SALMO 𝟭

Folguem e alegrem-se em ti todos os que te buscam; e aqueles que amam a tua salvação digam continuamente: engrandecido seja Deus.

Eu, porém, estou aflito e necessitado; apressa-te em me valer, ó Deus.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 70


§ 70:1  Apressa-te, ó Deus, em me livrar; Senhor, apressa-te em socorrer-me.

§ 70:2  Ƒ Fiquem envergonhados e confundidos os que procuram tirar-me a vida; tornem atrás e confundam-se os que me desejam o mal.

§ 70:3  Sejam cobertos de vergonha os que dizem: Ah! Ah!

§ 70:4  Ƒ Folguem e alegrem-se em ti todos os que te buscam; e aqueles que amam a tua salvação digam continuamente: engrandecido seja Deus.

§ 70:5  Eu, porém, estou aflito e necessitado; apressa-te em me valer, ó Deus. Tu és o meu amparo e o meu libertador; Senhor, não te detenhas.


O SALMO 70



I SERMÃO 💬

§ 1
Em todos os livros das Sagradas Escrituras é-nos recomendada a graça de Deus, que nos liberta, a fim de nos confiarmos a ela. É isto que canta o presente salmo, de que empreendemos falar a V. Caridade. Assista-nos o Senhor, para que eu conceba interiormente o que convém falar, e me exprima de tal sorte que vos seja útil. Muito nos comovem o amor e o temor de Deus. O temor de Deus porque ele é justo. O amor, porque é misericordioso.

Pois, quem pode dizer-te: Que fizeste(Sb 12,12), se ele condenar o injusto? E como é grande a sua misericórdia quando justifica o injusto! Foi o que acabamos de ler e ouvimos como o Apóstolo recomenda vivamente a graça. Desta recomendação tinha como adversários os judeus, que presumiam da letra da Lei, e amavam a justiça como se fosse deles próprios, gabando-se dela. A respeito disto declara o Apóstolo:

Eu lhes rendo testemunho de que têm zelo de Deus, mas não é um zelo esclarecido”.

E como se alguém o interrogasse: Que quer dizer: zelo não esclarecido? ele prossegue:

Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus(Rm 10,2.3).

Gloriando-se por assim dizer, das obras, excluem a graça; e enquanto presumem de sua saúde, rejeitam o remédio. Dissera o Senhor contra esses:

Eu não vim chamar justos, mas pecadores. Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes(Mt 9,13.12).

A ciência verdadeira consiste em saber o homem que por si mesmo nada é; e que tudo o que é vem de Deus e existe por causa dele. Pois, “que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido”? (1 Cor 4,7).

O Apóstolo recomenda esta graça, e com isso angariou inimigos entre os judeus, que se gloriavam da letra da Lei e de sua própria justiça. Recomendando-a, portanto, na leitura que acabamos de fazer, assim se exprime:

Pois sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus(1 Cor 15,9).

Mas obtive misericórdia, porque agi por ingnorância, na incredulidade”.

E pouco mais adiante:

Fiel é esta palavra e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro”.

Porventura, não existiram pecadores antes dele? Então, por que declara:

dos quais eu sou o primeiro?” Estava à frente de todos, não no tempo, mas na malícia. Por isso diz:

Se por esta razão me foi feita misericórdia, foi para que em mim Cristo demonstrasse toda a sua longanimidade, como exemplo para quantos nele hão de crer para a vida eterna(1 Tm 1,13.15.16).

Com isso, se diz que qualquer pecador, iníquo, sem esperanças a respeito de si, de ânimo combativo, que faz o que quer uma vez que se julga necessariamente condenado, deve considerar o apóstolo Paulo, a quem Deus perdoou tanta crueldade, tanta malícia, a fim de não desesperar e se converter para Deus. Deus nos recomenda também tal graça, neste salmo. Examinemo-lo e vejamos se assim é, ou se devo entendê-lo de modo diverso. Efetivamente, penso que são estes os sentimentos que ele exprime, e que isso ressalta de quase todas as palavras, a saber, ele nos recomenda a graça inteiramente gratuita de Deus, que nos livra a nós indignos, por sua própria causa, e não pela nossa. Mesmo que eu não o dissesse, nem previamente o explicasse, qualquer um, de entendimento mediano, prestando atenção às palavras do salmo, compreenderia assim. Talvez, devido a tais palavras, mesmo se fosse de outra opinião, mudasse de parecer e passasse a agir de acordo com elas. Como seria? Seria pôr em Deus toda a nossa esperança, em nada presumir de nossas forças atribuindo-as a nós mesmos, para não perdermos o que dele recebemos, dizendo que é nosso o que dele provém.



§ 2
1 O salmo tem por título, conforme o uso de se indicar pelo título no limiar de uma casa o que ela contém, o seguinte:

Salmo de Davi. Dos filhos de Jonadab e dos primeiros que foram levados cativos”.

Conforme narra a profecia de Jeremias, Jonadab foi um homem que deu aos filhos a ordem de não beberem vinho, e de não morarem em casas e sim em tendas. Os filhos cumpriram o preceito do pai e mereceram com isso serem abençoados por Deus (cf Jr 35,6-10).

Não fora o Senhor quem dera o preceito, mas o pai deles. Mas eles o cumpriram, como se fora ordenado pelo Senhor seu Deus. O Senhor não mandara que não bebessem vinho, que habitassem em tendas; no entanto, preceituara o Senhor que os filhos obedecessem ao pai. Não deve um filho obedecer ao pai somente se o pai ordenar algo contra a Lei do Senhor Deus. O pai não pode se encolerizar se for Deus o preferido. Quando, porém, o pai manda algo que não é contra Deus, deve ser obedecido como se fosse o próprio Deus, porque Deus ordenou que se obedecesse ao pai. Por esta razão, Deus abençoou os filhos de Jonadab, em vista de sua obediência, e apresentou seu exemplo ao povo desobediente, exprobrando-o porque os filhos de Jonadab haviam sido obedientes a seu pai, e eles não obedeceram a seu Deus. Jeremias referiu estas coisas quando tratava com o povo de Israel, preparando-o para ser conduzido em cativeiro a Babilônia, e a fim de não resistir à vontade de Deus. Que não esperasse outra coisa senão o cativeiro. Parece, portanto, que esses fatos dão colorido a este salmo, porque havendo dito:

Dos filhos de Jonadab”, acrescenta:

e dos primeiros que foram levados cativos”; não quer dizer que os filhos de Jonadab foram levados cativos, mas opõem-se àqueles cativos os filhos de Jonadab, porque eram obedientes ao pai, e assim eles entenderiam que se tornaram cativos, porque desobedeceram a Deus. Acrescente-se ainda que Jonadab significa espontâneo do Senhor. Por que: espontâneo do Senhor? Porque servia a Deus de boa vontade, livremente. Que significa: espontâneo do Senhor? “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei(Sl 55,12).

Que significa: espontâneo do Senhor? “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos(Sl 53,8).

Se o Apóstolo ensina ao escravo que sirva ao homem, seu senhor, não coagido, mas de boa vontade e que, ao servir de bom grado ele é livre no coração, quanto mais se deve prestar serviço a Deus com vontade inteira plena e livre, uma vez que ele vê a tua vontade? Pois se teu escravo não te serve de coração, podes ver suas mãos, seu rosto, sua presença, mas não vês o coração; contudo, diz-lhes o Apóstolo:

Servindo-os, não quando vigiados”.

Que quer dizer:

quando vigiados?” Então, meu senhor há de me ver, como o sirvo, para dizeres:

não quando vigiados?” Ele acrescenta:

Mas como servos de Cristo”.

O senhor, que é apenas homem, não vê, mas Cristo senhor vê.

Tende boa vontade(Ef 6,6.7).

Tal foi Jonadab; isto significa seu nome. Quem são, então, “os primeiros que foram levados cativos?” Os filhos de Israel foram feitos prisioneiros uma vez, duas vezes, três vezes; mas o salmo não se refere a estes, nem fala daqueles que foram os primeiros a serem levados; isto é, se examinarmos, perscrutarmos, interrogarmos o salmo, em todos os seus versículos, encontramos coisa diferente. Não fala daqueles homens que não sei por quem, nem quando, com a invasão dos inimigos, foram levados de Jerusalém como cativos para Babilônia. Mas, o que diz o salmo, senão o que ouvistes do Apóstolo? Ele nos recomenda a graça de Deus. Recomenda-nos, porque nós, por nós mesmos, nada somos; recomenda-nos, porque tudo o que somos, nós o somos devido à misericórdia de Deus. Por tudo aquilo que temos de nós mesmos, somos maus. Por que motivo, então, “cativos?” E por que a palavra cativeiro recomenda a própria graça do libertador? O próprio Apóstolo nô-lo descobre:

Apraz-me a Lei de Deus, segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros”.

Vê como és arrastado ao cativeiro. O que recomenda então este salmo? Como continua o Apóstolo aquela passagem:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso(Rm 7,22-25).

Por que, então:

primeiros?” Pois, foi dita a razão de se dizer:

cativos”.

A meu ver, também isso é claro. Comparada ao procedimento dos filhos de Jonadab toda desobediência é culpada. Pela desobediência tornamo-nos cativos, porque o próprio Adão pecou por não obedecer. Declarou o mesmo Apóstolo — e é verdade — que “assim a morte passou a todos os homens, porque em Adão todos pecaram(Rm 5,12).

Com razão, “os primeiros foram levados cativos, porque o primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu, e é celeste. Qual foi o homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem celeste, tais serão os celestes. E, assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste(1 Cor 15,47-49).

O primeiro homem nos fez prisioneiros; o segundo homem nos libertou do cativeiro.

Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida(1 Cor 15,22).

Mas em Adão todos morrem através do nascimento corporal; em Cristo são libertados pela fé do coração. Não dependeu de teu poder não nasceres de Adão; mas está em teu poder creres em Cristo. Na medida que quiseres pertencer ao primeiro homem, pertencerás ao cativeiro. E que significa: quiseres pertencer? Ou, que é: pertencer? Já pertences; por isso exclama:

Quem me libertará deste corpo de morte?(Rm 7,24).

Ouçamos, pois, os clamores deste homem.



§ 3
Ó Deus, em ti esperei; Senhor, não seja confundido para sempre”.

Já estou confundido; mas não o seja eternamente! Como não ficará confundido aquele ao qual se diz:

E que fruto colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais?(Rm 6,21).

Como se fará, para não nos confundirmos eternamente? “Acercai-vos dele e sereis iluminados e vosso rosto não se cobrirá de confusão(Sl 33,6).

Encheste-vos de confusão em Adão; afastai-vos dele, aproximai-vos de Cristo e já não vos envergo-nhareis.

Em ti esperei, Senhor; não seja confundido para sempre”.

Se em mim sou confundido, em ti não serei confundido para sempre.



§ 4
2 “Por tua justiça livra-me e socorre-me”.

Não em minha justiça, e sim na tua; se for em minha justiça, serei do número daqueles aos quais se refere o Apóstolo:

Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus(Rm 10,3).

Portanto, “por tua justiça”, e não através da minha. Pois, em que consiste a minha? Precedeu a iniqüidade. Se sou justo, isto provém de tua justiça. Pela justiça que me dás torno-me justo, e esta justiça será minha enquanto for tua, isto é, dada por ti. Pois, acredito naquele que justifica o ímpio, para que minha fé me seja imputada como justiça (cf Rm 4,5).

Por conseguinte, será assim também minha justiça; não enquanto minha própria, mas enquanto me foi dada por mim mesmo, ao contrário do que pensavam aqueles que se gloriavam da letra e rejeitavam a graça. Foi dito em outro salmo:

Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça(Sl 7,9).

Sem dúvida, não se gloriava de sua justiça. Mas o Apóstolo me relembra:

Que é que possuis que não tenhas recebido”? (1 Cor 4,7).

Denomina-a tua justiça, mas sem esqueceres que a recebeste e sem invejares os que a recebem. Pois também aquele fariseu dizia, como se a tivesse recebido de Deus:

Eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens. Eu te dou graças”: muito bem.

Porque não sou como o resto dos homens”: por quê? Apraz-te ser bom porque o outro é mau? Afinal, o que acrescentas? “Injustos, ladrões, adúlteros, nem como este publicano”.

Agir assim não é exultar e sim insultar. O outro, porém, como um cativo, “não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: Senhor, tem piedade de mim, pecador(Lc 18,11.13).

Não basta que reconheças provir o bem que há em ti de Deus; também não te deves exaltar acima daquele que ainda não tem esse dom. Talvez ao recebê-lo, ele te ultrapasse no bem. Quando Saulo apedrejava Estêvão, havia muitos cristãos que ele perseguia (cf At 7,59).

No entanto, quando ele se converteu, superou a todos os que o precederam. Por isso, repete a Deus o que ouviste no salmo:

Em ti esperei, Senhor; não seja confundido para sempre. Por tua justiça”, não pela minha, “livra-me e socorre-me. Inclina para mim o teu ouvido”.

Esta confissão é humilde. Quem pede:

Inclina para mim”, confessa que jaz prostrado, doente, diante do médico que está de pé. Finalmente, vê como fala o doente:

Inclina para mim o teu ouvido e salva-me”.



§ 5
3 “Sê para mim um Deus protetor”.

Os dardos do inimigo não me alcancem. Não posso proteger-me por mim mesmo. E não basta dizer:

protetor”, mas acrescenta:

uma cidadela forte que me salve”.

Sê para mim “cidadela forte”.

Tu és a minha cidadela. Para onde, Adão, fugias de Deus, escondendo-te entre as árvores do paraíso? (cf Gn 3,8).

Por que temias a presença daquele que costumava ser a tua alegria? Fugiste e pereceste. Foste feito prisioneiro. Eis que Deus te visita, não te abandona. O Senhor, deixa as noventa e nove ovelhas nos montes para procurar a ovelha perdida. E diz da ovelha que encontra:

Estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado(Lc 15,4.24).

Eis que o próprio Deus se fez lugar de teu refúgio; antes, te incutira medo e fugiras. Sê para mim “uma cidadela forte, que me salve”.

Apenas em ti encontro salvação; se não fores meu repouso, não serei curado de minha doença. Levanta-me do chão; esteja prostrado em ti, a fim de levantar-me e ir para uma forte cidadela. Que haverá de mais defendido? Quando te refugiares naquele lugar, dize-me: De que adversários terás medo? Quem te armará ciladas e te alcançará? Diz-se de alguém que clamou do alto de um monte, quando o imperador passava: Não falo de ti. E este olhou para cima e respondeu: Nem eu de ti. Desprezara o imperador bem armado, e com poderoso exército. De onde? De um lugar bem defendido. Se ele se sentia seguro no alto do monte, como não estarás tu junto daquele que fez o céu e a terra? “Sê para mim um Deus protetor, uma cidadela forte, que me salve”.

Se escolher outro lugar para mim, não poderei me salvar. Escolhe bem, ó homem, se encontrares, um lugar mais defendido. Não é possível fugir dele, senão junto dele. Se queres escapar a sua ira, foge para junto dele, já aplacado.

Porque és, Senhor, minha firmeza, meu refúgio”.

Que significa:

minha firmeza?” Sou firme por ti e devido a ti.

Porque és minha firmeza, meu refúgio”.

No intuito de me tornar firme, através de ti, cada vez que me sentir fraco em mim mesmo, refugiar-me-ei em ti. A graça de Cristo te faz firme, e imóvel contra todas as tentações do inimigo. Mas lá onde se acha a fraqueza humana, encontra-se também ainda o primeiro cativeiro, e a lei nos membros que repugna à lei do espírito, querendo levar cativo à lei do pecado (cf Rm 7,23); ainda o corpo que corrompe pesa sobre a alma (cf Sb 9,15).

Por mais firme que sejas pela graça de Deus, enquanto ainda carregas este vaso terreno que encerra o tesouro de Deus, deves recear algo até mesmo do próprio vaso de barro (cf 2Cor 4,7).

Por conseguinte, tu és Senhor “a minha firmeza”, a fim de ser forte neste mundo contra todas as tentações. Mas se forem muitas, e me perturbam, “tu és o meu refúgio”.

Confesso a minha fraqueza, sendo tímido como a lebre, uma vez que estou coberto de espinhos como o ouriço. Também se diz em outro salmo:

Os rochedos são asilos para os ouriços e as lebres”.

A pedra, porém, era Cristo (cf Sl 103,18; 1Cor 10,4).



§ 6
4 “Meu Deus, tira-me das mãos do pecador”.

Dos pecadores, em geral, no meio dos quais labuta este homem que já deve ser libertado do cativeiro; este que já grita:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso(Rm 7,24.25).

O inimigo é interno, aquela lei nos membros; existem inimigos também de fora. Por quem clamas? Por aquele ao qual foi dito:

Purifica-me, Senhor, de meus pecados ocultos”.

E dos alheios, poupa teu servo (Sl 18,13.14).

Em conseqüência, quando se diz:

Salva-me” é relativo a tua doença interior, isto é, a tua iniqüidade, que te faz cativo e pela qual pertences ao velho homem, de sorte que clamas no meio dos primeiros cativos. Foste salvo de tua iniqüidade, e também já da iniqüidade alheia, da maldade daqueles entre os quais precisas viver até que termine a vida presente. E até quando? Eis que termina para ti. Porventura acaba também para a Igreja? Apenas no fim do mundo? Este homem único, a unidade de Cristo, pois, clama essas palavras. É certo, portanto, que muitos fiéis que deixam o corpo já se encontram naquele repouso que Deus concede aos espíritos dos fiéis; mas aqui na terra ainda há membros de Cristo que vivem a vida presente e os pósteros que ainda hão de nascer. Por isso, até o fim do mundo estará aqui este homem que clama para ser libertado de seus pecados e da lei de seus membros que luta contra a lei do espírito. Em seguida, por causa dos pecados daqueles entre os quais necessariamente há de viver até o fim. Mas estes pecadores são de duas espécies: uns são os que receberam a lei e outros que não a receberam. Todos os pagãos não receberam a Lei, e todos os judeus e cristãos a receberam. Portanto, o nome de pecador é geral: ou transgressor da Lei, a recebeu; ou simplesmente iníquo sem lei, se não recebeu a Lei. O Apóstolo faz referência a ambas as espécies:

Todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e todos aqueles que pecaram com a Lei, pela Lei serão julgados(Rm 2,12).

Tu, porém, que gemes no meio de ambos, repete a Deus o que ouves o salmo dizer:

Meu Deus, tira-me das mãos do pecador”.

De qual? “Do poder do transgressor e do iníquo”.

Existe, efetivamente, um iníquo que é transgressor da Lei. Pois, não deixa de ser iníquo quem transgride a Lei; mas se todo transgressor da Lei é iníquo, nem todo iníquo é transgressor da Lei. Diz o Apóstolo:

Onde não há Lei, não há transgressores(Rm 4,15).

Os que não receberam a Lei podem ser ditos iníquos, mas não prevaricadores. Cada um é julgado conforme seus méritos. Eu, contudo, que procuro libertar-me do cativeiro por tua graça, por ti clamo:

Tira-me das mãos do pecador”.

Que são as suas mãos? Seu poder. Não aconteça que me leve ao consentimento, por meio de seu furor; nem por insídias persuada à prática da iniqüidade.

Do poder do transgressor e do iníquo”.

Responde-lhe: Como queres te libertar da mão do transgressor da Lei e do iníquo? Não consintas; se ele se enfurece, sê paciente, tolera. Mas quem pode tolerar se abandonar aquele que é uma forte cidadela? Por que razão digo, então:

Tira-me das mãos do transgressor da Lei e do iníquo?” Porque por mim mesmo não posso ser paciente, e sim por ti que me dás a paciência.



§ 7
5.6 Finalmente, segue o motivo por que digo:

Porque és, Senhor a minha paciência”.

Uma vez que há paciência, com razão continua o salmista:

Senhor, és a minha esperança desde a minha juventude”.

Minha paciência, porque minha esperança; ou melhor, minha esperança, porque minha paciência? Declara o Apóstolo:

A tribulação produz a perseverança, a perseverança a virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona(Rm 5,3.5).

Com razão, “em ti esperei, Senhor; não seja confundido para sempre. Senhor, és a minha esperança desde a minha juventude”.

Desde a tua juventude é que Deus é tua esperança? Não o foi desde a meninice, a infância? Certamente, diz o salmista. Pois, vê como continua; para não pensares que sou eu que afirmo:

Minha esperança desde a minha juventude”, como se em nada ajudasse Deus a minha infância ou meninice, ouve o versículo seguinte:

Em ti me apoiei desde o nascer”.

Ouve ainda:

Desde o seio materno és o meu protetor”.

Por que diz então:

desde a minha juventude” se não porque então comecei a esperar em ti? Pois, antes não esperava em ti, embora tenhas sido meu protetor, que me conduziu são e salvo ao tempo em que podia aprender a esperar em ti. Por conseguinte, desde a minha juventude comecei a esperar em ti. Desde então armaste o diabo contra mim, a fim de que munido nas fileiras de teu exército com a tua fé, caridade e esperança e demais dons combatesse contra teus inimigos invisíveis, e ouvisse a palavra do Apóstolo:

Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal(Ef 6,12).

É, portanto, um jovem que luta contra todos esses; mas enquanto jovem há de cair se não for sua esperança aquele ao qual ele clama:

Senhor, és a minha esperança desde a minha juventude”.



§ 8
De ti é sempre o meu cantar”.

Acaso foi desde que comecei a esperar em ti até agora? Mas, diz o salmo:

Sempre”.

Que significa:

sempre?” Não apenas durante o tempo da fé, mas também na visão. Pois agora, enquanto estamos neste corpo, peregrinamos longe do Senhor (cf 11 Cor 5,6.7); caminhamos pela fé, não pela visão. Virá o tempo de vermos o que acreditamos sem ter visto. Alegrar-nos-emos ao vermos o que cremos, mas os ímpios sentirão confusão ao ver o que não acreditaram. Então virá a realidade, objeto de nossa esperança agora. Ver o que se espera não é esperar. E se esperamos o que não vemos, é na paciência que esperamos (cf Rm 8,24).

Agora, portanto, gemes, agora corres para um refúgio a fim de te salvares; agora, cheio de fraquezas pedes um médico. Que será ao receberes também a perfeita saúde? Que será, ao te tornares igual aos anjos de Deus? (cf Mt 22,30).

Poderás esquecer esta graça que te libertou? De forma alguma.

De ti é sempre o meu cantar”.



§ 9
7 “Tornei-me um prodígio para muitos”.

Que acontece aqui, neste tempo de esperança, tempo de gemidos, tempo de humildade, tempo de dores, tempo de fragilidade, tempo de gritarem os prisioneiros? “Tornei-me um prodígio para muitos”.

Por que “um prodígio?” Por que me insultam os que me consideram um “prodígio?” Porque acredito naquilo que não vejo. Eles, de fato, contentes com o que vêem, alegram-se com bebida, luxúria, desones-tidade, avareza, riquezas, rapinas, dignidades mundanas, paredes de barro branqueadas; alegram-se com estas coisas. Eu, porém, sigo caminho diferente, desprezando as coisas presentes, tendo medo da prosperidade mundana; não me sinto seguro senão com as promessas de Deus. E eles me dizem:

Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos(1 Cor 15,32).

O que dizes? Repete.

Comamos e bebamos”.

Muito bem! E o que acrescentaste? “Amanhã morreremos”.

Tu me aterrorizaste. Não me seduziste. Com efeito, incutiu-me pavor aquilo mesmo que acrescentaste e não consenti.

Amanhã morreremos”, disseste; o antes:

Comamos e bebamos”.

Após:

Comamos e bebamos”, acrescentaste:

Amanhã morreremos”.

Digo o contrário: Ao invés disso, jejuemos e rezemos, pois amanhã morreremos. Mantendo-me neste caminho estreito e apertado, “tornei-me um prodígio para muitos; mas foste para mim poderoso protetor”.

Assiste-me, Senhor Jesus, que me dizes: Não desanimes na estrada estreita; eu passei primeiro, eu sou o próprio caminho (cf Jo 14,6), eu conduzo, guio em mim, levo a mim mesmo. Portanto, embora me tenha tornado “um prodígio para muitos”, não temerei, porque és “para mim poderoso protetor”.



§ 10
8 “De teu louvor se encha a minha boca, para cantar tua glória e tua grandeza todos os dias”.

Por que:

todos os dias?” Sem interrupção. Na prosperidade, porque consolas; na adversidade, porque corriges, antes que eu existisse, porque me fizeste; quando já existia, porque me deste a salvação; quando pequei, porque perdoaste; quando me converti, porque me ajudaste; quando perseverar, porque coroaste. Assim, de fato, “de teu louvor se encha a minha boca, para cantar tua glória e tua grandeza todos os dias”.



§ 11
9 “Não me desampares no tempo da velhice. Minha esperança desde a juventude, não me desampares no tempo da velhice”.

Que tempo da velhice é este? “Quando me declinarem as forças, não me abandones”.

Aqui Deus pode te responder: Ao contrário, declinem tuas forças, para que permaneça em ti a minha força, e digas com o Apóstolo:

Quando sou fraco, então é que sou forte(2 Cor 12,10).

Não receies ser abandonado na fraqueza, na velhice. O teu Senhor não se debilitou na cruz? Diante dele, como se fosse um homem sem forças, cativo e oprimido, os fortes e os touros cevados não menearam a cabeça e não disseram:

Se é Filho de Deus, desça da cruz”? (Mt 27,39.40).

Acaso foi abandonado em sua fraqueza aquele que preferiu não descer da cruz? Não que não quisesse mostrar seu poder, mas para não parecer ceder aos que o injuriavam. Qual o ensinamento do crucificado, que não quis descer da cruz, senão a paciência no meio dos insultos, senão a tua fortaleza no teu Deus? Talvez a ele se refira o versículo:

Tornei-me um prodígio para muitos; mas foste para mim poderoso protetor”.

Pode ser atribuído a ele segundo a fraqueza, não segundo o poder; segundo a natureza em que nos representava, não segundo aquela em que ele descera. Tornara-se para muitos um prodígio. Provavelmente nisto consistia sua velhice, porque uma coisa antiga com razão se diz velha, e o Apóstolo declara:

Nosso velho homem foi crucificado com ele(Rm 6,6).

Onde se encontrava o velho homem, ali havia velhice; se antigo, é velho. No entanto, como é verdade que:

Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude(Sl 102,5), Cristo ressuscitou ao terceiro dia e prometeu-nos a ressurreição no fim do mundo. A Cabeça já nos precedeu; os membros hão de seguir. Por que receias que te abandone, te desampare no tempo da velhice, ao declinarem tuas forças? Muito ao contrário; então estará em ti a sua força, quando faltarem as tuas.



§ 12
10.11 Por que falo assim? “Porque falam de mim os meus inimigos. Observam-me e contra mim conspiram, dizendo: Deus o abandonou. Persegui-o e prendei-o; porque não há quem no-lo tire das mãos”.

Assim foi dito a respeito de Cristo: aquele que pelo grande poder da divindade, na qual é igual ao Pai, ressucitara mortos, de repente nas mãos dos inimigos se fizera fraco e foi preso como se nada pudesse fazer. Seria preso, se eles primeiro não dissessem no coração:

Deus o abandonou?” De onde provém aquela palavra, dita por ele na cruz:

Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste”? (Sl 21,2).

Portanto, Deus abandonou a Cristo, conquanto ele no Cristo reconciliasse o mundo consigo, sendo Cristo também Deus, nascido da raça judaica segundo a carne, mas Deus acima de tudo bendito pelos séculos? (cf 2Cor 5,19; Rm 9,5).

Deus o abandonou? De forma alguma. Mas era a nossa voz, de nosso velho homem, porque o velho homem fora crucificado com ele; e ele tomara carne de nosso velho homem, porque Maria era da descendência de Adão. Por conseguinte, ele disse na cruz o que os judeus haviam pensado a seu respeito:

Por que me desamparaste?(Mt 27,46).

Por que eles, em sua maldade, me consideram abandonado? Que significa: em sua maldade, me consideram abandonado? Pois, se o conhecessem, jamais teriam crucificado o rei da glória (cf 1Cor 2,8).

Persegui-o e prendei-o”.

Atribuamos, contudo, essas palavras, meus irmãos, de maneira usual, aos membros de Cristo, e reconheçamos a nossa voz nessas expressões. Cristo usou estas palavras em nosso lugar, não devido a seu poder e majestade, mas devido àquilo que ele se fez por nós; não segundo o que era aquele que nos criou.



§ 13
12 “Senhor, meu Deus, não te afastes de mim”.

Deste modo acontece, pois ele não se afasta absolutamente. O Senhor está perto dos contritos de coração (Sl 33,19).

Meu Deus, olha-me para me acudir”.



§ 14
13 “Sejam confundidos e pereçam os que atentam contra minha vida”.

Qual a sua opção? “Sejam confundidos e pereçam”.

Por que este desejo? “Atentam contra minha vida”.

Que quer dizer:

Atentam contra minha vida?” Entregam-me a uma contenda. Diz-se que atentam os que provocam a uma contenda. Se assim é, acautelemo-nos contra os que atentam contra nossa vida. Que é: atentam contra nossa vida? Em primeiro lugar, os que nos provocam a resistirmos a Deus, sentirmos desprazer acerca de Deus, por causa de nossos males. Quando é que és reto, de sorte que seja bom para ti o Deus de Israel, ele que é bom para os retos de coração? (cf Sl 72,2).

Quando és reto? Queres ouvir? Quando fazes o bem e Deus te apraz; e quando sofres algum mal, Deus não te desagrada. Notai o que disse, irmãos, e sede precavidos contra os que atentam contra vossa vida. Todos os que vos estimulam a vos cansardes nas tristezas e tribulações, procuram fazer com que sintais desprazer relativamente a Deus, devido a vossos sofrimentos, e saia de vossos lábios a pergunta: Por que isto? Que fiz eu? Então, nada de mal fizeste e és justo, e Deus injusto? Respondes: Sou pecador, confesso; não digo que sou justo. Mas pecador, até que ponto? Acaso tanto quanto aquele que está tão bem? Quanto Fulano? Sei o mal que fez, conheço suas iniqüidades, das quais eu, apesar de pecador, estou bem longe; e no entanto, vejo que ele possui toda espécie de bens, e eu sofro tanto! Não chego a dizer: Ó Deus, que te fiz? Não quero dizer que não pratiquei mal algum, mas que não fiz tantos pecados que mereça sofrer assim. Então tu és justo e Deus injusto? Cuidado, infeliz! Atenta-se contra tua vida. Não, retruca ele, não disse que sou justo. Então o que dizes? Sou pecador, mas não fiz tais pecados que mereça sofrer tanto. Portanto, não dizes a Deus: Sou justo e tu injusto: mas dizes: Fulano é injusto, mas tu és mais injusto ainda. Eis como se atenta contra tua vida, eis a guerra em tua alma. Qual? Contra quem? Tua alma, contra Deus. A alma criada contra aquele que a criou. Como és alguém que clama contra ele, és ingrata. Volta, pois, à confissão de tua fraqueza; implora a mão do médico. Não julgues felizes os que prosperam por algum tempo. Tu és castigado e eles são poupados; talvez seja reservada para ti, filho castigado e corrigido, a herança. Volta, portanto, volta, prevaricador, ao coração (cf Is 46,8); não se atente contra tua vida. É muito mais forte aquele a quem declaraste guerra. Quanto maiores forem as pedras que jogares contra o céu, tanto maior ruína te oprimirá. Volta; prefira-o. Reconhece-te a ti mesmo. É Deus que está te desagradando: envergonha-te; desagrade-te o que és. Nada de bem farias, se ele não fosse bem; e nada de mal sofrerias se ele não fosse justo. Sê vigilante, conforme a palavra:

O Senhor o deu, o Senhor o tirou; como agradou ao Senhor assim se fez: bendito seja o nome do Senhor(Jó 1,21).

Injustos eram aqueles amigos sadios que estavam sentados junto de Jó, coberto de podridão (cf Jó 2,13); e no entanto, aquele que era para ser acolhido por Deus estava sendo castigado, enquanto os que deviam ser punidos eram poupados. Qualquer que seja, portanto, a tribulação que te suceder, qualquer que seja a injúria, não se atente contra tua vida; não se atente, não só contra Deus, mas nem mesmo contra aqueles que te fazem mal. Se, porém, tiveres ódio contra eles, tua alma foi atacada. Por conseguinte dá graças a Deus e reza pelos malfeitores. Talvez seja também uma oração por eles a que ouviste:

Sejam confundidos e pereçam os que atentam contra minha vida. Sejam confundidos e pereçam”: eles muito presumem de sua justiça; portanto; sejam confundidos. Isso lhes é de vantagem, a fim de reconhecerem os próprios pecados, e assim sejam confundidos e pereçam, pois presumiam erradamente de suas forças. E uma vez vencidos, digam:

Pois, quando sou fraco, então é que sou forte(2 Cor 12,10); e vencidos, digam:

Não me desampares no tempo da velhice”.

Foi, pois, um bem o que lhes desejou: que se envergonhem de seus males, e faltem-lhes suas forças perversas. Já vencidos e confundidos procurem aquele que esclarece o confuso e reconforta o vencido. Finalmente vê a continuação:

Cubram-se de confusão e de vergonha os que planejam males contra mim”.

Confusão e vergonha”: a confusão provém de uma consciência pesada, e a vergonha do pudor. Aconteça-lhes isto e tornar-se-ão bons. Não opines que se trata de furor; oxalá seja ouvida esta prece por eles! Assim, Estêvão parecia estar encolerizado, quando lançava contra os judeus palavras inflamadas:

Homens de dura cerviz, incircun-cisos de ouvido e de coração, vós sempre resistis ao Espírito Santo”.

Que cólera inflamada, quão veemente é contra os inimigos! Parece-te que atentava contra sua vida. De forma nenhuma. Estava tratando de sua salvação; amarrava os frenéticos enfurecidos em palavras. Vê que não atentava contra a vida, não era contra Deus, nem contra eles mesmos. Disse:

Senhor Jesus, recebe o meu espírito”.

Aprazia-lhe Jesus, porque sofria o apedreja- mento por causa de sua palavra; não atentava contra Deus. Disse ainda:

Senhor, não lhes imputes este pecado(At 7,51.58.59).

Nem atentava contra seus inimigos.

Cubram-se de confusão e de vergonha os que planejam males contra mim”.

É o que procuram todos os que me afligem; procuram infligir-me males. Era o mal que queria aquela mulher que sugeriu:

Amaldiçoa a Deus e morre duma vez(Jó 2,9).

E a mulher de Tobias, que disse ao marido; “Onde estão as tuas boas obras?(Tb 2,22).

Assim falava a fim de que se revoltasse contra Deus que o fizera cego; e quando Deus não lhe agradasse mais, atentasse contra sua vida.



§ 15
14 Se, portanto, ninguém por meio de tribulações te persuadir, ninguém extorquir de ti desgosto contra Deus por causa de teus sofrimentos, nem odiares do que te fazem sofrer, não atentas contra tua vida; dirás com segurança o que segue:

Eu, porém, hei de esperar sempre em ti e acrescentar louvor a louvor”.

Qual o sentido disso? Deve despertar nossa atenção a frase:

Hei de acrescentar louvor a louvor”.

Tornarás mais perfeito o louvor de Deus? Falta-lhe algo que se lhe deva acrescentar? Se o louvor está bem acabado, que podes acrescentar? Deus é louvado pelos seus benefícios por todas as suas criaturas, por toda a criação, pela instituição de todas as coisas, pelo governo e regime dos séculos, pela ordem dos tempos, pela elevação do céu, pela fecundidade da terra, pela extensão dos mares, pela germinação das sementes de todo o criado, pelos filhos dos homens, pela Lei que foi promulgada, pela libertação de seu povo do cativeiro do Egito, por todas as demais obras maravilhosas que fez. Mas, não tinha ainda sido louvado pela ressurreição da carne para a vida eterna. Refira-se, pois, o louvor complementar à ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Entendamos aqui sua voz, acima de todos os louvores do passado; assim entendemos retamente esta expressão. Que poderias tu, pecador, que receavas um ataque a tua vida, que só de Deus esperavas a libertação daquele primeiro cativeiro, que não presumias de tua justiça, mas de sua graça, como recomenda o presente salmo, que poderias acrescentar ao louvor de Deus? Ele responde: Acrescentarei. Vejamos o que há de acrescentar. Poderia ser completo teu louvor, sem que nada absolutamente parecesse faltar, porque, de fato, nada faltaria, se condenasses todos os iníquos. Não deixaria de ser grande louvor a própria justiça de Deus que condena os iníquos; seria grande louvor. Fizeste o homem, deste-lhe o livre-arbítrio, colocaste-o no paraíso, impuseste-lhe um mandamento, com ameaça de morte por sua violação, e isto era muito justo; fizeste tudo. Ninguém pode exigir mais de ti. No entanto, o homem pecou (cf Gn 2 e 3).

O gênero humano se tornou massa pecadora, originária de pecadores. Que será se condenares essa massa iníqua? Quem poderá dizer-te: Foste injusto? Serias, efetivamente, justo mesmo assim, e esse seria todo o teu louvor. Mas, como libertaste o próprio pecador, justificando o ímpio, “hei de acrescentar louvor a louvor”.



§ 16
15 “Minha boca publicará tua justiça”, não a minha. Por isso, acrescentarei louvor a louvor, porque o fato de ser justo, se o sou, é devido a tua justiça em mim e não a minha, pois és tu que justificas o ímpio (Rm 4,5).

Minha boca publicará tua justiça e a tua salvação todo dia”.

Que significado tem:

tua salvação? Do Senhor vem a salvação(Sl 3,9).

Ninguém usurpe para si a origem de sua própria salvação: Do Senhor vem a salvação. Ninguém se salva por si mesmo. Do Senhor vem a salvação. Nada vale o socorro humano (cf Sl 59,13).

A tua salvação todo dia”, em todo o tempo. Advém alguma adversidade: apregoa a salvação do Senhor; vem algo de próspero: apregoa a salvação do Senhor. Não apregoes na prosperidade e cales na adversidade; de outro modo não se realizará o dito:

todo dia”.

Pois, o dia inteiro inclui a noite. Talvez quando dizemos: trinta dias, por exemplo, se passaram, não falamos também das noites? O próprio nome de dia não inclui a noite? Por que se dizia no Gênesis:

Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia”? (Gn 1,15).

Portanto, o dia é inteiro com a noite correspondente, pois a noite serve o dia e não o dia, a noite. Seja o que for que faças na carne mortal, deve servir a justiça; tudo o que fazes para obedecer ao preceito de Deus, não se faça para proveito da carne, a fim de que o dia não sirva a noite. Por conseguinte, canta os louvores de Deus na prosperidade e na adversidade; na prosperidade, como sendo tempo diurno; na adversidade, como tempo noturno; contudo, profere o louvor de Deus todo dia, a fim de não cantares em vão:

Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca(Sl 33,3).

Enquanto iam bem os filhos, os rebanhos, os servos e todos os seus bens, Jó louvava a Deus. Era tempo diurno. Vieram os prejuízos, surgiu a privação dos filhos, pereceu o que era guardado, morreram os herdeiros do que era conservado. Era uma espécie de tempo noturno. Vê, todavia, como louva todo dia. Por acaso depois daquele tempo diurno em que se alegrava, quando chegou o ocaso da luz, isto é, da prosperidade, deixou de louvar a Deus? Não era dia no coração iluminado pela palavra:

O Senhor o deu, o Senhor o tirou; como agradou ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor”? (Jó 1,21).

E isto quando ainda era crepúsculo. Veio noite mais densa, trevas mais profundas, dores corporais, podridão de vermes. Nem assim, na podridão, deixou os louvores de Deus exteriormente na noite, porque interiormente alegrava-se no dia. Pois, à mulher que o incitava à blasfêmia, atentando contra sua alma, mísera sedutora qual sombra noturna, ele respondeu:

Falas como uma insensata(Jó 2,10).

Com efeito, é verdadeira filha da noite! “Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” Louvamos de dia, deixaremos de louvar à noite? “A tua salvação todo dia”, com a respectiva noite.



§ 17
Porque não conheci as negociações”.

Diz o salmista:

A tua salvação todo dia, porque não conheci as negociações”.

Quais são essas negociações? Ouçam os mercadores, e mudem de vida. Se o foram, não sejam mais. Não conheçam o que foram, esqueçam-se. Finalmente, não aprovem, não louvem. Reprovem, condenem, mudem se a negociação é pecado. Daí vem que, por certa avidez de adquirir, ó negociante, quando sofres prejuízo, blasfemas; e não te sucederá conforme a palavra:

Teu louvor todo dia”.

Quando por causa do preço das mercadorias que vendes, não só mentes, mas ainda juras falso, como estará em tua boca o louvor de Deus todo dia? E se és cristão, por causa de tua boca o nome de Deus é blasfemado, de sorte que se diz: Eis como são os cristãos! Por conseguinte, se o salmista profere o louvor de Deus todo dia porque não conhece as negociações, corrijam-se os cristãos; não negociem. Mas pode dizer-me o mercador: Eis que trago de longe as mercadorias para aqueles lugares onde elas não existem, para me manter. Peço o pagamento de meu trabalho, vendendo mais caro do que comprei. Como tirarei minha subsistência, se está escrito:

O operário é digno do seu salário”? (Lc 10,7).

Mas, trata-se de mentira, de perjúrio. É meu o vício, e não do comércio; se eu quisesse, poderia negociar sem esse vício. Por isso, não transfiro minha culpa para o negócio; se minto, eu minto, não o negócio. Pois, poderia dizer: Comprei por tanto, mas vendo por tanto; se lhe agrada, compra. O comprador, ao ouvir esta verdade, não se afastaria; antes todos acorreriam, por amarem mais a fidelidade do que a mercadoria. Diz-me, pois, o negociante: Aconselha-me a não mentir, não jurar falso e não a abandonar o comércio, que me dá a subsistência. Exorta-me a empreender que trabalho, quando dele me afastas? Talvez a algum ofício? Serei sapateiro; farei calçados para os homens. Mas eles também não são mentirosos? Eles não perjuram? Acaso não tendo contratado com uns, se receberem de outro o pagamento, não deixam o que estavam fazendo e começam a fazer para este, enganando àquele a quem haviam prometido que o fariam logo? Não dizem muitas vezes: Faço hoje, termino hoje? Em seguida, na própria fabricação quantas fraudes não praticam? Assim fazem, assim dizem: mas são eles que são maus e não o ofício que exercem. De fato, todos os maus artífices que não temem a Deus, mentem, perjuram, em vista de lucro, ou por meio do prejuízo e da pobreza; o louvor de Deus não é contínuo em sua boca. De que modo queres me tirar do comércio? Seria para me tornar agricultor e murmurar contra Deus por causa das tempestades, para consultar um advinho por receio do granizo, procurando como me defender do tempo? Para desejar a fome para os pobres, a fim de que possa vender o que guardei? É a isto que me levas? Mas, respondes, não agem assim os bons agricultores. Nem daquele modo os bons comerciantes. Então, será um mal ter filhos, porque se eles têm dor de cabeça, as mães más e infiéis procuram as ligaduras sacrílegas e os feitiços? Tais pecados são dos homens, não das coisas. O comerciante pode responder-me assim. Pondera, pois, ó bispo, como deves entender as negociações citadas no saltério, para não suceder que tu não entendas bem e me proíbas as negociações. Exorta, pois, sobre o modo como devo viver. Se for bem, tudo irá bem para mim. Sei apenas uma coisa: se for malvado, não é o comércio que me torna mau, e sim a minha iniqüidade. Quando se fala a verdade, não há como contradizê-la.



§ 18
Examinemos, pois, as mencionadas negociações. Quem verdadeiramente não as conhece, louva a Deus todo dia. Negociação, em grego deriva de ato, e em latim é negação do ócio; mas seja derivado de ato ou da negação do lazer, discutamos o seu sentido. Os negociantes que são ativos, presumem daquilo que fazem, gloriam-se de suas obras, e não obtêm a graça de Deus. Portanto, contra essa graça, são os negociantes mencionados neste salmo. Este recomenda a graça de Deus, de sorte que ninguém se glorie de suas obras. Conforme se diz em certa passagem:

Os médicos não os ressuscitarão(Sl 87,11); então, devem os homens negligenciar a medicina? Mas qual o sentido desta frase? Sob tal nome se entendem os soberbos, que prometem a saúde aos homens, enquanto a salvação vem de Deus. Assim como, contra os médicos, isto é, contra os soberbos que prometem salvação, desperta-nos a palavra:

A tua salvação todo dia”.

Também contra os comerciantes, isto é, em oposição aos que se alegram com suas ações e obras, previne o dito:

Minha boca publicará tua justiça”, a saber, não a minha. Quais são os negociantes, isto é, os que se comprazem em suas ações? Os que desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus (cf Rm 10,3).

Com razão chama-se negócio a negação do ócio. Que mal é este: a negação do ócio? Merecidamente o Senhor expulsou do templo aqueles aos quais declarou:

Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, fazeis dela uma casa de negócio(Mt 21,13), isto é, gloriando-vos de vossas obras, não procurais o lazer, nem ouvis a Escritura a admoestar contra vossa inquietação e negociação:

Cessai; reconhecei que eu sou Deus(Sl 45,11).

Que quer dizer:

Cessai; reconhecei que eu sou Deus?” senão: Tomai conhecimento de que Deus é quem opera em vós, e não vos exalteis por causa de vossas obras. Não ouves a palavra que se dirige a vós:

Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas”? (Mt 11,28.29).

Anuncia-se este repouco contra os negociantes, anuncia-se este repouso contra os que odeiam o lazer, agindo e gloriando-se de suas obras, sem descansarem em Deus; e tanto mais longe da graça eles correm quanto se exaltam em suas obras.



§ 19
Mas encontra-se em alguns exemplares:

Porque não conheci a literatura”.

Onde alguns códices trazem:

negociações”, outros têm:

literatura”.

É difícil conciliá-los. Contudo, a diversidade dos tradutores talvez mostre o sentido e não induza em erro. Examinemos, pois, como entender “literatura”, sem ofendermos os gramáticos, como pouco mais acima não quisemos ofender os comerciantes. Também um gramático pode viver honestamente de seus conhecimentos, sem perjurar, nem mentir. Vejamos, pois, que literatura o salmista não conheceu, tendo em sua boca todo dia o louvor de Deus. Há determinada literatura dos judeus: refiramos a eles, pois, estas palavras; lá encontraremos o conteúdo das mesmas. Ao nos questionarmos a respeito das negociações, por causa das ações e das obras, encontramos que é detestável aquela negociação a que aponta o Apóstolo, dizendo:

Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus(Rm 10,3).

Contra ela declara o mesmo Apóstolo:

Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho”.

Como é isto? Então não praticaremos o bem? Praticaremos, mas é ele quem opera em nós:

Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras(Ef 2,9.10).

Como, pois, encontramos o ataque aos negociantes, quer dizer, àqueles que se gloriam de suas ações, exaltando-se por seus negócios, que são uma negação do lazer, e sendo operários mais inquietos do que bons (porque bons operários são aqueles nos quais Deus opera), assim não sei bem que literatura podemos encontrar entre os judeus. O Senhor nos assista para que possa explicar com palavras o que ele se dignou manifestar-me ao coração. Os judeus soberbos que presumiam de suas próprias forças e da justiça de suas obras, gloriavam-se da Lei, porque eles haviam recebido a Lei e as demais nações, não. Quanto à Lei, gloriavam-se não da graça, mas da letra. Pois, a Lei, sem a graça é apenas letra. Serve para convencer de iniqüidade e não para dar a salvação. Pois, como é que se exprime o Apóstolo? “Se tivesse sido dada uma Lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da Lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem(Gl 3,21.22).

Desta letra se diz em outra passagem:

A letra mata, mas o Espírito comunica a vida(2 Cor 3,6).

Tens só a letra, se és prevaricador da lei:

Apesar da letra e da circuncisão, és transgressor da Lei(Rm 2,21.27).

Não é com razão que se canta:

Tira-me do poder do transgressor da lei e do iníquo?” Tens a letra, mas não a cumpres. Como é que não cumpres a letra? “Pregas que não se deve furtar e furtas! Proíbes o adultério e cometes adultério! Abominas os ídolos e cometes sacrilégio. Por vossa causa o nome de Deus está sendo blasfemado entre os gentios, como está escrito(Rm 2,21.27).

De que te serviu a letra que não observas? Mas, por que não a observas? Porque presumes de ti mesmo. Por que motivo não a cumpres? Porque és negociante; exaltas tuas obras; não sabes que é necessário o auxílio da graça cooperante para cumprires o preceito daquele que ordena. Eis que Deus ordenou; faze aquilo que ele mandou. Começas a agir como se fosse por tuas próprias forças e cais; sobre ti permanece a Lei que pune, não salva. Com razão se diz que “a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo(Jo 1,17).

Moisés escreveu cinco livros. Nos cinco pórticos que cercavam a piscina jaziam os doentes, mas não podiam ser curados (cf Jo 5,2).

Vê como permanece a letra, convencendo o réu de culpa, mas não salvando o iníquo. Naqueles cinco pórticos, figura dos cinco livros, expunham-se mais doentes do que se curavam. Como é que ali se curava então um doente? Pelo movimento das águas. Quando as águas se moviam naquela piscina, descia um doente e era curado só ele, figura a unidade; se descesse outro, não era curado. Como se representa ali a unidade do corpo que clama desde os confins da terra? Outro doente não era curado, a não ser que de novo se movessem as águas. O movimento das águas da piscina representava a perturbação do povo judaico quando veio o Senhor Jesus Cristo. Pois, pensava-se que vinha um anjo que movia as águas da piscina. A água, portanto, cercada por cinco pórticos era o povo da Judéia, cercado pela Lei. E nos pórticos jaziam os doentes, que só eram curados quando a água se turvava e se movia. Veio o Senhor, a água se turvou, ele foi crucificado; desça, pois, o doente para ser curado. Que quer dizer: desça? Humilhe-se. Por conseguinte, todos os que amais a letra sem a graça, permaneceis nos pórticos; sois doentes, prostrados, não convalescentes; presumis da letra.

Se tivesse sido dada uma Lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da Lei”.

Mas foi dada uma Lei que vos fazia réus, vos incutisse medo, e por medo pediríeis indulgência, já não presumiríeis de vossas forças, não vos exaltaríeis por causa da letra. Uma figura disso é também Eliseu que, para ressuscitar um morto, primeiro mandou seu servo levar seu bastão. Havia morrido o filho da viúva que o hospedara. Foi-lhe dada esta notícia, e ele entregou seu báculo a seu servo, dizendo:

Parte. Porás meu bastão sobre o morto(2Rs 4,29).

O profeta não sabia o que estava fazendo? O servo o precedeu, colocou o bastão sobre o morto, que não ressuscitou.

Se tivesse sido dada uma Lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da Lei(Gl 3,21).

Não comunicou vida a Lei, enviada através do servo; e no entanto, Eliseu enviou seu bastão por meio de seu servo, com o qual ele próprio depois comunicou vida. Pois, como o menino não ressuscitasse, foi o próprio Eliseu, como figura do Senhor. Ele havia enviado previamente seu servo com o bastão, figura da Lei. Veio para junto do morto, pôs seus membros sobre ele. O morto era um menino e ele era jovem. Contraiu e de certo modo encurtou o tamanho de seu corpo juvenil, e fez-se pequeno para se adaptar ao morto. De fato, ressuscitou o morto, quando o vivo se adaptou ao morto e o dono fez o que não pôde fazer o bastão; fez a graça o que a letra não pôde fazer. Aqueles pois que permaneceram com o bastão, se gloriam da letra e por isso não são vivificados. Eu, porém, quero gloriar-me da graça de Deus, diz o Apóstolo:

Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”, a não ser naquele que, estando vivo, se adaptou a mim, que estava morto para que eu ressuscitasse, a fim de que já não fosse eu que viesse, mas viesse Cristo em mim (cf Gl 6,14; 2,20).

Gloriando-me da própria graça, “não conheci a literatura”, a saber, reprovei de todo coração os que presumem da letra, recusando a graça.



§ 20
16 Com justeza, continua o salmo:

Considerarei os feitos poderosos do Senhor”, do Senhor, não os meus. Pois, os judeus em seu poder se gloriaram da letra; por isso não conheceram a graça adjunta à letra. Pois, “a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo(Jo 1,17).

Ele veio para cumprir a Lei, quando deu a caridade, pela qual se pode cumprir a Lei, pois “a caridade é a plenitude da Lei(Rm 13,10).

Os judeus, não tendo a caridade, isto é, não tendo o Espírito da graça, “porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,5), continuaram a se gloriar da letra. Como, porém, a “letra mata, mas o Espírito comunica a vida(2 Cor 3,6), “não conheci a literatura e considerarei os feitos poderosos do Senhor”.

O versículo seguinte confirma e aperfeiçoa a sentença, imprimindo-a nos corações dos homens, sem permitir outra interpretação: Senhor, “lembrar-me-ei somente de tua justiça”.

Oh! este “somente”! Por que ainda disse:

somente?” pergunto-vos. Bastaria:

Lembrar-me-ei de tua justiça”.

Com efeito, o salmista diz:

Somente”.

Não penso em minha justiça.

Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?(1 Cor 4,7).

Somente tua justiça me liberta; meus são apenas os pecados. Não me gabe portanto de minhas forças, não fique apenas na letra; rejeite a literatura, isto é, os homens que se gloriam da letra, presumindo perversamente, como os frenéticos, de suas forças. Que eu rejeite tais homens, e confie no poder do Senhor, de sorte que quando sou fraco, então me torne forte. Tu em mim sejas forte, porque “eu me lembrarei somente de tua justiça



II SERMÃO 💬

§ 1
Ontem persuadíamos a V. Caridade de que este salmo nos recomenda a graça de Deus, que nos salvou, sem méritos precedentes, enquanto éramos dignos apenas de suplício. Não tendo conseguido terminar a nossa exposição, deixamos para hoje a parte final, prometendo no nome do Senhor que haveríamos de pagar nosso débito. Como é tempo de solvermos a dívida, sede atentos, qual campo fértil que multiplica a semente, sendo grato às chuvas. Ontem explanamos o sentido de seu título; mas a fim de renovarmos vossa atenção e por causa dos que ontem estiveram ausentes, rapidamente relembramos o que vão reconhecer os que ouviram e aqui de que tomarão conhecimento os que não ouviram. O salmo é dos filhos de Jonadab. Este nome significa Espontâneo do Senhor; porque devemos servir o Senhor com vontade boa, pura, sincera e perfeita (isto é, espontâneo), sem fingimento. Indica-o outro salmo:

Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos(Sl 53,8).

O salmo canta esses filhos, quer dizer, os filhos obedientes, e aqueles que foram os primeiros a serem levados cativos, a fim de que se reconheçam aqui nossos gemidos, e a cada dia baste o seu mal (cf Mt 6,34).

E então, se abandonamos o Senhor por soberba, voltemos ao menos devido ao cansaço. Mas não é possível regressar sem a graça. A graça é dada gratuitamente; se não fosse gratuita, não seria graça. Na verdade, se é graça porque gratuita, nenhum mérito precedeu para a receberes. De fato, se precederam tuas boas obras, recebeste a paga, e não foi gratuitamente; a paga, porém, que merecíamos era o castigo. Se fomos libertados, não foi por nossos méritos, mas por sua graça. Lou-vemo-lo, portanto, reconheçamos que devemos a Deus tudo o que somos e ter sido salvos. O salmo, após ter dito muito a este respeito, concluiu: Senhor, “lembrar-me-ei somente de tua justiça”.

Com este versículo, terminou a explanação de ontem. Os primeiros que foram levados cativos foram os que pertenciam ao primeiro homem. São cativos, por causa do primeiro homem, no qual todos nós morremos, porque “primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual, vem depois(1 Cor 15,46).

Por causa do primeiro homem, os primeiros cativos; por causa do segundo, os redimidos. Efetivamente, a própria redenção proclama nosso cativeiro. Como somos redimidos, se antes não tivéssemos sido cativos? E aquele cativeiro, expressamente insinuado pelo Apóstolo em sua epístola, nós o relem-bramos e apontamos, repetindo:

Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros(Rm 7,23).

Tal é o nosso primeiro cativeiro: a carne tem aspirações contrárias ao espírito (cf Gl 5,17).

É um castigo do pecado que o homem se veja divido contra si mesmo, porque não quis se submeter àquele que é um só. Nada é mais vantajoso à alma do que obedecer. E se é útil à alma obedecer, o escravo obedeça a seu senhor, o filho obedeça ao pai, a mulher obedeça ao marido quanto mais não será útil ao homem obedecer a Deus? Por conseguinte, Adão experimentou o mal, e todo homem é Adão. Quanto aos fiéis, todos são Cristo, porque membros de Cristo. O homem, porém, experimentou o mal que não devia experimentar, se acreditasse na palavra de Deus:

Não toques(Gn 2,17); uma vez tendo experimentado o mal, ao menos obedecesse aos preceitos do médico para se curar, pois não quis acreditar nele para não adoecer. Efetivamente, o médico bom e fiel dá instruções ao homem sadio para evitar se torne necessário recorrer a ele. Não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os doentes (cf Mt 9,12).

Mas os médicos bons e amigos, que não fazem da medicina um comércio, e ficam mais contentes de ver os homens sadios do que doentes, dão instruções aos sãos, a fim de que guardando-as não caiam enfermos. Mas os que desprezam os avisos e caem doentes, pedem o médico; desprezaram-no quando sadios, e procuram-no quando doentes. Oxalá ao menos o peçam! Não aconteça que a febre lhes tire o conhecimento e eles batam no médico. Acabastes de ouvir, pela leitura do evangelho, a parábola proferida contra eles. Seriam bem ajuizados os que disseram:

Este é o herdeiro; vamos! Matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança”? (Mt 21,38).

Absolutamente não. Imagine-se que mataram o filho e queriam matar também o pai; isto é ter perdido o juízo. Enfim, eles de fato mataram o filho. O filho ressuscitou, e a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular (cf Sl 117,22).

Tropeçaram nela e foram esmagados; ela virá sobre eles e os esmigalhará. Não é desses o que canta neste salmo:

Considerei os feitos poderosos do Senhor”; não os meus e sim os do Senhor. Senhor, “lembrar-me-ei somente de tua justiça”.

Não vejo em mim justiça alguma; lembrar-me-ei somente da tua. De ti recebi tudo o que tenho de bom; o que tenho de meu é mal. Não me pagaste com o suplício, mas deste-me tua graça gratuitamente. Por isso, “lembrar-me-ei somente de tua justiça”.



§ 2
17 “Ó Deus, tu me instruíste desde a juventude”.

Qual o teu ensinamento? Que devo me lembrar apenas de tua justiça. Considerando minha vida passada, vejo o que me era devido, e o que recebi em troca do que me era devido. Merecia o castigo e foi-me concedida a graça. Era-me devida a geena e foi-me dada a vida eterna.

Ó Deus, tu me instruíste desde a juventude”.

Desde que recebi a fé que me renovou, tu me ensinaste que nenhum mérito meu precedera, de sorte que pudesse dizer ser- me devido teu dom. Quem se converte a Deus, a não ser da iniqüidade? Quem é remido senão da escravidão? Quem pode dizer ter sido injusta sua escravidão, se abandonou o imperador, e passou para outro lado, o do desertor? O imperador é Deus, e o desertor é o diabo. O imperador deu ordens e o desertor sugeriu uma fraude. A que deste ouvidos? Ao preceito ou à fraude? Seria o diabo melhor do que Deus? Melhor aquele que falhou do que teu criador? Acreditaste na promessa do diabo e encontraste a realização da ameaça de Deus (cf Gn 2,17; 3,1).

O salmista, porém, já livre do cativeiro, apesar de ser somente na esperança e não ainda na realidade, andando à luz da fé, mas ainda não na visão, diz: Ó Deus, tu me instruíste desde a juventude”.

Desde que me converti para ti, depois que renovaste aquele que fizeste, reconfortaste aquele que criaste, reformaste aquele que formaste, desde, pois, que me converti, aprendi que não tive méritos precedentes, mas recebi gratuitamente a tua graça, a fim de me lembrar somente de tua justiça.



§ 3
E o que virá depois da juventude? Visto que o salmista diz:

Tu me instruíste desde a juventude”, o que virá após? Na própria primeira conversão aprendeste que antes dela não eras justo, mas precedeu a iniqüidade, de sorte que, expulsa a iniqüidade, sucedeu-lhe a caridade; e após teres sido renovado, tornando-te um novo homem na esperança, não ainda na realidade, aprendeste que não houve bem precedente em ti, mas foi pela graça de Deus que te converteste a Deus. Talvez agora, já convertido, terás algo de teu, e deves presumir de tuas forças? Seria semelhante ao que se costuma dizer: Podes me deixar. Era preciso que me mostrasses o caminho. Basta. Prossigo. E aquele que te mostrou o caminho replica: Não queres que vá contigo? Tu, porém, se és orgulhoso respondes: Não. Basta. Sei prosseguir. Ele te deixará, e por fraqueza de novo perderás a direção. Seria bom para ti que te conduzisse aquele que antes te indicou o caminho. Além disso, se ele não te guiar, de novo perderás o caminho; dize-lhe, pois:

Conduze-me, Senhor, em teu caminho e andarei em tua verdade(Sl 85,11).

Ingressar no caminho é a juventude, a renovação, o início da fé. Anteriormente andavas vagabundo por teus próprios caminhos, errando pelos bosques, por atalhos ásperos, ferido em todos os membros; procuravas a pátria, a saber, certa estabilidade espiritual, para poderes dizer: Estou bem, e dizê-lo com segurança, isento de incomodidades, de tentações, enfim de qualquer escravidão. Mas não encontravas. Que dizer? Aproximou-se de ti aquele que te pode mostrar o caminho? Veio a ti o próprio caminho, e foste colocado nele sem méritos precedentes, porque de fato eras um errante. Então, uma vez que entraste já podes te dirigir? Aquele que te indicou o caminho, já pode te deixar? Não; diz o salmo:

Tu me instruíste desde a juventude e até agora proclamarei as tuas maravilhas”.

É admirável que ainda me guies, tu que me indicaste o caminho. Essas maravilhas são tuas. Quais são as maravilhas de Deus? Que há de mais espantoso entre as maravilhas de Deus do que ressuscitar mortos? Mas então estou morto, perguntas? Se não estivesse morto, não te seria dito:

Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará(Ef 5,14).

Mortos estão todos os infiéis, todos os iníquos; vivem corporalmente, mas são defuntos espiritualmente. Quem ressuscita um morto corporalmente, restitui-o à luz e ao ar, mas aquele que o ressuscitou não é assim que a alma ressuscita. A alma é ressuscitada por Deus, embora também seja ele quem ressuscita o corpo. Mas, quando Deus ressuscita um corpo, devolve-o ao mundo; quando ressuscita a alma, esta se volta para Deus. Se falta o ar neste mundo, o corpo morre; se a alma se afasta de Deus, ela morre. Quando Deus ressuscita a alma, se ele não se aproxima, não vive a ressuscitada. Pois, ele não ressuscita e a deixa viver por si, assim como Lázaro, ao ser ressuscitado depois de ter estado morto quatro dias, ressuscitado corporalmente pela presença corporal do Senhor. Este aproximou-se corporalmente do sepulcro e exclamou:

Lázaro, vem para fora!” e Lázaro ressurgiu, saiu do sepulcro com as ligaduras, e depois de desamarrado afastou-se (cf Jo 11,41-44).

Foi ressuscitado na presença do Senhor, mas continuou a viver em sua ausência. Embora o Senhor ressuscitasse corporalmente presente o que havia de visível em Lázaro, foi com a presença de sua majestade que o ressuscitou. Essa presença nunca o deixou. Nesta ocasião, contudo, o Senhor ressuscitou Lázaro, por presença visível. O Senhor se afastou da cidade ou daquele lugar. Lázaro deixou de viver? Não é assim que a alma ressurge. Deus a ressuscita, mas ela morre se ele se afastar. Falarei audaciosamente, irmãos; no entanto, é a verdade. Há duas espécies de vida: uma do corpo e outra da alma. Como a alma é a vida do corpo, assim a vida da alma é Deus. Se a alma deixar o corpo, este morre; assim a alma morre se Deus dela se afastar. Provém, portanto de sua graça, que ele nos ressuscite e permaneça conosco. Pelo fato de que nos ressuscita de nossa morte passada e de certa maneira renova nossa vida, nós lhe dizemos:

Ó Deus, tu me instruíste desde a juventude”.

E tendo em vista que ele não abandona aqueles que ele ressuscita, para que não morram devido a seu afastamento, dizemos:

E até agora proclamarei as tuas maravilhas”.

Se ficas comigo, eu vivo e tu és a vida de minha alma, pois ela morre se a abandonas a si mesma. Por conseguinte, enquanto está presente minha vida, isto é, meu Deus, “até agora”; como será depois?



§ 4
18 “E até a velhice e a decrepitude”.

Os gregos têm dois nomes distintos para a velhice. A maturidade, após a juventude, tem determinado nome entre os gregos, e depois desta maturidade vem a última idade que tem outra designação. Pois presbítes significa homem maduro, e géron é velho. Como em latim falta esta distinção de dois nomes, usaram-se os dois vocábulos para a velhice:

senectam et senium”.

Sabeis portanto, que são duas idades.

Tu me instruíste” acerca de tua graça “desde a juventude; e até agora”, após a minha juventude, “proclamarei as tuas maravilhas”, porque estás comigo a fim de que não morra, pois vieste para erguer-me; e “até a velhice e a decrepitude”, isto é, até meu fim, se não estiveres comigo, não terei por mim mesmo mérito algum. Que tua graça permaneça sempre comigo. Assim falaria até o meu fim, se não estiveres comigo, não terei por mim mesmo mérito algum. Que tua graça permaneça sempre comigo. Assim falaria até mesmo um homem qualquer: tu, ele, eu. Mas, como esta voz é de um homem muito grande, isto é, da própria unidade, como é a voz da Igreja, procuremos saber o que é a juventude da Igreja. Quando Cristo veio, foi crucificado, morreu, ressuscitou, chamou as nações; estas começaram a se converter, apareceram os mártires fortes em Cristo, foi derramado o sangue dos fiéis e surgiu a messe da Igreja. Tal foi a sua juventude. Com o avançar dos tempos, confesse a Igreja, dizendo:

E até agora proclamarei as tuas maravilhas”.

Não somente na juventude, quando anunciaram a mensagem Paulo, Pedro, os primeiros apóstolos. Com o decorrer do tempo, eu mesmo, isto é, a tua unidade, os teus membros, o teu corpo, “proclamarei as tuas maravilhas”.

E depois? “E até a velhice e a decrepitude proclamarei as tuas maravilhas”; a Igreja permanecerá aqui até o fim do mundo. Se ela não há de permanecer até o fim do mundo, foi a quem o Senhor declarou:

Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos? (Mt 28,20).

Por que razão foi necessário que a Escritura o afirmasse? Porque surgiriam inimigos da fé cristã que diriam: Os cristão existirão por pouco tempo; depois desaparecerão e retornarão os ídolos, tudo será como antes1. Por quanto tempo existirão cristãos? “Até a velhice e a decrepitude”, a saber, até o fim do mundo. Tu, ó infeliz infiel, esperas que terminem os cristãos. Tu é que passarás sem os cristãos, enquanto eles permanecerão até o fim do mundo. Ao terminares tua curta vida, devido a tua infidelidade, como terás coragem de comparecer perante o juiz, contra o qual blasfemaste durante tua vida? Portanto, “desde a juventude, e até agora, até a velhice e a decrepitude, Senhor, não me abandones”.

Não existirão apenas por algum tempo, conforme dizem meus inimigos.

Não me abandones, até que eu anuncie a força de teu braço a toda a geração vindoura”.

A quem se revelou o braço do Senhor? (cf Is 53,1).

Cristo é o braço do Senhor. Portanto, não me desampares, a fim de que não se regozijem os que afirmam: Os cristãos durarão até certo tempo. Haja os que anunciem o poder de teu braço. A quem? “A toda geração vindoura”.

Se é, por conseguinte, a toda geração vindoura, quer dizer até o fim do mundo; pois, quando o mundo acabar, não sobreviverá mais geração alguma.



§ 5
O teu poder e a tua justiça”, a saber, anunciará a toda a geração vindoura o poder de teu braço. Qual o benefício que prestará o teu braço? Nossa libertação gratuita. Será esta minha mensagem: a graça para toda geração vindoura. Direi a todo homem que nascer: Nada és por ti mesmo. Invoca a Deus. Os pecados são teus, os méritos são de Deus. Mereces o castigo. E quando chegar a recompensa, Deus coroará seus dons e não os teus méritos. Direi a toda geração vindoura: Vieste do cativeiro; pertencias a Adão. Direi a toda geração vindoura que não vêm de minhas forças, de minha justiça, mas provêm de “teu poder, de tua justiça, ó Deus, as maravilhas que operaste, até as sumas alturas. O teu poder e a tua justiça”, até onde? Até a carne e o sangue? Ao contrário, “até as supremas alturas, as maravilhas que operaste”.

Nas alturas estão os céus; nas alturas estão os anjos, Tronos, Dominações, Principados, Potestades. A ti, Senhor, devem o que são, a ti devem a vida, a ti devem que vivam na justiça, a ti devem que vivam bem-aventurados.

O teu poder e a tua justiça, até onde? As maravilhas que fizeste, até as supremas alturas”.

Não penses que somente o homem foi atingido pela graça de Deus. Que era o anjo antes de ser criado? Que é o anjo se lhe faltar aquele que o criou? Portanto, “o teu poder e a tua justiça, as maravilhas que operaste, até as supremas alturas”.



§ 6
E o homem se orgulha! E passou para o primeiro cativeiro, ouvindo a sugestão da serpente:

Comei, e vós sereis como deuses!(Gn 3,5).

Homens como deuses! “Ó Deus, quem te é semelhante?” Não há no abismo, nem no inferno, nem na terra, nem no céu; pois foste tu que fizeste todas as coisas. Como a obra pode discutir com o artífice? “Ó Deus, quem te é semelhante?” Eu, responde o infeliz Adão, e com Adão todos os homens. Querendo ser perversamente semelhante a ti, eis o que me tornei e por ti clamo de meu cativeiro. Eu que estava tão bem na sujeição a um bom rei, fiz-me cativo, subordinado a meu sedutor e clamo por ti, porque caí quando me afastei de ti. E quando foi que caí longe de ti? Ao procurar perversamente ser semelhante a ti. Mas, como? Deus não nos chama a ser semelhante a ele? Não foi ele quem disse:

Amai os vossos inimigos; e orai pelos que vos perseguem. Fazei bem as que vos odeiam?” Exprimindo-se assim, exorta-nos a sermos semelhantes a Deus. Enfim, o que acrescenta? “Deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus”.

Como é que ele age? Sem dúvida, do modo seguinte:

Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e cair a chuva sobre justos e injustos(Mt 5,44-45).

Na verdade, quem deseja o bem a seu inimigo é semelhante a Deus; isto não constitui orgulho, e sim obediência. Por quê? Porque fomos feitos à imagem de Deus.

Façamos, disse Deus, o homem à nossa imagem e semelhança(Gn 1,26).

Assim sendo, não é estranho mantermos em nós a imagem de Deus; oxalá não a percamos por soberba! Mas, como seria querer por soberba ser semelhante a Deus? Imaginemos o cativo a exclamar: Senhor, “quem te é semelhante?” Que seria uma semelhança perversa? Ouvi e entendei, se puderdes. Cremos, porém, que se nos fez dizer-vos tais coisas, vos dará também a capacidade de entenderdes. Deus não necessita de bem algum, mas ele é o bem sumo, e dele provêm todos os bens. Nós, de fato, para sermos bons precisamos de Deus. Deus, contudo, para ser bom, não precisa de nós; mas não somente de nós. Ele que operou “maravilhas até as supremas alturas”, não precisa dos seres celestes, nem dos supracelestes, nem do céu dos céus, como se diz, a fim de se tornar melhor, ou mais poderoso, ou mais feliz. Qual o ser, distinto dele, que existiria, se ele não o tivesse feito? Que pode precisar de ti aquele que existia antes de ti, e era tão poderoso, que te criou quando não existias? Ele te fez como os pais aos filhos? Eles geram por certa concupiscência carnal, mais do que criam; eles geram, mas Deus cria. Com efeito, se crias de igual modo, dize o que tua mulher dará à luz. Por que dizer: Declara tu? Diga-o ela que não sabe o que traz em si. todavia, os homens geram os filhos para seu consolo e socorro na velhice. Deus criou todas as coisas, a fim de ter auxílio na velhice? Deus conhece bem o que cria, o que é cada um por sua bondade, e como há de se tornar pela própria vontade. Deus o sabe muito bem e tudo dispôs. O homem que quiser ser alguma coisa, volta- se para aquele que o criou. Se ele se afasta, esfria-se; se de novo se aproxima, inflama-se. Ao se retirar, ele se obscurece; ao se aproximar, ilumana-se. Quem lhe dá o ser, dá-lhe também o bem-estar. Enfim, aquele filho mais novo, que quis ter em seu próprio poder os seus bens, muito bem conservados por seu pai, ao se apossar deles, partiu para um país longínquo, aderiu a um chefe malvado, apascentou porcos. A fome corrigiu aquele que se afastara, em sua soberba e saciedade (cf Lc 15,12-16).

Efetivamente, quem quiser tornar-se semelhante a Deus, de sorte a permanecer junto dele e guardar nele a sua força, como está escrito (cf Sl 58,10), dele não se aparte, e aderindo a ele como a cera ao anel terá a sua imagem e fará conforme a palavra:

Para mim a felicidade é me aproximar de Deus(Sl 72,28).

Este guarda, na verdade, a semelhança e a imagem, à qual foi feito. Ao invés, porém, se quiser imitar a Deus perversamente e assim como Deus não tem quem o plasme ou governe, queira usar de seu próprio poder, vivendo como Deus sem criador nem guia, que lhe restará, irmãos, senão, estando distante do calor do fogo, entorpecer afastando-se da verdade, cair na vaidade e abandonando o Deus sumo e imutável, piorar e perecer?



§ 7
Assim agiu o diabo: quis imitar a Deus, mas perversamente, não se submeter a seu poder e sim possuir o poder contra ele. O homem, sujeito ao preceito divino, ouviu a ordem de Deus:

Não toques”.

Em quê? Nesta árvore (cf Gn 2,17).

Que árvore é esta? Se é boa, por que não posso tocar? Se é má, que faz ela no paraíso? Com efeito, está no paraíso porque é boa; mas não quero que a toques. Por que razão não devo tocar? Por que quero ver-te obediente e não contraditor. Ó servo, serve-me deste modo; mas serve bem, ó servo. Servo, escuta primeiro a ordem de teu Senhor, e então entenderás o plano daquele que ordena. A árvore é boa, mas não quero que a toques. Por quê? Porque sou teu Senhor, e tu és servo. Toda a questão está aí. Se é pequena, desdenhas ser servo? Que há de útil para ti senão estar submisso ao Senhor? Como serás submisso ao Senhor, se não obedeces a sua ordem? Mas se é para teu bem ficar submisso ao Senhor e ao seu preceito, que é que Deus haveria de te mandar? Pede algo de ti? Há de te dizer: Oferece-me um sacrifício? Não foi ele quem fez todas as coisas, inclusive a ti? Ele há de te dizer: Presta-me serviços quando repouso no leito, quando tomo as refeições à mesa, quando me lavo nas termas? Como Deus não precisa de ti para nada, nada devia te ordenar? Se, porém, devia dar alguma ordem, a fim de que sentisses o que é um bem para ti, que és subordinado ao Senhor, alguma coisa haveria de te proibir; não devido à malícia daquela árvore, mas por causa de tua obediência. Deus não pôde mostrar de maneira mais perfeita que grande bem é a obediência, a não ser proibir uma coisa que não era má. Somente a obediência aqui tem a palma; só a desobe-diência aqui encontra castigo. É bom. Não quero que toques. Se não tocares, não morrerás por isso. Por acaso, quem fez esta proibição, retirou os outros bens? O paraí-so não estava cheio de árvores frutíferas? Que te falta? Não quero que toques nesta; não quero que proves dela. É boa, mas a obediência é melhor. Por conseguinte, se tocares, aquela árvore se tornará má, para morreres? Foi a desobediência que te sujeitou à morte, porque tocaste no fruto proibido. Por isso, aquela árvore foi denominada árvore da ciência do bem e do mal (cf Gn 2,17), mas não porque o bem e o mal pendessem dele, quais frutos seus; mas seja o que for que aquela árvore fosse, qualquer fosse a fruta, qualquer fosse seu produto, foi assim denominada porque o homem, que não quisesse discernir o bem do mal através do preceito, haveria de discerni-los pela experiência, de tal modo que tocando no fruto proibido, encontraria o castigo. Por que, então, ele tocou, meus irmãos? Que lhe faltava? Quisera saber o que lhe faltava no paraíso, no meio da opulência, das delícias, da grande delícia que consistia na visão de Deus, cuja presença o atemorizou, como a um inimigo, depois do pecado. Que lhe faltara para que tocasse, senão que quis usar de seu próprio poder, agradou-lhe transgredir o preceito, de modo que sem ter ninguém que o dominasse, se tornasse como Deus, visto que a Deus ninguém domina? Perversamente fugitivo, presunçoso, destinado à morte, deixou o caminho da justiça. Transgrediu o preceito, sacudiu da cerviz o jugo da disciplina, rompeu os freios do governo, levado por sua impetuosidade. Onde se encontra agora? Sem dúvida, grita em seu cativeiro: Senhor, “quem te é semelhante?” Quis ser perversamente semelhante a ti e se fez semelhante aos animais. Sob teu domínio, obediente a teu preceito era, na verdade, semelhante. Mas o homem, entre honrarias, não entendeu. Foi comparado aos jumentos irracionais, e se lhes fez semelhante (cf Sl 48,13).

Já semelhante aos jumentos, grita tardiamente e dize:

Ó Deus, quem te é semelhante?



§ 8
Muitas e penosas tribulações me fizeste experimentar”! Merecidamente, servo orgulhoso! Quiseste perversamente ser semelhante a teu Senhor, tu que foste feito à imagem de teu Senhor. Queres sentir-te bem, estando afastado daquele bem? Com razão Deus te dirá: Se te apartas de mim e assim tu te sentes, então não sou o teu bem. Em conseqüência disso, se Deus é bom, o sumo bem, bom por si mesmo e não por causa de um bem alheio, o nosso bem supremo, uma vez que dele te afastas, que serás a não ser mau? E ainda, se ele é a nossa bem-aventurança, que haverá fora dele para quem se afasta senão miséria? Volta, pois, deste estado miserável e dize:

Senhor, quem te é semelhante? Muitas e penosas tribulações me fizeste experimentar”.



§ 9
20.21 Mas foi um ensinamento; admoestação, não deserção. Enfim, o que diz o salmista, em ação de graças? “Mas voltando-te para mim, deste-me a vida e recondu-ziste-me novamente dos abismos da terra”.

Quando aconteceu isto anteriormente? Por quê:

novamente?” Caíste das alturas, ó homem, escravo desobediente, soberbo contra o Senhor, caíste! Aconteceu contigo o seguinte:

Aquele que se exalta será humilhado”; e agora faça-se em ti:

Quem se humilha será exaltado(Lc 14,11).

Volta das profundezas. Responde o salmista: Volto; volto, reconheço:

Ó Deus, quem te é semelhante? Muitas e penosas tribulações me fizeste experimentar, mas voltando-te para mim deste-me vida e reconduziste-me novamente dos abismos da terra”.

Ouço dizer: Entendemos. Pois, reconduziste dos abismos da terra; reconduziste das profundezas e da imersão no pecado. Mas por quê:

novamente?” Quando isso já sucedera? Continuemos. Talvez os versículos finais dos próprio salmo nos exponham o que ainda não entendemos; por que o salmista disse:

novamente”.

Então, vamos ouvir:

Muitas e penosas tribulações me fizeste experimentar! mas voltando-te para mim deste-me vida e reconduziste-me novamente dos abismos da terra”.

Como prossegue? “Manifestaste-me por muitos modos a tua justiça e te voltaste para consolar-me e reconduziste-me dos abismos da terra”.

Eis outro “novamente”.

Se tivermos dificuldade com o primeiro, como resolver a questão da duplicação do termo? A própria expressão:

novamente” já é duplicada, e ainda se repete o “novamente”.

Assista-nos aquele que concede a graça; assista-nos o braço que anunciamos a toda geração vindoura; assista-nos ele próprio, e revele-nos o mistério oculto, abrindo-o com a chave de sua cruz. Não foi inutilmente que o véu do templo foi rasgado pelo meio ao ser ele crucificado (cf Mt 27,51); por sua paixão os segredos de todos os mistérios se manifestaram. Assista-nos, portanto, ele próprio pois passamos para seu lado; seja retirado o véu (cf 2Cor 3,16); diga-nos nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a razão por que precedeu esta palavra do profeta:

Muitas e penosas tribulações me fizeste experimentar! Mas voltando-te para mim deste-me vida e reconduziste-me novamente dos abismos da terra”.

Aí está o primeiro:

novamente”; vejamos o sentido do termo e encontraremos a razão do segundo:

novamente”.



§ 10
Que é o Cristo? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito”.

Coisa grandiosa! Imensa! E tu, cativo? Onde jazes? Na carne, sob o império da morte. Quem, pois, é ele? Quem és tu? E o que se tornou depois? Por causa de quem? Quem é ele, senão o que foi dito:

o Verbo?” Que Verbo? Talvez soe e passe? O Verbo, Deus que estava com Deus; o Verbo pelo qual tudo foi feito. E o que se fez ele por tua causa? “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós(Jo 1,1.2.3.14).

Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo com ele”? (Rm 8,32).

Eis: o que, quem, por causa de quem. O Filho de Deus feito carne por causa do homem pecador, do homem iníquo, do desertor, do soberbo, do perverso imitador de seu Deus! Fez-se ele o que tu és, filho do homem, a fim de que nos tornássemos filhos de Deus! Fez-se carne; de onde lhe veio a carne? De Maria virgem (cf Lc 2,7).

E de onde se origina Maria virgem? De Adão. Por conseguinte, daquele primeiro cativo; e a carne de Cristo proveio daquela massa de cativos. E por que isto? Para dar exemplo. Recebeu de ti a natureza, segundo a qual morreria por ti; recebeu de ti o que haveria de oferecer por ti, dando-te um exemplo. O que te ensinaria? Que haveria de ressuscitar. Como acreditarias, se não houvesse um exemplo precedente, relativo à carne que fora assumida da mesma natureza mortal que a tua? Na verdade, em Cristo ressuscitamos primeiro, porque quando ele ressuscitou, ressuscitamos nós também. O Verbo não morreu e ressuscitou; mas a carne, que o Verbo assumiu, morreu e ressuscitou. Assim morreu Cristo e assim também hás de morrer; mas Cristo assim ressuscitou e igualmente tu hás de ressuscitar. Seu exemplo ensina o que não deves temer, o que deves esperar. Temias a morte: ele morreu. Não esperavas a ressurreição: ele ressuscitou. Mas, podes dizer-me: Ele ressuscitou; e eu? Mas, ele ressuscitou na natureza que recebeu de ti, por tua causa. Por conseguinte, a tua natureza nele te precedeu. Assumida de ti, subiu antes de ti; nela tu igualmente subiste. Pois, ele subiu primeiro, e nele nós subimos, porque aquela carne era do gênero humano. Assim pela ressurreição de Cristo, fomos reconduzidos dos abismos da terra. Ao ressuscitar Cristo, portanto, “reconduziste-me dos abismos da terra”.

Ao acreditarmos, porém, em Cristo “reconduziste-me novamente dos abismos da terra”.

Aqui está uma vez “novamente”.

Escuta a declaração do Apóstolo sobre a realização disso:

Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra(Cl 3,1.2).

Logo, ele nos precedeu; também nós já ressuscitamos, mas só em esperança. Escuta o mesmo Apóstolo a dizer:

Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo”.

Ainda gemes, ainda esperas. Qual o dom que Cristo te concedeu? Ouve o seguinte:

Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,23-25).

Fomos recondu-zidos, portanto, “novamente” dos abismos em esperança. Por que:

novamente?” Porque Cristo já nos precedera. Mas como ressurgiremos realmente, agora vivemos na esperança, agora andamos à luz da fé. Fomos recondu-zidos dos abismos da terra, acreditando naquele que antes de nós ressuscitou, vindo dos abismos da terra. Nossa alma ressuscitou da iniqüidade da infidelidade, e em nós se realizou certa ressurreição primeira através da fé. Mas, se for somente esta, como é que o Apóstolo afirma:

Suspirando pela redenção de nosso corpo?” E como é que assegura em outra passagem:

O corpo está morto, pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós(Rm 8,10.11)? Logo, já ressuscitamos pela mente, pela fé, pela esperança, pela caridade; mas resta ainda ressuscitarmos corporalmente. Ouviste um “novamente”; ouviste o segundo “novamente”.

O primeiro “novamente”, por causa de Cristo, que nos precedeu; e o segundo, ainda em esperança, o que resta obter na realidade.

Manifestaste-me por muitos modos a tua justiça”.

Fiéis, naqueles que ressuscitaram primeiro em esperança.

Manifestaste-me por muitos modos a tua justiça”.

A esta mesma justiça pertencem também os castigos; “com efeito, é tempo de começar o juízo pela casa de Deus(1Pd 4,17), diz Pedro, isto é, um de seus santos. Pois o Senhor castiga todo filho que ele acolhe (cf Pr 3,12; Hb 12,6).

Manifestaste-me por muitos modos a tua justiça”, porque não poupaste nem mesmo os filhos. Não deixaste de ensinar àqueles aos quais reservavas a herança eterna.

Manifestaste-me por muitos modos a tua justiça e te voltaste para consolar-me”.

Quanto ao corpo que há de ressuscitar no fim, “recondu-ziste-me novamente dos abismos da terra”.



§ 11
22 “Por isso também glorificarei ao som dos instrumentos para os salmos a tua verdade”.

Instrumento para acompanhar os salmos é o saltério. Mas o que é o saltério? É um instrumento de madeira com cordas. Que significa? Há uma diferença entre ele e a cítara. Os que entendem do assunto dizem que a diferença é a seguinte: a cavidade de madeira sobre a qual as cordas são esticadas para ressoarem acha-se na parte superior do saltério e na parte inferior da cítara. E como o espírito é do alto e a carne da terra, parece que o saltério representa o espírito, e a cítara a carne. Como eu havia dito que houve duas reconduções dos abismos da terra, uma segundo o espírito em esperança e outra segundo o corpo na realidade, ouve a referência às duas:

Por isso também glorificarei ao som dos instrumentos para os salmos a tua verdade”.

Isto quanto ao espírito; e quanto ao corpo? “Salmodiarei com a cítara a ti, ó santo de Israel”.



§ 12
23.24. Ouve ainda, por causa dos “novamente e novamente. A alegria estará em meus lábios, ao te cantar”.

Visto que se costuma referir a palavra lábios ao homem interior e exterior, é ambíguo o sentido da palavra aqui; por isso, continua o salmista:

e em minha alma que resgataste”.

Por conseguinte, que diremos dos lábios interiores daqueles que se salvaram em esperança, dos que foram reconduzidos dos abismos da terra na fé e na caridade, esperando ainda, no entanto, “a redenção de nosso corpo?” Já disse o salmista:

e em minha alma que resgataste”.

No intuito, contudo, de não pensares que só a alma foi resgatada, sobre a qual ouviste agora o primeiro:

novamente”, diz o salmista:

Também”, contudo. Refere-se a quem este também? “Também minha língua discorrerá sobre tua justiça”; portanto, a língua membro do corpo.

Todos os dias”, isto é, na eternidade sem fim. Mas, quando será isto? No fim do mundo, na ressurreição dos corpos, na transformação para o estado angélico. Como se prova que se trata do fim do mundo:

Também minha língua discorrerá sobre tua justiça todos os dias? Quando os que procuravam a minha desgraça forem confundidos e envergonhados”.

Quando ficarão confundidos, quando ficarão envergonhados, a não ser no fim do mundo? De duas maneiras serão confundidos: ou quando acreditarem em Cristo, ou quando ele vier. Pois, enquanto a Igreja está na terra, enquanto geme o trigo no meio das palhas, enquanto gemem as espigas entre o joio, enquanto gemem os vasos de misericórdia no meio dos vasos da ira (cf Mt 3,12; 13,30; 11 2Tm 2,20) sofrendo injúrias, enquanto geme o lírio no meio dos espinhos não faltarão os inimigos que digam:

Quando há de morrer e de extinguir-se o seu nome(Sl 40,6).

Quer dizer: Virá tempo em que eles acabarão e não existirão mais os cristãos. Como começaram em determinada época, assim durarão até certo tempo. Eles assim se exprimem, e morrerão para sempre; mas a Igreja permanece, anunciando a força do braço do Senhor a toda geração vindoura. Virá finalmente o próprio Cristo em sua glória. Ressurgirão todos os mortos, cada qual com a sua própria causa a ser julgada. Serão separados os bons à direita, os maus à esquerda (cf Mt 25,33), e serão confundidos os que insultavam, envergonhados os que zombavam. E assim minha língua depois da ressurreição discorrerá sobre tua justiça, todos os dias sobre teu louvor, “quando os que procuravam a minha desgraça forem confundidos e envergonhados”.

1 Cf Com. Sl 82,1.