ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 75 | ||
§ 75:1 | Ɗ Damos-te graças, ó Deus, damos-te graças, pois o teu nome está perto; os que invocam o teu nome anunciam as tuas maravilhas. | |
§ 75:2 | Ꝙ Quando chegar o tempo determinado, julgarei retamente. | |
§ 75:3 | Ɗ Dissolve-se a terra e todos os seus moradores, mas eu lhe fortaleci as colunas. | |
§ 75:4 | Ɗ Digo eu aos arrogantes: Não sejais arrogantes; e aos ímpios: Não levanteis a fronte; | |
§ 75:5 | ɲ não levanteis ao alto a vossa fronte, nem faleis com arrogância. | |
§ 75:6 | Ꝓ Porque nem do oriente, nem do ocidente, nem do deserto vem a exaltação. | |
§ 75:7 | ɱ Mas Deus é o que julga; a um abate, e a outro exalta. | |
§ 75:8 | Ꝓ Porque na mão do Senhor há um cálice, cujo vinho espuma, cheio de mistura, do qual ele dá a beber; certamente todos os ímpios da terra sorverão e beberão as suas fezes. | |
§ 75:9 | ɱ Mas, quanto a mim, exultarei para sempre, cantarei louvores ao Deus de Jacó. | |
§ 75:10 | ⱻ E quebrantarei todas as forças dos ímpios, mas as forças dos justos serão exaltadas. | |
O SALMO 75 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 2 Costumam os inimigos de nosso Senhor Jesus Cristo, os judeus, como é sabido, gloriar-se empregando as palavras do salmo que acabamos de cantar: “Deus manifestou-se na Judéia. Grande é o seu nome em Israel”. Eles injuriam os gentios, entre os quais Deus não se manifestou, afirmando que só eles conhecem a Deus, uma vez que assegurou o profeta: “Deus manifestou-se na Judéia”. Por conseguinte, em outras partes, é desconhecido. Efetivamente, Deus é conhecido na Judéia, se entendermos bem o que significa Judéia. Na verdade, ele se manifestou somente na Judéia. Assim falamos porque Deus não pode ser conhecido a não ser na Judéia. Mas como se exprime o Apóstolo? “É judeu aquele que o é no interior e a verdadeira circuncisão é a do coração, segundo o espírito e não segundo a letra” (Rm 2,29). Existem, portanto, judeus pela cricuncisão da carne e judeus pela circuncisão do coração. Muitos de nossos pais eram santos, e tinham a circuncisão da carne como sinal de sua fé, e a circuncisão do coração devido à própria fé. Degeneraram em relação a estes pais os que agora se gloriam do nome, mas não praticam os atos correspondentes. Portanto, os que degeneraram relativamente a eles, continuaram a ser judeus pela carne, mas são pagãos pelo coração. São judeus os descendentes de Abraão, do qual nasceu Isaac, e deste nasceu Jacó, e de Jacó os doze patriarcas, e dos doze patriarcas todo o povo judaico. Principalmente eles se denominam judeus porque Judá era um dos doze filhos de Jacó, um dos patriarcas dentre os doze, e sendo de sua estirpe, o reinado cabia aos judeus. Pois, aquele povo, de acordo com os doze filhos de Jacó, tinha doze tribos. Chamam-se tribos as divisões e agremiações distintas dos povos. Aquele povo, pois, era constituído de doze tribos; dentre elas, uma era a de Judá, da qual saíam os reis, e outra a de Levi donde se tiravam os sacerdotes. Embora aos sacerdotes que serviam no templo não coubesse uma porção da terra (cf Nm 18,20), era contudo necessário que a terra da promissão fosse dividida por doze tribos. Excetuada, portanto, uma tribo de maior dignidade, a tribo de Levi, que era a dos sacerdotes, ficavam onze, se não se completasse o número doze pela adoção dos dois filhos de José. Prestai atenção para saber como foi isto. Um dos doze filhos de Jacó era José. Foi este José que os irmãos venderam para ser levado ao Egito. Ali, devido ao mérito de sua castidade foi elevado a uma sublime dignidade, e Deus o assistiu em todas as suas obras. Ele acolheu seus irmãos, que o haviam vendido, e seu pai; estes padeciam fome e desceram ao Egito para obter pão. José teve dois filhos, Efraim e Manassés. Ao morrer, Jacó, em testamento, adotou os dois netos entre seus filhos e disse a seu filho José: “Quanto aos filhos que geraste depois deles, serão teus”; estes, serão meus e com seus irmãos receberão a herança” (Gn 48,5.6). A terra da promissão ainda não fora dada, nem dividida, mas Jacó assim falava em profecia. Foram acrescentados os dois filhos de José, e no entanto, completaram-se as doze tribos, embora fossem na realidade treze; em vez de uma tribo de José foram duas, e completaram-se treze. Tirando-se, pois, a tribo de levi, a tribo dos sacerdotes que serviam no templo e vivia dos dízimos das restantes, entre as quais fora dividida a terra, restaram doze. Entre essas doze achava-se a tribo de Judá, de onde se originavam os reis. O primeiro rei, Saul, era de outra tribo, mas foi reprovado porque foi um mau rei (cf 1Rs 9,1). Depois veio o rei Davi, da tribo de Judá, e seus descendentes, da tribo de Judá, foram os reis seguintes (1Rs 16,12). Jacó o predissera, ao abençoar seus filhos: “O cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés até que venha o prometido” (Gn 49,10). Da tribo de Judá veio nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é, conforme diz a Escritura e acabastes de ouvir, da “descendência de Davi” (2 Tm 2,8), nascido de Maria. Quanto à divindade de nosso Senhor Jesus Cristo, em que ele é igual ao Pai, não apenas é anterior aos judeus, mas até ao próprio Abraão (cf Jo 8,58); não somente antes de Abraão, mas cuida antes de Adão; não apenas existia antes de Adão, mas mesmo antes do céu e da terra, antes dos séculos, porque “tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3). Relativamente à profecia: “O cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés, até que venha o prometido”, quando se consideram os tempos primitivos, vê-se que os reis dos judeus sempre se originaram da tribo de Judá; dela receberam o nome os judeus. Anteriormente não tiveram reis estrangeiros, até que viesse aquele Herodes que reinava quando o Senhor nasceu (Lc 3,1). Antes de Herodes todos os reis eram da tribo de Judá, mas até que viesse o que fora prometido. Por isso, após a vinda do Senhor, foi destruído o reino judaico e o reinado foi tirado dos judeus. Agora não têm reino porque não querem reconhecer seu verdadeiro rei. Notai se já devem ser chamados judeus. Já percebeis que assim não devem ser denominados. Eles por suas próprias palavras rejeitaram este nome, de sorte que não merecem ser chamados judeus, a não ser segundo a carne. Quando eles rejeitaram tal nome? Falavam, enfureciam-se contra Cristo, isto é, um descendente de Judá; encarniçavam-se contra a estirpe de Davi. Pilatos disse aos judeus: “Crucificarei o vosso rei? Responderam: Não temos outro rei a não ser César!” (Jo 19,15). Ó judeus só de nome, não de fato! Se não tendes outro rei senão César, já se extinguiram os príncipes de Judá; vem, portanto, o “prometido”. Em conseqüência disso, são mais verdadeiramente judeus aqueles dentre eles que se fizeram cristãos; os demais judeus, que não acreditaram em Cristo, mereceram até perder o mesmo nome. A verdadeira Judéia, portanto, é a Igreja de Cristo, a acreditar naquele rei que veio da tribo de Judá, nascido da Virgem Maria. Acredita naquele do qual falava o Apóstolo, escrevendo a Timóteo: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi, segundo o meu evangelho” (2 Tm 2,8). De Judá, pois, proveio Davi, e de Davi o Senhor Jesus Cristo. Nós, os que acreditamos em Cristo, pertencemos a Judá. Conhecemos a Cristo, que não vimos com nossos olhos, mas retemos pela fé. Por isso não nos injuriem os judeus, que já não são judeus. Eles declararam: “Não temos outro rei a não ser César”. Seria melhor para eles ter a Cristo por rei, o qual era proveniente da descendência de Davi, da tribo de Judá. Todavia, visto que o próprio Cristo, da descendência de Davi segundo a carne, é Deus sobre todas as coisas pelos séculos, ele é nosso rei e nosso Deus. Nosso rei, enquanto nascido da tribo de Judá segundo a carne, Cristo Senhor Salvador; nosso Deus, que existia antes da tribo de Judá, antes do céu e da terra, pelo qual foram criadas todas as coisas, as espirituais e as corporais. Se, pois “por ele todas as coisas foram feitas”, mesmo Maria, da qual ele nasceu, foi criada por ele. De que modo, então, ele nasceria como os demais homens, se criou para si a mãe, da qual haveria de nascer? Portanto, ele é o Senhor. O Apóstolo o dizia, ao falar a respeito dos judeus: “Aos quais pertencem os patriarcas, e dos quais descende o Cristo, segundo a carne, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos” (Rm 9,5). Os judeus viram a Cristo e o crucificaram; portanto, não o viram como Deus; os gentios que não o viram, acreditaram e entenderam a Deus. Por conseguinte, se Deus se manifestou a eles em Cristo, reconciliando o mundo consigo (2 Cor 5,19), e eles o crucifi-caram, por não terem captado que Deus estava escondido sob a carne, aparte-se a que se denomina Judéia e não é; aproxime-se a verdadeira Judéia, à qual se diz: “Acercai-vos dele e sereis iluminados e vosso rosto não se cobrirá de confusão” (Sl 33,6). O rosto da verdadeira Judéia não se co-brirá de confusão. Pois, ouviu, acreditou, e se estabeleceu a Igreja, verdadeira Judéia, onde Cristo, homem da descendência de Davi, Deus acima de Davi, se manifestou. | |
§ 2 | “Deus manifestou-se na Judéia. Grande é o seu nome em Israel”. Quanto a Israel, interpretemos conforme fizemos com a Judéia. Como eles não são os verdadeiros judeus, assim este não é o verdadeiro Israel. Que significa Israel? Aquele que vê a Deus. E como eles viram a Deus, se ele viveu no meio deles encarnado, e tomaram-no por simples homem e o mataram? Tendo ressurgido, ele mostrou-se como Deus a todos aqueles aos quais se dignou aparecer. São dignos do nome de Israel aqueles que mereceram entender a Cristo enquanto Deus encarnado, de tal sorte que não menosprezaram o que viam, e adoraram o que não viam. Os gentios, que não o viram com os próprios olhos, perceberam com sua mente humilde aquele que não viam e aderiram a ele pela fé. Por conseguinte, os que o seguraram com as mãos, o mataram; os que o apreenderam pela fé, o adoraram. “Grande é o seu nome em Israel”. Queres pertencer a Israel? Observa como é aquele do qual disse o Senhor: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (Jo 1,47). Se é “verdadeiro israelita aquele em quem não há fingimento”, os fingidos e mentirosos não são verdadeiros israelitas. Não digam, portanto, que o são estes, porque Deus está entre eles, e grande é o seu nome em Israel; provem serem israelitas e concedo que “grande é o seu nome em Israel”. | |
§ 3 | 3 “Na paz fixou o seu lugar e sua morada em Sião”. De novo vem Sião, como se fosse a pátria dos judeus. Verdadeira Sião é a Igreja dos cristãos. Diz-se ser esta a tradução dos seguintes nomes hebraicos: Judéia verte-se por Confissão; Israel, por Aquele que vê a Deus. Depois da Judéia vem Israel. Assim também aqui: “Deus manifestou-se na Judéia. Grande é o seu nome em Israel”. Queres ver a Deus? Primeiro confessa e deste modo torna-te morada de Deus, porque “na paz fixou o seu lugar”. Enquanto não confessares teus pecados, de certo modo estás em contenda com Deus; pois, como não estarias em litígio contra ele, se louvas aquilo que lhe desagrada? Ele castiga o ladrão e tu elogias o fruto. Ele pune o ébrio e tu louvas a embriaguez. Lutas contra Deus. Não lhe deste lugar em teu coração, porque “na paz fixou ele o seu lugar”. De que forma começas a ter paz com Deus? Começas com a confissão. É palavra de um salmo a seguinte: “Começai cânticos, confessando ao Senhor” (Sl 146,7). Qual o sentido da frase: “Começai cânticos, confessando ao Senhor?” Começai a unir-vos a Deus. De que modo? Desagradando-te o que lhe desagrada. Desagrada-lhe tua vida depravada. Se ela te apraz, separas-te dele; se te desagrada, unir-te-ás a ele pela confissão. Verifica de quantas maneiras diferes, desagradando-lhe, de fato, tua desigualdade em relação a ele. Foste feito, ó homem, à imagem de Deus; contudo, por uma vida perversa e má, esfumaste e apagaste em ti a imagem de teu Criador. Tor-naste-te dela dessemelhante a ti mesmo; examinas-te e sentes desagrado; começas então, por isso mesmo, a te fazeres semelhante, porque te desagrada aquilo que também a Deus desagrada. | |
§ 4 | Mas como sou semelhante, dizes, se ainda não me agrado a mim mesmo? Por isso foi dito: “Começai”. Começa a confessar a Deus, e terminarás na paz. Ainda tens guerra declarada contra ti. Tens de guerrear não somente contra as sugestões do diabo, contra o príncipe da potestade do ar, que opera nos filhos da incredulidade, contra o diabo e seus anjos, os espíritos do mal (cf Ef 6,12); não apenas contra eles hás de lutar, mas ainda contra ti mesmo. De que maneira contra ti mesmo? Contra teus maus hábitos, contra a tua má vida anterior, que te atrai a teus costumes antigos e traz empecilho aos novos. Uma nova vida te é proposta e tu és velho. Encontra-te a alegria da vida nova, mas és travado pelo peso da vida antiga. Começa a guerra contra ti. Mas a parte que te desagrada leva-te à união com Deus. E nesta parte em que te unes a Deus, serás capaz de vencer-te, porque está contigo aquele que tudo supera. Dá atenção ao que diz o Apóstolo: “Assim, pois, sou eu mesmo que pela razão sirvo à lei de Deus e pela carne à lei do pecado”. Em que “pela razão?” Porque te desagrada tua vida má. Em que “pela carne?” Porque não faltam sugestões e deleites maus. Mas desde que pela razão te unes a Deus, vences aquilo que não a quer seguir. Em parte precedeste, em parte te retardas. Deixa-te atrair por aquilo que te leva para o alto. Ficas oprimido pelo peso da vida antiga; clama, dizendo: “Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de morte?” Quem me libertará deste peso que me oprime? Pois, o corpo corruptível pesa sobre a alma (Sb 9,15). Quem, portanto, me libertará? “A graça de Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 7,25.24). Por que então ele permite que lutes por longo tempo contra ti, até que sejam consumidos todos os maus desejos? Para que entendas qual o teu castigo em ti mesmo; teu flagelo provém de ti, está em ti mesmo. Tua contenda seja contra ti mesmo. Deste modo é castigado o rebelde contra Deus: ele próprio guerreia contra si, porque não quis ter paz com Deus. Mas contém teus membros, contra tua concupiscência. Irrompe a ira; agarra-te com Deus. Pôde irromper, mas não encontrou armas. Da ira vem o ímpeto; de ti, as armas. Fique inerme o ímpeto, e aprende a não irromper mais, porque inutilmente irrompe. | |
§ 5 | Falo assim, caríssimos, para que não aconteça por termos dito: “pela carne, à lei do pecado”, que penseis dever consentir a vossos desejos carnais. Embora não seja possível eliminar os desejos carnais, não se deve consentir. Por este motivo, o Apóstolo não disse: Não haja pecado em vosso corpo mortal; ele sabe que enquanto é mortal é sujeito ao pecado; mas como se exprimiu? “Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal”. Que quer dizer: “Não impere?” Ele expôs: “Sujeitando-vos às suas paixões” (Rm 6,12). Há desejos, existem. Não obedeces a teus desejos, não segues, não consentes. Existe o pecado, mas perdeu o império, quando já em ti o pecado não impera; depois, a última inimiga a ser destruída é a morte (cf 1Cor 15,26). Que nos é prometido, com a palavra: Pela razão sirvo à lei de Deus e pela carne à lei do pecado? (cf Rm 7,25). Ouve a promessa de que não existirão para sempre na carne os desejos ilícitos. De fato ressurgirá e será transformada; e quando for transformada esta carne mortal em corpo espiritual, já não se insinuará na alma concupiscência alguma deste mundo, nem prazeres terrenos, que a afastem da contemplação de Deus. Então se realizará o que diz o Apóstolo: “O corpo está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,10.11). Estando vivificados nossos corpos, haverá paz verdadeira lá onde está; mas preceda a confissão. “Deus se manifestou na Judéia”, confessa primeiro. “Grande é o seu nome em Israel”, ainda não vês na realidade. Vê na fé, e far-se-á o que segue: Na paz fixou o seu lugar e sua morada em Sião”. Traduz-se Sião por contemplação. Já falamos ontem, e ouviram alguns irmãos que hoje estão presentes, o que é contemplação? Pois, contemplaremos Deus face a face (cf 1Cor 13,12). Isto nos é prometido. Ver aquele que agora não vemos, mas em quem acreditamos. Como nos alegraremos quando o virmos? Irmãos, se agora é tão grande a alegria que nos causa a promessa, como não será a do cumprimento da promessa? Ele nos pagará o que prometeu. E o que prometeu? A si mesmo, e alegrar-nos-emos por causa de sua face que contemplaremos. Outra coisa não nos deleitará, porque nada é melhor do que aquele que fez tudo quanto deleita. “Na paz fixou o seu lugar e sua morada em Sião”, isto é, através de certa contemplação e visão ele fez sua habitação “em Sião”. | |
§ 6 | 4 “Aí ele quebrou toda a força dos arcos, o escudo, a espada e a guerra”. Onde quebrou? Naquela paz eterna, naquela paz perfeita. E agora, meus irmãos, os que acreditaram retamente, vêem que não devem presumir de si mesmos e quebram toda a força de suas ameaças, tudo o que possuem de afiado para ferir. E o Senhor quebrou ali tudo o que eles tinham por grande defesa temporal e a luta em que se empenhavam contra Deus, defendendo seus pecados. | |
§ 7 | 5 “Vieste tu, esplendente de luz, das montanhas eternas”. Quais são estes montes eternos? Aqueles que Deus tornou eternos; são altas montanhas, os pregadores da verdade. Tu iluminas, mas dos montes eternos. Primeiro os altos montes recebem tua luz, e da tua luz que eles recebem, revestem a terra. Mas aqueles grandes montes, os apóstolos, receberam os primórdios da luz do oriente. Acaso retiveram a luz que receberam? Não; não lhes fosse dito: “Servo mau e preguiçoso, devias ter depositado o meu dinheiro junto dos banqueiros” (Mt 25,26.27). Se, na verdade, não retiveram em si mesmos o que haviam recebido, mas o pregaram por todo o orbe da terra: “Vieste tu, esplendente de luz das montanhas eternas”. Por meio daqueles que fizeste eternos, prometeste a vida eterna aos demais: “Vieste, tu esplendente de luz, das montanhas eternas”. Com elegância e moderação foi dito: “Tu”, a fim de que não se julgue que os montes o iluminem. Muitos partidos, tirados desses montes: dividiram os montes e eles mesmos se quebraram. Alguns escolheram Donato, outros preferiram Maximiano, outros aderiram a este ou àquele. Por que opinam que sua salvação vem dos homens e não de Deus? Ó homem, a luz chegou a ti através dos montes, mas é Deus quem te ilumina e não os montes. “Vieste, tu, esplendente de luz. Tu”, não os montes. “Vieste tu, esplendente de luz, dos montes”. De fato, “eternos”, mas és tu que iluminas. Por esta razão, em outra passagem que diz o salmo? “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio”. Como é então? Tua esperança são os montes, e de lá te virá o auxílio? Paraste nos montes? Vê o que tens a fazer. Existe algo acima dos montes; acima dos montes e diante de quem os montes trepidam. “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio”. Mas como continua? “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 120,1.2). Com efeito, ergui os olhos para os montes, porque por intermédio dos montes se me revelam as Escrituras; mas tenho o coração naquele que ilumina todos os montes. | |
§ 8 | Por isso, irmãos, tudo isso foi dito para que nenhum de vós queira colocar sua esperança num homem. O homem é alguma coisa só enquanto adere àquele que o fez. Pois, se dele se aparta, nada é; e também quando adere a outros homens. Recebe conselho da parte de um homem, mas considera aquele que o ilumina. Com efeito, tu também podes aproximar-te de Deus, que te fala através de um homem; Deus não fez com que este dele se aproxime e te repele. Quem verdadeiramente assim se acerca de Deus, a fim de que nele habite, não se compraz nos que não põem em Deus sua esperança. Por isso, nos é proposto um exemplo, o daqueles que dividiram entre si os apóstolos, querendo criar um cisma, e diziam: “Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Cefas”, isto é, de Pedro. O Apóstolo os lastima, dizendo-lhes: “Cristo estaria dividido?” E propôs dentre os apóstolos a si mesmo, como desprezível: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo?” (1 Cor 1,12.13). Considera o monte excelente que não procura a glória para si, mas para aquele que ilumina os montes. Não queria que presumissem eles de si, e sim daquele a respeito do qual ele também presumira. Todo aquele, portanto, que não quiser se recomendar desta maneira ao povo, de tal sorte que, se acontecer algum tumulto, ele dividir o povo para que o siga, dividir a Igreja católica por sua própria causa, não é do número daqueles montes que o Altíssimo ilumina. Quem é, então? Alguém que se obscureceu a si mesmo, não sendo iluminado pelo Senhor. E como se comprovam os montes bons? Se talvez acontecer algum tumulto contra os montes na Igreja, por sedições populares dos homens carnais, ou por falsas suspeitas, o bom monte repele todos os que, por sua causa, querem deixar a unidade da Igreja. Assim, pois, ele permanecerá na unidade, não permitindo que por sua causa se rompa a unidade. Os outros se dividem. Quando o povo se separa do restante da terra, e segue a denominação deles, alegram-se, orgulham-se e são derrubados. Se eles se humilhassem, seriam exaltados, conforme se humilhou o Apóstolo, ao dizer: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor?” E em outro trecho: Eu plantei, Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer. Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa tão-somente Deus, que dá o crescimento” (1 Cor 3,6.7). Tais montes, em si, são humildes, mas em Deus são excelsos; os que, porém, em si mesmos são excelsos, são humilhados por Deus: “Pois todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11). Efetivamente, os que se entregam à soberba, amarguram os homens pacíficos na Igreja. Não querem fazer as pazes; entre si provocam dissensões. Como fala deles outro salmo: “Não se elevem os rebeldes em si mesmos” (Sl 65,7). “Vieste tu, esplendente de luz”, atenção! tu mesmo, “das montanhas eternas”. | |
§ 9 | 6 “Perturbaram-se todos os insensatos de coração”. A verdade foi pregada, foi anunciada a vida eterna; foi dito haver outra vida que não é desta terra. Os homens desprezaram a vida presente e amaram a vida futura, iluminados pelos montes resplandecentes. “Perturbaram-se todos os insensatos de coração”. “Como se perturbaram?” Ao ser pregado o evangelho. E que é a vida eterna? E quem ressuscitou dos mortos? Os atenienses se admiraram, ao se referir Paulo à ressurreição dos mortos, e imaginaram que contava uma fábula qualquer. Mas como afirmava que havia outra vida, e que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem o coração do homem percebeu em que consiste (cf At 17,18.32; 1Cor 2,9), “os insensatos de coração se perturbaram”. Que lhes sucedeu então? Dormiram, sonharam e esses homens ricos nada encontraram nas mãos”. Amaram os bens presentes, e adormeceram repousando neles. Tornou-se-lhes deliciosa a sua posse, assim como alguém que em sonho encontra um tesouro, e sente-se rico enquanto não acorda. Aquele sonho o fez rico; desperto, vê-se pobre. Aquele sonho lhe adveio talvez deitado no chão, jazendo no duro, pobre e até mendigo; em sonhos viu-se deitado num leito de marfim ou de ouro, com um alto colchão de penas. Enquanto dorme, está bem; ao despertar, está no chão duro, onde sonhou. Tais são também estes. Vieram a esta vida, e por causa das ambições temporais de certo modo dormiram e alcançaram riquezas com pompas vãs e transitórias, e passaram eles mesmos. Não entenderam quanto teriam podido tornar-se bons. Pois, se conhecessem a outra vida, entesourariam ali o que aqui seria perecível, como viu Zaqueu, um dos principais publicanos, quando recebeu o Senhor Jesus como hóspede, e lhe disse: “Dou a metade de meus bens aos pobres e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo”. Não estava na vaidade dos sonhos, mas tinha fé vigilante. Por isso, o Senhor, médico que visi-tava um doente, prognosticou-lhe a saúde, dizendo: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão” (Lc 19,8.9). Ficai sabendo que nós somos filhos de Abraão, quando lhe imitamos a fé; os judeus, porém, que se orgulham da descendência carnal, degeneraram por falta de fé. “Por isso, dormiram, sonharam e esses homens ricos nada encontraram nas mãos”. Dormiram apoiados em suas cobiças; gozam dos prazeres, passa o sonho, acaba esta vida, e eles nada encontram nas mãos, porque nada depositaram nas mãos de Cristo. Queres encontrar algo em tuas mãos mais tarde? Não desprezes agora a mão do pobre. Olha para as mãos vazias se queres ter as mãos cheias. Pois, disse o Senhor: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes, etc. Eles responderão: Quando foi que te vimos com fome, com sede, ou forasteiro? Retoma o Senhor: Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,35-40). Aquele que é rico no céu quis ter fome nos pobres; e tu hesitas em dar ao homem, embora saibas que é a Cristo que dás e que dele recebeste tudo o que dás. “Mas eles dormiram, sonharam e esses homens ricos nada encontraram nas mãos”. | |
§ 10 | 7 “Ante a tua ameaça, ó Deus de Jacó, adormeceram todos os que montavam cavalos”. Quais são esses “que mon-tavam cavalos?” Os que não quiseram ser humildes. Não é pecado montar a cavalo; mas é pecado erguer a cerviz de seu poder contra Deus, e pensar que isto é honroso. Montaste porque és rico; Deus repreende e dormes. Grande é a cólera daquele que te repreende, grande cólera. V. Caridade preste atenção a uma coisa tremenda. A repreensão causa ruído e o ruído costuma despertar os homens. De tanto peso é a repreensão de Deus que o salmista diz: “Ante a tua ameaça, ó Deus de Jacó, adormeceram todos os que montam cavalos”. Eis qual foi o sono daquele faraó que montava cavalos (cf Ex 14,8); seu coração não era vi-gilante, porque era duro perante as ameaças. Adormecer é possuir dureza de coração. Por favor, irmãos. Vede como dormem aqueles que, ao ressoar o evangelho, o Amém, o Ale-luia por toda a terra, ainda não querem rejeitar sua antiga vida, e se tornar vigilantes na nova vida. A Escritura de Deus estava depositada na Judéia; agora se canta por toda a terra. Somente no meio de um povo se apregoava o Deus único, que fez todas as coisas, e que devia ser adorado e cultuado; agora, onde não se diz: Cristo ressuscitou? Escarnecido na cruz, a mesma na qual sofreu insultos está marcada na fronte dos reis; e ainda há quem durma! Grande é a ira de Deus, irmãos! É melhor para nós termos ouvido aquele que diz: “Ó tu, que dormes, desperta, que Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Mas, quem o ouve? Os que não montam cavalos. Quais são os que não montam cavalos? Os que não se gabam, nem se orgulham de suas honrarias e poderes. “Ante a tua ameaça, ó Deus de Jacó, adormeceram todos os que montavam cavalos”. | |
§ 11 | 8 “Tu és terrível; quem pode resistir no momento de tua ira?”. Agora dormem e não percebem que o Senhor está irado; mas para que eles dormissem, ele está irado. Agora não sentem que estão dormindo, mas no fim hão de sentir, pois aparecerá o juiz dos vivos e dos mortos, e “quem pode resistir no momento de tua ira? De fato, eles agora falam o que querem, e disputam contra Deus, e dizem: Quem são os cristãos? Ou quem é Cristo? Ou como são ineptos os que acreditam no que não vêem, renunciam aos prazeres que percebem e têm fé naquilo que não se apresenta a seus olhos? Dormis e balis; falai contra Deus quanto puderdes. “Até quando os pecadores, Senhor, até quando os pecadores haverão de se gloriar? Responder e proferir a iniqüidade”? (Sl 93,3.4). Quando é que, de fato, ninguém responde, ninguém fala, a não ser quando se voltam para si mesmos? Quando voltarão contra si os dentes com os quais agora nos roem, nos dilaceram zombando dos cristãos e censurando a vida dos santos? Voltar-se-ão para si, ao acontecer o que está previsto no livro da Sabedoria: “Dirão entre si, arrependidos, entre soluços e gemidos de angústia, quando virem a glória dos santos. Então dirão: “Estes são aqueles de quem outrora nos ríamos”. Ó vós, que dormistes profundamente! Certamente já acordastes e nada encon-trastes nas mãos. Vede como aqueles dos quais outrora zombastes têm as mãos cheias da glória de Deus. Dizei-o agora a vós mesmos, quando já não resistis à ira de Deus; não com as mãos, nem com a língua, nem pela palavra ou pensamento, porque vos aparecerá claramente aquele que considerastes ridículo na ocasião em que se vos anunciava a sua vinda. E que dirão eles? “Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol”. Como poderia nascer o sol da justiça para aqueles que dormiam? Mas dormem devido à ira e às ameaças do Senhor. Talvez um deles há de se desculpar: Não montei a cavalo. Então eles acusarão seus cavalos. Ouve como acusam seus cavalos, que os levaram a dormir: “Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviram riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,3.6.8.9). Por fim, acordaste. Mas seria melhor não teres montado cavalos, não adormeceres quando devias estar desperto, e ouvir a voz de Cristo, a fim de que ele te iluminasse. “Tu és terrível; quem pode resistir no momento de tua ira?” Que acontecerá então? | |
§ 12 | 9 “Do céu proferiste a sentença. Tremeu a terra e aquietou-se”. Quem agora se perturba, fala, há de temer e aquietar-se no fim. Seria bem melhor agora aquietar-se para se alegrar no fim. | |
§ 13 | 10 “Tremeu a terra e aquietou-se”. Quando? “Quando Deus se levantou para julgar e salvar os mansos de coração”. Quais os “mansos de coração?” Os que não montaram cavalos fogosos, mas em sua humildade confessaram os próprios pecados. “Para salvar os mansos de coração”. | |
§ 14 | 11 “O pensamento do homem te louvará e os pensamentos restantes haverão de te celebrar”. Primeiro, “o pen-samento”; segundo, “os pensamentos restantes”. Qual é o primeiro “pensamento?” Por onde principiamos. É bom o “pensamento” que começa pela confissão. A confissão nos une a Cristo. Com efeito, a própria confissão, isto é, o pri-meiro “pensamento” produz em nós os restantes pensamentos; e “os pensamentos restantes haverão de te celebrar. O pensamento do homem te louvará e os pensamentos restantes haverão de te celebrar”. Qual o “pensamento que louvará?” O que condena a vida anterior, quando a alguém desagrada o que era para se tornar o que não era. Eis o primeiro “pensamento”. Deves afastar-te dos pecados, confessar a Deus com o primeiro pensamento, de tal forma que não percas a lembrança de teres sido pecador, e por teres sido pecador, deves celebrar a Deus. Ainda devemos aprofundar a questão. O primeiro “pensamento” é de confissão e afastamento da vida anterior; mas se te esqueceres de que pecados foste libertado, não dás graças ao libertador, e não celebras a teu Deus. Eis qual foi o primeiro “pensamento”, a confissão de Paulo Apóstolo, quando já transformado em Paulo aquele que primeiro foi Saulo. Ouviu a voz do céu, enquanto perseguia a Cristo e enfurecia-se contra os cristãos, querendo arrastar à morte todos os que encontrasse. Ouviu a voz que vinha do céu: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” E cercado de luz, adveio-lhe a cegueira, de tal sorte que via só intimamente; emitiu o primeiro pensamento de obediência. Tendo ouvido: “Eu sou Jesus, a quem persegues”, respondeu: “Que devo fazer, Senhor”? (At 9,4-5; 22,10). Eis um “pensamento” de confissão. Ele já chama de Senhor aquele que ele perseguia. Ouvistes contar como em Paulo “os pensamentos restantes haveriam de celebrar”, na leitura de outra carta do mesmo Apóstolo: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi segundo o meu evangelho”. Por que: “lembra-te?” Não se apague de tua memória o primeiro “pensamento” de confissão; fiquem os “restantes pensamentos” na memória. Vê como o mesmo apóstolo Paulo, em outra passagem, repete a relação do que lhe foi dado: “Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente”. Quem declara: “Outrora fui blasfemo”, ainda o é? Para deixar de ser blasfemo, teve o primeiro “pensamento de confissão; e a fim de relembrar o que lhe foi concedido, teve os “restantes pensamentos” e por eles celebrava o Senhor. | |
§ 15 | Portanto, irmãos, eis que Cristo nos renovou; perdoou todos os pecados e nós nos convertemos. Se esquecermos o que nos foi doado, e por quem, esquecemo-nos da dádiva do Salvador. Se não nos esquecemos da dádiva do Salvador, Cristo não é imolado por nós diariamente? Cristo foi imolado uma vez por nós, quando cremos; então foi o primeiro “pensamento”; agora, porém, são os “pensamentos restantes”, ao nos recordarmos de quem veio até nós e o que nos deu; pelos próprios restantes pensamentos, isto é, pela própria memória, cotidianamente é de certo modo imolado, como se cada dia renovasse em nós a primeira graça de restauração. O Senhor já nos renovou no batismo, e nos tornamos homens novos, alegres de fato na esperança, para sermos pacientes na tribulação (cf Rm 12,12); contudo, não deve se apagar de nossa memória o que nos foi outorgado. Se agora não é teu “pensamento” mais o que foi (na verdade, o primeiro “pensamento” foi afastar-se do pecado; agora não te afastas, mas outrora te afastaste): existam pensamentos “restantes”, no intuito de não se perder a lembrança de quem curou. Se esqueceres que estiveste ferido, não terás os “pensamentos restantes”. O que pensais que disse Davi? Pois, ele fala em lugar de todos. O santo Davi havia pecado gravemente. Foi-lhe enviado o profeta Natã que o repreendeu, e ele confessou: “Pequei” (2Rs 12,13). Foi um primeiro “pensamento” de confissão: “O pensamento do homem te louvará”. Quais foram “os pensamentos restantes?” Foram os que teve quando disse: “E o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 50,5). Qual foi, portanto, o primeiro “pensamento?” O de abandonar o pecado. E se já abandonara o pecado, como o seu pecado estava sempre diante dele, a não ser porque aquele “pensamento” passou, mas ficaram “os pensamentos restantes”, que haveriam de celebrar? Lembrai-vos, portanto, irmãos caríssimos, por favor: quem se libertou do pecado, recorde-se do que foi; haja nele “Os pensamentos restantes”. Então há de suportar outro que precise de ser curado, se não se esquecer de que foi curado ele também. Por isso, cada um lembre-se do que foi, e se já não é assim; então há de socorrer aquele que ainda é como ele deixou de ser. Se, porém, se gaba de seus méritos e repele, como sendo indignos, os pecadores, e se encoleriza sem misericórdia, monta a cavalo, mas veja que não durma. Pois, “adormeceram os que montavam cavalos”. Já desceu do cavalo, humilhou-se; não monte de novo, isto é, não se erga novamente com orgulho. Como se fará isto? Se “os pensamentos restantes” celebrarem a Deus. | |
§ 16 | 12 “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”. Cada qual faça os votos que puder, mas cumpra-os. Não façais para não cumprir, mas cada um faça os votos que puder e cumpra-os. Não tenhais preguiça de fazer votos, porque não será com vossas próprias forças que os cumprireis. Falhareis se presumirdes de vós mesmos; se, porém, confiais naquele ao qual fazeis votos, fazei-os, pois, com toda certeza, os cumprireis. “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”. Todos nós, em geral, que devemos prometer? Acreditar em Deus, esperar dele a vida eterna, viver bem segundo a maneira habitual. Há certo estilo de vida comum a todos. Não roubar. Não é preceito a continência perfeita, nem o casamento, mas não cometer adultério é preceituado a todos. Igualmente a todos é ordenado não amar a embriaguez, que sufoca a alma e destrói o templo de Deus. É ordenado a todos de igual maneira não se orgulhar. É mandamento comum a todos não cometer homicídio, não odiar um irmão, não planejar a ruína de outrem. Todos nós devemos prometê-lo. Mas existem também votos privados. Um promete a Deus castidade conjugal, não querendo unir-se a outra mulher senão a sua; assim também a mulher, que não se una a outro, senão a seu marido. Outros também prometem, embora tenham experimentado tal união, não empregá-la mais, nem desejá-la ou tê-la; estes fizeram um voto maior. Outros desde jovens prometem a virgindade, de maneira a não ter tal união, que os outros experimentados deixaram; e estes fizeram um voto maior. Outros prometem que sua casa será hospitaleira para todos os santos que advierem a ela; é um grande voto. Outro faz voto de deixar tudo o que é seu e distribuí-lo aos pobres, adotando vida comum, na companhia de santos; fazem um grande voto. “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”. Cada qual faça o voto que quiser; cuide somente de cumprir o que prometeu. Se alguém faz um voto a Deus e olha para trás, faz mal. Se uma monja qualquer quiser casar-se, o que faz? O que faz qualquer virgem. O que quer? O mesmo que sua mãe. É um mal? Sim, um mal. Por quê? Porque já fizera um voto a Deus. Que ensinou a respeito delas o apóstolo Paulo? Tendo dito que as viúvas jovens se casassem de novo se o quisessem (cf 1Tm 5,14), fala em determinada passagem: “Todavia será mais feliz, a meu ver, se ficar como está” (1 Cor 7,40). Mostra que a virgem será mais feliz se permanecer como está; contudo, não é condenável se quiser se casar. Como se exprime a respeito de alguns que fizeram um voto e não o cumpriram? “Tornam-se censuráveis por terem rompido o seu primeiro compromisso” (1 Tm 5,12). Que significa: romperam o seu primeiro compromisso?” Prometeram e não cumpriram. Nenhum monge diga: Saio do mosteiro, pois não somente os que estão no mosteiro alcançarão o reino dos céus, nem deixam de pertencer a Deus os que lá não estão. Seja-lhe dada a resposta: Mas eles não fizeram voto; tu prometeste e olhaste para trás. Como o Senhor ameaça acerca do dia do juízo? “Lembrai-vos da mulher de Lot” (Lc 17,32). Ele se dirige a todos. Que fez a mulher de Lot? Libertada de Sodoma e tendo ingressado na estrada, olhou para trás. Ficou no lugar de onde olhou. Transformou-se em estátua de sal (Gn 19,26), a fim de que, vendo-a, os homens se temperassem. Tenham ânimo, não sejam insossos, não olhem para trás, para não suceder que, dando mau exemplo, fiquem presos e sirvam para moderação de outros. Pois, também agora dizemos a alguns de nossos irmãos, que vemos talvez fraquejando em seu bom propósito: Queres ser como aquele? Apresentamos-lhes alguns que olharam para trás. Eles são insossos em si, mas servem para moderar os outros quando mencionados, de tal modo que, diante do exemplo que eles deram, estes receiem olhar para trás. “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”, porque a mulher de Lot adverte a todos. Se, por exemplo, uma mulher casada quiser praticar adultério, olhou para trás do lugar onde se achava. A viúva que já fizera voto de permanecer como estava, quer se casar, querendo o que é lícito à mulher casada, não lhe é lícito, porque de seu lugar olhou para trás. Uma virgem é monja dedicada a Deus; tenha as demais virtudes que verdadeiramente ornam a virgindade, e sem as quais aquela virgindade é vergonhosa. De que vale ter o corpo íntegro e a mente corrupta? Que foi que eu disse? Se ninguém tocar seu corpo, mas ela for dada à embriaguez, for soberba, contenciosa, loquaz? Deus condena tudo isso. Se ela se casasse antes de fazer um voto, não seria condenável. No entanto, escolheu o melhor, foi além do que lhe era lícito, mas ensoberbeceu-se e cometeu tantos atos ilícitos. Afirmo o seguinte: É permitido casar-se antes de fazer um voto; mas ser soberba, nunca. Ó virgem de Deus, não quiseste casar-te, o que era lícito; mas orgulhas-te, o que é ilícito. É melhor uma virgem humilde do que uma casada humilde; mas é melhor a casada humilde do que a virgem soberba. Aquela que se inclinou para as núpcias não é condenada por ter querido casar-se; mas é condenada porque já antecedera o voto e fez como a mulher de Lot, olhando para trás. Não tenhais preguiça, vós que podeis, e que Deus deseja levar a graus melhores. Não falamos estas coisas a fim de não fazerdes votos, mas para que cumprais o que prometestes: “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”. Depois que tratarmos deste assunto, talvez querias fazer um voto e agora não queres mais. Mas observa o que te diz o salmo. Não disse: Não façais votos, e sim: “Fazei votos e cumpri-os”. Porque ouviste: “cumpri”, não queres fazer voto? Então querias fazer o voto e não cumprir? Ao invés disso, faze ambas as coisas. Uma seja por teu compromisso; a outra se realizará, com o auxílio de Deus. Olha para aquele que te conduz, e não olharás para trás, de onde ele te tirou. Quem te conduz, anda adiante de ti; o lugar donde te tirou está atrás de ti. Ama teu condutor e ele terá de te condenar por olhares para trás. “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os”. | |
§ 17 | “Todos os que o cercam, oferecem dons”. Quais são os que o cercam? Onde se encontra ele para dizer: “Todos os que o cercam oferecem dons?” Se pensares em Deus Pai, onde não está aquele que em toda parte está presente? Se pensas no Filho, segundo a condição divina, ele com o Pai está em toda parte; porque ele é a Sabedoria de Deus, da qual se disse: “Por sua pureza, tudo atravessa e penetra” (Sb 7,24). Se, porém, atribuis ao Filho, enquanto assumiu a carne, e foi visto entre os homens, foi crucificado, resssucitou, sabemos que ele subiu ao céu. Quais são os que estão a sua volta? Os anjos. Por conseguinte, nós não oferecemos dons, “porque todos os que o cercam oferecem dons”. Se nosso Senhor estivesse sepultado aqui na terra, e seu corpo jazesse como o corpo de um mártir ou apóstolo, observaríamos os que estivessem em volta, quaisquer povos que o cercassem de todas as partes, ou que acorressem àquela sepultura com dádivas. Agora, porém, ele subiu ao céu, está nas alturas. Que significa então: “Todos os que o cercam oferecem dons?” Por enquanto, dir-vos-ei o que Deus me mostra, o que através destas palavras ele se dignou me inspirar; se depois surgir uma opinião melhor, é vossa parte, porque a verdade é comum a todos. Não é minha, nem tua; não é deste nem daquele; é comum a todos. Talvez mesmo esteja no meio, para que a cerquem todos os que amam a verdade. Tudo o que é comum a todos fica no meio. Porque se diz que está no meio? Para distar igualmente de todos, e na mesma medida estar próximo de todos. O que não fica no meio é de certo modo privado. O que é público é colocado no meio, para que todos os que vêm percebam, e fiquem esclarecidos. Ninguém diga: É meu, querendo tornar partilha sua o que está no meio e é de todos. Que significa então: “Todos os que o cercam oferecem dons?” Todos os que entendem que a verdade é comum a todos, e não a tomam como sua, orgulhando-se dela, oferecem dons, porque possuem a humildade; os que, porém, tomam para si o que é comum a todos, e procuram arrastar para uma parte o que está no meio, não oferecem dons: porque “todos os que o cercam oferecem dons ao terrível”. Oferecem dons ao terrível; temam, portanto, todos os que o cercam. Todos temerão, e louvarão com tremor, porque estão ao seu redor, de tal sorte que todos o seguem, e publicamente todos a ele tenham acesso e ele os ilumine publicamente. Isto é o que significa temer. Se tu o tomares como próprio e não comum, exaltas-te orgulhosamente, pois está escrito: “Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Por conseguinte, oferecem dons os que o cercam; estes são humildes, porque sabem que a verdade é comum a todos. | |
§ 18 | 13 A quem oferecem dons? “Ao terrível e ao que retira o espírito aos príncipes da terra”. Espírito dos príncipes são espíritos soberbos. Estes, portanto, não são espíritos do Senhor, porque se sabem algo, querem que seja seu e não público. Mas aquele que se recomenda como sendo igual para todos, que se coloca no meio para que todos captem quanto puderem, tudo o que puderem, não é de qualquer um, mas de Deus; portanto, é deles, porque eles se tornaram de Deus. Com efeito, necessariamente todos eles são humildes; perderam o seu espírito e possuem o Espírito de Deus. Como perderam seu espírito? Por meio daquele que “retira o espírito dos príncipes”; de fato, diz-se a Deus em outro lugar: “Se lhes retiras o espírito, expiram e voltam para o pó de onde vieram. Enviarás teu Espírito e serão criados e renovarás a face da terra” (Sl 103,29.30). Alguém entende outra coisa; quer ser seu, ainda possui seu próprio espírito; seria bom para ele perder o próprio espírito para possuir o Espírito de Deus. Ele ainda se orgulha no meio dos príncipes; seria bom voltar ao pó a que pertence e dizer: “Lembra-te, Senhor, de que somos pó” (Sl 102,14). Se confessares que és pó, Deus tira um homem do pó da terra. “Todos os que o cercam oferecem dons”. Todos os humildes o confessam e adoram. “Ao terrível” oferecem dons. Por que ele é terrível? “Exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Ele “retira o espírito dos príncipes”, isto é, tira a audácia dos soberbos. “Aterroriza os reis da terra”. São terríveis os reis da terra; mas ele é mais terrível do que todos, e aterroriza os reis da terra. Sê rei da terra, e Deus te aterrorizará. Como, dizes, posso ser rei da terra? Domina a terra e serás rei da terra. Com a avidez de mandar não ponhas diante dos olhos províncias vastíssimas, por onde difundas teu reino; domina a porção de terra que carregas em ti. Ouve como o Apóstolo domina a terra: “É assim que pratico o pugilato, mas não como quem fere o ar. Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado” (1 Cor 9,26.27). Por conseguinte, meus irmãos, cercai-o, a fim de que, seja quem for que vos anuncie a verdade, não a atribuais àquele que a transmite; mas do meio chegue a todos, porque se apresenta de igual modo a todos. E sede humildes, a fim de não ausurpardes para vós e por vós mesmos, se acaso apreenderdes dela algum bem. Também quanto a nós, o que entendemos de melhor é vosso, e o que vós enten-derdes de melhor é nosso; desta maneira estamos à volta dele e sejamos humildes. Desta forma, perdendo nosso espírito, oferecemos dons ao terrível, acima de todos os reis da terra, isto é, acima de todos os que dominam sua própria carne, sendo sujeitos a seu Criador. | |