SALMO 𝟞𝟡

Não sejam envergonhados por minha causa aqueles que esperam em ti,

ó Senhor Deus dos exércitos; não sejam confundidos por minha causa aqueles que te buscam, ó Deus de Israel.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 69


§ 69:1  Salva-me, ó Deus, pois as águas me sobem até o pescoço.

§ 69:2  Atolei-me em profundo lamaçal, onde não se pode firmar o pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me submerge.

§ 69:3  Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem de esperar por meu Deus.

§ 69:4  Aqueles que me odeiam sem causa são mais do que os cabelos da minha cabeça; poderosos são aqueles que procuram destruir-me, que me atacam com mentiras; por isso tenho de restituir o que não extorqui.

§ 69:5  Ŧ Tu, ó Deus, bem conheces a minha estultícia, e as minhas culpas não são ocultas.

§ 69:6  Ɲ Não sejam envergonhados por minha causa aqueles que esperam em ti, ó Senhor Deus dos exércitos; não sejam confundidos por minha causa aqueles que te buscam, ó Deus de Israel.

§ 69:7  Porque por amor de ti tenho suportado afrontas; a confusão me cobriu o rosto.

§ 69:8  Ŧ Tornei-me como um estranho para os meus irmãos, e um desconhecido para os filhos de minha mãe.

§ 69:9  Pois o zelo da tua casa me devorou, e as afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim.

§ 69:10  Quando chorei e castiguei com jejum a minha alma, isto se me tornou em afrontas.

§ 69:11  Quando me vesti de cilício, fiz-me para eles um provérbio.

§ 69:12  Aqueles que se sentem à porta falam de mim; e sou objeto das cantigas dos bêbedos.

§ 69:13  Eu, porém, faço a minha oração a ti, ó Senhor, em tempo aceitável; ouve-me, ó Deus, segundo a grandeza da tua benignidade, segundo a fidelidade da tua salvação.

§ 69:14  Ŧ Tira-me do lamaçal, e não me deixes afundar; seja eu salvo dos meus inimigos, e das profundezas das águas.

§ 69:15  Ɲ Não me submerja a corrente das águas e não me trague o abismo, nem cerre a cova a sua boca sobre mim.

§ 69:16  Ouve-me, Senhor, pois grande é a tua benignidade; volta-te para mim segundo a tua muitíssima compaixão.

§ 69:17  Ɲ Não escondas o teu rosto do teu servo; ouve-me depressa, pois estou angustiado.

§ 69:18  Aproxima-te da minha alma, e redime-a; resgata-me por causa dos meus inimigos.

§ 69:19  Ŧ Tu conheces o meu opróbrio, a minha vergonha, e a minha ignomínia; diante de ti estão todos os meus adversários.

§ 69:20  Afrontas quebrantaram-me o coração, e estou debilitado. Esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei.

§ 69:21  Ɗ Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre.

§ 69:22  Ŧ Torne-se a sua mesa diante deles em laço, e sejam-lhes as suas ofertas pacíficas uma armadilha.

§ 69:23  Obscureçam-se-lhes os olhos, para que não vejam, e faze com que os seus lombos tremam constantemente.

§ 69:24  Ɗ Derrama sobre eles a tua indignação, e apanhe-os o ardor da tua ira.

§ 69:25  Ƒ Fique desolada a sua habitação, e não haja quem habite nas suas tendas.

§ 69:26  Pois perseguem a quem afligiste, e aumentam a dor daqueles a quem feriste.

§ 69:27  Acrescenta iniqüidade à iniqüidade deles, e não encontrem eles absolvição na tua justiça.

§ 69:28  Sejam riscados do livro da vida, e não sejam inscritos com os justos.

§ 69:29  Eu, porém, estou aflito e triste; a tua salvação, ó Deus, me ponha num alto retiro.

§ 69:30  Ł Louvarei o nome de Deus com um cântico, e engrandecê-lo-ei com ação de graças.

§ 69:31  Isto será mais agradável ao Senhor do que um boi, ou um novilho que tem pontas e unhas.

§ 69:32  Vejam isto os mansos, e se alegrem; vós que buscais a Deus reviva o vosso coração.

§ 69:33  Porque o Senhor ouve os necessitados, e não despreza os seus, embora sejam prisioneiros.

§ 69:34  Ł Louvem-no os céus e a terra, os mares e tudo quanto neles se move.

§ 69:35  Porque Deus salvará a Sião, e edificará as cidades de Judá, e ali habitarão os seus servos e a possuirão.

§ 69:36  E herdá-la-á a descendência de seus servos, e os que amam o seu nome habitarão nela.


O SALMO 69


SERMÃO 💬

§ 1
2 Graças sejam dadas ao grão de trigo por ter querido morrer e multiplicar-se (cf Jo 12,25); graças ao único Filho de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que se dignou sofrer a morte como nós, a fim de nos tornar dignos de sua vida. Eis que ele ficou sozinho, até que passasse, conforme se diz em outro salmo:

Estou só, até que passe(Sl 140,10).

Era um grão isolado que continha em si imensa fecundidade. Alegremo-nos por causa de tantos grãos que imitaram sua paixão, quando celebramos o aniversário do nascimento para o céu dos mártires! Por conseguinte, muitos de seus membros, unidos pelo vínculo da caridade e da paz, sob a direção de uma só Cabeça, nosso próprio Salvador, como sabeis, pois o ouvistes com freqüência, formam um só homem. E a voz deles, como a de um só homem, ressoa muitas vezes nos salmos. Clama um só, como se fossem todos, porque todos se acham naquele único homem, como sendo um só. Ouçamos, portanto, que os mártires padeceram e no meio de furiosas tempestades de ódio correram perigo neste mundo; não tanto em relação ao corpo, que um dia deixariam, mas por causa da própria fé, que podia desfalecer. Talvez cedessem às fortes dores causadas pelas perseguições, ou pelo amor à vida presente, perdendo o prêmio prometido por Deus. Este lhes tirara todo medo, não somente por palavra, mas por exemplo. Pela palavra, ao exortar:

Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma(Mt 10,28).

Pelo exemplo, fazendo o que ordenou em palavras, de sorte que não quisessem evitar as mãos dos que flagelavam, nem os tapas dos que feriam, nem a saliva dos que cuspiam, nem a coroa de espinhos, nem a cruz dos que matavam. Nada disso ele quis evitar, embora para ele não fosse necessário, mas por causa daqueles que disso precisavam. Tornava-se ele próprio medicamento para os doentes. Por conseguinte, os mártires sofreram; e se não estivesse com eles sempre aquele que disse:

Eis que estou convosco até a consumação dos séculos(Mt 28,20), sem dúvida fracassariam.



§ 2
Encontra-se, pois, neste salmo a voz dos atribulados; de fato, dos mártires em perigo no meio dos padecimentos, mas confiantes em sua Cabeça. Ouçamo-los e falemos unidos a eles com todo o afeto do coração, apesar de não lhes sermos semelhantes na paixão. Pois, eles já estão coroados e nós ainda periclitamos. Não nos oprimem perseguições tais quais os oprimiram; mas são talvez piores, no meio de tantas espécies de variados escândalos. Em nosso tempo são mais abundantes aqueles “Ais” que o Senhor proferiu:

Ai do mundo por causa dos escândalos! E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará(Mt 18,7; 24,12).

Nem aquele santo Ló, em Sodoma, sofria alguma perseguição corporal, ou fora-lhe dito que lá não morasse; perseguição para ele foram os pecados dos sodomitas (cf Gn 19).

Agora, pois, quando Cristo já está sentado no céu, já está glorificado, já submeteu as cervizes dos reis a seu jugo, e colocou em suas frontes o sinal da cruz, quando já não resta quem ouse atacar publicamente os cristãos, ainda gememos entre os instrumentos de música e as flautas; ainda os inimigos dos mártires, uma vez que não podem persegui-los com gritos e espadas, perseguem-nos com uma dissolução. E oxalá lastimássemos isto apenas nos pagãos! Seria certo alívio aguardar que os não ainda assinalados com a cruz de Cristo, sejam assinalados e deixem sua fúria, presos pela autoridade de Cristo. Vemos mesmo os que trazem na fronte o sinal da cruz, com este trazer na própria face a marca de uma vida dissoluta; nos dias e solenidades dos mártires, em vez de exultarem, eles insultam. No meio destes gememos, e nisso consiste a nossa perseguição, se temos aquela caridade que assim se expressa:

Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem cai, sem que eu me abrase?(2 Cor 11,29) Não há, pois, servo de Deus que não passe por perseguição; é bem verdade a palavra do Apóstolo:

Aliás, todos os que quiserem viver com piedade em Cristo serão perseguidos(2 Tm 3,12).

Verás onde, verás como; o diabo apresenta-se com dois aspectos diferentes. É leão em seu ímpeto, e é dragão nas insídias. Leão que ameaça, e é inimigo; dragão que arma ciladas, e é inimigo. Quando estaremos nós seguros? Mesmo que todos se tornem cristãos, acaso o diabo será cristão? Ele não cessa de tentar; não deixa de armar ciladas. Ele está refreado e preso no coração dos ímpios, a fim de não atacar com fúria a Igreja e não fazer quanto quer. Os ímpios rangem os dentes contra a dignidade da Igreja e a paz dos cristãos, e como não podem satisfazer sua fúria arrastando os corpos dos cristãos, por danças, blasfêmias, impurezas, dilaceram as almas dos cristãos. Clamemos, portanto, numa só voz, todos nós, estas palavras:

Deus, vem em meu auxílio”.

Precisamos sempre de auxílio neste mundo. E quando não? Agora, contudo, estando principalmente em tribulações, digamos:

Deus, vem em meu auxílio”.



§ 3
3 “Cubram-se de confusão e de vergonha os que buscam tirar-me a vida”.

É Cristo quem fala. Quer seja a Cabeça, quer o corpo, é ele quem fala:

Por que me persegues?(At 9,4).

É ele quem diz:

Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,40).

É conhecida a voz deste homem, do homem total, Cabeça e corpo; não é preciso lembrá-lo mais vezes, porque é notória. Diz o salmo:

Cubram-se de confusão e de vergonha os que buscam tirar-me a vida”.

Em outro salmo declara:

Olhava à direita e examinava, e não havia quem me conhecesse. Faltou-me todo meio de escapar e não há quem cuide de minha vida(Sl 141,5).

Afirma que entre os perseguidores não havia quem cuidasse de sua vida; aqui, porém, neste salmo:

Cubram-se de confusão e de vergonha os que buscam tirar-me a vida”.

Queixava-se de não ser procurado como exemplo; gemia porque era buscado para ser oprimido. Procuras a alma do justo, quando pensas em imitá-lo; e procuras a alma do justo, cogitando como matá-lo. Uma vez que há duas maneiras de procurar a vida do justo, em cada um desses salmos encontram-se uma ou outra. Naquele salmo queixa-se porque não existe quem o procure para imitar seus sofrimentos; neste, porém:

Cubram-se de confusão e de vergonha os que buscam tirar-me a vida”.

Procuram sua vida, mas não para terem duas. Não buscavam sua vida da maneira pela qual o ladrão procura a túnica do viajante; ele o mata, para expoliá-lo e ter a sua túnica. Quem, porém, persegue para matar, tira a vida, mas não se reveste dela. Eles procuram minha vida, querem matar-me. E tu, que lhe desejas? “Cubram-se de confusão e de vergonha”.

E onde fica o que ouviste de teu Senhor:

Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem”? (Mt 5,44).

Eis que sofres perseguição, e maldizes aqueles que te fazem sofrer. Como é que imitas a paixão precedente de teu Senhor, que dizia da cruz:

Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem”? (Lc 23,34).

O mártir responde aos que assim replicam: Propuseste-me o exemplo do Senhor que pediu:

Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem”; reconhece também a minha voz, para que se torne igualmente tua. Como me referi a meus inimigos? “Cubram-se de confusão e de vergonha”.

Tal vingança já se efetuou nos inimigos dos mártires. Aquele Saulo que perseguiu Estêvão, ficou confundido e envergonhado. Respirava morticínios, procurava os que havia de arrastar e matar. Tendo ouvido do alto a voz:

Saulo, Saulo, por que me persegues?” Foi confundido e prostrado, e levantou-se para obedecer aquele que era ardoroso em perseguir (cf At 7,57; 9,1.4.6).

Enquanto não ficam confundidos e envergonhados, necessariamente defendem seus atos. Consideram uma glória prender, amarrar, flagelar, matar, saltar, insultar. De todas essas ações um dia hão de se confundir e envergonhar. Se, portanto, se confundem e se convertem, uma vez que não podem se converter se não se cobrirem de confusão e de vergonha, optemos isso para nossos inimigos; desejemo-lo com segurança. Eis o que disse, e convosco direi: todos os que ainda saltam e cantam e insultam os mártires, “cubram-se de confusão e de vergonha”; que um dia, dentro dessas paredes, batam no peito, cheios de confusão.



§ 4
4 “Voltem-se para trás e fiquem envergonhados os que planejam males para mim”.

Anteriormente houve o ímpeto dos perseguidores; agora permaneceu a malevolência dos que planejam o mal. A Igreja, de fato, passa por épocas distintas de perseguição. Atacava-se a Igreja, quando eram os reis que perseguiam. E como estava predito que os reis haveriam de perseguir e de acreditar depois, uma parte se realizou, e a outra se seguiu. Aconteceu o que era conseqüente. Os reis acreditaram, a Igreja ficou em paz, a Igreja chegou ao cume das dignidades, mesmo nesta terra, mesmo nesta vida. Mas não faltam os ataques dos perseguidores. Seus ataques se transformaram em planos. Nesses, o diabo está como que preso no abismo (cf Ap 20,2); enfurece-se, mas não ataca. Foi afirmado acerca desta época da Igreja:

O pecador verá e se irritará”.

Que fará? Por acaso o mesmo que anteriormente? Arrasta, prende, fere? Não; isso não. E então? “Rangerá os dentes e se consumirá(Sl 111,10).

Parece, então, que o mártir se encoleriza contra eles; contudo, em seu favor reza o mártir. Como o salmista desejava o bem daqueles sobre os quais disse:

Cubram-se de confusão e de vergonha os que buscam tirar-me a vida”, assim igualmente neste versículo:

Voltem-se para trás e fiquem envergonhados os que planejam males contra mim”.

Para quê? Para não precederem, e sim seguirem. Aquele que reprova a religião cristã e quer viver a seu arbítrio, de certo modo quer ir à frente de Cristo; parece-lhe que este errou, foi sem valor e fraco, por ter querido ou podido sofrer nas mãos dos judeus. Pensa que ele próprio é sensato e prudente, por ser cordato, evitando estes males, escapando da morte, mentindo malignamente para não morrer, matando sua alma para viver corporalmente. Precede a Cristo, reprovando-o; parece ir a sua frente. Creia em Cristo e siga-o. O próprio Senhor disse a Pedro o que é agora desejável a esses perseguidores que planejam o mal. Efetivamente, Pedro quis em certo momento preceder o Senhor. O Salvador falava sobre sua paixão, e que se não a aceitasse, não nos salvaríamos. Pedro, porém, que pouco antes havia confessado que ele era o Filho de Deus, e por causa desta confissão recebera a denominação de Pedra, sobre a qual seria edificada a Igreja, ao falar logo em seguida o Senhor acerca de sua futura paixão, replicou:

Deus não o permita, Senhor! Isto jamais te acontecerá! Imediatamente antes: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus;” e agora, de repente:

Para trás, Satanás!” Que significa:

Para trás?” Segue-me. Queres me preceder, queres aconselhar-me; é melhor que sigas o meu conselho, a saber: Para trás, vem atrás de mim. Repreende o que vai à frente para que volte e fique atrás; chama-o de Satanás, porque quer preceder o Senhor. Anteriormente:

Bem-venturado”, agora:

Satanás”.

Por que acima:

Bem-aventurado? Porque não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus”.

E de onde, agora:

Satanás? Porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens(cf Mt 16,16-23).

Nós que queremos celebrar dignamente a festa dos mártires, desejemos imitá-los. Não procuremos precedê-los, e pensar que somos mais prudentes porque evitamos os sofrimentos em prol da justiça e da fé, que eles não evitaram. Por isso, aqueles que planejam o mal e alimentam seus corações com a impureza, “voltem-se para trás e fiquem envergonhados”.

Ouçam o Apóstolo a dizer em seguida:

E que fruto colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais”? (Rm 6,21).



§ 5
Como continua o salmo? “Retirem-se imediatamente rubros de confusão os que me dizem: Bem feito, bem feito”.

Há duas espécies de perseguidores: os que criticam e os que adulam. Mais persegue a língua do adulador do que a mão do carrasco; pois a Escritura a denomina também fornalha. Certamente há na Escritura a respeito da perseguição:

Examinou-os como o ouro no crisol(Sb 3,6) (tratando dos mártires que foram mortos)e aceitou-os como perfeito holocausto(Sb 3,6).

Ouve como a língua dos aduladores é desta espécie:

Há fornalha para a prata e forno para o ouro e o homem é provado pela boca dos que o louvam(cf Pr 27,21).

Este e aquele são fogo; de ambos precisas sair ileso. Se ficas alquebrado pelas censuras, arrebentaste na fornalha como um vaso de barro. A palavra te plasmou, e veio a tentação da tribulação. Importa seja queimado o vaso depois de plasmado; se está bem feito, vai para o forno para se consolidar. Daí dizer o Senhor na paixão:

Minha força secou-se qual vaso de argila(Sl 21,16).

A paixão e o crisol da tribulação o fizeram mais forte. De outro lado, se és elogiado por aduladores e cordatos, e concordares com eles, como se quisesse comprar o óleo que não trazias contigo, à maneira daquelas cinco virgens estultas (cf Mt 25,3), será uma fornalha, que te fará arrebentar, a boca dos que te elogiam. Mas não podemos evitar essas coisas. Temos de entrar em uma delas e sair dali. Entremos no meio das censuras dos mais, em certo consenso dos aduladores; mas precisamos sair dali. Rezemos àquele do qual foi dito:

Guarde-te o Senhor à entrada e à saída(Sl 120,8), a fim de que entrando íntegro, saias íntegro. Pois, afirma o Apóstolo:

Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Ouviste qual a entrada; ouve qual a saída:

Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar(1 Cor 10,13).

Por isso, também eles “retirem-se imediatamente rubros de confusão os que dizem: Bem feito, bem feito”.

Por que razão eles me louvam? Louvem a Deus. Pois, quem sou eu, para ser louvado por mim mesmo? Ou que fiz eu? Que tenho que não tenha recebido? “E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?(1 Cor 4,7).

Retirem-se imediatamente rubros de confusão os que me dizem: Bem feito, bem feito”.

A cabeça dos hereges está bem ungida com este óleo (cf Sl 140,5), quando declaram: Sou eu, sou eu. Responde-se-lhes: Tu, ó Senhor, és. Tomaram para si o dito:

Bem feito, bem feito”; e os que os seguiram:

Bem feito, bem feito”.

Cegos que são fizeram-se guias dos cegos que os seguiram (cf Mt 15,14).

Abertamente cantam em louvor a Donato:

Bem feito, bem feito”, bom chefe, chefe excelente. Mas, ele não replicou:

Retirem-se imediatamente rubros de confusão os que me dizem: Bem feito, bem feito”.

Não os corrigiu, para dizerem a Cristo: Bom chefe, chefe excelente. O Apóstolo, ao invés, temendo o “bem feito” dos homens, e no intuito de ser louvado com verdade em Cristo, não quis que o louvassem em lugar de Cristo. Quando alguns afirmavam:

Eu sou de Paulo!” respondeu com a liberdade que dá o Senhor:

Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo?(1 Cor 1,12.13).

Por conseguinte, digam os mártires na perseguição até mesmo aos aduladores:

Retirem-se imediatamente rubros de confusão os que me dizem: Bem feito, bem feito”.



§ 6
5 E que acontece quando eles se retiram rubros de confusão, sejam os que buscam tirar-me a vida, ou os que planejam males contra mim, ou os que por benevolência perversa e simulada, querem cobrar por meio de palavras suaves os que vão ferir? Que acontecerá quando se retirarem confusos? “Exultem e rejubilem em ti”, não em mim, não neste ou naquele; mas naquele que os transformou de trevas em luz.

Exultem e rejubilem em ti todos os que te procuram”.

Uma coisa é procurar a Deus e outra procurar um homem.

Rejubilem em ti os que te procuram”.

Não rejubilarão os que se procuram, e que procuraste antes que te procurassem. Aquela ovelha ainda não buscava o pastor; desgarrara-se do rebanho e o pastor desceu até onde ela estava: procurou-a e carregou-a aos ombros (cf Lc 15,4.5).

Será que te desprezará, ó ovelha que curas quem primeiro te procurou quando o desprezavas e não o buscavas? Por isso, começa agora a procurar aquele que foi o primeiro a te procurar e carregou-te aos ombros. Faze o que ele disse:

Minhas ovelhas escutam a minha voz e elas me seguem(Jo 10,27).

Se, de fato, procuras a quem te procurou primeiro, e se te transformas em ovelha dele, e ouves a voz de teu pastor e o segues, nota o que ele te mostrou de si mesmo, o que mostrou de seu corpo, para não errares a seu respeito, nem acerca da Igreja e a fim de que ninguém te assegure: Ele é o Cristo, a respeito de quem não é Cristo; ou: esta é a igreja, enquanto não é a Igreja. Muitos afirmaram que Cristo não teve carne, nem que Cristo ressuscitou corporalmente. Não sigas suas palavras. Ouve a voz do próprio pastor, que se revestiu de carne a fim de procurar a carne que se perdera. Ele ressuscitou e disse:

Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”.

Mostrou-se a ti; segue a sua voz. Mostrou também a Igreja. Ninguém te engane com aparências de uma igreja.

Era preciso que o Cristo sofresse e ressuscitasse dos mortos ao terceiro dia, e que em seu nome fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém(Lc 24,39.46.47).

Tens a voz de teu pastor; não sigas a voz dos estranhos. Não terás medo de ladrão, se seguires a voz do pastor. Como, porém, seguirás? Não dizendo a alguém, exaltando seus méritos:

Bem feito, bem feito”, nem ouças isto com alegria, a fim de que o óleo do pecador não unja tua cabeça (cf Sl 140,5).

Exultem e rejubilem em ti todos os quem te procuram e digam”.

Que dirão os que exultam? “Sempre glorificado seja o Senhor”.

Digam-no todos os que exultam e te procuram. O quê? “Sempre glorificado seja o Senhor, todos os que amam a tua salvação”.

Não apenas:

seja glorificado o Senhor”, mas ainda:

sempre”.

Eis que erravas, e te asfastaras dele. Ele te chamou:

glorificado seja o Senhor”.

Ele ainda te inspirou a confissão de teus pecados. Confessaste e ele perdoou:

glorificado seja o Senhor”.

Já começaste a viver na justiça; penso que de certo modo já és justo e tu te glorias. Com efeito, quando estavas no erro e ele te chamou, o Senhor devia ser glorificado; quando perdoou os pecados ao confessares, devia ser glorificado; e agora, já começaste a progredir por meio da audição da palavra de Deus, já foste glorificado, chegaste a certa excelência de virtude; és digno de também seres um pouco glorificado.

Digam: Sempre glorificado seja o Senhor”.

És pecador; “seja glorificado” para te chamar. Confessas; “seja glorificado” a fim de que perdoe. Já vives com justiça; “seja glorificado” a fim de que te dirija. Perseveras até o fim; seja glorificado para que glorifique.

Sempre”, portanto, “seja glorificado o Senhor. Digam-no os justos, digam-no os que o buscam. Quem assim não se exprime não o procura.

Seja glorificado o Senhor”.

Exultem e rejubilem todos os que o procuram” e digam:

Sempre seja glorificado o Senhor, todos os que amam a sua salvação”.

A salvação deles vem de Deus, não de si mesmos. Salvação do Senhor nosso Deus, Salvador é nosso Senhor Jesus Cristo. Quem ama o Salvador confessa que foi curado. E quem confessa que foi curado, confessa que estava doente.

Digam”, portanto:

Sempre glorificado seja o Senhor”, todos os que amam a tua salvação; não a sua salvação, como se eles mesmos se salvassem; não como salvação de um homem, como se este pudesse salvar.

Não confieis nos príncipes, nos filhos dos homens que não podem salvar(Sl 145,2.3).

Por que isto? “Do Senhor vem a salvação. Sobre o teu povo, a tua bênção(Sl 3,9).

Por conseguinte, “Sempre glorificado seja o Senhor”.

Quem é que assim se exprime? “Os que amam a tua salvação”.



§ 7
6 Eis que “o Senhor seja glorificado”.

E tu, nunca, em parte alguma? Nele, um tanto, em mim mesmo nada. Tu, como és, então? “Eu, porém, sou desvalido e pobre”.

Ele é rico, ele está na fartura, ele de nada precisa. Esta é a minha luz, ele me ilumina. Por isso, clamo:

Senhor, fazes brilhar a minha lâmpada; iluminarás, meu Deus, as minhas trevas(Sl 17,29).

O Senhor solta os grilhões dos cativos; o Senhor levanta os caídos. O Senhor torna sábios os cegos; o Senhor protege os prosélitos(Sl 145,7).

E tu? “Eu, porém, sou desvalido e pobre”.

Sou como um órfão. Minha alma, como uma viúva acha-se desprovida e desolada. Procuro um auxílio. Confesso sempre minha fraqueza.

Eu, porém, sou desvalido e pobre”.

Meus pecados foram perdoados. Já começei a seguir os preceitos de Deus; no entanto, ainda “sou desvalido e pobre”.

Por que razão “desvalido e pobre?” Porque “percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão(Rm 7,23).

Por que motivo “desvalido e pobre?” Porque “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça(Mt 5,6).

Ainda tenho fome, ainda tenho sede. Minha saturação foi adiada, não tirada.

Eu, porém, sou desvalido e pobre. Socorre-me, ó Deus”.

Como no começo do salmo:

Deus, vem em meu auxílio. Apressa-te, Deus, em socorrer-me”.

Não é sem razão que Lázaro significa socorrido, aquele desvalido e pobre, que foi levado ao seio de Abraão (cf Lc 16,22) e é tipo da Igreja de Deus, a qual deve sempre confessar que tem necessidade de auxílio. Tal é a verdade, a piedade.

Disse ao Senhor: És o meu Deus(Sl; 15,2).

Por quê? “Não precisas de meus bens”.

Ele não precisa de nós, mas nós precisamos dele; por isso, é verdadeiramente Senhor. Pois, tu não és genuíno senhor de teu escravo, pois ambos são homens, ambos necessitados de Deus. Se, porém, achas que teu escravo precisa de ti, para lhe dares o pão, tu também necessitas de teu escravo a fim de te ajudar nos trabalhos. Necessitais mutuamente um do outro. Por conseguinte, nenhum de vós é verdadeiramente senhor, e nenhum efetivamente escravo. Ouve qual o verdadeiro Senhor, do qual és verdadeiro servo:

Disse ao Senhor: És o meu Deus”.

Por que és o Senhor? “Não precisas de meus bens”.

E tu, quem és? “Eu, porém, sou desvalido e pobre”.

Deus nos alimente, Deus nos alivie, Deus nos ajude:

Socorre-me, ó Deus”.



§ 8
És o meu protetor e libertador, Senhor: não tardes”.

És meu protetor e libertador. Preciso de auxílio, ajuda-me; estou envolvido, livra-me. Ninguém livra de complicações, senão tu. Cercam-nos os laços de cuidados diversos; somos dilacerados daqui e dali, como que em espinhos e sebes. Andamos num caminho estreito. Talvez ficamos presos nas sebes. Digamos a Deus:

Tu és o meu libertador”.

Quem mostrou o caminho estreito (cf Mt 7,14), fez com que o seguíssemos. Esta palavra persevere em nós, irmãos. Por maior que seja o tempo em que vivermos na terra, por mais que nos aperfeiçoarmos aqui, ninguém diga: Basta-me; sou justo. Quem assim fala pára no caminho, não sabe alcançar o fim. Se disser: Basta, fica ali. Observa como ao Apóstolo não bastava; vê como quer ser ajudado, até chegar:

Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado”.

E para que ninguém pense que já o alcançou, diz novamente:

Se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber(1 Cor 8,2).

Como é que ele se exprime? “Irmãos, eu não julgo que eu mesmo tenha alcançado”.

Mais acima dissera:

Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja perfeito e continua: Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado”.

Se ainda não recebeu, é “pobre e desvalido”; se ainda não é perfeito, é “desvalido e pobre”.

Diz com razão:

Socorre-me, ó Deus”.

Mas entende alguma coisa, e entende-a melhor. Vê, no entanto como se expressa:

Ao que é poderoso para realizar por nós em tudo infinitamente além do que pedimos ou pensamos(Ef 3,20).

Observa, portanto, que ainda não chegou, ainda não alcançou. Como, então? “Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto(Fl 3,12-14).

Ele, portanto, corre, e tu estás preso. Ele diz que ainda não é perfeito e tu já te glorias de perfeição? Sejam confundidos os que te dizem:

Bem feito, bem feito”.

Com eles tu também ficas confundido, porque dizes a ti mesmo: Bem feito, bem feito. Pois, quem louva a si mesmo diz:

Bem feito, bem feito”.

Quem aceita o louvor dos outros não traz óleo consigo; apagam-se as lâmpadas, e o Senhor há de fechar a porta (cf Mt 25,3.10).



§ 9
Foi este o ensinamento do presente salmo, em resumo, caríssimos, por ocasião da solenidade dos mártires, a fim de entendermos que os mártires aqui passaram por tribulações corporais, enquanto nós, por mais que tenhamos paz, necessariamente padecemos tribulações espirituais. Forçoso é que no meio dos escândalos, do joio, da palha, gema a Igreja e aquela massa, até que venha a messe, até que venha a ventilação, a última, para separar a palha do trigo, e este seja recolhido no celeiro (cf Mt 13,20; 3,12).

Enquanto isto não se realiza, clamemos:

Eu, porém, sou desvalido e pobre. Socorre-me, ó Deus. És o meu protetor, Senhor: não tardes”.

Que quer dizer:

Não tardes?” Há muitos que dizem: Falta muito tempo para a vinda de Cristo. Por que, então, dizemos:

Não tardes”, virá antes do tempo marcado para vir? Qual o sentido deste desejo:

Não tardes?” Não me pareça grande a demora. Pode parecer-te longo; para Deus não é longo, pois para ele mil anos são como um só dia (cf Sl 39,4), ou três horas de vigília. Mas se não tiveres paciência, será demorado para ti; e como te será longo, afastar-te-ás dele e serás semelhante àqueles que no deserto se cansaram, e logo pediram a Deus delícias, reservadas para eles na pátria (cf Ex 16,2; At 7,39).

E quando lhes foram dados no caminho os alimentos que apeteciam, e que talvez os pervertessem, murmuraram contra Deus e de coração voltaram ao Egito. Voltaram pelo coração para lá, de onde estavam corporalmente separados. Não faças também tu o mesmo. Não. Teme por causa da palavra do Senhor:

Lembrai-vos da mulher de Ló(Lc 17,32).

Ela, a caminho, já libertada de Sodoma, olhou para trás e ficou retida no lugar de onde olhou. Foi transformada em estátua de sal, a fim de te moderar (cf Gn 19,29).

Sirva-te de exemplo a fim de teres ânimo e não ficares insípido no caminho. Observa aqueles que param, mas passa; atende àquele que olha para trás e avança para o que está diante, como Paulo. Que significa não olhar para trás? “Esquecer-se do que fica para trás”.

Por isso, prossegue para o prêmio da vocação do alto, do qual depois hás de te gloriar, conforme assevera o mesmo Apóstolo:

Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia(2 Tm 4,8).