ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 71 | ||
§ 71:1 | ⱻ Em ti, Senhor, me refugio; nunca seja eu confundido. | |
§ 71:2 | Ɲ Na tua justiça socorre-me e livra-me; inclina os teus ouvidos para mim, e salva-me. | |
§ 71:3 | ᶊ Sê tu para mim uma rocha de refúgio a que sempre me acolha; deste ordem para que eu seja salvo, pois tu és a minha rocha e a minha fortaleza. | |
§ 71:4 | Ł Livra-me, Deus meu, da mão do ímpio, do poder do homem injusto e cruel, | |
§ 71:5 | Ꝓ Pois tu és a minha esperança, Senhor Deus; tu és a minha confiança desde a minha mocidade. | |
§ 71:6 | ⱻ Em ti me tenho apoiado desde que nasci; tu és aquele que me tiraste das entranhas de minha mãe. O meu louvor será teu constantemente. | |
§ 71:7 | ᶊ Sou para muitos um assombro, mas tu és o meu refúgio forte. | |
§ 71:8 | Ɑ A minha boca se enche do teu louvor e da tua glória continuamente. | |
§ 71:9 | Ɲ Não me enjeites no tempo da velhice; não me desampares, quando se forem acabando as minhas forças. | |
§ 71:10 | Ꝓ Porque os meus inimigos falam de mim, e os que espreitam a minha vida consultam juntos, | |
§ 71:11 | ɖ dizendo: Deus o desamparou; persegui-o e prendei-o, pois não há quem o livre. | |
§ 71:12 | Ơ Ó Deus, não te alongues de mim; meu Deus, apressa-te em socorrer-me. | |
§ 71:13 | ᶊ Sejam envergonhados e consumidos os meus adversários; cubram-se de opróbrio e de confusão aqueles que procuram o meu mal. | |
§ 71:14 | ɱ Mas eu esperarei continuamente, e te louvarei cada vez mais. | |
§ 71:15 | Ɑ A minha boca falará da tua justiça e da tua salvação todo o dia, posto que não conheça a sua grandeza. | |
§ 71:16 | ⱴ Virei na força do Senhor Deus; farei menção da tua justiça, da tua tão somente. | |
§ 71:17 | ⱻ Ensinaste-me, ó Deus, desde a minha mocidade; e até aqui tenho anunciado as tuas maravilhas. | |
§ 71:18 | Ɑ Agora, quando estou velho e de cabelos brancos, não me desampares, ó Deus, até que tenha anunciado a tua força a esta geração, e o teu poder a todos os vindouros. | |
§ 71:19 | Ɑ A tua justiça, ó Deus, atinge os altos céus; tu tens feito grandes coisas; ó Deus, quem é semelhante a ti? | |
§ 71:20 | Ŧ Tu, que me fizeste ver muitas e penosas tribulações, de novo me restituirás a vida, e de novo me tirarás dos abismos da terra. | |
§ 71:21 | Ɑ Aumentarás a minha grandeza, e de novo me consolarás. | |
§ 71:22 | Ŧ Também eu te louvarei ao som do saltério, pela tua fidelidade, ó meu Deus; cantar-te-ei ao som da harpa, ó Santo de Israel. | |
§ 71:23 | Ꝋ Os meus lábios exultarão quando eu cantar os teus louvores, assim como a minha alma, que tu remiste. | |
§ 71:24 | Ŧ Também a minha língua falará da tua justiça o dia todo; pois estão envergonhados e confundidos aqueles que procuram o meu mal. | |
O SALMO 71 | ||
§ 1 | 1 O título deste salmo traz anotado: “Sobre Salomão”, mas o que ele descreve não se adapta àquele Salomão, rei de Israel segundo a carne, conforme o que a Escritura dele narra. Pode, contudo, aplicar-se de modo muito adequado a Cristo Senhor. Daí se conclui que o próprio vocábulo Salomão foi empregado para, em sentido figurado, atribuir-se a Cristo. Efetivamente Salomão significa pacífico. Tal vocábulo convém de modo muito real e exato àquele que nos reconcilia com Deus, como mediador, de inimigos que éramos, após a remissão de nossos pecados. “Pois, quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho” (Rm 5,10). Ele é pacífico, que “de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação, suprimindo em sua carne a inimizade — a Lei dos mandamentos expressa em preceitos — a fim de criar em si mesmo dos dois povos um só homem novo, estabelecendo a paz. Assim ele veio e anunciou paz a vós que estáveis longe e paz aos que estavam perto” (Ef 2,14-17). Ele próprio diz no evangelho: “Deixo-vos a paz, a minha paz voz dou” (Jo 14,27). Há muitos outros testemunhos a demonstrarem que Cristo Senhor é pacífico; mas não segundo a paz que o mundo conhece e procura e sim a paz a que se refere o profeta: “Dar-lhes-ei verdadeiro consolo, paz sobre paz” (Is 26,12, sg LXX); à paz da reconciliação une-se a paz da imortalidade. O mesmo profeta indica que, após a realização das promessas de Deus, por fim devemos esperar a paz, em que viveremos eternamente junto de Deus, dizendo: “Senhor nosso Deus, dá-nos a paz; pois tudo nos deste” (Is 26,12, sg LXX). Haverá paz absolutamente perfeita quando “a morte, o último inimigo, for destruída”. E quem o fará, a não ser aquele pacífico, nosso reconciliador? “Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida” (1 Cor 15,26.22). Uma vez que já encontramos o verdadeiro Salomão, isto é o genuíno pacífico, demos atenção ao que nos ensina em seguida a respeito dele este salmo. | |
§ 2 | 2 Ó Deus, ao rei concede teu julgamento, a tua justiça ao filho do rei”. No evangelho declara o próprio Senhor: “O Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento” (Jo 5,22); a saber, “ó Deus, ao rei concede teu julgamento”. Este rei é também filho do rei, porque efetivamente Deus Pai é rei. Está escrito que um rei celebrou as bodas de seu filho (cf Mt 22,2). Como é usual nas Escrituras o salmo repete. Primeiro, se encontra: “teu julgamento” e depois: “tua justiça”, com o mesmo sentido. Emprega a palavra: “rei”, idêntica a: “filho do rei”. Igualmente se dá com o versículo: “Rir-se-á deles o que habita nos céus, e o Senhor zombará deles” (Sl 2,4). “Aquele que habita nos céus” é idêntico a: “Senhor”; “rir-se-á” iguala-se a: “zombará”. O mesmo se dá no versículo: “Narram os céus a glória de Deus e proclama o firmamento as obras de suas mãos” (Sl 18,2). A palavra “firmamento” é repetição do termo: “céus”, e “glória de Deus” é retomado pela expressão: “obras de suas mãos”; enquanto: “narram” repete-se por: “proclama”. Estas repetições dão muito relevo à palavra de Deus, quer de idênticas palavras, quer por sinônimos. Usam-se principalmente nos salmos e naquelas espécies de exortações que estimulam os afetos. | |
§ 3 | Continua o salmo logo: “A fim de que ele julgue teu povo com justiça e a teus pobres com eqüidade”. De modo claro revela-se por que razão Deus Pai ao rei seu Filho concedeu seu julgamento e sua justiça, na expressão: “A fim de que ele julgue teu povo com justiça”, quer dizer, para julgar teu povo. Tal locução encontra-se nos Provérbios de Salomão: “Provérbios de Salomão, filho de Davi, para conhecer sabedoria e disciplina” (Pr 1,1), isto é, Provérbios para se adquirir sabedoria e disciplina. Assim também: “Concede teu julgamento, a fim de que ele julgue teu povo”, isto é, dá teu julgamento para que ele saiba julgar teu povo. Primeiro disse: “teu povo”; é o mesmo que ele diz depois: “teus pobres”. E antes: “com justiça”, e em seguida, com idêntico sentido: “com eqüidade”, no estilo daquelas repetições. O salmista aqui demonstra bem que o povo de Deus deve ser pobre, isto é, não soberbo, mas humilde. Pois, “bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). O bem-aventurado Jó possui este tipo de pobreza, mesmo antes de perder aquelas grandes riquezas terrenas. Achei conveniente relembrar isto, porque há alguns que têm mais facilidade em distribuir suas riquezas aos pobres do que em se tornarem eles próprios pobres de Deus. Estão inchados de jactância, e pensam que devem atribuir a si mesmos e não à graça de Deus o fato de viverem honestamente. E assim, já não vivem bem, por mais que julguem praticar muitas boas obras. De fato, consideram que o têm por si mesmos, e se gloriam como se não o tivessem recebido (cf 1Cor 4,7). São ricos por si mesmos e não pobres de Deus; têm de sobra em si mesmos, e não sentem falta de Deus. Mas declara o Apóstolo: “Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria”. Seria como se dissesse: Se eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, mas não me tornasse pobre de Deus, nada me adiantaria. Pois, “a caridade não se incha de orgulho” (1 Cor 13,3.4). Não existe verdadeira caridade de Deus naquele que é ingrato a seu Santo Espírito, por quem se difunde em nossos corações a caridade de Deus (cf Rm 5,5). Por isso, não pertencem ao povo de Deus aqueles que não são pobres de Deus. Com efeito, os pobres de Deus, dizem: “Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus” (1 Cor 2,12). Pois, apesar de que neste salmo, devido ao mistério da encarnação, pelo qual o Verbo se fez carne (cf Jo 1,14), se diga a Deus Pai, que é rei: Concede “a tua justiça ao filho do rei”, eles não querem receber como dom a justiça de Deus, mas confiam adquiri-la por si mesmos. Ignorando a justiça de Deus, e querendo estabelecer a sua, não se sujeitam à justiça de Deus (cf Rm 10,3). Por conseguinte, não são, conforme disse acima, pobres de Deus, mas ricos em si mesmos, porque não são humildes e sim soberbos. Cristo, porém, virá julgar o povo de Deus com justiça, e os pobres de Deus com eqüidade; e com eqüidade distinguirá entre esses ricos e seus pobres, que, contudo, com sua própria pobreza transformou em seus ricos. Em verdade, clama por ele o povo dos pobres: “Julga-me, ó Deus, e distingue da causa de uma gente ímpia a minha causa” (Sl 42,1). | |
§ 4 | O salmista muda a ordem das palavras aqui. Tendo dito primeiro: “Ó Deus, ao rei concede teu julgamento, a tua justiça ao filho do rei”, põe antes o julgamento e em seguida a justiça; aqui, põe em primeiro lugar a justiça e em segundo o julgamento, dizendo: “A fim de que julgue teu povo com justiça e a teus pobres com julgamento”. Quer mostrar principalmente que chama julgamento de justiça, e que não há importância na ordem das palavras, porque têm o mesmo significado. Costuma-se chamar de julgamento perverso aquele que é injusto; mas não costumamos dizer que a justiça é iníqua ou injusta. Se for perversa e injusta, não deve ser denominada justiça. Portanto, ao dizer julgamento e repetir com o nome de justiça, ou falar de justiça e repetir sob o nome de julgamento, demonstra suficientemente que chama de julgamento o que costuma denominar justiça, termo que não se aplica a um julgamento errado. Ao dizer o Senhor: “Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça” (Jo 7,24), ele demonstra que pode existir juízo perverso, com a expressão: “Julgai conforme a justiça”, pois, enfim, proíbe aquilo e ordena isto. Quando, porém, fala em juízo sem acrescentar qualquer adjetivo, quer que se entenda tratar-se de juízo justo, como nesta sentença: “Omitis as coisas mais importantes da Lei: a justiça e a misericórdia” (Mt 23,23). E as palavras de Jeremias: “Assim aquele que ajunta riqueza sem julgamento” (Jr 17,11). Ele não diz: Que ajunta riquezas com um julgamento mau ou injusto, ou com julgamento reto ou justo; mas: “sem julgamento”, e com isto denomina julgamento apenas o que é reto e justo. | |
§ 5 | 3 “Recebam os montes a paz para o povo e as colinas a justiça”. Os montes são maiores e as colinas, menores. Com isto, designa os que se acham em outro salmo: “Pequenos e grandes. Estes montes saltaram como carneiros, as colinas como cordeiros, quando Israel saiu do Egito” (Sl 113,13.4.1), isto é, quando o povo de Deus foi libertado da escravidão deste mundo. Os mais eminentes na Igreja, devido a grande santidade, são montes. Eles são idôneos a ensinar aos demais (2 Tm 2,2), falando de modo a instruir fielmente, e vivendo de tal modo que possam ser imitados salutarmente. Colinas, porém, são os que seguem a bondade dos primeiros, por sua obediência. Por que razão, então, diz o salmo: “os montes recebam a paz e as colinas a justiça?” Talvez não houvesse diferença se disséssemos: Os montes recebam a justiça para o povo e as colinas a paz? Ambas, a justiça e a paz, são necessárias. E pode acontecer que outro nome da paz seja justiça. Esta é a verdadeira paz, que difere daquela que os injustos têm entre si. Ou seria melhor dizer que não é desprezível esta distinção: “Os montes recebam a paz e as colinas a justiça?” Com efeito, os melhores na Igreja devem atender com grande vigilância à paz, a fim de que não provoquem divisões, agindo com soberba por causa de suas honrarias, e rompam a unidade. E as colinas, assim, imitando-os e obedecendo-lhes, podem referi-los a Cristo. Não suceda que seduzidos por vã autoridade perversos, que parecem excelentes, os menores se separem da unidade de Cristo. Por isso foi dito: “Recebam os montes a paz para o povo”. Digam esses montes: “Sede meus imitadores, como eu mesmo o sou de Cristo” (1 Cor 11,1). E ainda: “Entretanto, se nós mesmos ou um anjo do céu vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema” (Gl 1,8). Digam igualmente: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? ou fostes batizados em nome de Paulo?” (1 Cor 1,13). “Assim, recebam a paz para o povo” de Deus, isto é, os pobres de Deus; não desejem reinar sobre eles, mas com eles. Quanto aos pobres não afirmem: “Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Cefas”, mas digam todos: “Eu sou de Cristo” (1 Cor 1,12). Nisso consiste a justiça: não preferir os servos ao Senhor, nem igualá-los; ao invés, levantar os olhos para os montes para ver de onde lhes virá auxílio (cf Sl 120,1.2), sem, contudo, esperar auxílio dos montes, mas do Senhor que fez o céu e a terra. | |
§ 6 | Com muita conveniência é possível entender o versí-culo: “Recebam os montes e paz para o povo” no sentido de reconciliação com Deus. De fato, nos montes a recebem para seu povo. Assim o atesta o Apóstolo: “Passaram-se as coisas antigas; eis que fez uma realidade nova. Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação”. É deste modo que os montes recebem a paz para seu povo. “Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas e pondo em nós a palavra de reconciliação”. Em quem, senão nos montes que recebem a paz para seu povo? Por este motivo, os embaixadores da paz acrescentam em seguida: “Sendo assim, em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus” (2 Cor 5,17-20). Esta paz os montes recebem para seu povo, isto é, recebem a função de pregadores e de embaixadores de sua paz. As colinas, porém, recebam a justiça, isto é, a obediência, que nos homens e em toda criatura racional é a origem e a perfeição de toda justiça. Assim, alude-se a uma grande diferença entre dois homens, a saber, Adão que foi nosso chefe para nossa morte, e Cristo que é nossa Cabeça para nossa salvação, porque assim “como pela desobediência de um só, todos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um só, todos se tornarão justos” (Rm 5,19). “Recebam, portanto, os montes a paz para o povo e as colinas a justiça”, de tal modo que pela concordância entre ambos se realiza a palavra: “A justiça e a paz se oscularam” (Sl 84,11). Quanto à variante de alguns códices: “Recebam os montes e as colinas a paz para o povo”, a meu ver, refere-se a ambos como sendo os pregadores da paz evangélica; tanto os primeiros como os segundos. Nestes códices encontra-se em seguida: “Com justiça ele julgará os pobres do povo”. Mas têm maior aceitação os códices que trazem conforme o que expusemos acima: “Recebam os montes a paz para o povo, e as colinas a justiça”. Alguns têm: “teu povo”, enquanto outros não trazem: “teu”, mas apenas: “povo”. | |
§ 7 | 4 “Ele julgará os pobres do povo, salvará os filhos dos pobres”. Pobres e filhos dos pobres parecem-me idênticos, assim como se trata da mesma cidade quando se diz: Sião e filha de Sião. Se, porém, se deve distinguir, identificamos “os pobres com os montes e os filhos dos pobres com as colinas”; ainda: profetas e apóstolos são “os pobres” e seus filhos, isto é, os que tiram proveito de seus ensinamentos são “os filhos dos pobres”. Quanto à expressão: “Julgará”, seguida de: “salvará” trata-se de uma exposição de como julgará. Julgará para salvar, isto é, distinguirá dos que vão se perder e condenar aqueles que receberão a salvação preparada para a revelação nos últimos dias (cf 1Pd 1,5). Com efeito, estes dizem ao Senhor: “Não arruínes com os ímpios a minha alma” (Sl 25,9); e: “Julga-me, ó Deus, e distingue da causa de uma gente ímpia a minha causa” (Sl 42,1). Merece consideração também que o salmista não disse: Julgará o povo pobre, mas: “os pobres do povo”. No trecho em que disse: “Julgue teu povo com justiça e a teus pobres com julgamento” chama de povo de Deus os seus pobres, isto é, somente os bons, destinados ao lado direito. Como, porém, neste mundo, simultaneamente se apascentam os da direita e os da esquerda, que hão de ser separados no fim como cordeiros e cabritos (cf Mt 25,32), o todo assim mesclado recebe o nome de povo. E como aqui a palavra juízo está na sua acepção melhor, a saber, para salvar, diz o salmo: “Julgará os pobres do povo”, quer dizer, distinguirá para salvá-los, aqueles que são pobres dentre o povo. Já expusemos acima (cf nº 3.) quem são esses pobres. Incluamos entre eles os necessitados. “E abaterá o caluniador”. Não há maior caluniador do que o diabo. Uma de suas calúnias é a seguinte: “É em vão que Jó teme a Deus?” (Jó 1,9). O Senhor Jesus, porém, humilha o diabo, ao ajudar os seus com a graça, a fim de que eles o adorem gratuitamente, isto é, deleitem-se no Senhor (cf Sl 36,4). Humilhou-o também de outra maneira, pois o diabo, o príncipe deste mundo, não encontrando nele culpa alguma (cf Jo 14,30), matou-o através das calúnias dos judeus. O caluniador deles se utilizou, quais instrumentos, operando nos filhos da incredulidade (cf Ef 2,2). Humilhou-o também porque aquele que ele matara ressuscitou e tirou-lhe o reino da morte, onde ele exercia o poder de tal sorte que por meio de um só homem que ele seduzira, arrastasse todos à condenação, através da morte. Mas foi humilhado, porque se pela falta de um só a morte imperou através deste único homem, muito mais os que recebem a abundância da graça e da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo (cf Rm 5,17), que humilhou o caluniador, o qual introduzira no intuito de perdê-lo falsa incriminação, juízes iníquos, falsas testemunhas. | |
§ 8 | 5 “E permanecerá para o sol”, ou: “Durará quanto o sol”. Foi assim que alguns dos nossos julgaram melhor traduzir a palavra grega simparamenei. Se fosse possível verter por uma só palavra em latim, devíamos dizer: compermanebit (co-durará); como não se pode falar assim em latim, para dar ao menos o sentido foi traduzido: permanebit cum sole (durará quanto). Não há diferença entre compermanebit e permanebit cum. Que há de importante em permanecer tanto quanto o sol para aquele por quem tudo foi feito e sem o qual nada se fez? (cf Jo 1,3). A não ser que esta profecia vise àqueles que julgam durar a religião cristã somente certo tempo neste mundo e depois cessará. Por conseguinte, “durará quanto o sol”, por tanto tempo quanto o sol nascer e se pôr, isto é, enquanto os tempos decorrerem, a Igreja de Deus, isto é, o corpo de Cristo na terra, não terminará. O acréscimo: “e antes da lua de geração em geração” poderia ter esta forma: E antes do sol, isto é, com o sol e antes do sol. Significaria: Com os tempos e antes dos tempos. Antes do tempo é a eternidade. De fato, considera-se eterno o que nunca varia, como o Verbo era no princípio. Prefere-se representar com a figura da lua os acréscimos e descréscimos dos mortais. Enfim, tendo dito: “antes da lua”, o salmista quis de certo modo expor o sentido da palavra lua, dizendo: “geração em geração”. Equivaleria a dizer: “Antes da lua”, isto é, antes das “De gerações das gerações”, que passam pela morte e sucessão dos mortais, quais fases da lua. Que melhor sentido encontramos para permanecer “antes da lua” do que dizer que Cristo precede pela imortalidade a todos os mortais? Há certa conveniência nesta acepção, pois após humilhar o caluniador, ele está sentado à direita do Pai; seria isto permanecer “com o sol”. De fato, o Filho é o esplendor da eterna glória (cf Hb 1,3). O Pai é como o sol, e seu esplendor é o Filho, mas enquanto isto se aplica à substância invisível do Criador, e não como se diz a respeito da criação visível, na qual existem os corpos celestes, entre os quais se destaca com maior brilho o sol. Dele se origina esta comparação, como se usa também tirar comparações das coisas terrestres: da pedra, do leão, do cordeiro, do homem que tem dois filhos, etc. Então, após ter sido humilhado o caluniador, Cristo dura “quanto dura o sol”, porque havendo vencido o diabo por sua ressurreição, está sentado à direita do Pai, onde não mais morrerá e a morte não terá mais domínio sobre ele (cf Mt 16,19; Rm 6,9). E isto, “antes da lua”, precedendo como primogênito dentre os mortos a Igreja, que vai passando pela morte e sucessão dos mortais. Estas são as “gerações das gerações”. Ou talvez sejam gerações a nossa geração para a vida mortal e “gerações das gerações” nossa regeneração para a vida imortal. Esta é a Igreja a quem ele precedeu, o primogênito dentre os mortos, para durar “antes da lua”. Como em grego se encontra genas geneon alguns traduziram não pelo nominativo: “gerações”, mas por “das geração das gerações”, porque em grego é ambíguo o caso de genas: se é genitivo singular, tes geneas, isto é, desta geração, ou acusativo plural tas geneas, isto é, estas gerações. Não é evidente. A não ser que, com razão, se prefira o sentido exposto acima: à “lua” segue: “gerações das gerações”. | |
§ 9 | 6 “E descerá como a chuva sobre o velo e como as gotas de orvalho sobre a terra”. Relembra com uma exortação o feito do juiz Gedeão, que visava a Cristo, Gedeão pediu um sinal ao Senhor. Queria que chovesse apenas sobre o velo que ele colocara na eira, e não chovesse sobre esta. Depois, que só o velo ficasse seco e chovesse sobre a eira. E assim se fez (cf Jz 6,36-40). Significava que primeiro o povo de Israel foi como o velo seco na eira, isto é, toda a terra. O próprio Cristo desceu como a chuva sobre o velo, enquanto a eira ainda estava seca. Daí vem que ele disse: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Foi aí que escolheu a mãe da qual receberia a condição de servo, na qual devia aparecer aos homens; aí também escolheu os discípulos, aos quais prescreveu: “Não tomeis o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,5.6). Ao dizer: “antes, dirigi-vos” a elas, mostra que depois, quando já estivesse molhada de chuva a eira, deviam ir também em busca das outras ovelhas, que não pertencessem ao antigo povo de Israel. A elas assim se refere: “Mas tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; devo conduzi-las também, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Daí afirmar também o Apóstolo: “Pois eu vos asseguro que Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais” (Rm 15,8.9). Deste modo, a chuva desceu sobre o velo, quando a eira ainda estava seca. Mas como segue: “Ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a sua misericórdia” (id 9) de sorte que com o correr do tempo se cumprisse o que diz o profeta: “Um povo que eu não conhecia pôs-se a meu serviço: logo que ouviu, obedeceu-me” (Sl 17,45), já vemos que, pela graça de Cristo o povo judaico permaneceu árido, enquanto em toda a terra por todos os povos cristãos, as nuvens fizeram chover a graça. De fato, em outras palavras, o salmista se refere à mesma chuva, dizendo: “como as gotas da chuva sobre a terra”, não sobre o velo. Que é a chuva senão gotas que correm? Por isso considero que aquele povo foi representado pelo nome de velo, ou porque devia ser despojado da autoridade da doutrina, como a ovelha é tosquiada; ou porque escondia e retinha a chuva, que não queria fosse anunciada aos pagãos, isto é, aos povos incircuncisos. | |
§ 10 | 7 “Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que cesse de existir a lua”. Cesse de existir por alguns foi traduzido: “seja retirada”, por outros: “seja elevada”. Uma só palavra grega: antanairethe foi assim vertida, conforme cada opinião. Mas não são muito discordantes os que escreveram: “seja retirada” e os que disseram: “seja elevada”. É mais comum dizer-se: “cesse de existir” de uma coisa que é retirada para não existir mais, do que a respeito do que é elevado. “Seja retirada”, de fato, não se pode interpretar senão que se perca, isto é, não exista mais. “Seja elevada”, porém, só se refere ao que é colocado mais alto. Em mau sentido costuma significar a soberba, conforme a palavra: “Não te exaltes em tua sabedoria” (cf Eclo 32,6). No bom sentido, contudo, é atinente a honra maior, uma certa exaltação, conforme diz o salmo: “Durante as noites levantai as mãos para o santuário e bendizei o Senhor” (Sl 133,2). No presente salmo, portanto, se optarmos por: seja retirada, que sentido tem: “até que seja retirada a lua” senão que deixe de existir? Talvez quis dar a entender que a mortalidade não existirá mais, ao ser destruída “a última inimiga, a morte” (cf 1Cor 15,26). Então a paz profunda chegará ao ponto de que nada se oponha mais à felicidade dos bem-aventurados, devido à fraqueza da mortalidade. Assim sucederá naquele século, cuja promessa recebemos de Deus, através de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual foi dito: “Surgirá em seus dias justiça e paz profunda”, até que vencida e destruída inteiramente a morte, toda mortalidade seja consumida. Noutro sentido, o vocábulo lua se aplica não à mortalidade da carne pela qual passa atualmente a Igreja e sim, de modo absoluto, à própria Igreja, que permanecerá para sempre, quando livre da mortalidade. O versículo: “Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que seja exaltada a lua”, nesta forma teria o sentido seguinte: Em seus dias surgirá a justiça, que vencerá a oposição e rebeldia da carne, e haverá paz em aumento e abundância até que a lua seja elevada, isto é, seja exaltada a Igreja, para reinar com Cristo na glória da ressurreição. Nesta glória precedeu-a o primogênito dentre os mortos, a fim de se sentar à direita do Pai (cf Mc 16,19). Assim, Cristo permanece “com o sol e antes da lua”, mas a lua posteriormente também será exaltada. | |
§ 11 | 8 “E dominará de um a outro mar, e desde o rio até os confins da terra”, aquele do qual dissera com verdade o salmista: “Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que a lua seja exaltada”. Se é exato que o vocábulo lua aqui é referente à Igreja, conseqüentemente o salmista alude à larga difusão da Igreja, acrescentando: “E dominará de um mar a outro mar”. Com efeito, a terra está cercada de um grande mar, denominado oceano, do qual uma parte mínima reflui sobre a terra, constituindo estes mares conhecidos, que os navios atravessam. Por conseguinte, com os termos; “de um a outro mar”, quer o sal-mista afirmar que o Cristo dominará de determinada extremidade da terra a outra, e que seu nome e poder haverão de ser anunciados na terra inteira, com enorme eficiência. Visando a que não se interprete de outro modo: “De um a outro mar”, logo acrescentou: E desde o rio até os confins da terra. A expressão: “até os confins da terra” equivale à locução anterior: “De um a outro mar”. Quanto ao termo: “desde o rio” evidentemente alude ao fato de que Cristo quis recomendar seu poder do lugar onde começou a escolher seus discípulos, a saber, do rio Jordão, onde o Espírito Santo desceu sobre o Senhor que acabara de ser batizado, e uma voz veio do céu declarando: “Este é o meu Filho amado” (Mt 3,17). Aí teve início seu ensinamento e a autoridade de seu magistério celeste. Eles se propagam até os confins da terra, ao ser pregado o evangelho do reino em todo o orbe, para testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim. | |
§ 12 | 9 “Os etíopes se prostrarão diante dele e seus inimigos lamberão a terra”. Os etíopes figuram todos os povos, a parte representa o todo, de preferência é nomeado o povo que está nos confins da terra. “Diante dele se prostrarão”, quer dizer, ajudá-lo-ão. O salmista tem em vista os cismas que haveriam de aparecer em diversos lugares da terra, invejando a Igreja católica difundida por todo o orbe, e que, de fato, os mesmos cismas se classificariam segundo os nomes de seus chefes e que os homens, amando os autores das divisões, atacarão a glória de Cristo a brilhar por todas as terras. Por isso, tendo dito: “Os etíopes se prostrarão diante dele”, termina: “e seus inimigos lamberão a terra”, isto é, amarão os homens, invejando a glória de Cristo, ao qual foi dito: “Eleva-te, ó Deus, acima dos céus; em toda a terra resplandeça a tua glória” (Sl 107,6). Efetivamente, o homem merecera a sentença: “Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19). Lambendo esta terra, isto é, deleitando-se na autoridade grandiloqüente destes homens, amando-os e estimando sua amizade, eles contradizem à palavra divina que anuncia a Igreja católica estabelecida não apenas em alguma parte da terra, como qualquer cisma, mas a dar fruto e progredir em todo o mundo, havendo de chegar até aos próprios etíopes, isto é, aos últimos e mais escuros dos homens. | |
§ 13 | 10.11 “Os reis de Társis e as ilhas lhe oferecerão presentes; os reis da Arábia e de Sabá lhe conduzirão seus dons. Adorá-lo-ão todos os reis da terra; todas as nações o servirão”. Esse trecho não pede um expositor, mas quem queira contemplar sua realização. Apresenta-se não só aos fiéis que se alegram, mas também aos infiéis que se lamentam. A não ser, talvez, que se pergunte o significado da expressão: “conduzirão seus dons”. Costumam-se conduzir seres que podem caminhar. Acaso foi dito de vítimas a serem imoladas? De forma alguma tal justiça aparece nos dias seus. Mas, os dons que foram trazidos parecem-me significar os homens, que a autoridade dos reis conduz à sociedade da Igreja de Cristo. Mesmo os reis perseguidores trouxeram dons, sem saberem o que faziam ao imolarem os santos mártires. | |
§ 14 | 12 O salmista expõe o motivo por que tantas honrarias lhe são prestadas pelos reis, e qual a razão por que todos os povos o servem: “Ele livrou o pobre do prepotente e o miserável que não tinha protetor”. Pobre e miserável é o povo dos que nele acreditam. No meio deste povo acham-se também os reis que o adoram. Eles não desdenham ser pobres e necessitados, isto é, ser daqueles que humildemente confessam seus pecados e necessitam da glória e da graça de Deus, a fim de que aquele rei, filho do Rei, os liberte do prepotente. Identifica-se o prepotente com aquele que acima foi denominado caluniador. Foram os pecados dos homens e não seu próprio poder que o tornou prepotente para sujeitar os homens e retê-los cativos. Prepotente, na verdade, é aquele que é chamado forte; por isso, aqui igualmente é denominado prepotente. Mas aquele que humilhou o caluniador e entrou na casa do forte, a fim de tomar os seus bens, após tê-lo aprisionado (cf Mt 12,29), aqui “livrou o pobre do prepotente e o miserável que não tinha protetor”. Não pôde realizar tal obra a força de qualquer um, nem de qualquer homem justo, ou algum anjo. Como não havia protetor algum, veio o próprio Senhor e os salvou. | |
§ 15 | 13 Pode surgir a dúvida: Se o homem estava cativo do diabo por causa de seus pecados, a Cristo agradavam os pecados, uma vez que ele livrou o pobre do prepotente? De forma alguma; mas ele “terá compaixão do necessitado e do indigente”. Perdoará os pecados ao humilde que não confia nos próprios méritos, nem espera a salvação de seu próprio poder, mas está necessitado da graça do Salvador. O acréscimo: “E salvará a vida dos pobres” alude a ambos os resultados do auxílio da graça: a remissão dos pecados, com as palavras: “Terá compaixão do necessitado e do indigente” e a participação na justiça, com os termos: “E salvará a vida dos pobres”. Ninguém é capaz de obter para si mesmo a salvação, esta salvação que consiste na perfeita justiça, se não o ajudar a graça de Deus; pois a plenitude da Lei é somente a caridade, que não existe em nós por nós mesmos, mas é difundida em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf Rm 5,5). | |
§ 16 | 14 “Resgatará as suas almas da usura e da iniqüidade”. Que usura é esta senão os pecados, também denominados débito? (cf Mt 6,12). Penso que foram chamados usura porque há mais males nos suplícios do que nos pecados cometidos. Pois, por exemplo, mata um homicida apenas o corpo de um homem, sem poder atingir-lhe a alma, mas perdem-se seu corpo e sua alma na geena. A estes desprezadores do preceito e zombadores do futuro suplício foi dito: “Ao voltar, eu receberia com juros o que é meu” (Mt 25,27). Desta usura escapam as almas dos pobres, pelos méritos daquele sangue que foi derramado para a remissão dos pecados. Ele resgata da usura, perdoando os pecados, que mereciam maiores suplícios; resgata, porém, da inqüidade, ajudando com a graça a praticar a justiça. É uma repetição das duas coisas que foram ditas mais acima. Antes fora dito: “Terá compaixão do necessitado e do indigente”, e agora: “Da usura”; no outro versículo: “E salvará a vida dos pobres” parece que foi dito: “Da iniqüidade” para que se subentenda em ambos os casos: “Resgatará”. Pois, tendo compaixão, resgatará da usura e salvando, resgatará da iniqüidade. “Terá compaixão do necessitado e do indigente e salvará a vida dos pobres”, e igualmente “resgatará as suas almas da usura e da iniqüidade. E seu nome será honrado diante deles”. Aqueles que respondem ser digno e justo dar graças ao Senhor seu Deus honram seu nome por causa de tão grandes benefícios. Além disso, outros códices tem o seguinte: “E o nome deles será honrado na sua presença”, porque apesar de parecerem os cristãos desprezíveis neste mundo, o nome deles é honroso na presença de Deus, que lhes deu este nome. Ele não se recordará de seus nomes, proferindo com os lábios (cf Sl 15,4) sua denominação anterior, quando estavam presos ainda às superstições dos pagãos ou assinalados com os vocábulos de seus deméritos, antes de serem cristãos. O nome deles é honroso na presença de Deus, apesar de parecerem desprezíveis aos inimigos. | |
§ 17 | 15 “Assim ele viverá. Ser-lhe-á ofertado o ouro da Arábia”. Não se diria: “E viverá” (pois de que ser vivente nesta terra, mesmo que seja por qualquer diminuto espaço de tempo, se pode assim afirmar?) se não se tratasse daquela vida “na qual já não morre, e a morte não tem mais domínio sobre ele” (Rm 6,9). E por isso “viverá” quem desprezou morrer; pois conforme afirma outro profeta: “Será cortado da terra dos vivos” (Is 53,8; cf At 8,35). Mas, que significa: “Ser-lhe-á ofertado o ouro da Arábia?” Pois, Salomão recebeu ouro de lá, e neste salmo ele figura o outro Salomão, o verdadeiro, o pacífico realmente. Não foi Salomão que dominou “desde o rio até os confins da terra”. Foi profetizado que até os sábios deste mundo haveriam de crer em Cristo. Entendemos por Arábia os povos; por ouro a sabedoria que se destaca entre as ciências como o ouro entre os metais; daí vem que foi escrito: Recebei a prudência como prata e a sabedoria como ouro purificado (cf Pr 8,10.11). “E rezarão sempre a respeito dele”. O texto grego traz peri autou que alguns verteram por: “a respeito dele, outros por: a favor dele ou por ele mesmo”. Que sentido tem: “a respeito dele” senão o da petição: “Venha teu reino”? (Mt 6,10). De fato, a vinda de Cristo trará aos fiéis o reino de Deus. É difícil entender o que quer dizer “a favor dele”, a não ser que ao se rezar pela Igreja, que é seu corpo, se reze em favor dele. É grande o mistério da união de Cristo e da Igreja: “Serão dois numa só carne” (Ef 5,32.31). Quanto ao que vem a seguir: “Todo dia”, isto é, durante todo tempo, “o bendirão”, é suficientemente claro. | |
§ 18 | 16 “E haverá fartura na terra, no cimo dos montes; todas as promessas de Deus encontraram nele o seu sim” (1 Cor 1,20), isto é, neles foram confirmadas, porque nele se realizou tudo o que foi profetizado acerca de nossa salvação. Convém entender por cimo dos montes os autores das Sagradas Escrituras, quer dizer, os que as ministraram. Nelas, efetivamente, Cristo é a confirmação, porque a ele se referem todas as coisas que foram escritas por inspiração divina. Quis que isto acontecesse na terra, porque elas foram exaradas para aqueles que se acham na terra. Por esse motivo, também ele veio à terra, para confirmar todas as Escrituras, isto é, mostrar que nele elas se cumprem. “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim”, disse ele, “na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos” (Lc 24,44), isto é, “no cimo dos montes”. Assim, portanto, “o monte da casa do Senhor será estabelecido no mais alto das montanhas, nos últimos tempos” (Is 2,2), a saber, “no cimo dos montes. E seus frutos serão mais elevados do que o Líbano”. Costumamos tomar a palavra Líbano no sentido de dignidade deste mundo, porque o Líbano é um monte que tem árvores altíssimas e seu nome significa brancura. Por que nos admirarmos de que Cristo seja exaltado acima de todas as ilustres grandezas deste mundo, e de que os que amam os seus frutos desprezem todas as dignidades do mundo? Se, porém tomarmos a palavra Líbano no bom sentido, por causa dos “cedros que ele plantou” (Sl 103,16) que outro fruto seria o que se exalta acima do Líbano, senão aquele de que trata o Apóstolo ao falar da caridade: “Passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos”? (1 Cor 12,31). Esta é proposta em primeiro lugar entre os dons divinos: “O fruto do espírito, porém, é a caridade” (Gl 5,22). E daí ele tira as demais conseqüências. “E florescerá o povo da cidade como a relva dos campos”. O termo: cidade aqui é ambíguo, porque não foi determinado pelo pronome seu ou: de Deus; não está escrito: sua cidade, ou cidade de Deus, mas apenas “da cidade”. No bom sentido seria da cidade de Deus, isto é, na Igreja floresce o povo como a erva; mas erva útil, como é o trigo, visto que também ele é incluído entre as ervas na Sagrada Escritura. No Gênesis, foi ordenado à terra que produzisse toda espécie de árvores e de ervas (cf Gn 1,11), sem nomear trigo. Sem dúvida, este não seria omitido se não se pudesse entender pelo nome de erva também ele. Isto se acha igualmente em muitas outras passagens escriturísticas. Se, porém, devemos tomar: “E florescerá o povo como a relva dos campos” no sentido da frase: “Toda a carne é erva e toda a sua graça como a flor do campo”, entenda-se aqui por cidade a sociedade mundana. Não foi em vão que se diz ter sido Caim o primeiro a edificar uma cidade (Gn 4,17). Além disso, o fruto de Cristo foi elevado acima do Líbano, isto é, de todas as árvores duráveis e de todos os madeiros incorruptíveis, por se tratar de um fruto eterno. Todo esplendor humano proveniente de dignidade temporal mundana compara-se com o feno, porque os fiéis que esperam a vida eterna desprezam a felicidade temporal. Assim se realiza o que foi escrito: “Toda carne é erva e toda a sua graça como a flor do campo. Seca a erva e murcha a flor. Mas a palavra do Senhor subsiste para sempre” (Is 40,6-8). Lá seu fruto foi elevado acima do Líbano. Pois, a carne sempre foi como a erva, e toda a sua graça como a flor do campo, mas não sendo ainda evidente qual felicidade devia ser escolhida e preferida, a flor do feno era tida em grande conta. Não somente não era absolutamente desprezível, mas até era muito apetecível. Por isso, como se apenas agora começasse outro ponto de vista, quando o esplendor mundano começou a ser desprezado e abandonado, foi dito: “Seus frutos serão mais elevados do que o Líbano e florescerá o povo da cidade como a relva dos campos”. Propagar-se-á mais do que tudo o objeto das promessas eternas, e será comparado ao feno dos campos tudo o que era valioso no mundo. | |
§ 19 | 17 “Pelos séculos seja bendito o seu nome. Ele se perpetuará enquanto brilhar o sol”. Por sol simbolizam-se os tempos. Por conseguinte, seu nome permanecerá para sempre. A eternidade precede os tempos, e não se encerra com eles. “Nele serão abençoadas todas as tribos da terra”. Nele, na verdade, se cumpre a promessa feita a Abraão. “Não diz: e aos descendentes, como referindo-se a muitos, mas como a um só: e à tua descendência, que é Cristo” (Gl 3,16). A Abraão, porém, foi dito: “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra” (Gn 22,18). “Não são os filhos da carne, mas os filhos da promessa que são tidos como descendentes” (Rm 9,8). “Todas as nações o glorificarão”. Expõe, de certo modo repetindo o que dissera mais acima. “Glorificá-lo-ão” porque nele serão abençoadas. As nações não o fazem crescer, pois por si mesmo ele é grande, mas louvam-no e confessam sua grandeza. É assim que glorificamos a Deus. De igual modo pedimos: “Santificado seja teu nome” (Mt 6,9), que efetivamente é sempre santo. | |
§ 20 | 18 “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel. Só ele opera maravilhas”. Pela consideração do que foi dito acima, o salmista irrompe num hino, e bendiz o Senhor Deus de Israel. Cumpre-se a profecia feita àquela mulher estéril: “O Senhor Deus de Israel é teu redentor. Ele se chama o Deus de toda a terra” (Is 54,5). “Só ele opera maravilhas”. Seja o que for que outros façam, opera neles aquele que é o único a “operar maravilhas”. | |
§ 21 | 19 “E bendito seja o seu nome glorioso eternamente e nos séculos dos séculos”. De que modo se exprimiriam os tradutores latinos, uma vez que não podem dizer: eternamente e eternamente do eterno? Parece ser uma coisa: “eternamente” e outra: “nos séculos”; de fato, soa assim. Mas o grego traz: “eis tòn aiona kaí eis tòn aiona tòu aionos”; talvez fosse melhor traduzir: nos séculos e nos séculos dos séculos. “Nos séculos” se entenderia: enquanto dura este século. Nos séculos dos séculos, porém, o que nos é prometido depois do fim do mundo. “De sua glória se encherá toda a terra. Assim seja. Assim seja”. Tu ordenaste, Senhor. Assim se faça. Assim seja, até que aquilo que se iniciou “desde o rio” chegue perfeitamente “até os confins da terra”. | |