SALMO 𝟟𝟛

Na verdade que em vão tenho purificado o meu coração e lavado as minhas mãos na inocência,

pois todo o dia tenho sido afligido, e castigado cada manhã.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 73


§ 73:1  Verdadeiramente bom é Deus para com Israel, para com os limpos de coração.

§ 73:2  Quanto a mim, os meus pés quase resvalaram; pouco faltou para que os meus passos escorregassem.

§ 73:3  Pois eu tinha inveja dos soberbos, ao ver a prosperidade dos ímpios.

§ 73:4  Porque eles não sofrem dores; são e robusto é o seu corpo.

§ 73:5  Ɲ Não se acham em tribulações como outra gente, nem são afligidos como os demais homens.

§ 73:6  Pelo que a soberba lhes cinge o pescoço como um colar; a violência os cobre como um vestido.

§ 73:7  Os olhos deles estão inchados de gordura; trasbordam as fantasias do seu coração.

§ 73:8  ɱ Motejam e falam maliciosamente; falam arrogantemente da opressão.

§ 73:9  Põem a sua boca contra os céus, e a sua língua percorre a terra.

§ 73:10  Pelo que o povo volta para eles e não acha neles falta alguma.

§ 73:11  E dizem: Como o sabe Deus? e: Há conhecimento no Altíssimo?

§ 73:12  Eis que estes são ímpios; sempre em segurança, aumentam as suas riquezas.

§ 73:13  Ɲ Na verdade que em vão tenho purificado o meu coração e lavado as minhas mãos na inocência,

§ 73:14  pois todo o dia tenho sido afligido, e castigado cada manhã.

§ 73:15  Se eu tivesse dito: Também falarei assim; eis que me teria havido traiçoeiramente para com a geração de teus filhos.

§ 73:16  Quando me esforçava para compreender isto, achei que era tarefa difícil para mim,

§ 73:17  ɑ até que entrei no santuário de Deus; então percebi o fim deles.

§ 73:18  Ƈ Certamente tu os pões em lugares escorregadios, tu os lanças para a ruína.

§ 73:19  Ƈ Como caem na desolação num momento! ficam totalmente consumidos de terrores.

§ 73:20  Ƈ Como faz com um sonho o que acorda, assim, ó Senhor, quando acordares, desprezarás as suas fantasias.

§ 73:21  Quando o meu espírito se amargurava, e sentia picadas no meu coração,

§ 73:22  Estava embrutecido, e nada sabia; era como animal diante de ti.

§ 73:23  Ŧ Todavia estou sempre contigo; tu me seguras a mão direita.

§ 73:24  Ŧ Tu me guias com o teu conselho, e depois me receberás em glória.

§ 73:25  A quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti.

§ 73:26  A minha carne e o meu coração desfalecem; do meu coração, porém, Deus é a fortaleza, e o meu quinhão para sempre.

§ 73:27  Pois os que estão longe de ti perecerão; tu exterminas todos aqueles que se desviam de ti.

§ 73:28  ɱ Mas para mim, bom é aproximar-me de Deus; ponho a minha confiança no Senhor Deus, para anunciar todas as suas obras.


O SALMO 73



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 O título do salmo é o seguinte:

Inteligência. De Asaf”.

Asaph verte-se para o latim por assembléia, e em grego por sinagoga. Vejamos o que entendeu esta sinagoga. Quanto a nós, primeiro entendamos o que é sinagoga; em seguida o que ela entendeu. Toda assembléia em geral tem o nome de sinagoga; e existem reuniões de animais e de homens. Aqui não pode se tratar de um bando de animais, pois fala-se de inteligência. Mas se o homem, entre honrarias, negligenciar a sua inteligência, diz-se a seu respeito:

O homem, entre honrarias, não entendeu. Foi comparado aos jumentos irracionais e se lhes fez semelhante(Sl 48,13).

Não necessitamos dissertar longa-mente, nem relembrar com insistência que o texto não é relativo a um agregado de animais; mas como se trata de homens, devemos entender de que espécie de homens. Não se refere, efetivamente, àqueles homens que entre honrarias não entendem, sendo comparáveis a animais irracionais e assemelhando-se a eles, mas de homens que entendem. O título do salmo o prescreve com os dizeres: Inteligência. De Asaf. Trata-se de uma reunião de seres inteligentes, cuja voz havemos de ouvir. Mas, tendo em vista que propriamente denomina-se sinagoga a assembléia do povo de Israel, de sorte que sempre que escutamos falar de sinagoga, apenas costumamos entendê-lo do povo de Israel, vejamos se acaso é sua a voz ouvida neste salmo. Mas de que judeus, de qual povo de Israel? Com efeito, não se trata de palhas, mas talvez de trigo; não dos ramos cortados, mas talvez dos que se consolidaram (cf Mt 3,12; Rm 11,17).

Nem todos que descendem de Israel são Israel. Mas de Isaac sairá a descendência que terá teu nome. Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são tidos como descendentes(Rm 8,6-8).

São, portanto, determinados israelitas, entre os quais se contava aquele do qual foi dito:

Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento(Jo 1,47).

Não digo que é deste modo que somos israelitas, quer dizer, que somos descendentes de Abraão carnalmente. O Apóstolo, de fato, falava aos gentios, nesses termos:

Então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa(Gl 3,29).

Segundo a promessa, portanto, somos israelitas todos nós que seguimos as pegadas de nosso pai na fé, Abraão. Mas aqui entendemos tratar-se daqueles primeiros israelitas, dos quais fala o Apóstolo:

Pois eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim(Rm 11,1).

Reconheçamos aqui o que disseram os profetas:

O resto é que será salvo(Rm 9,27).

Ouçamos aqui a voz do resto que será salvo, a fala da sinagoga que recebera o Antigo Testamento e visava a promessas carnais, de tal sorte que seus pés vacilaram. De fato, em outro salmo, que traz também no título o nome de Asaf, o que se diz? “Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração! Os meus pés quase escorregaram”.

E se perguntássemos: Por que teus pés quase escorregaram? “Por um triz não resvalaram meus passos, ao ter inveja dos maus, observando a paz dos pecadores”.

Com efeito, ao esperar a felicidade terrena, de acordo com as promessas de Deus no Antigo Testamento, ele nota que os ímpios a possuem intensamente; os que não adoravam a Deus haviam adquirido todas as coisas que ele esperava obter de Deus; e seus pés vacilaram, parecendo-lhe que fora inútil adorar a Deus. É por isso que diz o salmista:

São assim os pecadores; e opulentos no mundo, aumentam suas riquezas. Foi então inutilmente que justifiquei meu coração”? (Sl 72,1.2. 3.12.13).

Vede como foi por um triz que seus pés não resvalaram, ao dizer a si mesmo: Que utilidade retiro em servir a Deus? Aquele não o serve e é feliz; eu sirvo e estou aflito. Enfim, supõe que eu seja feliz; se é também feliz aquele que não serve a Deus, como pensar que sou feliz porque sirvo? O salmo cujos testemunhos apresen-tei precede imediatamente este que agora temos nas mãos.



§ 2
Oportunamente aconteceu, por disposição de Deus e não por escolha nossa, que tenhamos acabado de ouvir do evangelho:

Porque a Lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo(Jo 1,17).

Se, com efeito, examinarmos os dois Testamentos, o Antigo e o Novo, não encontramos os mesmos sacramentos, nem as mesmas promessas; contudo, são muitas vezes os mesmos os preceitos. Pois, foi-nos também ordenado:

Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Honra a teu pai e tua mãe. Não dirás falso testemunho. Não cobiçarás as coisas alheias. Não desejarás a mulher de teu próximo(Ex 20,12-17).

Quem não observar estes mandamentos desgarra e torna-se completamente indigno de subir ao santo monte de Deus, do qual foi dito:

Senhor, quem será hóspede em teu tabernáculo e quem repousará em teu monte santo? Quem possui mãos inocentes e coração puro(Sl 14,1; 23,4).

Um exame atento dos preceitos, portanto, revela que todos são idênticos, ou muito pouco se encontra no evangelho que não tenha sido proferido pelos profetas. Os preceitos são os mesmos; quanto aos sacramentos, porém, não são idênticos, nem as promessas. Vejamos quais os preceitos que permanecem porque devemos servir a Deus de acordo com eles. Os mistérios, contudo, não são os mesmos, porque uns são os sacramentos que comunicam a salvação e outros os que prometem o Salvador. Os sacramentos do Novo Testamento dão a Salvação; os do Antigo prometeram o Salvador. Já de posse das promessas, por que procurar outras, se já tens o Salvador? Digo, tens o prometido, mas ainda não recebemos a vida eterna, e sim já veio o Cristo, prenunciado pelos profetas. Os sacramentos mudaram; tornaram-se mais fáceis, em menor número, mais salutares e mais felizes. Por que as promessas não são as mesmas? Porque fora prometida a terra de Canaã, terra fértil, ubertosa, que manava leite e mel; fora prometido o reino temporal, a felicidade neste mundo, a fecundidade de muitos filhos, a sujeição dos inimigos. Tudo isso pertence à felicidade terrena (cf Ex 3,8).

Mas qual o motivo por que convinha ser tudo isso primeiramente prometido? “Porque primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual, vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu. Qual foi o homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem celeste, tais serão os celestes. E, assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste(1 Cor 15,26-29).

À imagem do homem terreno corresponde o Antigo Testamento; à imagem do homem celeste, o Novo Testamento. Mas, no intuito de que ninguém pensasse que um foi que criou o homem terreno e outro, o celeste, Deus demonstrando que é o Criador de ambos, quis ser o autor de ambos os Testamentos. Prometeu bens terrenos no Antigo Testamento, e celestes em o Novo Testamento. Todavia, por quanto tempo és terreno em primeiro lugar? Por quanto tempo terás gosto pelos bens terrenos? Por acaso se damos brinquedinhos ao menino, jogos que ocupem o espírito infantil, depois que estiver crescido não os tiramos de suas mãos, para que ele se entregue a tarefas mais úteis, convenientes a um menino maior? No entanto, foste tu mesmo que deste esses presentes a teu filho: bagatelas quando pequenino e um códice quando maior. Não se pense que não foi Deus quem deu a Lei antiga porque ele a tirou, como se fosse um jogo infantil, das mãos dos filhos, através do Novo Testamento, dando aos mais crecidos coisas mais úteis. Foi Deus quem deu ambas as coisas. Mas a própria “Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo(Jo 1,17).

Graça”, porque se realizam pela caridade os preceitos da letra; “verdade”, porque se cumprem as promessas. Foi isto, portanto, que entendeu nosso Asaf. Enfim, tudo o que fora prometido aos judeus lhes foi tirado. Onde se acha seu reino? Onde está o templo? Onde a unção? Onde o sacerdote? Onde o profeta entre eles? Desde que veio aquele que fora prenunciado pelos profetas, naquele povo não há mais estas coisas: já perdeu os bens terrenos e ainda não busca os celestes.



§ 3
Por conseguinte, não deves apegar-te aos bens terrenos, embora seja Deus quem os concede. Todavia, mesmo que não devamos nos apegar a eles, tampouco havemos de acreditar que outro que não seja Deus podia nô-los dar. É ele quem os dá. Mas não esperes como um dom muito importante aquilo que ele dá mesmo aos maus. Pois, se os desse como algo de importante, não os concederia aos maus. Quis dá-los igualmente aos maus para que os bons saibam pedir dele aquilo que ele não dá também aos maus. Os judeus infelizes, aderindo aos bens terrenos, sem esperá-los daquele que fez o céu e a terra, que lhes fez dádivas terrenas, que os libertou, no tempo, do cativeiro do Egito, que os conduziu através do mar, que afogou seus inimigos e perseguidores nas ondas (cf Ex 14,22.28), os judeus, não confiando naquele que, de fato, dá os bens celestes aos grandes, assim como concedeu os terrenos aos pequenos, e temendo perder o que já haviam recebido, mataram seu doador. Dizemos tais coisas, irmãos, a fim de aprenderdes, enquanto homens do Novo Testamento, a não vos apegardes ao que é terreno. Se eles foram inescusáveis por terem aderido aos bens terrenos, quando o Novo Testamento ainda não fora revelado, quanto mais não serão inescusáveis os que vão atrás dos bens terrenos, tendo já sido reveladas a estes as promessas celestes encerradas em o Novo Testamento! Pois lembrai-vos bem, meus irmãos, do que disseram os perseguidores do Cristo:

Se o deixarmos assim, os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação(Jo 11,48).

Vede que por temor de perder bens terrenos, eles mataram o rei do céu. E o que lhes aconteceu? Perderam também os bens terrenos. Onde eles mataram a Cristo, também eles foram mortos. Por não quererem perder a terra, mataram o doador da vida e estes morto, eles perderam a própria terra. Na mesma época do ano em que o mataram isto aconteceu a fim de que a própria circunstância do tempo os admoestasse sobre a causa de seus sofrimentos. Pois, ao ser destruída a cidade dos judeus, eles celebravam a Páscoa, e todo o povo concorrera aos milhares para celebrar aquela festa. Ali Deus, de fato por intermédio dos malvados (no entanto, sendo ele bom; por meio de injustos, enquanto ele é justo), com justiça os castigou, de tal sorte que foram mortos muitos milhares de homens e a própria cidade foi destruída. É isto que chora o presente salmo — Inteligência. De Asaf — e com o próprio pranto, entende e discerne os bens terrenos dos celestes, distingue o Antigo do Novo Testamento. Assim, verificas por onde deves passar, o que deves esperar, o que abandonar, a que aderir. Assim, portanto, começa o salmo.



§ 4
Por que razão, ó Deus, nos rejeitaste até o fim? Rejeitaste até o fim”: fala em lugar do povo judaico, da assembléia propriamente designada por sinagoga.

Por que razão, ó Deus, nos rejeitaste até o fim?” Não repreende, mas pergunta:

Por que razão”, por que, qual o motivo de assim procederes? Por que assim agiste? “Nos rejeitaste até o fim”.

Que significa:

até o fim?” Talvez até o fim do mundo. Ou nos rejeitaste a respeito de Cristo, que é o fim para todo o que crê? (cf Rm 10,4).

Por que razão, ó Deus, nos rejeitaste até o fim? E inflamou-se a tua ira contra as ovelhas de teu rebanho?” Por que te iraste contra as ovelhas de teu rebanho, senão porque aderíamos às coisas terrenas e desconhecíamos nosso pastor?



§ 5
2 “Recorda-te de teu povo que possuíste desde o princípio”.

Poder-se-ia tratar-se aqui da voz dos gentios? Acaso Deus os possuiu desde o início. Ele possuiu, contudo, a descendência de Abraão, o povo de Israel, nascido também segundo a carne dos patriarcas, nossos pais. Deles nos tornamos filhos, não por descendência carnal, mas por imitação de sua fé. Que sucedeu àqueles, porém, que Deus possuiu desde o início? “Recorda-te de teu povo que possuíste desde o princípio. Resgataste a vara de tua herança”.

Resgataste teu povo e “a vara de tua herança”.

A este povo o salmista denominou “vara da herança”.

Consideremos o evento dos primórdios, quando Deus quis tomar posse do povo, libertando-o do Egito. Qual foi o sinal que deu a Moisés, que lhe perguntara: Que sinal lhes apresentarei a fim de que acreditem que me enviaste? “O Senhor perguntou-lhe: Que é isso que tens na mão? Respondeu-lhe: Uma vara. Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e ela se transformou em cobra, e Moisés fugia dela. Disse o Senhor a Moisés: pega-a pela cauda. Ele pegou-a pela cauda, e ela se converteu em vara, como era antes(Ex 4,1-4).

Qual o significado disso? Não foi em vão que assim aconteceu. Interroguemos as Escrituras de Deus. A que a serpente persuadiu o homem? À morte. Por conseguinte, a morte veio por meio da serpente. Se a morte veio através da serpente, e a vara se transformou em serpente, temos Cristo figurado em sua morte (cf Gn 3,4.5).

Por isso também, quando no deserto as serpentes causavam mordidas mortais, o Senhor ordenou a Moisés que levantasse no ermo uma serpente de bronze e avisasse o povo que todo aquele que fosse mordido por uma serpente e a olhasse, seria curado. Assim se fez. Os homens envenenados pelas mordidas das serpentes se curavam olhando a serpente de bronze (cf Nm 21,8; Jo 3,14).

Ser curado por uma serpente é grande mistério! Que quer dizer ser curado do veneno de uma serpente olhando a serpente? Crer em um morto para ser salvo da morte.

Moisés, contudo, teve medo e fugiu”.

Por que Moisés fugiu daquela serpente? Que será, irmãos, senão o que sabemos ter sido realizado no evangelho? Cristo morreu e os discípulos tiveram pavor e perderam a esperança (Lc 24,21).

Mas que diz a Escritura? “Pega-a pela cauda”.

Que é a “cauda?” Compreende as coisas que ficaram para trás. É o mesmo sentido que temos na palavra:

Tu me verás pelas costas(Ex 33,23).

A vara primeiro se tornou serpente, que tomada pela cauda voltou a ser vara; Cristo primeiro morreu, depois ressuscitou. A cauda da serpente figura também o fim do mundo, pois até lá vai a mortalidade na Igreja. Vêm uns, outros vão através da morte, como se fosse por meio da serpente, porque foi ela quem deu origem à morte. Mas no fim do mundo, por meio da cauda, voltamos às mãos de Deus, e seremos estabelecidos qual reino de Deus, a fim de que se realize em nós a palavra:

Resgataste a vara de tua herança”.

Mas como se trata da voz da sinagoga, a vara da herança que foi resgatada, mais se revela nos gentios. Nos judeus a esperança está oculta, seja nos que acreditarão no futuro, seja nos que acreditaram na ocasião em que foi enviado o Espírito Santo e os discípulos falaram as línguas de todos os povos. Pois, então, alguns milhares dentre os próprios judeus que crucificaram a Cristo acreditaram; e como os fatos ainda eram recentes, creram a tal ponto que venderam tudo o que tinham e depositaram o preço da venda aos pés dos apóstolos (cf At 2,4; 4,34).

Mas sendo oculto tudo isso, a redenção da vara de Deus seria mais clara entre os gentios; portanto o salmista explica por que disse:

Resgataste a vara de tua herança”.

Não se refere aos gentios, a respeito dos quais está claro. Mas acerca de quem? Do “monte de Sião”.

Mas, como monte de Sião pode ter outro sentido, acrescenta:

onde estabeleceste morada”, onde se achava antes o povo, onde se situava o templo, onde se celebravam sacrifícios, onde havia tudo o que era necessário naquela época e que prenunciava a Cristo. A promessa, ao se ver a realização, torna-se supérflua. Pois, antes de ser cumprida é necessária, para não cair no esquecimento daquele que a recebe, e que este morra, sem ter esperança mais. Importa, por conseguinte, que espere, a fim de receber por ocasião da realização da promessa; não deve abandonar a promessa. Foi por isso que as figuras eram mantidas, até que, ao raiar o dia, as sombras se dissipassem:

O monte Sião, onde estabeleceste morada”.



§ 6
3 “Ergue as mãos contra a soberba deles para sempre”.

Do mesmo modo como nos rejeitavas para sempre, assim “ergue a tua mão contra a soberba deles para sempre”.

Que soberba? A que derrubou Jerusalém. Por intermédio de quem, a não ser os reis dos gentios? A mão de Deus se ergueu bem alto contra a soberba deles até o fim: pois até eles já conhecem a Cristo.

Porque o fim da Lei é Cristo para justificação de todo o que crê(Rm 10,4).

Qual o bem que ele lhes deseja? Parece que está irado ao falar e maldiz. Oxalá acontecesse conforme ele maldiz! Ou antes, já podemos nos alegrar de se ter realizado isto em nome de Cristo. Os que seguram o cetro já se submetem ao lenho da cruz; já se cumpre a predição:

Adorá-lo-ão todos os reis da terra; todas as nações o servirão(Sl 71,11).

Já na fronte dos reis é mais precioso o sinal da cruz do que as gemas do diadema.

Ergue as mãos contra a soberba deles para sempre. Quanta maldade cometeu o inimigo no santuário”.

Naquelas coisas que eram sagradas para ti, a saber, no templo, no sacerdócio, em todos aqueles sacramentos existentes nos tempos antigos.

Quanta maldade cometeu o inimigo”.

Na verdade, o inimigo então agiu. Os gentios que então a cometeram adoravam deuses falsos, adoravam ídolos, serviam os demônios; cometeram, no entanto, muitas maldades contra as coisas santas de Deus. Quando o teriam podido se não lhes tivesse sido permitido? Quando lhes seria permitido, a não ser que aquelas coisas santas, primeiro figura das promessas, não fossem necessárias, uma vez que se tinha aquele que havia prometido? Portanto, “quanta maldade cometeu o inimigo no santuário”.



§ 7
4 “E gloriaram-se os que te odeiam”.

Considera os servos dos demônios, os servos dos ídolos, e que espécie de gentios foram os que destruíram o templo e a cidade de Deus, “gloriando-se disso. No meio de tua solenidade”.

Lembrai-vos do que disse: Jerusalém foi destruída quando se celebrava a solenidade, a solenidade mesma em que crucificaram o Senhor. Congregados eles se enfureceram, e reunidos pereceram.



§ 8
5 “Puseram por sinais suas insígnias. E não reconheceram”.

Eles tinham insígnias para colocar ali: seus estandartes, suas águias, seus dragões, insígnias romanas; ou mesmo suas estátuas, que puseram antes no templo. Ou talvez “sinais”, os oráculos de seus demônios.

E não reconheceram”.

O que não reconheceram? “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto(Jo 19,11).

Não reconheceram que não era honra para eles afligirem, prenderem e até destruirem a cidade, mas que sua impiedade os tornara uma espécie de machado de Deus. Foram instrumentos da ira de Deus e não o reino de um Deus apaziguado. Deus agiu como muitas vezes faz o homem. Por vezes, um homem encolerizado toma uma vara do chão, ou talvez algum ramo para bater no filho. Mas depois joga o ramo no fogo e faz do filho seu herdeiro. De igual maneira, por vezes Deus educa os bons por meio dos maus, e dando um poder temporal aos que devem ser condenados, ensina os que serão libertados. Mas, então? Imaginais, irmãos, que de fato foi entregue àquele povo a faculdade de ensinar, para que depois se perdesse inteiramente? Quantos dentre eles posteriormente acreditaram! Quantos ainda haverão de crer! Uma coisa é a palha, e outra o trigo. Entre ambos, contudo, entra o trilho; sob um mesmo trilho uma é triturada e o outro sai limpo. Quantos bens Deus nos concedeu através do mal da traição de Judas! A própria crueldade dos judeus quantos bens não acarretou para os fiéis gentios! Cristo foi morto, a fim de que na cruz houvesse a quem olhar os mordidos da serpente (cf Nm 21,8).

Assim também, portanto, os romanos talvez tenham tido uma inspiração divina para irem a Jerusalém e a tomarem; e depois de a terem tomado e destruído, disseram a si mesmos que era uma realização de seus demônios:

Puseram por sinais as suas insígnias. E não reconheceram”.

O que não reconheceram? “Como para a saída do alto”.

Se não viesse uma ordem do alto, aos gentios jamais teria sido permitido agir deste modo contra os judeus. Mas partiu uma ordem de cima, conforme diz Daniel:

Desde o começo da tua súplica uma palavra foi pronunciada(Dn 9,23).

Assim também aconteceu quando o Senhor estava diante de Pilatos. Ele se orgulhava, e pondo suas insígnias como sinal, sem reconhecer, dizia a Cristo:

Não me respondes? Não sabes que tenho poder para te libertar e poder para te crucificar?” E o Senhor respondeu ao orgulhoso, fazendo uma punção no tumor crescido:

Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto(Jo 19,10.11).

Assim também aqui:

Puseram por sinais suas insígnias. E não reconheceram”.

Como não reconheceram? “Como para a saída do alto”.

Como a saída viera do alto, para assim se realizar, acaso eles puderam reconhecê-lo?



§ 9
6 Passemos por alto estes versículos, uma vez des-truída Jerusalém. São claros e não nos apraz demorarmo-nos acerca da pena dos inimigos.

Como às árvores de um bosque, despedaçaram todos juntos suas portas com machados. Com achas e martelos abateram-na”, isto é, por uma conspiração, com constância, “abateram-na com achas e martelos”.



§ 10
7 “Atearam fogo ao teu santuário e na terra profanaram o tabernáculo de teu nome”.



§ 11
8.9 “Disseram em seus corações, eles e os de sua linhagem”.

O que disseram? “Vinde. Façamos cessar todas as solenidades do Senhor sobre a terra. Do Senhor”, esse termo foi intercalado, como dito por Asaf. Aqueles homens enfurecidos não denominariam Senhor aquele cujo templo eles destruíam.

Vinde, façamos cessar todas as solenidades do Senhor sobre a terra”.

Que faz Asaf? Que “entende Asaf” destas palavras? Que entende? Não tira proveito, mesmo com este ensinamento? Não corrige a malícia do espírito? Foram destruídas todas as coisas existentes nos primeiros tempos: não havia mais sacerdote, nem altar dos judeus, nem vítima alguma, nem templo. Por conseguinte, não se havia de conhecer algo que tomasse o lugar do que perecia? Com efeito, retiravam-se os sinais das promessas, sem se realizar o que fora prometido? Vejamos, pois, agora o que entende Asaf; vejamos se tirou proveito da tribulação. Pondera o que ele diz:

Já não vemos nossos emblemas, já não há profeta; nem mais, entre nós, quem seja conhecido”.

Eis estes judeus que dizem não serem mais conhecidos, isto é, que ainda se encontram no cativeiro, que não foram libertados, e que ainda esperam o Cristo. Cristo há de vir, mas virá como juiz. Primeiro ele chama, mas depois há de julgar. Virá, porque veio. É manifesto que há de vir; mas virá do alto. Ele estava diante de ti, ó Israel! Foste esmagado, porque foste de encontro àquele que jazia; para não seres esmigalhado, considera aquele que vem do alto. Pois, já foi predito pelo profeta:

Aquele que cair sobre essa pedra vai se quebrar todo, e aquele sobre quem ela cair, ela o esmagará(Is 8,14.15; Lc 20,18).

Quebra o pequeno, esmaga o grande. Já não vês teus emblemas, já não existe profeta e dizes:

Nem mais, entre nós, quem seja conhecido”, porque vós já não conheceis.

Já não há profeta, nem mais, entre nós quem seja conhecido”.



§ 12
10 “Até quando, ó Deus, nos insultará o inimigo?” Clama como um abandonado, um desamparado; clama como o doente que prefere ferir o médico a ser curado; ele não te conhece ainda. Vê como fez quem não te conhece ainda. Efetivamente, verão coisas que não haviam sido anunciadas a respeito dele, e tomarão consciência de coisas que não tinham ouvido (cf Is 52,15; Rm 15,21).

E tu ainda clamas:

Já não há profeta; nem mais, entre nós, quem seja conhecido”.

Onde está teu entendimento? “O adversário blasfemará o teu nome até o fim”.

O adversário blasfemaria teu nome até o fim, para que repreendas encolerizado, e ao repreender, tomares conhecimento até o fim; ou talvez “para o fim”, até o fim. Até que fim? Até que conheças, até que clames, até que pegues a cauda da serpente, e voltes ao reino.



§ 13
11 “Por que retrais a tua mão e tiras do peito a tua direita até o fim?” Novamente outro sinal dado a Moisés. Como acima tratava do sinal da vara, aqui fala da direita. Depois de realizado o milagre da vara, Deus lhe deu outro sinal, dizendo:

Põe a mão no peito. Ele pôs a mão no peito”, e ainda:

Tira-a. Ele tirou-a. Eis que a mão estava branca”, isto é, impura. Brancura na pele é causada pela lepra, e não a cor natural (cf Lv 13,25).

Pois, a própria herança de Deus, isto é, seu povo que ele mandou para fora, se tornou impuro. Mas que disse ainda Deus a Moisés? “Torna a pôr a mão no peito. Ele colocou a mão novamente no peito e a retirou. Ela voltara à cor natural(Ex 4,6.7).

Quando ages assim? pergunta Asaf. Até quando retrais a tua direita, tirando-a de teu peito, e ela fica de fora, impura? Torna a pô-la no peito; que ela recupere sua cor, reconheça o salvador.

Por que retrais a tua mão e tiras do peito a tua direita até o fim?” Assim grita, cego, sem entender; mas Deus sabe o que faz. Pois, qual o motivo da vinda de Cristo? “A cegueira atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios, e assim todo Israel será salvo(Rm 11,25).

Em conseqüência disso reconhece, ó Asaf, o que veio antes, a fim de ao menos seguires, se não pudeste vir antes. Não foi em vão que Cristo veio, ou inutilmente que Cristo morreu. Não foi em vão que o grão caiu na terra; foi para germinar multiplicado (cf Jo 12,25).

A serpente foi levantada no deserto, para que o povo ferido pelo veneno fosse curado (cf Nm 21,9).

Considera os fatos. Não julgues inútil sua vinda, para que não te encontres em péssima situação quando ele voltar.



§ 14
12 Asaf entendeu, pois traz o título do salmo:

Inteligência. De Asaf”.

E que diz ele? “Mas Deus é nosso rei, desde os séculos; levou a termo a salvação, no meio da terra”.

Por esta salvação clamamos:

Já não há profeta; nem mais, entre nós, quem seja conhecido. Mas Deus é nosso rei, desde os séculos”, porque ele é o Verbo no princípio, pelo qual foram criados os séculos; ele “levou a termo a salvação, no meio da terra”.

Portanto, que fez “Deus, nosso rei desde os séculos? Ele levou a termo a salvação, no meio da terra”.

Eu, no entanto, ainda clamo como se estivesse abandonado. Ele leva a termo a salvação no meio da terra e eu permaneço como terra. Asaf entendeu bem, porque diz o salmista:

Inteligência. De Asaf”.

Por que isto, ou que salvação Cristo levou a termo, senão que os homens aprendessem a desejar os bens eternos e não ficarem sempre apegados aos bens temporais? “Mas Deus é nosso rei, desde os séculos; levou a termo a salvação, no meio da terra”.

Ao clamarmos:

Até quando, ó Senhor, nos insultará o inimigo? Até quando o adversário blasfemará? Até quando retrais a tua mão, tirando-a do peito?” Ao dizermos:

Deus é nosso rei, desde os séculos; levou a termo a salvação, no meio da terra”, também nós dormimos. Os povos vigiam; nós roncamos, e como se Deus nos tivesse abandonado, deliramos em sonho.

Ele levou a termo a salvação, no meio da terra”.



§ 15
13 Agora, então, Asaf, corrige-te e entende; dize-nos qual foi a salvação que Deus levou a termo, no meio da terra. Visto que a salvação terrena foi perdida para vós, que fez ele? Que prometeu? “Com teu poder firmaste o mar”.

O povo judaico era um povo estéril, privado das águas do mar. Os gentios constituíam as águas amargas do mar, que banhavam de todos os lados aquela terra. Eis que “firmaste o mar com teu poder”, e a terra continuou sedenta por falta de tua chuva.

Com seu poder firmaste o mar. Esmagaste a cabeça dos dragões sobre as ondas”.

Cabeça dos dragões são os demônios soberbos, que tinham em possessão os gentios. Tu a quebraste sobre as ondas, porque livraste do poder dos demônios através do batismo os que eles possuíam.



§ 16
14 Depois de esmagar as cabeças dos dragões, que vem ainda? Pois, aqueles dragões têm seu chefe, e o que ocupa o primeiro lugar entre eles é o grande dragão. E o que dele fez aquele que levou a termo a salvação, no meio da terra? Ouve:

Quebraste a cabeça do dragão”.

De que dragão? Entendemos por dragões todos os demônios das fileiras do diabo. Qual este dragão especial cuja cabeça foi quebrada, senão o próprio diabo? Que lhe fez o Senhor? “Quebraste a cabeça do dragão”.

Cabeça é a raiz do pecado. Trata-se da cabeça sobre a qual recaiu a maldição de que a descendência de Eva observaria a cabeça da serpente (cf Gn 3,15).

A Igreja recebeu a advertência de evitar a raiz do pecado. Qual a raiz do pecado, a cabeça da serpente? “A origem de todo pecado é a soberba(Eclo 10,15).

Foi, por conseguinte, quebrada a cabeça do dragão; esmagada foi a soberba diabólica. E que lhe fez a ele quem levou a termo a salvação, no meio da terra? “Deste-o em alimento aos povos da Etiópia”.

Que é isso? Como entender esses povos etíopes? Como, a não ser todos os povos. E é exato representá-los por negros; pois os etíopes são negros. São chamados à fé os que foram negros. Justamente eles, a fim de se lhes dizer:

Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor(Ef 5,8).

Sem dúvida, foram chamados de negros, mas não continuem a ser; deles pois, se forma a Igreja, a qual foi dito:

Quem é esta que sobe toda alva”? (Ct 8,5, sg LXX).

Que se fez da que era negra? A não ser que foi dito:

Sou negra, mas formosa”? (Ct 1,4).

E como eles receberam em alimento este dragão? Penso que antes se deve dizer que receberam a Cristo em alimento. Mas, Cristo era alimento que os faria perfeitos; o diabo, comida que eles destruiriam em si mesmos. Foi o que sucedeu àquele bezerro a quem adorou o povo infiel, apóstata, anelando pelos deuses dos egípcios e abandonando aquele que os livrara da escravidão do Egito; então se realizou aquele grande sinal. Como se irritasse Moisés contra os que cultuavam e adoravam o ídolo, inflamado pelo zelo por Deus, castigou-os no tempo a fim de os atemorizar e fazê-los evitar a morte eterna. Jogou ao fogo o próprio bezerro, eliminou-o, quebrou-o, misturou o pó com água, que deu ao povo a beber (cf Ex 32,1-20).

E realizou-se assim um grande sacramento. Oh, ira profética de uma alma não perturbada, mas iluminada! Como agiu? Primeiro joga ao fogo, para que perdesse sua forma; reduziu a pó, para ser consumido lentamente; misturou com água para dar ao povo a beber. Que significa isto, senão que os adoradores do diabo se tornaram seu corpo? Como aqueles que conhecem a Cristo constituem seu corpo, de sorte que se lhes diz:

Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros(1 Cor 12,27).

O corpo do diabo devia ser consumido, e consumido pelos israelitas. Daquele povo, pois, vieram os apóstolos; dele se origina a Igreja primitiva. Fora dito a Pedro acerca dos gentios:

Imola e come(At 10,13).

Que quer dizer:

Imola e come?” Mata aquilo que eles são, e faze deles o que tu és. A ordem:

Imola e come” equivale a: Reduze a pó e bebe. Ambas as coisas são um mesmo sinal sacramental. Importava, de fato, importava sem dúvida alguma que os que constituíam o corpo do diabo, pela fé, passassem para o corpo de Cristo. Assim o diabo é destruído, pela perda de seus membros. Isso também foi figurado na serpente que Moisés fez surgir. Os magos fizeram coisa semelhante, e jogando por terra suas varas fizeram aparecer dragões; mas o dragão de Moisés absorveu as varas de todos aqueles magos (cf Ex 7,12).

Aplique-se isso agora ao corpo do diabo. Acontece o mesmo. É devorado pelas gentes que acreditaram, e torna-se alimento dos etíopes. É possível outra explicação de:

Deste-o em alimento aos povos da Etiopia”, que é a seguinte: eles agora mordem em companhia de todos. Que significa: mordem? Repreendem, inculpam, acusam. Isso foi dito em outra passagem, embora em forma negativa:

Mas se vos mordeis e vos devorais reciprocamente, não aconteça que vos elimineis uns aos outros(Gl 5,15).

Que sentido tem:

Mordeis e vos devorais reciprocamente?” Ten-des litígios mútuos, sois detratores uns dos outros, injuriais-vos reciprocamente. Notai agora com essas mordidelas como é absorvido o diabo. Quem é que, mesmo sendo pagão, não diga irado a seu servo: Satanás? Vê como o diabo é dado em alimento. Assim fala o cristão, assim fala o judeu, assim fala o pagão. Adora-o e maldiz em seu nome.



§ 17
15 Consideremos, portanto, o restante. Irmãos, peço-vos atenção. Ouve-se com prazer o que já se conhece realizado em todo o orbe da terra. Quando isso era anunciado, não era realizado ainda, porque então se tratava da promessa ainda não cumprida; agora que prazer sentimos ao lermos no livro as predições realizadas no mundo! Vejamos o que fez aquele que Asaf já entende ter “levado a termo a salvação, no meio da terra. Fizeste jorrar fontes e torrentes”, manar o licor da sabedoria, manarem as riquezas da fé, irrigarem as águas a salmorra dos povos, e converterem-se todos os infiéis à suavidade da fé por meio desta irrigação.

Fizeste jorrar fontes e torrentes”.

Talvez haja diferença entre fontes e torrentes, mas é possível serem idênticas, porque as fontes foram tão abundantes que deram origem a rios.

Fizeste jorrar fontes e torrentes”.

Com efeito, se há diferença, em uns a palavra de Deus se torna “uma fonte de água que jorra para a vida eterna(Jo 4,14); em outros, que ouvem a palavra, mas não se comportam de acordo, vivendo bem, apesar de não a calarem, tornam-se torrentes. Pois, propriamente as chamadas torrentes não são perenes. Às vezes, em sentido translato, fala-se de torrentes, em vez de rios, como no versículo:

Inebriar-se-ão na abundância de tua casa. Na torrente de tuas delícias lhes dás de beber(Sl 35,9); pois esta torrente não seca. Mas propriamente chamam-se torrentes os rios que secam no verão, e no inverno correm e inundam as margens. Se, portanto, vês um homem bem fiel, perseverante até o fim, sem abandonar a Deus nas tentações, suportando toda espécie de incomodidades em prol da verdade e não pela falsidade ou o erro, de onde vem que se mantém nessas condições senão porque a palavra nele se tornou “uma fonte de água que jorra para a vida eterna?” Outro, contudo, acolhe a palavra, prega, não cala, corre. O verão demonstra se é uma fonte ou uma torrente. No entanto, ambas irrigam a terra, por ação daquele que “levou a termo a salvação, no meio da terra”.

Jorrem fontes, corram torrentes:

Fizeste jorrar fontes e torrentes”.



§ 18
Secaste os rios de Etam”.

Ele faz jorrar fontes e torrentes, e seca rios, a fim de que de um lado corram águas e de outro elas sequem.

Os rios de Etam”.

Que significa Etam? É palavra hebraica. Que significa? Forte, robusto. Quem é este forte e robusto, cujos rios Deus seca? Quem, senão o próprio dragão? Diz o evangelho:

Como pode alguém entrar na casa do forte e roubar os seus pertences, se primeiro não o amarrar”? (Mt 12,29).

O forte é o diabo, que presume de sua força e abandona a Deus; é o forte aquele que disse:

Colocarei o meu trono no aquilão, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo(Is 14,13-14).

Deste cálice de sua força perversa ele deu de beber ao homem. Quiseram ser fortes os que acreditaram que se tornariam deuses, comendo do fruto proibido. Adão fez-se forte e foi escarnecido:

Eis que Adão já é como um de nós(Gn 3,22).

Fortes também eram os judeus que presumiam de sua justiça:

Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, como homens fortes, não se sujeitaram à justiça de Deus(Rm 10,3).

Vede como o homem desperdiçou sua fortaleza, e ficou fraco, pobre, de longe, sem ousar levantar os olhos para o céu, mas a bater no peito e dizer:

Senhor, tem piedade de mim, pecador(Lc 18,13).

Já se vê fraco e confessa sua fraqueza. Não é forte. É terra árida que deve ser regada por fontes e torrentes. São ainda fortes os que presumem de sua força. Sequem-se os seus rios; não progridam nas opiniões dos gentios, dos arúspices, dos adivinhos, dos mágicos, porque os rios do forte secaram:

Secaste os rios de Etam”.

Desapareçam aqueles ensinamentos e os espíritos sejam inundados pelo evangelho da verdade.



§ 19
16 “Teu é o dia e a noite te pertence”.

Quem o ignora, uma vez que ele fez todas as coisas, porque pelo Verbo tudo foi feito? (cf Jo 1,3).

Àquele mesmo que “levou a termo a salvação, no meio da terra” é que se diz:

Teu é o dia e a noite te pertence”.

Aqui há uma alusão à própria “salvação operada no meio da terra.

Teu é o dia”.

Quem são eles? Os espirituais.

E a noite te pertence”.

E estes? Os homens carnais.

Teu é o dia e a noite te pertence”.

Os es-pirituais falem de coisas espirituais aos espirituais. Pois, foi dito:

Exprimindo realidades espirituais em termos espirituais, é realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos(1 Cor 2,13.6).

Os carnais ainda não a captam:

Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais(1 Cor 3,1).

Com efeito, quando os espirituais falam de realidades espirituais:

O dia ao dia profere a palavra”.

Quando, porém, os próprios homens carnais não calam sua fé no Cristo crucificado, que os pequenos podem captar:

A noite à noite anuncia a ciência(Sl 18,3).

Teu é o dia e a noite te pertence”.

Pertencem-te os espirituais e os carnais. Tu os consolas como a lua consola a noite, ilustrando a uns com a sabedoria imutável, a outros confortando com a manifestação da verdade.

Teu é o dia e a noite te pertence”.

Queres ouvir como fala o dia? Vê se apreendes; eleva tua mente tão alto quanto podes. Vejamos se pertences ao dia; observemos se não pestanejas. Podes ver aquilo que acabas de ouvir do evangelho:

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus?” Só consegues pensar nas palavras que soam e passam. Poderias captar o Verbo, não enquanto som, mas enquanto Deus? Não ouviste a palavra:

O Verbo era Deus?” Mas, podes pensar nestas palavras:

Tudo foi feito por meio dele(Jo 1,1-14).

Por ele foram feitos também os que falam. Então, como é aquele Verbo? Entendes, ó homem carnal? Responde. Captas? Não captas, ainda estás na noite. Precisas da lua, para não morreres nas trevas.

Eis que os pecadores retesaram o arco, para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração(Sl 10,3).

Obscureceu-se a carne de Cristo, ao ser deposta da cruz e colocada no sepulcro, enquanto o injuriavam os que o mataram. Ainda não ressuscitara e os discípulos, retos de coração, tiveram o coração alvejado, sob uma lua obscura. Por conseguinte, tendo em mira que não somente o dia profira ao dia a palavra, mas ainda a noite anuncie à noite a ciência, e uma vez que “teu é o dia e a noite te pertence”, digna-te descer e permanecer junto daquele onde estavas ao descer, mas também vir àqueles por cuja causa tu desces. Tu que estavas neste mundo, e o mundo por ti foi feito, mas ele não te reconheceu, digna-te descer. Tenha a noite também o seu consolo. Tenha:

O Verbo se fez carne e habitou entre nós(Jo 1,14).

Teu é o dia e a noite te pertence. Criaste o sol e a lua”, sol são os espirituais; lua, os carnais. Se alguém ainda é carnal, não seja abandonado, para que progrida.

Criaste o sol e a lua”: o sol representa os prudentes e a lua os estultos. Todavia, não os abandonaste. Pois está escrito:

O sábio permanece como o sol; “o insensato, porém, muda como a lua(Eclo 27,11).

Como, portanto, o sol permanece, isto é, o sábio per-manece como o sol e “o insensato muda como a lua”, deve-se abandonar aquele que ainda é carnal, ainda insensato? E onde fica o que disse o Apóstolo:

Eu me sinto devedor a gregos e a bárbaros(Rm 1,14)? “Criaste o sol e a lua”.



§ 20
17 “Marcaste os confins da terra”.

Acaso não o fez antes, quando criou a terra? Mas como foi que marcou os confins da terra, aquele que “levou a termo a salvação, no meio da terra?” De que maneira senão a mencionada pelo Apóstolo:

Pela graça somos salvos, e isso não vem de nós, é o dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho?” Então não existiam obras boas? Existiam, mas de que modo? Pela graça de Deus. Ele continua; vejamos.

Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras(Ef 2,8-10).

Foi assim que ele marcou os confins da terra, ele que “levou a termo a salvação, no meio da terra. Marcaste os confins da terra. Estabeleceste o verão e o inverno”.

O verão figura os fervorosos de espírito. Tu fizeste os que são fervorosos de espírito; criaste também os apenas iniciados na fé. Eis o verão.

Estabeleceste o verão e o inverno”.

Não se gloriem como se nada houvessem recebido:

Tu os estabeleceste”.



§ 21
18 “Recorda-te de tua criatura”.

De qual “criatura tua? O inimigo injuriou o Senhor”.

Ó Asaf, lastima-te ao conhecer tua primitiva cegueira! “O inimigo injuriou o Senhor”.

Foi seu próprio povo que disse de Cristo:

Sabemos que este homem é pecador. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas este, não sabemos de onde ele é. É um samaritano(Jo 9,24.29; 8,48).

O inimigo injuriou o Senhor. Um povo insensato ultrajou teu nome”.

Então Asaf era esse povo imprudente; mas nesta ocasião Asaf não en-tendeu. O que se encontra no salmo anterior? “Tornei-me como um animal de carga junto de ti, mas estou sempre contigo(Sl 72,23.24).

Assim fala porque não cultua os deuses e os ídolos dos pagãos. Apesar de não compreender como um animal, reconhece enquanto homem. Pois diz:

Estou sempre contigo, como animal de carga”.

Como prossegue Asaf neste salmo? “Tomaste-me pela mão de minha direita e conduziste-me segundo a tua vontade e acolheste-me na glória. Segundo a tua vontade”, e não de acordo com minha justiça; por dádiva tua, não por obra minha. Conseqüentemente também aqui:

O inimigo injuriou o Senhor e um povo insensato ultrajou teu nome”.

Então pereceram todos? De forma nenhuma. Embora alguns ramos tenham sido quebrados, subsistem alguns onde é enxertada a oliveira silvestre. A raiz permanece e dentre os mesmos ramos, quebrados pela infidelidade de alguns, foram novamente inseridos através da fé (cf Rm 11,17).

O próprio Apóstolo Paulo que fora cortado devido a sua incredulidade, pela fé foi restituído à raiz. Com efeito, “o povo insensato ultrajou teu nome” quando disse:

Se é filho de Deus, desça da cruz(Mt 27,40).



§ 22
19 Mas que dizes, Asaf, uma vez que agora já entendes? “Não entregues as almas dos que te louvam às feras”.

Reconheço, diz Asaf, como se diz em outro salmo:

Reconheci o meu delito e não dissimulei minha injustiça(Sl 31,5).

Por quê? Acontece como sucedeu através do sermão de Pedro, quando os israelitas se admiravam diante do milagre das línguas (no Pentecostes).

Ele lhes dizia que, apesar de Cristo lhes ter sido enviado, eles o mataram.

Ouvindo isto, sentiram o coração transpassado e perguntaram a Pedro e aos apóstolos: Que devemos fazer?” Dizei-nos. Os Apóstolos responderam:

Convertei-vos e seja cada um de vós batizado em nome do Senhor Jesus Cristo, para a remissão dos pecados(At 2,37-38).

Como através da penitência se fez a confissão:

Não entregues as almas dos que te louvam às feras”.

Por que:

Os que te louvam?” Porque “revolvia-me em minha dor, enquanto o espinho era pungente(Sl 31,4).

Compungi-ram-se de coração; e sentiram a tribulação da penitência aqueles que se gloriavam em seu furor.

Não entregues as almas dos que te louvam às feras”.

Quais são estas feras senão aqueles cujas cabeças foram esmagadas sobre as ondas? O próprio diabo é denominado fera, leão e dragão. Não entregues ao diabo e a seus anjos as almas dos que te louvam. Devore-me a serpente, se ainda tenho gostos terrenos, se tenho desejos terrenos, se permaneço ainda só com as promessas do Antigo Testamento, apesar de já revelado o Novo. Quando, porém, tiver me despojado da soberba, e não esteja ciente de minha justiça, e sim de tua graça, não tenha poder sobre mim a fera soberba.

Não entregues as almas dos que te louvam às feras. Nem te esqueças para sempre das almas dos teus pobres”.

Éramos ricos, éramos fortes, mas tu “secaste os rios de Etam”.

Agora, porém, não nos apoiamos em nossa justiça, mas reconhecemos a ação de tua graça. Somos pobres. Escuta teus mendigos. Já não ousamos levantar os olhos para os céus, mas batendo no peito dizemos: Senhor, “tem piedade de mim, pecador(Lc 18,13).

Nem te esqueças para sempre das almas de teus pobres”.



§ 23
20 “Volta o olhar para tua aliança”.

Realiza o que prometeste: temos em nosso poder os documentos, e esperamos a herança.

Volta o olhar para tua aliança”.

Não me refiro à antiga. Não reclamo a terra de Canaã. Nem peço a sujeição de inimigos temporais, ou descendência carnal, riquezas terrenas, salvação temporária.

Volta o olhar para tua aliança”, que nos prometeu o reino dos céus. Já conheço teu testamento; Asaf já entendeu, Asaf não é um animal de carga, já enxerga o que foi dito:

Eis que dias virão — oráculo do Senhor — em que selarei com a casa de Israel (e a casa de Judá) uma aliança nova. Não como a aliança que selei com seus pais(Jr 31,31.32).

Volta o olhar para tua aliança. Porque os que se entregaram às trevas encheram a terra de antros iníquos”.

Eles tinham corações iníquos. Nossas casas são nossos corações. De coração que são bem-aventurados nele repousam de bom grado.

Volta, portanto, o olhar para tua aliança”, e um resto se salvará (cf Rm 9,27).

Muitos que visavam somente à terra e a encheram, caíram nas trevas. Seus olhos se encheram de poeira, que os cegou. E eles se tornaram como a poeira que o vento carrega da superfície da terra (cf Sl 1,4).

Os que se entregaram às trevas encheram a terra de antros iníquos”.

Visando apenas à terra, ficaram nas trevas aqueles dos quais refere outro salmo:

Seus olhos se obscureçam e não vejam e seu dorso se incurve para sempre(Sl 68,24).

São, pois, terra, aqueles “que se entregaram às trevas e encheram a terra de antros iníquos”, tendo corações iníquos. Conforme dissemos mais acima, nossas casas são nossos corações; nele repousaremos de boa vontade, se o limparmos de toda iniqüidade. Ali também se encontra uma consciência carregada, que repele o homem, como o paralítico que recebe ordem de ir, levando seu leito, uma vez perdoados seus pecados. Disse-lhe o Senhor:

Toma o teu leito” e anda para tua casa (Jo 5,8).

Carrega o peso de tua carne e penetra numa consciência curada.

Porque os que se entregaram às trevas encheram a terra de antros iníquos”.

Caíram nas trevas, encheram-se de terra. Quais são os que caíram nas trevas? Os que têm corações iníquos. Deus lhes retribui conforme as condições de seus corações.



§ 24
21 “Não se afaste envergonhado o humilde”.

Pois a soberba confunde aqueles.

O pobre e o desamparado possam louvar o teu nome”.

Vedes, irmãos, como deve ser suave a pobreza; vedes que os pobres e desamparados pertencem a Deus. Mas, trata-se dos pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (cf Mt 5,3).

Quais são os pobres em espírito? Os humildes, os que tremem diante de minha palavra, os que confessam seus pecados; aqueles que não presumem de seus méritos, nem de sua justiça. Quem são os pobres em espírito? Aqueles que, ao fazerem algo de bom, louvam a Deus; quando praticam o mal, acusam a si mesmos. Sobre quem repousa meu espírito, diz o profeta, senão no humilde, no tranqüilo, “naquele que treme diante de minha palavra”? (Is 66,2).

Por conseguinte, Asaf já entende; já não adere à terra, já não procura a realização de promessas de bens terrenos, conforme o Antigo Testamento. Tornou-se teu mendigo, teu pobre. Tem sede da água de teus rios, porque os seus secaram. Uma vez que ele assim se transformou, não seja enganado em sua esperança. À noite ergueu as mãos diante de ti, procurando-te (cf Sl 76,3); não seja decepcionado.

Não se afaste envergonhado o humilde. O pobre e o desamparado possam louvar o teu nome”.

Confessando seu pecado, louvarão teu nome. Ao desejarem que se cumpram tuas promessas eternas, louvarão teu nome. Não serão entumescidos com as realidades temporais, nem soberbos e inchados de orgulho devido à própria justiça. Não são desses; mas quem então? “O pobre e o desamparado possam louvar o teu nome”.



§ 25
22 “Levanta-te, Senhor. Julga a minha causa”.

Sinto-me abandonado, porque ainda não recebi o objeto de tuas promessas; e minhas lágrimas se tornaram o meu pão dia e noite, enquanto me é dito cada dia. Onde está o teu Deus? (cf Sl 41,4).

E como não posso mostrar o meu Deus, como se fosse inútil segui-lo, sou injuriado. Não é apenas o pagão, ou o judeu, ou o herege, mas por vezes é um próprio irmão católico que torce os lábios, ao serem anunciadas as promessas de Deus, ou pregada de antemão a futura ressurreição. E mesmo ele, apesar de ter sido mergulhado na água da salvação eterna, e de ser portador do sinal de Cristo, talvez diga: Quem já ressuscitou? E: Jamais ouvi meu pai falar do sepulcro, desde que o sepultei. Deus deu a lei a seus servos por algum tempo, a que podem se referir; pois quem já voltou da região dos mortos? Que fazer por estes? Mostrar-lhes o que não vêem? Não posso. Por causa deles Deus não vai se tornar visível. Se quiserem, que o façam. Façam-no, enpenhem-se nisso. Uma vez que não querem se converter para melhor, convertam a Deus para o pior. Veja quem puder que Deus existe; acredite quem não puder. Mesmo que a alguém seja possível ver, porventura vê-lo-á com os olhos? Verá com o intelecto, verá com o coração. Não era o sol ou a lua que queria mostrar aquele que dizia:

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus(Mt 5,8).

Um coração impuro que nem é capaz de ter fé, creia ao menos aquilo que não pode ver. Responderá: Não vejo; por que hei de acreditar? A meu ver, é visível tua alma! Estulto! Teu corpo é visível; mas quem pode ver a tua alma? Se somente teu corpo é visível, por que não és sepultado? Admiras-te por ter eu dito: Se apenas o corpo é visível, por que não és sepultado? Hás de responder (isso tu entendes): porque estou vivo. Como sabes que vives? Não vejo tua alma. Como posso saber? Responderás: Mas falo, ando, trabalho. Insensato! Pelas obras do corpo posso reconhecer que és um ser vivo. Pelas obras da criatura não podes reconhecer o Criador! E talvez aquele que afirma: Depois de morto, nada mais serei, estudou as letras, aprendeu isso de Epicuro, ignoro de que espécie de filósofo insensato, ou antes, amante da vaidade e não da sabedoria, a quem os próprios filósofos chamaram de porco. Ele declarou que a volúpia do corpo é o bem sumo. Os filósofos o chamaram de porco que se revolve na lama carnal. Foi talvez dele que aprendeu esse literato a dizer: Não existirei mais depois da morte. Sequem-se os rios de Etam. Desapareça essa opinião das gentes, brotem os vergéis de Jerusalém. Vejam os que o puderem; de coração creiam os que não podem ver. Certamente ainda não existiam todas essas coisas que agora são visíveis no mundo, quando Deus levava a termo a salvação, no meio da terra, quando essas realidades eram profetizadas. Outrora foram preditas e agora se mostram realizadas. No entanto, o estulto ainda diz em seu coração:

Deus não existe(Sl 13,1).

Ai dos corações perversos! pois ainda hão de vir as coisas que faltem, da mesma forma que vieram as coisas que outrora não existiam, mas se profetizavam futuras. Acaso Deus nos demonstrou tudo o que prometera, e há de nos enganar somente acerca do dia do juízo? Cristo não vivera na terra. Deus prometeu e o mostrou. A Virgem ainda não dera à luz; ele prometeu e cumpriu. O precioso sangue de Cristo não fora ainda derramado, para apagar o documento de condenação à morte; ele prometeu e cumpriu. Ainda não ressuscitara a carne para a vida eterna; prometeu, cumpriu. Os povos não haviam acreditado; ele prometeu, cumpriu. Os hereges armados com o nome de Cristo ainda não lutavam contra Cristo; ele predisse e o mostrou. Os ídolos dos pagãos ainda não haviam desaparecido da terra; ele predisse e o demonstrou. Tudo isso foi predito e realizado. O Senhor teria mentido somente acerca do dia do juízo? Ele virá, absolutamente, da mesma maneira como todos esses fatos se deram. Todos eles, antes de se realizarem eram futuros, e foram prenunciados anteriormente, e posteriormente aconteceram. O juízo virá, meus irmãos. Ninguém diga: Não virá. Ou: Virá, mas está ainda muito longe. Mas está perto o dia de partires daqui. Baste a primeira decepção. Se não pudemos primeiro observar o preceito, ao menos nos corrijamos diante do exemplo. Não houvera ainda exemplo de queda para os homens quando foi dito a Adão:

No dia em que a tocares, terás de morrer”.

E veio, em sentido contrário, a serpente, que lhe disse:

Não, não morrerás”.

Foi-lhe dado crédito, e Deus foi desprezado. O homem acreditou na serpente, tocou o fruto proibido, morreu (Gn 2,17; 3,4.6.19).

Não se realizou a ameaça de Deus, ao invés daquilo que o inimigo prometera? Isto, sem dúvida. Nós o sabemos, todos morrem. Sejamos cautelosos, ao menos depois da experiência. Nem agora cessa a serpente de insinuar e dizer: Será que Deus vai condenar tamanha multidão e salvar uns poucos? É o mesmo que dizer: Agi contra o preceito; não haveis de morrer. Mas o que sucedeu outrora, acontece também agora. Se seguires a sugestão do diabo, e desprezares o preceito de Deus, virá o dia do juízo, e descobrirás que é verdade o que Deus ameaçou e mentira o que prometeu o “Levanta-te, Senhor, julga a minha causa”.

Morreste e foste desprezado. Sou interrogado:

Onde está o teu Deus?(Sl 41,11).

Levanta-te, Senhor. Julga a minha causa”.

Virá para julgar aquele que ressurgiu dos mortos. Foi profetizado que ele haveria de vir. Veio e foi desprezado pelos judeus, enquanto vivia na terra; é desprezado pelos falsos cristãos quando está sentado no céu.

Levanta-te, Senhor. Julga a minha causa”.

Em ti acreditei. Não hei de perecer. Acreditei no que não vi, não serei enganado em minha esperança, receberei o que prometeste.

Julga a minha causa. Lembra-te dos ultrajes que te lançaram e dos que inflige cada dia o insensato”.

Cristo ainda é injuriado; não faltam os vasos da ira todos os dias, isto é, até o fim dos séculos. Ainda se diz: Os cristãos anunciam coisas vãs. Ainda se diz: É coisa vã falar em ressurreição dos mortos.

Julga a minha causa. Lembra-te dos ultrajes que te lançaram”.

Dos quais senão “dos que inflige cada dia o insensato”.

Acaso um homem prudente assim se exprime? Chama-se prudente aquele que vê longe. Se prudente é quem vê longe, vê longe pela fé; pois os olhos mal vêem o que está diante dos pés, “cada dia”.



§ 26
23 “Não olvides as vozes dos que te imploram.

Gemendo e esperando o que prometeste acerca do Novo Testamento, os quais ainda caminham na fé. Mas a estes ainda se diz: Onde está o teu Deus? “Sobe continuamente o tumulto dos que se insurgem contra ti”.

Não te esqueças de sua soberba. E ele não esquece, de fato: ou castiga, ou corrige.