SALMO 𝟟𝟚

Permaneça o seu nome eternamente; continue a sua fama enquanto o sol durar,

e os homens sejam abençoados nele; todas as nações o chamem bem-aventurado.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 72


§ 72:1  Ơ Ó Deus, dá ao rei os teus juízes, e a tua justiça ao filho do rei.

§ 72:2  Julgue ele o teu povo com justiça, e os teus pobres com eqüidade.

§ 72:3  Que os montes tragam paz ao povo, como também os outeiros, com justiça.

§ 72:4  Julgue ele os aflitos do povo, salve os filhos do necessitado, e esmague o opressor.

§ 72:5  Viva ele enquanto existir o sol, e enquanto durar a lua, por todas as gerações.

§ 72:6  Ɗ Desça como a chuva sobre o prado, como os chuveiros que regam a terra.

§ 72:7  Ɲ Nos seus dias floreça a justiça, e haja abundância de paz enquanto durar a lua.

§ 72:8  Ɗ Domine de mar a mar, e desde o Rio até as extremidades da terra.

§ 72:9  Inclinem-se diante dele os seus adversários, e os seus inimigos lambam o pó.

§ 72:10  Paguem-lhe tributo os reis de Társis e das ilhas; os reis de Sabá e de Seba ofereçam-lhe dons.

§ 72:11  Ŧ Todos os reis se prostrem perante ele; todas as nações o sirvam.

§ 72:12  Porque ele livra ao necessitado quando clama, como também ao aflito e ao que não tem quem o ajude.

§ 72:13  Ƈ Compadece-se do pobre e do necessitado, e a vida dos necessitados ele salva.

§ 72:14  Ele os liberta da opressão e da violência, e precioso aos seus olhos é o sangue deles.

§ 72:15  Viva, pois, ele; e se lhe dê do ouro de Sabá; e continuamente se faça por ele oração, e o bendigam em todo o tempo.

§ 72:16  Haja abundância de trigo na terra sobre os cumes dos montes; ondule o seu fruto como o Líbano, e das cidades floresçam homens como a erva da terra.

§ 72:17  Permaneça o seu nome eternamente; continue a sua fama enquanto o sol durar, e os homens sejam abençoados nele; todas as nações o chamem bem-aventurado.

§ 72:18  Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, o único que faz maravilhas.

§ 72:19  Bendito seja para sempre o seu nome glorioso, e encha-se da sua glória toda a terra. Amém e amém.

§ 72:20  Ƒ Findam aqui as orações de Davi, filho de Jessé.


O SALMO 72


SERMÃO (Proferido na Basílica Restituída, em Cartago)



§ 1
Ouvi, ouvi, caríssimos filhos do coração do corpo de Cristo, que pondes vossa esperança no Senhor vosso Deus, sem consideração pelas vaidades e loucuras mentirosas (cf Sl 39,5).

E vós que ainda as olhais, ouvi para não as olhardes mais. Este salmo tem como inscrição, quer dizer, como título:

Terminaram os hinos (Sl 71,20) de Davi, filho de Jessé. Salmo de Asaf”.

Temos tantos salmos em cujo título encontra-se o nome de Davi, mas nunca foi acrescentado:

filho de Jessé”, a não ser neste. Certamente não foi em vão, nem inutilmente; sempre Deus nos faz sinal, e nos convida um zelo piedoso, inspirado pela caridade, a procurarmos entender. Que significa:

Terminaram os hinos de Davi, filho de Jessé?” Os louvores de Deus acompanhados de cânticos chamam-se hinos. Hinos são cantos que contêm louvores a Deus. Se é louvor, mas não de Deus, não se chama hino; se é louvor, e louvor de Deus, mas não é cantado, não é hino. Para merecer o nome de hino deve conter estes três requisitos: ser louvor, e louvor de Deus, e cântico. Que quer dizer, então:

Terminaram os hinos?” Terminaram os louvores cantados a Deus. Parece notícia má e lutuosa. Quem canta o louvor, não apenas canta, mas louva também com alegria; quem canta o louvor, não somente canta, mas ainda ama aquele a quem canta. Constitui uma pregação o louvor de quem confessa, e o cântico de quem ama desperta a afeição.

Terminaram”, portanto, “os hinos de Davi”; além disso, diz o salmista:

filho de Jessé”.

Davi, de fato, rei de Israel, era filho de Jessé (cf 1Rs 16,18), em determinada época do Antigo Testamento. Nesta época achava-se oculto o Novo Testamento, como fruto na raiz. Quem procurar fruto na raiz não encontra; mas também não encontrará nos ramos fruto que não proceda da raiz. Naquela época vivia o primeiro povo, originário de Abraão segundo a carne; pois o segundo povo, pertencente ao Novo Testamento, provém de Abraão, mas espiritualmente. Por conseguinte, o primeiro povo, ainda carnal, onde havia poucos profetas a entenderem o que esperar de Deus, e quando deveriam pregar publicamente, prenunciaram estes tempos que haveriam de vir, e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Como o próprio Cristo, que segundo a carne haveria de nascer, ocultava-se na raiz, a descendência dos patriarcas, e deveria revelar-se em determinada época, qual fruto que brota, conforme foi escrito:

Um ramo sairá do tronco de Jessé(Is 11,1), também o Novo Testamento, acerca de Cristo, ocultava-se naqueles primeiros tempos e foi conhecido só dos profetas e de poucos varões piedosos, e isso não por manifestação de fatos presentes, mas por revelação de fatos futuros. E para relembrar somente um, que significa, irmãos, ter Abraão enviado seu servo fiel para procurar uma esposa para seu filho único e feito com que ele lhe jurasse, dizendo-lhe para tal:

Põe a tua mão debaixo de minha coxa. Eu te faço jurar”? (Gn 24,2).

Que havia na coxa de Abraão, onde o servo pôs a mão para jurar? Que havia, senão o objeto da promessa:

Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações”? (Gn 22,18).

Pelo nome de coxa figura-se a carne. Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu da carne de Abraão, através de Isaac e Jacó, e para não citarmos muitos nomes, de Maria.



§ 2
Como demonstrar que os patriarcas foram a raiz? Interroguemos Paulo. Os pagãos que já haviam acreditado em Cristo, de certo modo queriam se orgulhar contra os judeus que haviam crucificado o Cristo. No entanto, daquele povo provinha um dos muros que formaram um ângulo, isto é, o próprio Cristo, sendo o outro, o muro do lado oposto, os pagãos. Então, como os gentios se exaltavam, Paulo assim os reprime:

Se tu, oliveira silvestre, foste enxertada entre os ramos, não te vanglories contra os ramos; e se te vanglorias, saibas que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz que sustenta a ti?” Assim, ele afirma que da raiz dos patriarcas foram quebrados alguns ramos devido a sua infidelidade, e foi enxertado o ramo da oliveira silvestre, para receber a fecundidade da oliveira, isto é, a Igreja proveniente dos gentios. E quem inseriu a oliveira silvestre na oliveira genuína? Costuma-se enxertar um ramo de oliveira na oliveira silvestre; ao invés, enxertar oliveira silvestre numa oliveira verdadeira, nunca o vimos. Pois se alguém o fizer, não encontrará frutos senão da silvestre. Pois o enxerto cresce e produz seus próprios frutos; os frutos não vêm da raiz, mas do enxerto. O Apóstolo mostra que a onipotência de Deus fez com que o ramo da oliveira silvestre fosse enxertado na oliveira genuína, e desse olivas e não o seu próprio fruto. Referindo-se à onipotência de Deus ele declara o seguinte:

Se tu, oliveira silvestre, contra a natureza, foste enxertada entre os ramos da verdadeira oliveira, não te vanglories contra os ramos. Porém, dirás: Foram cortados os ramos para que eu fosse enxertada. Muito bem! Eles foram cortados pela incredulidade; tu, porém, fica firme pela fé; não te ensoberbeças, mas teme”.

Por que diz:

Não te ensoberbeças?” Não te orgulhes por teres sido enxertado; mas teme seres quebrado devido a tua infidelidade, como eles foram cortados. Diz o Apóstolo:

Eles foram cortados pela incredulidade; tu, porém, fica firme pela fé; não te ensoberbeças, mas teme, porque se Deus não poupou os ramos naturais, nem a ti poupará”.

E a seguir vem uma passagem excelente, necessária, que convém ouvir com toda atenção:

Vê então a bondade e a severidade de Deus: a severidade para com os que caíram, e a bondade para contigo, que foste enxertado, se perseverares na bondade; do contrário”, isto é, se não perseverares na bondade, “também tu serás cortado; e eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados(Rm 11,17-24).



§ 3
Durante o Antigo Testamento, portanto, irmãos, as promessas de nosso Deus, feitas àquele povo carnal, eram terrenas e temporais. Foi prometido um reino terreno; foi prometida aquela terra, onde foram introduzidos os que tinham sido libertados do Egito. Por intermédio de Josué, filho de Nave, foram introduzidos na terra da promissão, onde também foi edificada a Jerusalém terrena e onde reinou Davi. Receberam aquela terra, depois de libertados do Egito e de atravessarem o mar Vermelho. Superadas as dificuldades do deserto por onde erravam, receberam a terra, receberam o reino. Enfim, quando já possuíram o reino, e como haviam recebido riquezas terrenas, começaram em castigo de seus pecados a serem vencidos, atacados, aprisionados; finalmente, foi destruída a própria cidade. Tais eram aquelas promessas que não haveriam de durar; assim elas eram figuras das futuras e duradouras promessas. As sucessivas promessas temporais tornaram-se figuras e de certo modo profecias das realidades futuras. Por conseguinte, “terminaram os hinos de Davi”, quando terminou aquele reino, onde Davi, filho de Jessé, reinou; isto é, certo homem, apesar de santo embora profeta, porque via e previa que Cristo haveria de vir, nascendo de sua descendência, segundo a carne; era homem, contudo, não era ainda o Cristo, ainda não era nosso rei, o Filho de Deus, e sim o rei Davi, filho de Jessé.

Terminaram os hinos de Davi”, porque havia de se arruinar aquele reino, por causa do qual os homens carnais louvavam então a Deus; eles consideravam importante somente este reino que os libertara, no tempo, de seus opressores, porque haviam escapado dos inimigos perseguidores, atravessando o mar Vermelho, e porque haviam sido conduzidos através do deserto e tinham encontrado uma pátria e um reino. Só por isso louvavam a Deus, sem entenderem o que Deus lhes apontava e prometia, por meio destas figuras. Perecendo, portanto, tudo isso que fornecia motivo àquele povo carnal de louvar a Deus, povo sobre o qual reinava Davi, “terminaram os hinos de Davi”, que não era o Filho de Deus, mas “filho de Jessé”.

Conseguimos atravessar aquela passagem perigosa do título do presente salmo, como Deus o quis. Recebestes a explicação das palavras:

Terminaram os hinos de Davi, filho de Jessé”.



§ 4
A quem pertence a voz que ressoa neste salmo? A “Asaf”.

Que quer dizer:

Asaf?” Conforme descobrimos nas traduções do hebraico para o grego, e do grego para o latim, “Asaf” verte-se por sinagoga. Trata-se, portanto, da voz da sinagoga. Mas, tu, ao ouvires falar de sinagoga, não repilas imediatamente como se tratando daquela que matou o Senhor. Ninguém duvida. Mas lembre-se que da sinagoga vieram os cordeiros, de que somos filhos. Daí rezar o salmo:

Trazei ao Senhor os filhos dos cordeiros(cf Sl 28,1).

Quais são estes cordeiros? Pedro, João, Tiago, André, Bartolomeu, e demais apóstolos. Dentre eles, aquele que era primeiro Saulo e depois Paulo, isto é, primeiro soberbo, e em seguida humilde. Saul, de fato, nome do qual deriva Saulo, foi, como sabeis, um rei soberbo e violento. O Apóstolo não trocou de nome por jactância; mas de Paulo tornou-se Paulo, de soberbo fez-se pequeno. Pois, Saulo significa pequeno. Queres saber o que é Saulo? Ouve como o próprio Paulo recorda o que ele próprio foi por sua malícia, e o que já é pela graça de Deus; ouve como era Saulo e como se tornou Paulo:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente(1 Tm 1,13).

Ouviste Saulo; ouve também Paulo:

Pois sou o menor dos apóstolos”.

Quem é este menor, senão eu, Paulo? E continua:

Nem sou digno de ser chamado apóstolo”.

Por quê? Porque fui Saulo. Que significa: Fui Saulo? Diga-o ele mesmo:

Porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou(1 Cor 15,9,10).

Renunciou a toda sua grandeza; mínimo em si mesmo, grande em Cristo. E este Paulo, o que diz? “Não repudiou Deus seu povo”.

Seu povo, povo judaico, “que de antemão conhecera. Pois eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim(Rm 11,2.1).

Assim, também Paulo nos veio da sinagoga; Pedro também e os outros apóstolos originaram-se da sinagoga. Por isso, ao ouvires falar de sinagoga, não dês importância a seus méritos, mas considera-a como origem. Este salmo, portanto, fala da sinagoga, quando terminaram os hinos de Davi, filho de Jessé, isto é, ao faltarem os bens temporais, que costumavam fazer com que o povo carnal louvasse a Deus. Por que, então, eles faltaram, a não ser a fim de que se procurassem outros? Quais deviam ser procurados? Os que lá não existiam? Não; mas os que ali estavam escondidos sob as figuras. Não quero dizer que ali não existiam, mas ali estavam ocultos na raiz, por certos segredos dos mistérios. Quais? Eles, diz o próprio Apóstolo, serviram-nos de figuras da realidade (1 Cor 10,6).



§ 5
De passagem, dai atenção à própria figura. O povo de Israel estava sob o domínio do faraó e dos egípcios (Ex 1,10); o povo cristão, antes de receber a fé, já era predestinado por Deus, enquanto ainda servia aos demônios e ao diabo, seu chefe: eis o povo sujeito aos egípcios, a servir a seus pecados, pois o diabo pode dominar apenas devido a nossos pecados. O povo é libertado dos egípcios por meio de Moisés; o povo cristão é libertado de sua vida passada de pecados através de nosso Senhor Jesus Cristo. Aquele povo atravessou o mar Vermelho (cf Ex 14,22.23); o povo cristão passou pelo batismo. No mar Vermelho morreram todos os inimigos daquele povo; morrem no batismo todos os nossos pecados. Atenção, irmãos. Após a passagem do mar Vermelho, não foi dada àquele povo imediatamente uma pátria, nem ele triunfa seguramente, como se os inimigos tivessem desaparecido, mas restava ainda a solidão do deserto, e havia inimigos traiçoeiros no caminho. De igual maneira, após o batismo a vida cristã deve ainda se passar no meio das tentações. Naquele deserto os hebreus suspiravam pela pátria prometida; os cristãos, depois de purificados pelo batismo aspiram por coisa diferente? Porventura já reinam com Cristo? Ainda não chegamos a nossa terra da promissão; mas esta não desaparecerá, pois lá não terminarão os hinos de Davi. Agora, ouçam todos os fiéis. Tenham conhecimento de onde estão: estão num deserto, e anelam pela pátria. No batismo morreram os inimigos que perseguiam pelas costas. Por quê: pelas costas? Temos diante de nós os bens futuros, e atrás os fatos passados. Todos os pecados do passado foram apagados no batismo; nossas tentações não nos seguem pelas costas, mas constituem ciladas no caminho. Daí provêm as palavras do Apóstolo, quando ainda se achava caminhando pelo deserto:

Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus(Fl 3,13.14).

Parece asseverar: Para o alto, para a pátria que Deus prometeu. Tudo aquilo que sofreu, irmãos, o povo hebreu no deserto e todos os dons que Deus lhe concedeu, todos os castigos e todos os presentes são figuras de tudo o que na solidão desta vida, enquanto caminhamos com Cristo à busca de nossa pátria, recebemos de consolo e sofremos para provação nossa. Não é, portanto, de admirar que tenha perecido a figura de eventos futuros. Pois, o povo foi conduzido à pátria da promissão; esta devia perdurar para sempre? Se assim fosse, não seria uma figura, mas a realidade. Como, porém, se tratava de uma figura, o povo foi con-duzido a um lugar provisório. Se era temporário o lugar aonde fora conduzido, havia de perecer, e esta ruína impeliria à procura de um lugar que nunca desaparecesse.



§ 6
Constituíam, portanto, uma sinagoga os que adoravam a Deus com piedade, contudo tendo em vista bens terrenos, atuais, enquanto são ímpios os que procuram obter dos demônios as riquezas presentes. Aquele povo, de fato, era melhor do que os gentios, porque apesar de serem temporais e atuais os bens que desejavam, esperavam-nos do Deus único, criador de todas as coisas, espirituais e corporais. Aqueles homens piedosos, mas carnalmente, aquela sinagoga constituída de varões bons, bons conforme sua época, porém não espirituais, quais os profetas e uns poucos que entendiam o que é o reino celeste, eterno, aquela sinagoga, digo, considerava o que recebera de Deus, o qual prometera àquele povo abundância de bens terrenos, uma pátria, a paz, a felicidade terrena (e no entanto, tudo isso era uma figura), sem compreender o que se escondia naquelas figuras; pensou que tudo isso era o melhor que Deus podia dar, que ele nada possuía de mais valioso a conceder aos que o amavam e serviam. Efetivamente, aquela sinagoga percebeu por observação que alguns pecadores, ímpios, blasfemos, escravos dos de-mônios, filhos do diabo, vivendo em grande maldade e orgulho, tinham fartura de tais bens terrenos, temporais, os quais eles tinham em vista ao servirem a Deus. E surgiu-lhes no coração péssima reflexão, que fez vacilarem seus pés e quase resvalarem no caminho de Deus. Tais eram os pensamentos do povo no Antigo Testamento; oxalá não sejam também os de nossos irmãos carnais, ao ouvirem tão claramente anunciada a felicidade do Novo Testamento! Como se exprimiu aquela sinagoga? Que disse aquele povo? Nós servimos a Deus, e somos repreendidos e castigados. São-nos subtraídos os bens que amamos, e que havíamos recebido de Deus, considerando-os valiosos. Aqueles homens, porém, celerados, péssimos, soberbos, blasfemos, inquietos, têm essas riquezas abundantemente, enquanto nós servíamos a Deus por causa delas. Parece-me inútil servir a Deus. O salmo apresenta esses sen-timentos do povo desanimado e hesitante. Ao considerar este povo que os bens terrenos, por cuja obtenção eles ser-viam a Deus, são concedidos com abundância aos que a ele não servem, vacila e quase resvala. Ele desaparece juntamente com os hinos, porque em seus corações os hinos terminaram. Que significa terem terminado os hinos em tais corações? Eles já não pensavam nisto e não louvavam a Deus. Como haveriam de louvar a Deus, se este a seu ver era quase mau, ao dar aos ímpios tanta felicidade e retirá-la de seus servidores? Deus não lhes parecia bom. E sendo assim, de fato, não o louvavam, e uma vez que não o louvavam, terminaram para eles os hinos. Posteriormen-te, contudo, este povo entendeu os avisos de Deus acerca do que devia procurar, quando tirara de seus servos estes bens temporais e os concedia a seus inimigos, blasfemos, ímpios. Bem avisado, entendeu que além de todas as coisas que Deus dá aos bons e aos maus, e por vezes tira dos bons e dos maus, além de tudo isso reserva algo para os bons. Qual o bem reservado aos bons? O que guarda para eles? A si mesmo. A meu ver, o caminho foi percorrido com o salmo; este foi entendido, no nome do Senhor. Ouve como aquele que estava no erro recorda-se e se arrepende de ter pensado que Deus não é bom, porque dá bens terrenos aos maus, e os retira de seus servos. Pois, entendeu o que Deus reserva para seus servos; e relembrando contrito, irrompe nas palavras seguintes.



§ 7
Como é bom o Deus de Israel!” Para quem? “Para os retos de coração”.

E para os perversos? Parece mau. Assim afirma outro salmo:

Com o santo serás santo e com o ino-cente serás inócuo. Com o perverso serás perverso(Sl 17, 26.27).

O perverso te considerará perverso. Mas, Deus não se perverte de forma alguma. Absolutamente não; é o que é. O sol parece tranqüilo a quem tem olhos puros, sadios, vigorosos, fortes e aos olhos doentes parece lançar dardos incomodos; enquanto os primeiros se robustecem e os segundos se afligem ao olhá-lo, pois estes diferem entre si e não o sol. Igualmente, Deus te parece perverso, quando começas a ser perverso. Mas és tu que és diferente e não ele. Será um castigo para ti o que faz a alegria de outros. Lembrado destas verdades, diz o salmista:

Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração!



§ 8
2 E a ti, o que acontece? “Os meus pés quase escorregaram”.

Quando escorregaram os pés, senão quando teu coração não era reto? Por que não era reto o coração? Ouve:

E por um triz não resvalaram os meus passos”.

Quase equivale a por um triz e “quase escorregaram” a “por um triz” não resvalaram”.

Quase escorregaram e quase resvalaram.

Os pés escorregaram”, mas como os pés escorregaram e os passos resvalaram? “Os pés escorregaram no erro e os passos resvalaram” para uma queda; mas não completamente, “quase”.

Qual o sentido? Ia caindo no erro, não caí; tombava, mas não caí totalmente.



§ 9
3 Por que motivo? “Ao ter inveja dos maus, observando a paz dos pecadores”.

Observei os pecadores e verifiquei que estão em paz. Que paz é esta? Temporal, transitória, caduca e terrena; contudo, também eu gostaria de recebê-la de Deus. Notei possuírem os que não serviam a Deus aquilo que gostaria de ter para servi-lo; e “os meus pés quase escorregaram e por um triz não resvalaram os meus passos”.



§ 10
4.5 O salmista narra brevemente por que a possuem os pecadores:

Pois não se subtraem à morte e é firme o seu castigo. Não partilham os sofrimentos dos outros homens e com eles não são atormentados”.

Já entendi, diz ele, porque gozam de paz e progresso na terra; eles não se subtraem à morte, isto é, está reservada para eles morte certa e eterna, que não foge deles, nem eles podem fugir dela.

Pois não se subtraem à morte, e é firme o seu castigo”.

É firme o seu castigo, pois não é temporário, mas firme para sempre. Por conseguinte, em vista dos males que os aguardam eternamente, como vivem agora? “Não partilham os sofrimentos dos outros homens e com eles não são atormentados”.

E o próprio diabo, ao qual está preparado o suplício eterno, não é atormentado com os homens?



§ 11
6 Em conseqüência disto, como se comportam os que não são atormentados, castigados com os outros homens? “Por isso a soberba deles se apossa”.

Observa aqueles soberbos, indisciplinados; nota como um touro destinado a um sacrifício pode pastar livremente e estragar o que está a seu alcance até o dia de ser morto. Já está em boas condições, irmãos. Ouçamos as palavras do profeta referentes a esta espécie de touro, que mencionei. Relativamente a ele é também outra passagem da Escritura, onde se diz que os maus estão preparados para serem sacrificados, sendo-lhes concedida falsa liberdade (cf Pr 7,22).

Por isso a soberba deles se apossa”.

Que sentido tem:

A soberba deles se apossa? Envolvem-nos sua iniqüidade e impiedade”.

Não se diz: cobertos, e sim:

envolvidos”, inteiramente encobertos em sua impiedade. Com razão, esses infelizes não podem ver nem ser vistos, porque estão envolvidos e seu interior está encoberto. Pois se alguém pudesse inspecionar o íntimo dos maus, que parecem felizes por certo tempo, se pudesse ver suas consciências cruéis, quem verificasse como suas almas são batidas por tantas perturbações de ambições e temores, constataria que são miseráveis, mesmo quando se chamam felizes. Mas como “envolvem-nos sua iniqüidade e impiedade”, não vêem, nem são vistos. O Espírito que assim se exprime a seu respeito conhece-os bem; e com tais olhos devemos olhá-los. Assim saberemos vê-los, se nos for retirado o invólucro da impiedade. Vejamo-los. Fujamos deles enquanto são felizes. Nem os imitemos. Nem desejemos obter do Senhor nosso Deus tais coisas, como se fossem muito importantes, quais mereceram receber os que não o servem. Ele nos reserva outro bem. Outra coisa é desejável. Ouvi qual é.



§ 12
7 Primeiro, descrevemos a estes.

Sua iniqüidade bro-tará de sua abundância”.

Vê esta alusão a um touro cevado. Ouvi, irmãos. Não foi de passagem que disse o salmista:

Sua iniqüidade brotará de sua abundância”.

Existem alguns que são maus, mas devido a sua penúria. São maus porque magros, isto é, indigentes, na penúria, infeccionados pela miséria. Mesmo estes maus são condenáveis. Deve-se suportar qualquer necessidade antes que perpetrar um crime. No entanto, o pecado é diferente se praticado devido à penúria ou na abundância. Um pobre mendigo pratica um furto; a maldade procede da penúria. Um rico na fartura, por que há de tirar o bem alheio? A iniqüidade de um provém da penúria e a do outro da fartura. Por isso, dizes ao macilento: Por que fizeste isto? Humildemente aflito e envergonhado responde: A necessidade me obrigou a isto. Por que não temeste a Deus? A penúria me impeliu. Dize ao rico: Por que ages assim, e não temes a Deus? Se, contudo, tens autoridade para dizê-lo. Vê se ao menos se digna ouvir; vê se a iniqüidade não brotará contra ti de sua abundância. Logo se tornam inimigos dos que o ensinam e corrigem; fazem-se inimigos dos que dizem a verdade, pois estão acostumados à adulação, sendo de ouvidos delicados e de coração doentio. Quem tem coragem de dizer ao rico: Fizeste mal roubando o alheio? Ou se, por acaso, ousar dizer e o rico não puder resistir-lhe, que responderá? Falará desprezando a Deus. Por quê? Porque tem fartura. Por quê? Porque destinado à matança.

Sua iniqüidade brotará de sua abundância”.



§ 13
Transbordam devaneios em seu coração”.

Interiormente transbordam. Que quer dizer:

transbordam?” Ultrapassaram o caminho. Que quer dizer:

transbordam?” Execederam as metas do gênero humano; não se julgam iguais aos outros homens. Ultrapassaram, digo, as metas do gênero humano. Quando falas a tal homem: Este pobre é teu irmão; tivestes os mesmos pais, Adão e Eva, não penses no teu tumor, não penses no inchaço de teu orgulho; embora te cerque uma família, apesar de possuíres uma quantidade grande de ouro e prata, apesar da casa de mármore e dos tetos trabalhados, estás sob o mesmo teto que o pobre: o céu. Diferes do pobre, tem bens que não são teus, mas justapostos exteriormente a ti; considera-te neles, e não eles em ti. Considera a ti mesmo, quem és junto do pobre; a ti mesmo, não aquilo que tens. Por que razão desprezas teu irmão? Nas vísceras de vossas mães ambos estivestes nus. Sem dúvida igualmente, ao saírdes desta vida, e desta carne, depois que a alma a tiver deixado, se torna putrefacta, não se distinguirão os ossos de um rico e de um pobre! Refiro-me à condição de igualdade, da própria sorte do gênero humano, que acompanha a todos os que nascem. Apesar de estar aqui o rico, e o pobre também, não ficarão sempre aqui; e como rico não nasceu rico, também não morre rico. É idêntica a entrada e a saída deste mundo para ambos. Acrescento o que pode mudar as condições. O evangelho já é pregado em todas as partes do mundo. Nota que certo pobre coberto de úlceras jazia diante da porta de um rico, e desejava saturar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; observa como aquele teu igual se vestia de púrpura e linho fino, e se banqueteava esplendidamente todos os dias. Aconteceu, na verdade, que aquele pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão; o outro, porém morreu e foi sepultado; mas talvez ninguém se tenha preocupado com a sepultura do pobre. Estando aquele rico no inferno, no meio dos tormentos, não levantou os olhos e não viu em alegria infinita aquele que ele desprezara diante de sua porta, e desejou uma gota de água na ponta do dedo daquele que desejara as migalhas que caíam de sua mesa? (cf Lc 19,19-31).

Irmãos, como foram grandes os sofrimentos daquele pobre! Como foram longas as delícias daquele rico! Mas, a mudança é eterna. Quanto ao rico, não se subtraiu à morte, e é firme o seu castigo. Ele não partilhou os sofrimentos dos outros homens e com eles não foi atormentado. O pobre, porém, foi afligido na terra e descançou ali, porque Deus castiga todo filho que ele acolhe (cf Hb 12,6).

Mas, a quem dizes tais coisas? Ao que se banqueteia cada dia e que se veste sempre de púrpura e linho fino. A quem te diriges? Àquele em cujo “coração transbordam devaneios”.

Com razão, hás de dizer tarde demais:

Envia Lázaro; que ele advirta meus irmãos”, quando ele não tiver mais oportunidade de fazer penitência. Pois, não poderá obter ocasião de penitência; mas haverá uma penitência eterna, que não traz consigo salvação. Portanto, a estes “transbordam devaneios no coração”.



§ 14
8 “Planejaram e falaram maldades”.

Os homens referem-se a sua maldade com temor; e estes, como fazem? “Proferiram em alta voz iniqüidades”.

Não somente proferiram iniqüidades, mas ainda o fazem claramente, aos ouvidos de todos, orgulhosamente: Eu faço, eu mostro; perceberás com quem tens de te haver, não te deixarei mais viver. Se ao menos pensasse, sem o deixar transpa-recer; ao menos o mau desejo seria recalcado nos pensamentos, ou refreado dentro de seus planos. Por quê? Acaso seria um macilento? “Sua iniqüidade brotará de sua abundância. Proferiram em alta voz iniqüidades”.



§ 15
9 “Investem com a boca contra o céu e a sua língua discorre sobre a terra”.

Como interpretar:

discorre sobre a terra?” Como a palavra:

Investem com a boca contra o céu. Discorre sobre a terra”, passam todas as realidades terrenas. Por que passam todas as realidades terrenas? Não se pensa que alguém possa morrer subitamente, enquanto fala. Quase sempre ameaça como se houvesse de viver. Suas cogitações vão além da fragilidade terrena. Desconhece como é frágil seu invólucro, não sabe o que está escrito em outra passagem a respeito desses tais:

Vai-se-lhe o espírito e ele volta ao limo da terra. Naquele dia perecem todos os seus desígnios(Sl 145,4).

Eles, porém, sem pensarem no último dia, falam com soberba, investem com a boca contra o céu e discorrem sua língua sobre a terra. Se o ladrão jogado no cárcere não pensasse em seu último dia, isto é, no último dia em que será julgado, nada seria mais terrível para ele que a prisão, de lá ainda poderia fugir. Para onde fugires a fim de não morreres? O dia da morte é certo. Quanto tempo durará tua vida? Será longo o que tem fim, mesmo se durar? Acrescente-se a isso que não é longo; não dura e é incerto mesmo o que se diz durável. Por que o iníquo não pensa nisso? Porque investe com a boca contra o céu e discorre sua língua sobre a terra.



§ 16
10 “Por isso meu povo se voltará para eles”.

O próprio Asaf volta-se para eles. Tomou conhecimento de que os iníquos têm riquezas em abundância, e observou os soberbos; volta-se para Deus, e começa a questionar e disputar. Mas quando? “Quando chegarem para eles os dias plenos. Que dias plenos são estes? Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho(Gl 4,4).

Plenitude do tempo consiste naquela época em que o Filho veio ensinar a desprezar os bens temporais, a não considerar importantes os objetos dos anelos dos malvados, a sofrer o que eles receiam. Ele se tornou o caminho, convidou a pensamentos íntimos, exortou àquilo que se há de pedir a Deus. E pondera como se passa a preferir os bens verdadeiros, quando o intelecto raciocina e chama a si, de algum modo, o fluxo impetuoso do pensamento.

Por isso meu povo se voltará para eles, quando chegarem para eles os dias plenos”.



§ 17
11 “E disseram: Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento?” Vê quais as suas cogitações. Eis que os iníquos são felizes. Deus não se preocupa com os acontecimentos humanos. Saberia ele, de fato, o que fazemos? Vede como falam. Por favor, irmãos. Não digam os cristãos:

Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento?



§ 18
12 Por que razão julgas que Deus não sabe, nem que o Altíssimo tem conhecimento? Responderás:

São assim os pecadores, e opulentos no mundo aumentam suas riquezas”.

São pecadores, e conseguiram opulentas riquezas neste mundo. Ele confessa que não queria ser pecador, com o fito de possuir riquezas. A alma carnal havia vendido a justiça em troca de bens visíveis e terrenos. Que justiça essa, conservada em vista de obter ouro! Como se o ouro fosse mais precioso do que a própria justiça, ou que se alguém nega entregar o alheio, sofra maior dano aquele ao qual é recusado do que aquele que o recusa! Um perde a veste, e outro a fidelidade.

São assim os pecadores, e opulentos no mundo, aumentam suas riquezas”.

Por isso é que Deus não sabe, e o Altíssimo não tem conhecimento!



§ 19
13 E eu disse:

Foi então inutilmente que justifiquei meu coração e lavei minhas mãos entre os inocentes”.

Sirvo a Deus e não tenho estas coisas; eles não servem e as possuem com abundância.

Foi então inutilmente que justifiquei meu coração e lavei minhas mãos entre os inocentes”.

Foi em vão que assim agi. Onde está a recompensa de uma vida honesta? Onde o prêmio de meu serviço? Vivo bem e passo necessidade; e o iníquo está na fartura.

E lavei minhas mãos entre os inocentes”.



§ 20
14 “Pois fui açoitado todo dia”.

Os flagelos de Deus não me deixam. Sirvo bem e sou castigado; aquele outro não serve e está bem provido. É um grande problema. A alma se agita, se abala. Devia passar a desprezar os bens terrenos e a desejar os eternos. Movimenta-se no meio de tais cogitações. Flutua, batida pela tempestade, antes de alcançar o porto. Assim acontece com os doentes, numa moléstia prolongada, com recuperação demorada. À medida que a saúde vai voltando, ficam mais agitados. Os médicos denominam esta fase de momento crítico, de passagem para a saúde. É maior a agitação, mas leva à saúde. Maior o ardor, mas próxima a convalescença. De igual modo a alma se agita. Pois essas palavras, irmãos, são perigosas, molestas e quase blasfemas:

Como sabe Deus?” Igualmente o “quase”.

Não disse: Deus não sabe. Não disse: O Altíssimo não tem conhecimento. Mas está de algum modo perguntando, hesitando, duvidando. Foi isto que o salmista disse mais acima:

Os meus pés quase escorregaram. Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento?” Não afirma, mas a própria dúvida é perigosa. Através do perigo chega à saúde. Ouve como já está com saúde:

Foi então inutilmente que justifiquei meu coração e lavei minhas mãos entre os inocentes? Pois fui açoitado todo dia e argüído desde o amanhecer”.

Argüição no sentido de correção. Quem é argüído é corrigido. E:

amanhecer?” Não há delongas. A dos ímpios é adia-da. A minha, não. A deles é tardia, ou nula; a minha, “desde o amanhecer. E fui açoitado todo dia e argüído desde o amanhecer”.



§ 21
15 “Se eu dissesse: Vou falar assim”, isto é, ensinar assim. O que hás de ensinar? Que o Altíssimo não tem conhecimento? Que Deus não sabe? Queres proferir esta opinião, porque em vão vivem na justiça os que vivem bem, porque o homem justo perdeu o resultado de seu serviço, porque Deus favorece mais os maus, ou não se preocupa com os homens? É isto que queres dizer, narrar? O salmista se contém, diante da autoridade. Qual autoridade? O homem às vezes quer proferir de repente essa opinião; mas as Escrituras advertem-no a viver sempre bem, dizendo que Deus cuida dos acontecimentos humanos, e faz distinção entre os que são piedosos ou ímpios. Por conseguinte, também o salmista, ao pensar em manifestar tal opinião, volta atrás. E como se exprime? “Se eu dissesse: Vou falar assim, atraiçoaria a raça de teus filhos”.

Atraiçoaria a raça de teus filhos, se assim falasse; atraiçoaria a raça dos justos. Conforme também se encontra em alguns exemplares:

Eis a raça de teus filhos, com a qual estou em uníssono”.

Com quais dentre teus filhos estou em uníssono? Com quais estou de acordo? Adaptei-me? Discordo de todos, se falar assim. Está em uníssomo quem está afinado; quem desafina não está em uníssono. Posso falar de maneira diferente de Abraão, de Isaac, de Jacó, dos profetas? Todos eles afirmaram que Deus cuida dos acontecimentos humanos; direi eu que ele não se preocupa? Tenho maior prudência do que eles? Maior compreensão do que eles? Uma autoridade muito salutar mudou minha ímpia opinião.



§ 22
16 Que vem a seguir? “Se eu dissesse: Vou falar assim, atraiçoaria a raça de teus filhos”.

Portanto, o que há de fazer para não atraiçoar? “Refleti para compreender”.

Ele procura compreender. Deus o assista para que entenda. Por enquanto, irmãos, evita grande queda por não presumir saber, mas reflete para entender o que desconhe-cia. Queria mostrar que sabia e declarar que Deus não cuida dos eventos humanos. Apareceu, pois, esta péssima e ímpia doutrina dos iníquos. Notai, irmãos, que muitos disputam, e dizem que Deus não cuida dos acontecimentos humanos, que tudo se dirige pelo acaso, que nossas vontades estão sujeitas às estrelas, que os homens não agem de forma meritória, mas coagidos por suas próprias estrelas: doutrina má, doutrina ímpia! Seguia esta opinião aquele cujos “pés quase escorregaram, e por um triz não resvalaram os seus passos”.

Ele adotara esse erro. Mas como isto não concordava com o parecer da raça dos filhos de Deus, refletiu para conhecer, e rejeitou o modo de pensar diferente do parecer dos justos de Deus. E ouçamos como se exprime, uma vez que refletiu foi auxiliado, aprendeu algo e nô-lo indicou. Diz ele:

Refleti para compreender. Pareceu-me penosa tarefa”.

Na verdade, é penosa tarefa procurar saber como Deus cuida das coisas humanas, e no entanto tudo corre bem para os maus e os bons estão em dificuldades. Grande problema! Por isso:

Pareceu-me penosa tarefa”.

Está um muro a minha frente, mas tenho a palavra do salmo:

Com meu Deus escalarei a muralha(Sl 17,30).

Pareceu-me penosa tarefa”.



§ 23
17 É verdade o que afirmas: é penosa tarefa; mas diante de Deus não é penosa. Executa-a diante de Deus, e não sentirás o esforço. O salmista assim fez, porque fala enquanto tem o trabalho diante de si:

Até que entrei no santuário de Deus e percebi qual a sorte final”.

Isto é importante, irmãos. O salmista assegura que há muito se esforça e tem diante de si uma tarefa inextri-cável, a de saber como é que Deus é justo e provê aos acon-tecimentos humanos, e não é iníquo por que, apesar de pecarem e cometerem crimes, os maus possuem felicidade nessa terra. Os bons, porém, que servem a Deus, se cansam no meio de tentações freqüentes e trabalhos. Há grande dificuldade em se entender este problema. Mas, apenas “até que entre no santuário de Deus”.

Então, no santuário de Deus te é dado resolver esta questão? “E perceber qual a sorte final”, não a presente. Eu, diz ele, do santuário de Deus, dirijo os olhos para o fim; vou além do momento presente. Todo esse gênero humano, toda essa massa de seres mortais será submetida a exame, será pesada; então serão avaliadas todas as obras dos homens. Agora, tudo está nublado; mas Deus conhece os méritos de cada um. Percebo “a sorte final”, não por mim mesmo, pois diante de mim tenho apenas uma penosa tarefa. Como perceberei “qual a sorte final?” Devo entrar no santuário de Deus. Ali, portanto, entendi porque eles agora são felizes.



§ 24
18 “Sim, colocaste-os entre fraudes”.

Visto que são dolosos, isto é, fraudulentos, visto que são dolosos, suportam fraudes. Por que digo que, sendo fraudulentos, sofrem fraudes? Eles querem agir fraudulentamente em suas malícias; igualmente passarão por fraudes, pois preferem os bens terrenos e abandonam os eternos. Portanto, irmãos, se praticam fraudes, sofrem fraudes. Já lhes expliquei, irmãos, de que espécie é o coração daquele que para obter uma veste perde a fidelidade? Aquele de quem ele roubou a veste sofreu a fraude, ou ele próprio que é ferido por tamanho dano? Se a veste é mais valiosa do que a fidelidade, o roubado sofreu dano maior; se, porém, a fidelidade excede incomparavelmente todo o mundo, o roubado parece ter sofrido o prejuízo da veste; mas ao que rouba se diz:

De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua alma”? (Mt 16,26).

Portanto, o que foi que lhes sucedeu? “Sim, colocaste-os entre fraudes; derrubaste-os quando se exaltavam. Não disse o salmista: Derrubaste-os porque se orgulharam, como se os derrubasse depois que se orgulharam, mas no próprio ato de se orgulharem foram derrubados. Orgulhar-se deste modo já é cair:

Derrubaste-os quando se exaltavam”.



§ 25
19 “Como caíram de repente na desolação”.

O salmista, ao perceber qual a sorte final, admira-se a respeito deles.

Sumiram”, efetivamente; como a fumaça, que ao subir desaparece, eles sumiram. Por que diz o salmista:

Sumiram”? Porque ele percebe qual a sua sorte final.

Sumiram por causa de sua iniqüidade”.



§ 26
Como ao despertar de um sonho”.

Como sumiram? Como some o sonho, ao se despertar. Imagina um homem que vê em sonhos um tesouro; é rico até acordar.

Como ao despertar de um sonho”; eles sumiram, qual o sonho de quem desperta. Procura-se e não existe mais. Nada nas mãos, nada na cama. Dormira pobre, tornara-se rico no sonho; se não acordasse era rico; acordou e retornou à penúria que deixara enquanto dormia. Também estes encontrarão a miséria que adquiriram para si; ao acordarem desta vida, o que eles retinham desaparecerá como um sonho, “como ao despertar de um sonho”.

E o salmista acrescenta, tendo em vista que não se diga: Então? parece-te pouco a sua glória, pequenas as suas pompas, pequenos os títulos, as imagens, as estátuas, os louvores, a turba de seus favorecidos? “Senhor, reduzistes a nada em tua cidade a imagem deles”.

Portanto, irmãos, falo com liberdade desta cátedra, ou de onde me é permitido, pois quando estamos no meio de vós mais vos ferimos do que ensinamos; em nome de Cristo e com temor eu vos exorto, a todos vós que não possuís tais bens, não os ambi-cioneis; todos os que possuís, não sejais presunçosos. Vede bem o que vos disse. Não disse: Sereis condenados por os possuírdes, mas: Sereis condenados por terdes presunção por causa deles, por vos orgulhardes, por vos conside-rardes grandes, se não derdes atenção aos pobres, se vos esquecerdes de vossa condição comum com o gênero humano, devido a muita vaidade. Então Deus necessariamente retribuirá no final, e em sua cidade reduzirá a nada a imagem deles. Aos ricos, porém, preceitua o Apóstolo:

Aos ricos deste mundo, exorta-os que não sejam orgulhosos, nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus vivo, que nos provê de tudo com abundância, para que nos alegremos(1 Tm 6,17).

Tira a soberba dos ricos; dá conselho. Seria como se eles dissessem: Somos ricos; tu nos proíbes o orgulho, a jactância sobre as pompas de nossas riquezas; que faremos delas? Não têm como empregá-las? Ele reponde:

Eles se enriqueçam com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar”.

Que lucram com isto? “Estarão assim acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdadeira vida(1 Tm 6,18.19).

Onde devem acumular tesouros para si? Onde pousaram os olhos do Apóstolo, ao entrar no santuário de Deus. Sintam pavor todos os nossos irmãos ricos, que possuem abundância de dinheiro, ouro, prata, escravos, honrarias; tenham pavor do que se diz aqui:

Senhor, reduzirás a nada em tua cidade a imagem deles”.

Não merecem sofrer assim aqueles que em sua cidade terrena reduziram a nada a imagem de Deus, a saber, que na cidade de Deus sua imagem seja reduzida a nada? “Reduzirás a nada em tua cidade a imagem deles”.



§ 27
21 “Porque meu coração se deleitou”.

Declara o que é que o tenta:

Porque meu coração se deleitou e meus rins se alteraram”.

Ao me deleitarem as riquezas temporais, meus rins se alteraram. É possível também a seguinte interpretação:

Meu coração se deleitou em Deus, e meus rins se alteraram”, quer dizer, mudaram-se meus desejos, e tornei-me inteiramente casto.

Meus rins se alteraram”.

Escuta de que maneira.



§ 28
22 “Fui reduzido a nada e não compreendi”.

Eu, que agora assim me refiro aos ricos, outrora desejei estas riquezas. Por esta razão também eu “fui reduzido a nada”, quando por um triz não resvalaram os meus passos.

Fui reduzido a nada e não compreendi”.

Então, não se deve perder a esperança a respeito daqueles de quem falava.



§ 29
23 Por que “não compreendi? Tornei-me como um animal de carga junto de ti, mas estou sempre contigo”.

O salmista é muito diferente dos outros. Ele se tornou como um animal desejando os bens terrenos, quando foi reduzido a nada e não conheceu os bens eternos, mas não se apartou de seu Deus, porque não quis obtê-los dos demônios, do diabo. Já vos havia relembrado isso. Aí temos a voz da sinagoga, daquele povo que não cultuou os ídolos. Tornei-me, de fato, como um animal de carga, querendo obter de meu Deus bens terrenos; mas dele nunca me afastei.



§ 30
24 Por conseguinte, uma vez que, apesar de me ter tornado como animal, não me afastei de meu Deus, continuo com o salmo:

Tomaste-me pela mão de minha direita”.

Não disse o salmista: minha mão direita, e sim:

a mão de minha direita”.

Se a mão é da direita, a mão segura outra mão:

Tomaste-me pela mão de minha direita”, para me guiares. Por que emprega o termo:

mão?” Significa: poder. Costumamos dizer que alguém tem algo na mão, em vez de: tem em seu poder, conforme o diabo disse a Deus acerca de Jó:

Estende tua mão e toca nos seus bens(Jó 1,11).

Qual o sentido de “estende a tua mão?” Dá-me o poder. Chama de mão de Deus a seu poder; assim também se acha escrito em outro lugar:

Morte e vida estão nas mãos da língua(Pr 18,21).

A língua tem mãos? Mas que significa:

nas mãos da língua?” Em poder da língua. Por que: em poder da língua? “Por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado(Mt 12,37).

Tomaste-me, pois, pela mão de minha direita”, pelo poder de minha direita. Qual era minha direita? “Estou sempre contigo”.

Estava à esquerda, porque “tornei-me como um animal de carga”, tendo concupiscência pelas coisas terrenas. Minha direita, pois estava sempre contigo. Foi esta mão de minha direita que seguraste, isto é, governaste com poder. Que poder? “Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus(Jo 1,12).

O salmista começou a ser contado entre os filhos de Deus, a pertencer ao Novo Testamento. Vê como foi re-tida a mão de sua direita.

E conduziste-me segundo a tua vontade”.

Que é:

segundo a tua vontade?” Não foi de acordo com meus méritos. Que é:

segundo a tua vontade?” Ouve o que diz o Apóstolo, anteriormente um animal a desejar bens terrenos e a viver segundo o Antigo Testamento. Como se exprime ele? “A mim que outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia(1 Tm 1,13).

Que é:

segundo a tua vontade? Mas pela graça de Deus sou o que sou(1 Cor 15,10).

E acolheste-me na glória”.

Quem consegue explicar onde foi acolhido e em que glória? Quem o descreve? Esperemo-lo, porque será na ressurreição, nos últimos dias:

Acolheste-me na glória”.



§ 31
25 Começa o salmista a meditar sobre aquela felicidade celeste, e a censurar-se a si mesmo, por ter sido como animal, ambicionando bens terrenos.

Para mim o que há no céu? E que desejei de ti na terra?” Por vossa exclamação, vejo que entendestes. O salmista comparou seus anelos terrenos com o prêmio celeste que há de receber. Considerou o que no céu lhe está reservado, e ponderando com intenso desejo, despertado pelo pensamento de algo inefável, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem penetrou nos corações humanos (cf 1Cor 2,9), não disse: Tenho no céu reservado isto ou aquilo, mas:

Para mim que há no céu?” Que é que tenho no céu? De que tamanho é? De que qualidade? E, como não se perde o que tenho no céu, “que desejei de ti na terra?” É a ti mesmo que reservas para mim. Procuro exprimi-lo quanto possível, mas perdoai-me; recebei os meus esforços, meu empenho, visto que não há recurso para explicá-lo. Guardas para mim no céu riquezas imortais, a ti mesmo. E eu procurei obter de ti na terra aquilo que têm os ímpios, que têm igualmente os malvados e os criminosos: dinheiro, ouro, prata, pedras preciosas, escravos; aquilo que possuem muitos celerados, que possuem muitas mulheres torpes, muitos homens torpes. Foi isso que pedi de meu Deus sobre a terra, enquanto ele me reserva no céu a si mesmo, meu Deus.

Que há para mim” no céu? Deve mostrar o que é.

E que desejei de ti na terra?



§ 32
26 “Desfaleceram meu coração e minha carne. Deus de meu coração”.

No céu acha-se reservado para mim o seguinte:

Deus de meu coração e minha partilha, meu Deus”.

Que sentido tem isso, meus irmãos? Saibamos descobrir quais as nossas riquezas. O gênero humano escolha sua parte. Observemos como os homens se dilaceram por várias ambições. Um escolhe o exército, outro a advocacia, outro diversas e várias disciplinas, outro o comércio, outro a agricultura. Tomem para si uma parte destas coisas humanas; mas clame o povo de Deus:

Minha partilha, meu Deus”.

Minha partilha, mas não temporária, “minha partilha, Deus, pelos séculos”.

Mesmo que tenha sempre ouro, que tenho? Quanto a Deus, mesmo que não o tivesse sempre, que bem imenso teria! Acrescente-se a isso que ele prometeu dar-se a si mesmo, e que o teria eternamente. Terei tudo isso e para sempre! Imensa felicidade! “Minha partilha, meu Deus”.

Por quanto tempo? “Pelos séculos”.

Eis, pois, como o salmista ama a Deus; seu coração se tornou casto:

Deus de meu coração e minha partilha, meu Deus pelos séculos”.

Seu coração se tornou casto; já ama a Deus gratuitamente, sem pedir dele outra recompensa. Quem pede a Deus outra recompensa e quer servi-lo tendo em vista esta recompensa, aprecia mais aquilo que quer receber do que aquele de quem espera o prêmio. Então, Deus não dá prêmio algum? Nenhum fora dele. O prêmio de Deus é ele mesmo. Isto é o que ele ama, o objeto de sua predileção. Se amar outra coisa, não se trata de amor casto. Se tu te afastas do fogo imortal, esfrias e te arruínas. Não te apartes; seria corrupção, fornicação. O salmista volta-se, arrepende-se, escolhe a penitência e diz:

Minha partilha, meu Deus”.

E como se deleita naquele que escolheu para si!



§ 33
27 “Eis que perecerão os que se afastam de ti, para longe”.

Afastou-se de Deus, mas não para longe, pois “tornei-me como um animal de carga, mas estou sempre contigo”.

Foram para bem longe aqueles que não apenas cobiçaram bens terrenos, mas os pediram aos demônios e ao diabo.

Eis que perecerão os que se afastam de ti, para longe”.

Que significa ir para longe de Deus? “Exterminaste os que de ti apostatam”.

Esta fornicação é contrária ao amor casto. Que é amor casto? Suponhamos que a alma já ama seu esposo. Que pede ao esposo amado? Talvez faça como os homens ao escolherem seus genros, esposos para suas filhas. Escolhem talvez riquezas, e gostam de seu ouro, terras, prata, dinheiro, cavalos, escravos, etc. De forma alguma. O salmista ama somente a Deus; ama gratuitamente, porque tem tudo naquele por quem foram feitas todas as coisas (Jo 1,3).

Exterminaste os que de ti apostatam”.



§ 34
28 E tu? O que fazes? “Para mim felicidade é aproximar-me de Deus”.

Aí encontro todo bem. Queres mais alguma coisa? Lastimo os que quiserem. Irmãos, que quereis ainda? Nada de mais feliz do que aproximarmo-nos de Deus, quando o virmos face a face (cf 1Cor 12,12).

E agora? Como ainda sou peregrino, digo:

Para mim felicidade é aproximar-me de Deus”, mas como ainda estou em peregrinação, e ainda não alcancei a realidade, “é pôr em Deus a minha esperança”.

Enquanto, pois, não te aproximaste, coloca nele tua esperança. Estás flutuando; lança âncora. Ainda não aderes à presença; adere em esperança.

Pôr em Deus a minha esperança”.

E que deves fazer aqui para depositar em Deus tua esperança? Qual será tua ocupação, a não ser louvar aquele a quem amas, e angariar outros a amá-lo contigo. Se gostas de um auriga, não arrastarias outros para torcerem contigo? Quem gosta de um auriga, em toda parte fala dele, para que os demais também torçam por ele. Os malvados são amados gratuitamente, e pede-se recompensa a Deus para amá-lo! Ama gratuitamente a Deus; não tenhas ciúme. Arrastai para ele a quantos puderdes, a quantos estão em vosso poder. Ele não é mesquinho. Não marqueis limites. Cada um o possuirá inteiramente, e todos vós o possuireis. Por conseguinte, age assim enquanto estás aqui, isto é, enquanto colocas em Deus a tua esperança. O que se seguirá? “Proclamarei teus louvores diante das portas da filha de Sião. Proclamarei teus louvores”; mas onde? “Diante das portas da filha de Sião”.

Pregar a Deus fora da Igreja, é inútil. Não basta louvar a Deus e anunciar seus louvores. Anuncia “diante das portas da filha de Sião”.

Tende à unidade, não dividas o povo; mas arrasta para a unidade e faze de todos um só. Perdi a noção do tempo ao falar. Terminou o salmo. Tenho a sensação de ter feito um sermão longo demais. Mas não consigo satisfazer a vosso empenho, pois sois exigentes demais. Oxalá com esta violência arrebateis o reino dos céus!