os filhos de José não são filhos de Israel? Certamente. Sabemos, lemos, a Escritura o proclama, a verdade o indica: Israel, isto é, Jacó teve doze filhos, e José era um deles; todos os descendentes desses doze filhos de Israel pertencem ao povo de Israel. Por que então dizer:

Os filhos de Israel e de José?” Não sei a que distinção ele alude. Examinemos nosso espírito; talvez ali tenha Deus depositado alguma coisa que devemos procurar à noite com nossas mãos, para não nos decepcionarmos. Pode ser que nos encontremos nesta diferença entre “filhos de Israel e de José”.

Com o nome de José, alude a outro povo, quer dizer, aos gentios. Por que José representa os gentios? Porque foi vendido para ser levado ao Egito, por seus irmãos (cf Gn 37,28).

José, que os irmãos invejavam e venderam, foi levado ao Egito, e lá foi vendido, trabalhou, foi humilhado; depois, tornou-se conhecido, foi exaltado, prosperou e governou. Que representava com tudo isso? A quem, senão a Cristo, vendido por irmãos, rejeitado em sua terra, como que levado ao Egito, aos gentios? Agora, está exaltado, como vemos, tendo se cumprido a profecia:

Adorá-lo-ão todos os reis da terra; todas as nações o servirão(Sl 71,11).

Por conseguinte, José figura o povo dos gentios; Israel, contudo, é o povo hebreu. Deus resgatou seu povo, “os filhos de Israel e de José”.

Por meio de quem? Pela pedra angular, que reuniu os dois muros (Ef 2,14).



§ 18
Como continua? “As águas te viram, ó Deus”.

Quais são estas águas? Os povos. O Apocalipse declara quais são estas águas. A resposta é:

Os povos(cf Ap 17,15).

Ali vemos claramente que as águas figuram os povos. Acima dissera o salmista:

Deste a conhecer aos povos o teu poder”.

Com justeza, portanto, diz:

As águas te viram, ó Deus, as águas te viram e temeram”.

Portanto, elas mudaram devido ao medo.

As águas te viram, ó Deus, e temeram e os abismos ficaram conturbados”.

Que são “abismos?” São as profundezas das águas. Quem dentre o povo não se perturba quando a conciência se agita? Perguntas quais as profundezas do mar. Que de mais profundo do que a consciência humana? Esta profundeza se perturbou, quando Deus resgatou seu povo por seu poder. Como se conturbaram os abismos? Quando todas as suas consciências se manifestaram em confissão:

E os abismos ficaram conturbados”.



§ 19
18 “Ruído de muitas águas. Ruído de muitas águas” são os louvores de Deus, a confissão dos pecados, os hinos e cânticos, as orações.

As nuvens fizeram ouvir a sua voz”.

Ruído das águas, perturbação dos abismos por causa das vozes emitidas pelas nuvens. Que nuvens? Os pregadores da palavra da verdade. Que nuvens? Aquelas de onde Deus ameaça certa vinha, que deu espinhos em vez de uvas:

Quanto às nuvens ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela(Is 5,6).

Finalmente, os apóstolos, abandonando os judeus, dirigiram-se aos gentios; em todas as nações “as nuvens fizeram ouvir a sua voz”.

Pregando a Cristo, “as nuvens fizeram ouvir a sua voz”.



§ 20
18.19 “As tuas flexas passaram além”.

O salmista chama de flexas as vozes emitidas pelas nuvens. As palavras dos evangelistas foram setas. São comparações. Pois, propriamente nem as flexas são chuva, nem a chuva, setas. Contudo, a palavra de Deus é flexa porque fere a chuva porque irriga. Ninguém, portanto, se admire da perturbação dos abismos, quando “as tuas flexas passaram além”.

Que significa:

passaram além?” Não pararam nos ouvidos, mas traspassaram os corações.

O teu trovão rolou”.

Que é isto? Como entender? O Senhor nos ajude.

O teu trovão rolou”.

Quando éramos crianças pensávamos, ao ouvir os trovões do céu, que saíam veículos da garagem. Pois, os trovões têm batidas semelhantes às dos veículos. Acaso vamos voltar à infância e entendermos:

O teu trovão rolou”, como se Deus tivesse algum veículo nas nuvens e o trânsito dos veículos fizesse muito barulho? De forma nenhuma. Isto seria pueril, vão, errado. Que significa então:

O teu trovão rolou?” A tua voz rola. Nem assim entendo. Que fazer? Interroguemos o próprio Iditun, que talvez explique o que ele mesmo disse:

O teu trovão rolou”.

Não entendo. Ouvirei o que dizes:

Teus relâmpagos iluminaram toda a terra”.

Dize, portanto: Não havia entendido. O orbe da terra é uma roda, pois o cricuito do orbe da terra com razão é denominado orbe. Por isso, mesmo uma bola pequena chama-se globo.

O teu trovão rolou. Teus relâmpagos iluminaram toda a terra”.

Aquelas nuvens que rolam cercaram o orbe da terra; cercaram trovejando e corruscando, abalaram os abismos, trovejaram preceitos, relampejaram milagres; “seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras(cf Sl 18,5).

Abalou-se e estremeceu a terra”, isto é, todos os habitantes da terra. Numa comparação, porém, a própria terra é um mar. Por que razão? Porque os povos todos são designados pelo nome de mar, uma vez que a vida humana é amarga e sujeita a procelas e tempestades. Se observas que os homens se devoram como peixes, que o maior absorve o menor, tens o mar. Até ele foram os evangelistas.



§ 21
20 “Abriste no mar o teu caminho”.

Há pouco vimos que:

santos são os teus caminhos” e agora:

Abriste no mar o teu caminho”, porque o próprio Santo se encontra no mar e até andou sobre as águas do mar (cf Mt 14,25).

Abriste no mar o teu caminho”, isto é, entre os povos é anunciado teu Cristo. Em outro salmo assim se reza:

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça luzir sobre nós o brilho de sua face para que conheçamos na terra o teu caminho”.

Em que “terra?” “Em todos os povos a tua salvação(Sl 66,2.3).

A saber:

Abriste no mar o teu caminho e por entre muitas águas as tuas veredas”, isto é, entre muitos povos.

E os teus vestígios não são conhecidos”.

Não sei a quem se refere, e admiro-me se não forem os próprios judeus. Eis que já se difundiu entre as gentes a misericórdia de Cristo, de tal sorte que “no mar” esteja “teu caminho e por entre muitas águas as tuas veredas, e teus vestígios não são conhecidos”.

Onde não são conhecidos, e por quem, senão por aqueles que ainda dizem: Cristo ainda não veio? Por que motivo declaram: Cristo ainda não veio? Porque ainda não conhecem aquele que anda sobre os mares.



§ 22
21 “Como ovelhas conduziste o teu povo, pelas mãos de Moisés e de Aarão”.

Indagar por que razão o salmista acrescenta este versículo é questão um tanto difícil. Ajudai-nos com vossa atenção, porque depois destes dois versículos vem o fim do salmo e do sermão. Não quero que por achardes que ainda falta muito, presteis menos atenção, de medo do cansaço. Tendo dito:

Abriste no mar o teu caminho”, que entendemos referir-se aos gentios; “e por entre muitas águas, as tuas veredas”, isto é, muitos povos, acrescentou:

E os teus vestígios não são conhecidos”.

Perguntávamos por quem não são conhecidos, e o salmista logo acrescenta:

Como ovelhas conduziste o teu povo, pelas mãos de Moisés e de Aarão”, isto é, teus vestígios não são conhecidos por este teu povo conduzido pelas mãos de Moisés e de Aarão. Se está escrito:

Abriste no mar o teu caminho”, qual a razão, senão para censurar e repreender? Por que “abriste no mar o teu caminho”, a não ser porque ele foi excluído de tua terra? Expulsaram a Cristo, não quiseram que fosse seu Salvador, esses doentes. Ele, porém, começou a agir entre os gentios, e em todas as nações, em muitos povos. Salvaram-se também os restos daquele povo. Ficou de fora a multidão ingrata, e Jacó ficou manco de uma coxa (cf Gn 32,31).

A coxa representa a multidão da raça, e a maior parte dos israelitas tornou-se uma turba vã e insensata, que não conhece os vestígios de Cristo nas águas.

Como ovelhas conduziste o teu povo”, que não te conheceu. Tanto bem lhe fizeste! Dividiste o mar, fizeste com que atravessasse as águas a pé enxuto, afogaste nas ondas o inimigo perseguidor, mandaste cair no deserto o maná para os famintos, conduzindo-os “pelas mãos de Moisés e de Aarão”; e eles te repeliram, de tal modo que “abriste no mar o teu caminho e os teus vestígios não fossem conhecidos”.