ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 68 | ||
§ 68:1 | Ł Levanta-se Deus! Sejam dispersos os seus inimigos; fujam de diante dele os que o odeiam! | |
§ 68:2 | Ƈ Como é impelida a fumaça, assim tu os impeles; como a cera se derrete diante do fogo, assim pereçam os ímpios diante de Deus. | |
§ 68:3 | ɱ Mas alegrem-se os justos, e se regozijem na presença de Deus, e se encham de júbilo. | |
§ 68:4 | Ƈ Cantai a Deus, cantai louvores ao seu nome; louvai aquele que cavalga sobre as nuvens, pois o seu nome é Já; exultai diante dele. | |
§ 68:5 | Ꝓ Pai de órfãos e juiz de viúvas é Deus na sua santa morada. | |
§ 68:6 | Ɗ Deus faz que o solitário viva em família; liberta os presos e os faz prosperar; mas os rebeldes habitam em terra árida. | |
§ 68:7 | Ơ Ó Deus! quando saías à frente do teu povo, quando caminhavas pelo deserto, | |
§ 68:8 | ɑ a terra se abalava e os céus gotejavam perante a face de Deus; o próprio Sinai tremeu na presença de Deus, do Deus de Israel. | |
§ 68:9 | Ŧ Tu, ó Deus, mandaste copiosa chuva; restauraste a tua herança, quando estava cansada. | |
§ 68:10 | Ɲ Nela habitava o teu rebanho; da tua bondade, ó Deus, proveste o pobre. | |
§ 68:11 | Ꝋ O Senhor proclama a palavra; grande é a companhia dos que anunciam as boas-novas. | |
§ 68:12 | ꭆ Reis de exércitos fogem, sim, fogem; as mulheres em casa repartem os despojos. | |
§ 68:13 | Ɗ Deitados entre redis, sois como as asas da pomba cobertas de prata, com as suas penas de ouro amarelo. | |
§ 68:14 | Ꝙ Quando o Todo-Poderoso ali dispersou os reis, caiu neve em Zalmom. | |
§ 68:15 | ɱ Monte grandíssimo é o monte de Basã; monte de cimos numerosos é o monte de Basã! | |
§ 68:16 | Ꝓ Por que estás, ó monte de cimos numerosos, olhando com inveja o monte que Deus desejou para sua habitação? Na verdade o Senhor habitará nele eternamente. | |
§ 68:17 | Ꝋ Os carros de Deus são miríades, milhares de milhares. O Senhor está no meio deles, como em Sinai no santuário. | |
§ 68:18 | Ŧ Tu subiste ao alto, levando os teus cativos; recebeste dons dentre os homens, e até dentre os rebeldes, para que o Senhor Deus habitasse entre eles. | |
§ 68:19 | Ꞗ Bendito seja o Senhor, que diariamente leva a nossa carga, o Deus que é a nossa salvação. | |
§ 68:20 | Ɗ Deus é para nós um Deus de libertação; a Jeová, o Senhor, pertence o livramento da morte. | |
§ 68:21 | ɱ Mas Deus esmagará a cabeça de seus inimigos, o crânio cabeludo daquele que prossegue em suas culpas. | |
§ 68:22 | Ɗ Disse o Senhor: Eu os farei voltar de Basã; fá-los-ei voltar das profundezas do mar; | |
§ 68:23 | ᵽ para que mergulhes o teu pé em sangue, e para que a língua dos teus cães tenha dos inimigos o seu quinhão. | |
§ 68:24 | ⱴ Viu-se, ó Deus, a tua entrada, a entrada do meu Deus, meu Rei, no santuário. | |
§ 68:25 | ᵻ Iam na frente os cantores, atrás os tocadores de instrumentos, no meio as donzelas que tocavam adufes. | |
§ 68:26 | Ꞗ Bendizei a Deus nas congregações, ao Senhor, vós que sois da fonte de Israel. | |
§ 68:27 | Ɑ Ali está Benjamim, o menor deles, na frente; os chefes de Judá com o seu ajuntamento; os chefes de Judá com o seu ajuntamento; os chefes de Zebulom e os chefes de Naftali. | |
§ 68:28 | Ꝋ Ordena, ó Deus, a tua força; confirma, ó Deus, o que já fizeste por nós. | |
§ 68:29 | Ꝓ Por amor do teu templo em Jerusalém, os reis te trarão presentes. | |
§ 68:30 | ꭆ Repreende as feras dos caniçais, a multidão dos touros, com os bezerros dos povos. Calca aos pés as suas peças de prata; dissípa os povos que se deleitam na guerra. | |
§ 68:31 | ⱴ Venham embaixadores do Egito; estenda a Etiópia ansiosamente as mãos para Deus. | |
§ 68:32 | ꭆ Reinos da terra, cantai a Deus, cantai louvores ao Senhor, | |
§ 68:33 | àquele que vai montado sobre os céus dos céus, que são desde a antigüidade; eis que faz ouvir a sua voz, voz veemente. | |
§ 68:34 | Ɑ Atribuí a Deus força; sobre Israel está a sua excelência, e a sua força nos firmamento. | |
§ 68:35 | Ơ Ó Deus, tu és tremendo desde o teu santuário; o Deus de Israel, ele dá força e poder ao seu povo. Bendito seja Deus! | |
O SALMO 68 | ||
I SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Nascemos e fomos agregados ao povo de Deus numa época deste mundo em que aquele arbusto brotado do grão de mostarda já estendeu seus ramos; em que o fermento, tido por desprezível anteriormente, fez fermentar três medidas de farinha, quer dizer, todo o orbe da terra repovoado pelos três filhos de Noé (cf Mt 13,31-33; Gn 9,19); porque do oriente e do ocidente, do norte e do sul, vêm os que estarão à mesa com os patriarcas, depois que foram excluídos os que deles se originaram segundo a carne, mas não imitaram a sua fé (Mt 8,11). Abrimos os olhos diante desta glória da Igreja de Cristo; e aquela estéril, à qual foi indicado e predito o gozo de que teria mais filhos do que uma casada, nós já a encontramos esquecida dos opróbrios e da vergonha de sua viuvez (cf Jo 54,1; Gl 4,27). Por isso, podemos talvez nos admirar ao ler em alguma profecia as palavras sobre a humilhação de Cristo, ou a nossa. É possível que elas nos comovam menos porque não somos da época em que eram lidas e saboreadas, devido a angústias prementes. Mas ainda podemos ponderar as freqüentes tribulações, e verificar que o caminho pelo qual andamos (se é que andamos por ele), é tão estreito (Mt 7,14), e conduz ao descanso eterno através das angústias e tribulações. Podemos verificar que a chamada felicidade humana deve ser mais temida do que a miséria, visto que a miséria muitas vezes produz bom fruto tirado desta tribulação, enquanto a felicidade corrompe a alma através de uma perversa segurança e dá entrada ao diabo tentador. Por conseguinte, quando cogitarmos com prudência e retidão, como vítima já bem preparada, que é uma tentação a vida humana sobre a terra (Jó 7,1), e que ninguém está absolutamente seguro, nem deve estar, antes de chegar àquela pátria de onde nenhum amigo parte, nenhum inimigo é admitido, mesmo agora, neste período de glória da Igreja, reconhecemos as vozes de nossa tribulação; e como membros de Cristo, na união da caridade submissos a nossa Cabeça e mantendo-nos mutuamente, repetiremos dos salmos o que virmos que repetiram os mártires que nos precederam, porque a tribulação é comum a todos, do princípio ao fim. No entanto, este salmo que empreendemos comentar, e do qual nos propusemos falar a V. Caridade, em nome do Senhor, vamos reconhecê-lo no grão de mostarda. Desviemos um pouco o pensamento da altura do arbusto e da expansão dos ramos e daquela beleza de ramagem, onde as aves do céu pousam; e ouçamos de que pequenez se originou esta grandeza que nos deleita no arbusto. Pois, é Cristo quem fala aqui (falamos aos que já estão cientes); Cristo, não somente Cabeça, mas também corpo. Nós o reconhecemos pelas próprias palavras. De fato, de forma alguma podemos duvidar de que Cristo fale aqui. Encontram-se neste salmo expressamente as palavras realizadas em sua paixão: “Deram-me fel por alimento e em minha sede deram-me vinagre a beber”; na paixão estas palavras cumpriram-se à letra e como foram preditas se realizaram. Não é lícito entender de outro modo, uma vez que Cristo disse: “Tenho sede”, quando crucificado, e a estas palavras lhe ofereceram vinagre numa esponja e ele, tendo-o tomado, disse: “Está consumado”, e inclinando a cabeça, entregou o espírito (Jo 19,28-30); mostrou assim que todas essas coisas preditas a respeito dele foram então consumadas. Os apóstolos igualmente, falando de Cristo, usaram os testemunhos deste salmo. Quem, então, se afastará das declarações deles? Ou que cordeiro não seguirá os carneiros? Por conseguinte, Cristo aqui fala. Antes teríamos de demonstrar onde é que falam seus membros, para mostrarmos que aqui fala o Cristo total, do que duvidar de que Cristo é que fala. | |
§ 2 | 1 O título do salmo é o seguinte: “Para o fim, em favor daqueles que serão mudados, de Davi”. Mudança aqui está usada em melhor sentido. Pois, existe mudança para pior e para melhor. Adão é Eva mudaram para pior; os descendentes de Adão e Eva que aderiram a Cristo, mudaram para melhor. “Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida” (1 Cor 15,21.22). Daquele estado em que Deus o formou, Adão mudou para pior, devido a sua maldade; das condições criadas pela iniqüidade, os fiéis mudam para melhor, pela graça de Deus. Em conseqüência de nossa iniqüidade, mudamos para pior; é dom, porém, da graça de Deus mudarmos para melhor, e não devido a nossa justiça. Imputemos, portanto, a nós mesmos, a mudança para pior; quanto a mudarmos para melhor, louvemos a Deus. Portanto, este salmo é “em favor daqueles que serão mudados”. De onde se originou esta mudança, senão da paixão de Cristo? A palavra páscoa, vertida para o latim, significa: passagem. Pois, a palavra Páscoa não é nome grego, mas hebraico. Soa em grego como se fosse: paixão, porque parkein quer dizer: sofrer; mas levando-se em conta a língua hebraica, indica outra coisa. Páscoa trata de passagem. O evangelista S. João o relembra acerca do Senhor, nas vésperas da paixão, na ceia em que entregou o sacramento de seu corpo e de seu sangue nesses termos: “Quando chegou a hora de Jesus passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1). Exprimiu, portanto, a passagem da páscoa. Mas se aquele que veio por nossa causa, não passasse daqui para o Pai, como poderíamos nós, que não descemos para levantar alguma coisa e sim caímos, passar deste mundo? Ele não caiu, mas desceu, a fim de reerguer o homem decaído. Por conseguinte, sua e nossa passagem daqui para o Pai, deste mundo para o reino dos céus, da vida mortal para a vida eterna, da vida terrena para a vida celeste, da vida corrruptível para a incorruptível, da convivência no meio das tribulações para a segurança perpétua. Por isso, “em favor daqueles que serão mudados”, é o título deste salmo. Notemos, portanto, reconheçamos a causa de nossa mudança, a saber, a paixão do Senhor, e as palavras que exprimem nossas tribulações no texto do salmo, e juntos gemamos; e ao ouvirmos, conhecermos e gemermos juntos, transformemo-nos, tendo em vista que em nós se cumpra o título do salmo: “em favor daqueles que serão mudados”. | |
§ 3 | 2 “Salva-me, ó Deus, porque as águas penetraram até a minha alma”. Agora é desprezado aquele grão de mostarda, que parece emitir sons de humildade. É enterrado na horta, mas o mundo haverá de admirar a altura do arbusto, cuja semente foi desprezada pelos judeus. De fato, considerai a semente da mostarda, minúscula, escura, completamente desprezível; assim se realiza a palavra: “Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar” (Is 53,2). Diz o salmista que as águas penetraram até a sua alma, porque aquelas turbas representadas sob o nome de águas, puderam prevalecer a ponto de matarem a Cristo. Prevaleceram desprezando, prendendo, amarrando, insultando, esbofeteando, cuspindo. Até onde? Até a morte. Portanto, “as águas penetraram até a minha alma”. Chama de sua alma a sua vida, a que eles puderam ter acesso em seu furor. Mas acaso teriam-no podido se ele não o permitisse? Então porque aqui clama, como se sofresse algo contra sua vontade, se a Cabeça não prefigurasse os seus membros? Efetivamente ele sofreu porque quis; os mártires, contudo, mesmo não o querendo. Pois, assim o Senhor predisse a Pedro a sua paixão: “Quando fores velho, outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18). Apesar de desejarmos unir-nos a Cristo, não queremos morrer; e no entanto, soframos de bom grado, ou antes com paciência, uma vez que não existe outro tipo de passagem para nos unirmos a Cristo. Pois, se pudéssemos de outra maneira chegar a Cristo, isto é, à vida eterna, quem desejaria morrer? O Apóstolo, descrevendo em certa passagem, nossa natureza, isto é, a união da alma e do corpo, e a afinidade, fusão e adesão entre essas duas partes, disse que temos uma habitação que não foi feita pela mão do homem, eterna, nos céus, isto é, a imortalidade que nos foi preparada, e que devemos revestir no fim, por ocasião da nossa ressurreição dentre os mortos; e assim fala: “Não queremos ser despojados de nossa veste, mas revestir a outra por cima desta, a fim de que o que é mortal seja absorvido pela vida” (2 Cor 5,1.4). Se fosse possível, diz ele, queríamos nos tornar imortais, desejávamos que chegasse a imortalidade, e agora tais como somos nos transformasse, de tal forma que o que há de mortal em nós fosse absorvido pela vida e não deixássemos o corpo, através da morte, para no fim de novo o recuperarmos. Embora, por certo, passemos dos males aos bens, a própria passagem é um tanto amarga e tem o fel que os judeus deram ao Senhor na paixão, tem um gosto acre, figurado pelo vinagre que lhe deram da beber (cf Mt 27,34). O salmista diz, então, prefigurando-nos e em nosso lugar: “Salva-me, ó Deus, porque as águas penetraram até a minha alma”. Os perseguidores puderam até mesmo matar; mas não puderam ir além. Preveniu-nos o Senhor com uma exortação: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena” (Mt 10,28). Um medo maior nos leva a desprezar as coisas pequenas, e maior desejo da eternidade nos dá fastio de todas as coisas temporais. Pois, na terra as delícias temporais são doces e as tribulações temporais, amargas. Mas quem não bebe da taça da tribulação temporal, por receio do fogo da geena? E quem não despreza a suavidade mundana, se anela pela suavidade da vida eterna? Em conseqüência, clamemos pedindo libertação, a fim de que não aconteça consentirmos no mal devido às angústias e sermos efetivamente sorvidos de modo irreparável: “Salva-me, ó Deus, as águas penetraram até a minha alma”. | |
§ 4 | 3 “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. O que o salmista denomina lodo? Acaso os perseguidores? De argila foi feito o homem. Mas estes, perdendo a justiça, se tornaram lodaçal profundo (cf Gn 2,7). Aquele que não concordar com estes perseguidores que tentam arrastá-lo à iniqüidade, transforma o lodo de que foi feito em ouro. Merecerá o próprio lodo ser mudado, adquirindo hábitos celestes, e tornar-se companheiro daqueles que o título deste salmo menciona: “Em favor daqueles que serão mudados”. Àqueles, porém, que se achavam no lodaçal profundo, eu aderi, isto é, eles me apanharam, prevaleceram contra mim, mataram-me. Por isso, “atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. Que significa: “não há substância?” Porventura o lodo não é substância? Ou, eu atolando-me deixei de ser substância? Que significa: “Atolei-me?” Por acaso, Cristo aderiu desta maneira? Ou aderiu, ou não, conforme está escrito no livro desta maneira? Ou aderiu, ou não, conforme está escrito no livro de Jó: “A terra foi deixada em poder do ímpio” (Jó 9,24). Ou atolou-se segundo a carne, porque pôde ser preso e crucificado? Se não fosse atravessado pelos pregos, não seria um crucificado. Por que, então, “não há substância?” Aquele lodo não é substância? Entenderemos pois, se pudermos, o que quer dizer: “não há substância”, se primeiro entendermos o que é substância. As riquezas também têm o nome de substância; de acordo com isso dizemos: ele possui substância, ou: perdeu a substância. Mas pensaremos que aqui se disse: “não há substância”, como se eqüivalesse a: não há riquezas se estivéssemos tratando de riquezas, ou de qualquer questão relativa a elas? Ou talvez o próprio lodo constituía uma pobreza, e só existirão riquezas quando nos tornarmos participantes da eternidade? Então as verdadeiras riquezas existirão, pois nada nos faltará. Podemos tomar esta palavra com esta acepção, de tal forma que: “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância” eqüiva-leria a: fui reduzido à pobreza. Pois, reza este salmo: “Quanto a mim, sou pobre e dolorido”, e também diz o Apóstolo: “Jesus Cristo por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2 Cor 8,9). Com efeito, o Senhor querendo destacar sua pobreza, talvez tenha dito: “não há substância”. Chegou a extrema pobreza quando assumiu a condição de escravo. Quais são as suas riquezas? “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus” (Fl 2,6). São essas as riquezas grandes e incomparáveis. De onde, então, a pobreza? “Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte”, podendo dizer: “As águas penetraram até a minha alma”. Acrescenta algo à morte. Mas o que se haveria de acrescentar? A ignomínia na morte, conforme segue: “E morte de cruz” (Sl 2,7-8). Imensa pobreza! mas daí brotarão imensas riquezas. Como se consumou a sua pobreza, assim se cumularão as nossas riquezas, provenientes de sua pobreza. Quão imensas as riquezas que possui, uma vez que sua pobreza nos enriquece! E o que farão de nós suas riquezas, se sua pobreza nos enriqueceu! | |
§ 5 | “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. Há outra maneira de se entender a palavra substância: aquilo que nos faz sermos o que somos. Mas isto é um pouco mais difícil de entender, embora seja usual a realidade; mas como a palavra é pouco usada, é preciso indicá-la e dar uma pequena explicação. Mas se ficardes atentos, talvez não teremos muito trabalho. Dizemos: homem, animal, terra, céu, sol, lua, lápis, mar, ar: todas essas coisas são substâncias, pelo fato mesmo daquilo que são. As próprias naturezas chamam-se substâncias. Deus é determinada substância; pois o que não é substância alguma, não é nada absolutamente. A substância, portanto, é um ser. Daí também a fé católica, contra o veneno de alguns hereges nos premuniu, dizendo que o Pai, e o Filho e o Espírito Santo são uma só substância. Que quer dizer: uma só substância? Por exemplo: se o Pai é ouro, o Filho é ouro e o Espírito Santo é ouro. O que o Pai é, enquanto Deus, isto é o Filho, isto é o Espírito Santo. Enquanto é Pai, não é aquilo que é, substância. O Pai não é denominado assim em si mesmo, mas em relação ao Filho; em si mesmo é denominado Deus. Por conseguinte, aquilo que Deus é, é substância. E como o Filho tem a mesma substância, sem dúvida alguma o Filho é Deus. Ao invés, enquanto Pai, uma vez que Pai não é nome da substância, mas refere-se ao Filho, não dizemos que o Filho é o Pai, como dizemos que o Filho é Deus. Perguntas o que é o Pai. Responde-se: É Deus. Perguntas o que é o Filho. Responde-se: É Deus. Perguntas o que é o Pai e o Filho. Responde-se: É Deus. Interrogado a respeito do Pai apenas, responde que é Deus; interrogado somente acerca do Filho, responde que é Deus; interrogado sobre os dois, responde que é Deus e não que são deuses. Não é igual ao que acontece aos homens. Perguntas o que é o pai Abraão. Responde-se: É homem. Foi respondido qual a substância. Perguntas o que é o filho, Isaac. A resposta é: É homem. Abraão e Isaac são de igual substância. Perguntas o que são Abraão e Isaac; a resposta não é: É homem, mas: São homens. Isso não acontece na divindade. Tão grande é a sociedade de substância que admite a igualdade, mas não admite a pluralidade. Se, portanto, alguém te disser: Se me dizes que o Filho é o mesmo que o Pai é, então o Filho é o Pai, responde: Foi segundo a substância que te disse que o Filho é a mesma coisa que o Pai, e não segundo a relação de um a outro. Em si mesmo, é chamado Deus, e é denominado Filho em relação ao Pai. De outro lado, o Pai em si é chamado Deus, em relação ao Filho chama-se Pai. Enquanto em relação ao Filho é Pai, não é Filho; enquanto o Filho se relaciona ao Pai, não é Pai. Pai e Filho em si, são Pai e Filho, isto é, Deus significa, então: “não há substância?” Segundo este sentido de substância, como podemos entender esta sentença do salmo: “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância?” Deus fez o homem; fez uma substância; oxalá houvesse permanecido como Deus o fizera! Se o homem houvesse permanecido naquilo em que Deus o fez, não se haveria atolado aquele que Deus gerou. No entanto, como pela iniqüidade o homem decaiu da substância em que fora feito (a iniqüidade não é substância; pois a iniqüidade não é natureza que Deus criou, mas a iniqüidade é perversidade que o homem fez), veio o Filho de Deus ao lamaçal profundo e atolou-se; e não havia substância lá onde se atolou, porque se atolou na iniqüidade humana. “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito (cf Jo 1,3). Todas as naturezas foram feitas por ele; a iniqüidade não foi feita por ele, porque não foi criada. Foram feitas por ele aquelas substâncias que o louvam. Todas as criaturas louvam a Deus, conforme mencionam os três jovens na fornalha (cf Dn 3.24-90). Das criaturas terrenas até às celestes, ou das celestes às terrenas, chegou a Deus o hino de louvor. Não quero dizer que todas elas tenham conhecimento de que louvam, mas que se pensamos bem de todas elas, isso para o louvor; e o coração pela consideração das criaturas prorrompe num hino ao Criador. Louvam a Deus todas as coisas que Deus criou. Por acaso notastes naquele hino que a avareza louve a Deus? Nele até a serpente louva a Deus; a avareza, contudo, não louva. Todos os répteis são enumerados no louvor a Deus; são nomeados os répteis, mas não são enumerados os vícios. Os vícios provêm de nós e de nossa vontade; e os vícios não são substância. Neles o Senhor foi mergulhado, quando sofreu perseguição; no vício dos judeus, não na substância humana que foi criada por ele. “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. Atolei-me e não encontrei aquilo que criei. | |
§ 6 | “Fui ao alto mar, e a tempestade me submergiu”. Demos graças à misericórdia daquele que foi ao alto mar e se dignou deixar-se engolir pelo cetáceo marinho; mas foi expelido ao terceiro dia (cf Mt 12,40). Foi às profundezas do mar, onde estávamos mergulhados, onde sofrêramos naufrágio. Ele foi até aí, e a tempestade o submergiu. Ali estava sob as ondas, isto é, os homens, e na tempestade, a saber, as vozes, os gritos: “Crucifica-o! Crucifica-o!” E quando Pilatos dizia: “Eu não encontro culpa nele” para matá-lo, aumentavam os gritos: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Jo 19,6). E o Senhor padeceu nas mãos dos judeus o que não sofreu ao andar sobre as águas, quando não somente ele não sofreu, mas não permitiu que Pedro sofresse (cf Mt 14,25). “Fui ao alto mar e a tempestade me submergiu”. | |
§ 7 | 4 “Estou cansado de tanto gritar. Enrouqueceu-se-me a garganta”. Quando? Onde? Interroguemos o evangelho. Reconhecemos neste salmo alusão à paixão do Senhor. Sabemos com certeza que ele sofreu. As águas penetraram até a sua alma, porque as turbas prevaleceram, levando-o à morte. Lemos isso e acreditamos. A tempestade o submergiu porque prevaleceu a sedução e foi morto. Isto é notório. Quanto a ficar cansado de clamar e à garganta enrouquecida, não somente não o lemos, mas, ao contrário, lemos que não lhes respondia palavra, cumprindo-se o dito de outro salmo: “Semelhante a alguém que não ouve e não tem réplica em sua boca” (Sl 37,15); também de acordo com aquela profecia de Isaías: “Como um cordeiro conduzido ao matadouro, como uma ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores ele não abriu a boca” (Is 53,7). Se ele se tornou como alguém que não ouve e não tem réplica na boca, como é que se cansou de gritar e sua garganta se enrouqueceu? Ou se calava porque estava rouco de ter gritado tanto sem resultado? Conhecemos, de fato, a palavra que ele proferiu na cruz, tirada de outro salmo: “Deus, meu Deus, por que me desamparaste”? (Sl 21,2). Mas, que altura atingiu aquela voz, ou quanto tempo durou, a ponto de sua garganta se enrouquecer? Clamou longamente: “Ai de vós, escribas e fariseus!” (Mt 23,13.14). Por muito tempo clamou: “Ai do mundo por causa dos escândalos”! (Mt 18,7) Em verdade, calava enrouquecido e não era compreendido, quando diziam os judeus: “Que é isto que ele nos diz? Esta palavra é dura! Quem pode escutá-la? Não sabemos de que fala” (Jo 6,61; 16,18). Ele pronunciava todas as palavras; mas para os judeus sua garganta está enrou-quecida, porque não entendiam suas palavras. “Estou cansado de tanto gritar. Enrouqueceu-se-me a garganta. | |
§ 8 | Meus olhos se obscureceram, enquanto esperava por meu Deus”. Longe de nós atribuir estas palavras a nossa Cabeça; longe de nós pensar que seus olhos se obscureceram, enquanto esperava por seu Deus, pois, ao invés, Deus nele reconciliava o mundo consigo, e o Verbo se fez carne e habitou entre nós, de sorte que não somente Deus estava nele, mas ele mesmo era Deus (cf 2Cor 5,19; Jo 1,14). Por conseguinte, não sucedeu isto; os olhos de nossa Cabeça não se obscureceram, enquanto esperava por seu Deus; mas obscureceram-se os olhos de seu corpo, isto é, de seus membros. Esta voz é dos membros, é a voz do corpo, não da Cabeça. Como, então, a encontramos em seu corpo e em seus membros? Que dizer a mais? Que relembrar? Quando o Senhor sofreu, quando morreu, todos os discípulos perderam a esperança de que ele fosse o Cristo. Os apóstolos foram vencidos pelo ladrão, que acreditou enquanto eles falharam (Lc 23,42). Considera seus membros desanimados; pensa naqueles dois discípulos que o Senhor após a ressurreição encontrou no caminho e conversaram com ele. Um deles era Cléofas. Seus olhos estavam impedidos de reconhecê-lo. Como o reconheceriam com os olhos se hesitavam espiritualmente? Acontecera-lhes nos olhos algo de semelhante a sua mente. Falavam entre si, e quando interrogados sobre o que conversavam, responderam: “Tu és o único forasteiro em Jerusalém que ignora os fatos que nela aconteceram? O que aconteceu a Jesus de Nazaré que foi um profeta poderoso em obra e em palavra e foi morto pelos chefes e os príncipes dos sacerdotes? Nós esperávamos que fosse ele que iria redimir Israel” (Lc 24,13-21). Esperaram e não esperavam mais. Seus olhos se obscureceram, enquanto esperavam por Deus. O salmista fala em lugar deles: “Meus olhos se obscureceram, enquanto esperava por meu Deus”. A esperança voltou, quando o Senhor lhes apresentou as cicatrizes para que as tocassem; Tomé, tendo-as tocado recuperou a esperança que perdera, e exclamou: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28.29). Teus olhos se obscureceram, enquanto esperavas por teu Deus. Apalpaste as cicatrizes e encontraste teu Deus. Tocaste-o na condição de servo e reconheceste teu Senhor. O próprio Senhor lhe disse: “Porque viste, creste”. E prenunciando-nos, com uma palavra de sua misericórdia, declarou: “Felizes os que não viram e creram! (ib 29). Meus olhos se obscureceram, enquanto esperava por meu Deus”. | |
§ 9 | 5 “Mais numerosos que os cabelos de minha cabeça são os que me detestam sem razão”. Como se multiplicaram? A ponto de aderir a eles um dos doze (cf Mt 26,14). “Mais numerosos que os cabelos de minha cabeça são os que me detestam sem razão”. Comparou seus inimigos aos cabelos de sua cabeça. Com razão foram cortados, quando ele foi crucificado no Calvário. Acolham para si os membros esta palavra; aprendam a suportar ódio gratuito. Uma vez que é forçoso, ó cristão, que o mundo te odeie, porque não ages de tal forma que te odeiem gratuitamente, pois estás no corpo de teu Senhor, e reconheces tua voz neste salmo, que o prenuncia. Como é que o mundo te odeia gratuitamente? Se a ninguém prejudicas, e no entanto és odiado, isto é que é ser odiado gratuitamente, sem razão. Não te baste ser detestado sem razão; além disso, estejas disposto a receber males em retribuição do bem que fazes. “Cobraram forças meus inimigos, que me perseguem injustamente”. O mesmo que disse antes: “mais numerosos que os cabelos de minha cabeça”; vem em seguida: “Cobraram forças meus inimigos”. E identifica-se o que vem primeiro: “que me detestam sem razão” e o que acrecenta em seguida: “que me perseguem injustamente. Sem razão” eqüivale a: “injustamente”. Esta é a voz dos mártires, que o são devido a sua causa, e não por castigo. Não é digno de louvor sofrer perseguição, ser preso, ser flagelado, ser encarcerado, proscrito, morto, em si mesmo; o louvor consiste em sofrer tudo isso devido a uma causa boa em si. O louvor está na bondade da causa, e não na crueldade da pena. Pois, por maiores que tenham sido os suplícios dos mártires, por acaso se igualam aos tormentos de todos os ladrões, de todos os sacrílegos, de todos os malvados? E então, o mundo não odeia a estes? Certamente. Pois, eles ultrapassam a medida comum do mundo pela extensão de sua malícia, e de certo modo estão fora da sociedade humana, prejudicando à paz terrena; e sofrem muitos males, mas não sem razão. Enfim, considera a palavra daquele ladrão que estava crucificado ao lado do Senhor, quando de outro lado um dos dois ladrões injuriava o Senhor crucificado, dizendo: “Se és Filho de Deus, salva-te a ti mesmo”; mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de justiça; estamos pagando por nossos atos” (Lc 23,39-41). Eis que este não sofria injustamente, mas pela confissão eliminou a infecção, e fez-se apto a ingerir o alimento do Senhor. Expeliu sua iniqüidade, acusou-a e ficou livre dela. Eis que aqui estão dois ladrões, e ali está também o Senhor; eles crucificados e este crucificado; aos primeiros o mundo teve ódio, mas não gratuitamente, ao segundo odiou sem razão. “Restituía o que não roubei”. Portanto, gratuitamente. Não roubei e restituía; não pequei, e sofria o castigo. Ele é o único dessa espécie, e de fato nada roubou. Não somente nada roubou, mas ainda se despojou do que tinha sem ser roubado, para vir até nós. Pois, “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, e assumindo a condição de escravo” (Fl 2,6.7). Absolutamente não roubou. Mas quem roubou? Adão. Quem roubou primeiro? Aquele mesmo que seduziu Adão. Como roubou o diabo? “Colocarei o meu trono nos confins do norte, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo” (Is 14,13). Usurpou o que não recebera: eis a rapina. O diabo usurpou o que não recebera e perdeu o que havia recebido. Deu de beber do cálice de sua soberba àquele que queria enganar. Disse-lhe: Comei, “e vós sereis como deuses” (cf Gn 3,5). Quiseram roubar a divindade, e perderam a felicidade. Ele, portanto, roubou e por isso teve de pagar. Eu, porém, diz o Senhor, “restituía o que não roubei”. O mesmo Senhor, nas proximidades da paixão, assim fala, como consta do evangelho: “O príncipe do mundo vem”, isto é, o diabo, “contra mim, ele nada pode”, isto é, não encontrará motivo para me fazer morrer; “mas o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos! Partamos daqui!” (Jo 14,30), e encaminhou-se para a paixão, a fim de pagar o que não roubou. Que quer dizer: “contra mim” nada achará? Culpa alguma. O diabo teria perdido algo de sua casa? Cristo desmascara os raptores: “contra mim, ele nada pode”. No entanto, ele diz que nada usurpou, referindo-se ao pecado. Nada tomou que não fosse seu. A usurpação é própria da rapina, da iniqüidade. Ele extorquiu do diabo o que este roubara. Disse: “Como pode alguém entrar na casa de um forte e roubar os seus pertences, se primeiro não o amarrar? (Mt 12-29). Amarrou o forte e tirou os seus pertences, mas certamente não roubou. Ele replicará: Estes bens da grande casa, que era minha, estavam perdidos; não pratiquei um furto, mas recuperei o que fora furtado. | |
§ 10 | 6 “Conheces, ó Deus, a minha loucura”. Fala de novo em lugar do corpo. Pois que loucura existe em Cristo? Ele não é o poder de Deus e a sabedoria de Deus? (1 Cor 1,24). Ou chama de loucura sua aquela referida pelo Apóstolo: “Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens”? (id 25). “Minha loucura”, a mesma que ridicularizaram os que se consideravam sábios. Sabes por que razão isto aconteceu: “Conheces a minha loucura”. Que há de mais semelhante à loucura do que ter em seu poder prostrar com uma só palavra os perseguidores e suportar ser preso, flagelado, cuspido, esbofeteado, coroado de espinhos, pregado à cruz? Assemelha-se à loucura, parece estultícia. Mas este louco supera a todos os sábios. Efetivamente, é estulto; mas também quando o grão de trigo cai na terra, parece uma loucura a quem não entende de agricultura. É colhido com grande trabalho, levado à eira, triturado, ventilado; depois de tantas vicissitudes do céu e da temperatura, depois dos trabalhos dos camponeses e dos cuidados do dono, é depositado no celeiro o trigo limpo. Vem o inverno e o que estava limpo é retirado e jogado na terra. Parece loucura; mas a esperança faz com que não seja loucura. Por isso, Cristo não se poupou, porque também “o Pai não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). E ele mesmo “me amou e se entregou a si mesmo por mim”, afirma o Apóstolo (Gl 2,20), porque se “o grão de trigo que cai na terra não morrer permanecerá só” (Jo 12,24). Isso é loucura. Mas tu a conheces. Os judeus, porém, se a conhecessem, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). “Conheces, ó Deus, a minha loucura e meus delitos não te são ocultos”. Este versículo é fluente, claro, evidente, e aplica-se ao corpo. Cristo não cometeu delito algum; suportou-os em si, mas não os cometeu. “E meus delitos não te são ocultos”, isto é, confessei-te todos os meus pecados; e antes que os proferissem meus lábios, tu os viste no meu pensamento. Viste as feridas a curar. Mas onde? Certamente no corpo, nos membros; nos fiéis, unidos à Cabeça através daquele membro que confessava seus pecados. “E meus delitos não te são ocultos”. | |
§ 11 | 7 “Não se sintam envergonhados por minha causa os que em ti esperam, Senhor, Deus dos exércitos”. Novamente a voz da Cabeça: “Não se sintam envergonhados por minha causa”; não se lhes pergunte: Onde está o objeto de vossa presunção? Não se lhes diga: Onde está aquele que vos dizia: “Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14,1). “Não se sintam envergonhados por minha causa os que em ti esperam, Senhor, Deus dos exércitos. Nem sejam confundidos a meu respeito os que te procuram, Deus de Israel”. Isto também se aplica ao corpo, contanto que não tomes por seu corpo um só homem. De fato, um homem não é todo o corpo, mas um minúsculo membro, embora o corpo conste de membros. Por conseguinte trata-se de seu corpo total, de toda a Igreja. Com toda razão, portanto, diz a Igreja: “Não se sintam envergonhados por minha causa os que em ti esperam, Senhor, Deus dos exércitos”. Não seja assim atingido pelos perseguidores que se insurgem contra mim, não seja esmagado pelos inimigos que me invejam, pelos hereges que ladram e saíram de junto de mim, mas não eram dos meus (cf 1Jo 2,19); pois se fossem dos meus, ficariam comigo. Seus escândalos não me oprimam de tal modo que “se sintam envergonhados por minha causa os que em ti esperam, Senhor, Deus dos exércitos. nem sejam confundidos a meu respeito os que te procuram, Deus de Israel”. | |
§ 12 | “Por amor de ti suportei censuras e a irreverência cobriu o meu rosto”. O importante não é dizer: “suportei”, mas: “suportei por amor de ti”. Se suportas porque pecaste, suportas por tua causa, não por amor de Deus. Diz S. Pedro: “Que glória há em suportar com paciência, se sois esbofeteados por terdes pecado?” (1Pd 2,20). Se, porém, suportas censuras por que observas o mandamento de Deus, de fato, é por amor de Deus que suportas; e tua recompensa permanecerá eternamente, uma vez que sofreste injúrias por causa de Deus. Com efeito, ele foi o primeiro a suportar, a fim de que aprendêssemos a sofrer. E se ele, que nada cometera com que se pudesse atacá-lo, quanto mais nós que, mesmo se não tivermos o pecado de que o inimigo possa nos acusar, temos no entanto outro de que podemos merecidamente ser atacados? Um homem qualquer te chama de ladrão e não és ladrão. Escutas a injúria. Não és ladrão, mas existe em ti alguma coisa que desagrada a Deus. No entanto, aquele que nada absolutamente roubara, que dissera com toda verdade: “O príncipe do mundo vem; contra mim ele nada pode” (Jo 14,30) foi denominado pecador (Jo 9,24), foi denominado iníquo, foi denominado Beelzebu (Mt 10,25), foi denominado louco; e tu, escravo, não queres ouvir, devido a teus méritos, o que o Senhor ouviu sem merecer? Ele veio para te dar um exemplo. Foi quase inutilmente que assim agiu, de tal modo não sabes disso tirar proveito. Por que motivo ele ouviu estas ofensas, se não para não desanimares quando as ouvires? Mas tu ouves, e desanimas; foi em vão, então, que ele as ouviu. E não foi por sua causa; mas teu proveito é que visava ao ouvir. “Por amor de ti suportei censuras e a irreverência cobriu meu rosto”. Disse: “A irreverência cobriu meu rosto”. Que é irreverência? Não se envergonhar. Trata-se de certo vício, quando se diz: É um homem irreverente. É grande irreverência para um homem não ter vergonha. Portanto, irreverência seria falta de vergonha. Um cristão deve ter irreverência quando estiver entre homens que não aceitam o Cristo. Se ele se envergonhar de Cristo, será apagado do livro dos vivos. É necessário que tenhas irreverência quando te atacarem por causa de Cristo. Quando alguém te diz: Adorador de um crucificado, cultuas um malfeitor morto, veneras um assassinado. Se te envergonhas, estás morto. Pondera na sentença daquele a quem ninguém engana: “Quem se envergonhar de mim diante dos homens, eu também me envergonharei dele diante dos anjos de Deus” (cf Lc 9,26). Observa-o, portanto, também tu. Haja emti irreverência, sê ousado ao ouvires uma ofensa a Cristo; sê até descarado. Que receias por tua fronte, que armaste com o sinal da cruz? Isto é o que quer dizer: “Por amor de ti suportei censuras, e a irreverência cobriu meu rosto. Por amor de ti suportei censuras”, e como não me corei de ti, ao ser insultado por tua causa, “a irreverência cobriu meu rosto. | |
§ 13 | 9.10 “Tornei-me um estranho a meus irmãos e um forasteiro aos filhos de minha mãe”. Tornou-se um forasteiro para os filhos da sinagoga. Em sua terra natal dizia-se dele: “Não é o filho de José?” (Lc 4,22). E em outro lugar: “Mas este, não sabemos de onde é” (Jo 9,29). Em conseqüência,“tornei- me um forasteiro aos filhos de minha mãe”. Não sabia de onde eu era, este povo ao qual pertencia minha carne; não sabia que nascera da descendência de Abraão. Nele achava-se oculta minha carne quando o servo jurou pelo Deus do céu, pondo a mão sob a coxa de seu senhor (cf Gn 24,9). “Tornei- me um forasteiro aos filhos de minha mãe”. Por que isto? Por que não o reconheceram? Por que o declararam estranho? Por que ousaram dizer: “Não sabemos de onde é? Porque devorou-me o zelo de tua casa”, isto é, porque persegui sua iniqüidade, porque não tolerei pacientemente aqueles que corrigi, porque procurei tal glória em tua casa, porque flagelei os que se comportavam mal no templo (cf Jo 2,15). Nesta passagem também se acha escrito: “Devorou-me o zelo de tua casa”. Por esta razão, ele é forasteiro, é hóspede; por isto, eles diziam: “Não sabemos de onde é”. Saberiam de onde sou, se cumprissem o que mandaste. Pois, se os encontrasse a observarem os teus preceitos, o zelo de tua casa não me devoraria. “E os ultrajes dos que te insultavam recaíram sobre mim”. O apóstolo Paulo empregou também este testemunho (acabamos de fazer esta leitura), e disse: “Ora tudo o que se escreveu no passado, é para nosso ensinamento que foi escrito, a fim de que, pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos a esperança” (Rm 15,4). Afirmou, portanto, que era de Cristo a palavra: “Os ultrajes dos que te insultavam recaíram sobre mim”. Por que: “te?” Por acaso é o Pai insultado, e não o próprio Cristo? Por que razão se diz: “Os ultrajes dos que te insultavam recaíram sobre mim?” Porque quem me conhece, conhece também o Pai; ninguém ultraja o Cristo se não ultraja a Deus; e ninguém honra o Pai, sem honrar igualmente o Filho (cf Jo 14,9; 5,23). “Os ultrajes dos que te insultavam recaíram sobre mim”, pois me encontraram. | |
§ 14 | 11 “Afligi a minha alma com jejuns e isto ocasionou-me opróbrio”. Já nos referimos em outro salmo, que comentamos a V. Caridade, ao jejum de Cristo em seu sentido espiritual. 1 Foi jejum para ele a defecção de todos os que neles haviam acreditado, assim como sua fome consistia em anelar por aqueles que nele acreditariam. Foi sua sede que o fez dizer à mulher samaritana: Tenho sede. “Dá-me de beber!” pois tinha sede de sua fé (Jo 4,7). E quando dizia na cruz: “Tenho sede!” (Jo 19,28), procurava a fé daqueles pelos quais rezara: “Pai perdoa-lhes; não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Mas aqueles homens o que deram de beber ao sedento? Vinagre. O vinho fermentado, velho, chama-se vinagre. Com razão foi-lhe oferecido algo do velho homem, porque eles não quiseram tornar-se novos. Por que não quiseram tornar-se novos? Não foram incluídos entre aqueles mencionados no título deste salmo: “Em favor daqueles que serão mudados”. Por isso, “afligi a minha alma com jejuns”. Finalmente, o Senhor rejeitou também o fel que eles lhe ofereceram; preferiu jejuar a tomar a bebida amarga. Não se incorporam a ele os homens amargos, referidos na passagem de outro salmo: “Não se elevem os rebeldes em si mesmos” (Sl 65,7). Portanto, “afligi a minha alma com jejuns e isto ocasionou-me opróbrio”. Ocasionou-me opróbrio não ter estado em consenso com eles, isto é, eles me deixaram em jejum. Quem não consente numa sugestão má, fica em jejum a respeito dos que o persuadem. E este jejum lhe ocasiona opróbrio, pois é insultado por não consentir no mal. | |
§ 15 | 12 “Vesti-me de cilício”. Já falamos alguma coisa acerca de cilício no salmo onde se encontra o versículo: “Eu, porém, quando molestado, vestia-me de cilício, extenuava com o jejum a minha alma” (Sl 34,13). “Vesti-me de cilício”, isto é, apresentei-lhes minha carne, para ser maltratada; ocultei minha divindade. “Cilício”, porque a carne era mortal, a fim de que, em vista do pecado, condenasse o pecado na carne (Rm 8,3). “Vesti-me de cilício e tornei-me parábola para eles”, isto é, objeto de zombaria. Chama-se parábola uma comparação, mas em mau sentido. Assim, por exemplo, se alguém diz: Morra como aquele homem, trata-se de uma parábola. É uma comparação, e assemelha-se a uma maldição. “Tornei-me, portanto, parábola para eles”. | |
§ 16 | 13 “Ultrajaram-me os que se sentavam à porta”. À porta, não quer dizer senão: em público. “E contra mim entoavam canções os que bebiam vinho”. Julgais, irmãos, que isto sucedeu apenas a Cristo? Todos os dias isto acontece em seus membros a ele. Se acaso um servo de Deus se vê na necessidade de se opor à embriaguez e à luxúria em alguma pro-priedade ou povoado, onde não tiver sido pregada a palavra de Deus, não basta a esses homens cantar, mas além disso começam a cantar contra ele, porque lhes proíbe cantar. Comparai agora o jejum do servo de Deus e a bebida destes. “Contra mim entoavam canções os que bebiam vinho”, o vinho do erro, o vinho da impiedade, o vinho da soberba. | |
§ 17 | 14 “Eu, porém, Senhor, dirijo-te a minha a oração”. Eu, porém, estava junto de ti. Mas como? Dirijindo-te a minha prece. Quando fores amaldiçoado, e nada puderes fazer; quando te lançar alguém injúrias e não tiveres meios de corrigir o injuriador, nada te resta senão rezar. Mas lembra-te de rezar também por ele. “Eu, porém, Senhor, dirijo-te a minha oração, no tempo favorável, ó Deus”. Eis que o grão é sepultado na terra; o fruto surgirá. “No tempo favorável, ó Deus”. Deste tempo falaram também os profetas e o Apóstolo o relembra: “Eis agora o tempo favorável por excelência. Eis agora o dia da salvação”. “No tempo favorável, ó Deus. Em tua imensa misericórdia”. Pois se a tua misericórdia não fosse imensa, que faríamos da multidão de nossas iniqüidades? “Em tua imensa misericórdia. Escuta-me segundo a fidelidade de teu socorro”. Tendo mencionado: “tua misericórdia”, acrescentou: fidelidade, porque misericórdia e fidelidade são todos os caminhos do Senhor (cf Sl 24,10). Por que motivo fala em misericórdia? Porque perdoa os pecados. Por que fidelidade? Porque cumpre as promessas. “Escuta-me segundo a fidelidade de teu socorro”. | |
§ 18 | 15 “Retira-me do lodo. Não fique atolado”. Do lado acima referido: “Atolei-me num lamaçal profundo, onde não há substância”. Como recebestes bem a explicação feita acima, nada mais há para se esclarecer aqui. O salmista quer ser libertado daquele lodo onde antes se atolara. “Retira-me do lodo. Não fique atolado”. E explica: “Livra-me dos que me detestam”. São eles, pois, o lodo, onde me atolara. Isto talvez é sugerido. Pouco acima dissera: “Atolei-me”, e agora: “Retira-me do lodo”. “Não fique atolado”, enquanto conforme a sentença anterior deveria dizer: Salva-me do lodo onde me atolara, tirando-me; e não: faça com que não me atole. Por conseguinte, atolara-se pela carne, não pelo espírito. Assim fala segundo a fraqueza de seus membros. Se, por acaso, és apanhado por aquele que te impele ao mal, de fato teu corpo está preso; segundo o corpo te atolaste, e num lamaçal profundo; mas enquanto não consentes, não afundas; se consentes, porém, tu te atolaste. Tua prece, pois, seja que apesar de estar preso teu corpo, tua alma não seja agarrada, estejas livre nos vínculos. “Livra-me dos que me detestam e das águas profundas”. | |
§ 19 | 16 “Não me afoguem as tempestades das águas”. Já mergulhara. “Fui ao alto mar”, tu disseste. “E a tempestade me submergiu”, tu disseste. Submergiu quanto à carne, não afogue segundo o espírito. Àqueles aos quais foi dito: “Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra” (Mt 10,23), foram admoestados a não se atolarem nem pela carne, nem pelo espírito. Pois, não é desejável atolar-se nem mesmo quanto à carne, mas à medida do possível, devemos evitá-lo. Se porém formos apreendidos, se cairmos nas mãos dos pecadores, o corpo se atolou num lamaçal profundo; resta pedir pela alma que não se atole, isto é, que não consintamos. Não nos afogue a tempestade das águas, para chegarmos às profundezas do lodo. “Não me trague o abismo, nem a boca do poço se feche sobre mim”. Que é isto, meus irmãos? Que súplica é esta? As profundezas da maldade humana são um poço fundo; quem ali cair, cai profundamente. No entanto, já ali, se confessar os seus pecados a seu Deus, a boca do poço não se fechará sobre ele, conforme se exprime outro salmo: “Das profundezas clamei a ti, Senhor; Senhor, escuta a minha voz” (Sl 129,1.2). Se, contudo, nele se realizar o que contém outra sentença da Escritura: “O pecador, se chegar às profundezas dos males, despreza” (Pr 18,3), a boca do poço se fechou sobre ele. Por que o poço fechou a boca? Porque fechou a boca do pecador. Perdeu ele a ocasião de confessar-se; verdadeiramente está morto e nele se realiza o que se encontra em outro lugar: “Para o morto, como se não existisse mais nada, o louvor acabou” (Eclo 17,28). Isto é horroroso, irmãos. Se vires um homem que praticou o mal e por isso está mergulhado num poço, e lhe mostrares seu pecado, se ele responder: Sim, pequei, confesso, o poço não fechou sobre ele a boca. Mas, se disser: Que mal fiz eu? tornou-se defensor de seu pecado, a boca do poço se fechou sobre ele e não há possibilidade de tirá-lo de lá. Para quem perde a ocasião de se confessar, não há mais oportunidade de misericórdia. Tu te fizeste defensor de teu pecado; como Deus pode ser teu libertador? A fim de que ele seja teu libertador, acusa-te a ti mesmo | |
II SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 17.18 A segunda parte do salmo que ontem comentamos a V. Caridade, ficou para explicarmos hoje. E vejo que está na hora de pagar nosso débito, se todavia o seu tamanho não deixar hoje ainda devedores. Aviso previamente para não esperardes longa explanação das partes mais claras. Assim poderemos nos deter nos pontos mais obscuros, e talvez completemos o que falta, de tal modo que para outros dias fiquemos devendo outras explicações e as demos. Vejamos, pois, os versículos seguintes a estes: “Nem a boca do poço se feche sobre mim”, tratados diante de V. Caridade, a fim de nos precavermos com toda intensidade de espírito, fé e piedade, evitando que tal maldição caia sobre nós. A boca do poço se fecha sobre alguém quando ele jaz no profundo da iniqüidade, mergulhado nos pecados, e além disso perde o acesso à confissão. Quando, porém, o homem diz: Sou pecador, entra um raio de luz até mesmo nas profundezas do poço. Continua o salmo, com as exclamações, no meio do sofrimento, de nosso Senhor Jesus Cristo, Cabeça e corpo. Conforme já relembramos, em determinados lugares deveis reconhecer as palavras da Cabeça. Quando as palavras não convêm à Cabeça, deveis referi-las ao corpo. Pois, Cris- to fala como sendo um só homem; verdadeiramente um só, do qual foi dito: “Serão ambos uma só carne” (Ef 5,31). Se são dois numa só carne, por que admirar que o sejam numa só voz? Pois, prossegue o salmo: “Escuta-me, Senhor, porque é benigna a tua misericórdia”. Assegurou que o motivo de ser ouvido está na benigna misericórdia de Deus. Não seria mais consentâneo dizer: Escuta-me, Senhor, para que me seja suave a tua misericórdia? Por que então: “Escuta-me, Senhor, porque é benigna a tua misericórdia?” O salmista acentuou a benignidade da misericórdia do Senhor em sua tribulação, com outras palavras: “Escuta-me, Senhor, porque estou atribulado”. Com efeito, quem diz: “Escuta-me, Senhor, porque estou atribulado” declara o motivo de pedir seja atentido; para o homem atribulado é preciso seja benigna a misericórdia de Deus. Vede como em outro ponto a Escritura se exprime sobre esta suavidade da misericórdia de Deus: “Oportuna é a misericórdia de Deus por ocasião da tribulação, é como a nuvem de chuva no tempo da seca” (Eclo 35,26). “Oportuna” aqui eqüivale a: “suave”. Também o pão é saboroso, se a fome precede. Por isso, quando o Senhor permite ou quer que soframos alguma tribulação, mesmo então é misericordioso; pois não nos tira o alimento, mas move nosso desejo. Por este motivo, que significa agora: “Escuta-me, Senhor, porque é benigna a tua misericórdia”: Não difiras o atendimento; estou tão atribulado. Seja-me suave e tua misericórdia. Diferias o socorro para que ele me fosse suave. Já não há motivo para adiares. Minha tribulação atingiu certa medida. Venha tua misericórdia, com um ato de bondade. “Escuta-me, Senhor, porque é benigna a tua misericórdia. Olha-me em tua imensa compaixão”, e não segundo a multidão de meus pecados. | |
§ 2 | 18 “Não apartes de teu servo a tua misericórdia”. É manifestação de humildade: “de teu servo”, isto é, deste pequenino; porque já deixei a soberba através do ensinamento da tribulação. “Não apartes de teu servo a tua face.” Esta é a benigna misericórdia de Deus que acima mencionei. No versículo seguinte expõe o que acaba de dizer: “Estou atribulado, apressa-te em ouvir-me”. Por que: apressa-te? Já não podes adiar: estou atribulado. Minha aflição precede; siga a tua misericórdia. | |
§ 3 | 19 “Atende a minha alma e resgata-a”. Não é necessário explicação; vejamos logo o seguinte. “Por causa de meus inimigos livra-me”. Esta prece de fato causa espanto. Não abreviemos, nem passemos por alto. É mesmo de admirar: “Por causa de meus inimigos livra-me”. Que quer dizer: “Por causa de meus inimigos livra-me?” A fim de que se envergonhem, e se aflijam por causa de minha libertação. Então, se não houvesse os que se afligissem, com minha libertação, não devia ser socorrido? Uma libertação te é agradável quando consiste na condenação de outro? Pensemos que não existem inimigos que fiquem confundidos, ou atormentados por causa de tua libertação; ficarás preso? Não serás libertado? Ou valerás a teus inimigos a conversão, por meio de tua libertação? Mas mesmo assim é de admirar a causa da petição. Porventura o servo de Deus é libertado pelo Senhor seu Deus para o proveito de outrem? Então, se não houvesse quem tirasse proveito, aquele servo de Deus não devia ser libertado? Seja para onde for que me volte, para o castigo ou para a libertação dos inimigos, não vejo a cau-sa deste pedido: “Por causa de meus inimigos livra-me”. A não ser que entendamos outra coisa. Depois que eu vô-la explicar com o auxílio do Senhor, julgará em vós aque-le que em vós habita. Existe uma libertação dos santos que é oculta; esta se realiza em proveito deles mesmos. E existe outra pública e evidente: esta se faz por causa de seus inimigos, seja para castigá-los, seja para libertá-los. Pois, efetivamente, Deus não libertou dos fogos do perseguidor os irmãos Macabeus. Antíoco, em sua raiva contra eles, empregou até a mãe deles. Queria que por suas carícias os levasse ao amor à vida, e amando a vida humana, morressem para Deus. Aquela mãe, ao invés, já não semelhante a Eva, e sim à Igreja, nossa mãe, contemplava com alegria diante da morte aqueles filhos que dera à luz na dor para tê-los vivos. Exortou-os a preferirem morrer pelas leis paternas do Senhor seu Deus a viverem contra elas (cf 2Mc 7). O que podemos acreditar, irmãos, a não ser que tenham sido libertados? Mas sua libertação foi oculta. Enfim, o próprio Antíoco, que os matou, pensava que havia feito o que ditava sua crueldade, ou antes o incitava a fazer. Ao contrário, os três jovens foram libertados manifestamente da fornalha ardente, porque seu corpo foi tirado de lá e sua salvação foi pública (cf Dn 3,49). Os primeiros, portanto, foram coroados ocultamente, e os segundos publicamente libertados; todos, contudo, salvos. Qual o fruto da libertação dos três jovens? Por que sua coroa foi adiada? O próprio Nabucodonosor converteu-se ao Deus deles. Ele anunciou que Deus livrou seus servos que ele havia desprezado, quando os lançou na fornalha ardente. Existe, portanto, libertação oculta; e há libertação manifesta. A libertação oculta pertence à alma e a manifesta ao corpo. Ocultamente a alma é libertada, e publicamente o corpo. Mas, se assim é, reconheçamos neste salmo a voz do Senhor; à libertação oculta pertence o que mencionei supra: “Atende a minha alma e resgata-a”. Resta a libertação do corpo, porque quando ele ressurgiu, subiu aos céus, e enviou do alto o Espírito Santo, converteram-se, crendo nele, aqueles que se encarniçaram por ocasião de sua morte; e de inimigos tornaram-se amigos por obra da graça de Deus e não devido a sua própria justiça (cf At 1,9; 2,4). Por isso, continua o salmo: “Por causa de meus inimigos livra-me. Atende a minha alma”; mas isto ocultamente. “Por causa de meus inimigos”, porém, livra também o meu corpo. De nada aproveitará a meus inimigos, se livrares apenas a minha alma; pensarão que fizeram alguma coisa, que realizaram algo. Que aproveitará meu sangue, se eu baixar à sepultura? (Sl 29,10). Por isso, “atende a minha alma e resgata-a”, sendo isto de teu conhecimento apenas; em seguida, também “por causa de meus inimigos livra-me”, para que minha carne não sofra a corrupção. 1 Cf Com. s/ sl. 34, sermão II,3. | |
§ 4 | 20.21 “Conheces meu opróbrio, minha confusão e minha ignomínia”. Que é opróbrio? Que é confusão? Que é ignomínia? Opróbrio é aquilo que o inimigo lança. Confu-são é aquilo que atormenta a consciência. Ignomínia aquilo que faz uma face nobre se corar mesmo de uma falsa acusação. Não houve crime; ou se houve, não aquele de que alguém é acusado; contudo a fraqueza da alma humana muitas vezes leva à vergonha, mesmo diante de falsa acusação; não por causa da acusação, mas porque assim todo o mundo crê. Essas coisas todas acontecem ao corpo do Senhor. Pois, nele não podia haver confusão, porque não tinha culpa alguma. Os cristãos eram acusados pelo fato mesmo de serem cristãos. Isso constituía para eles uma glória. Os fortes o aceitavam de boa mente, e o aceitavam de tal modo que de forma alguma se envergonhavam do nome de seu Senhor. A irreverência cobrira-lhes o rosto, e tinham a coragem de Paulo para declararem: “Na verdade, eu não me envergonho do evan-gelho; ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crer” (Rm 1,16). Ó Paulo, não és adorador do Crucificado? Pouco importa, diz ele, não me envergonho disso; ao contrário, glorio-me apenas daquilo de que os inimigos pensam que me envergonho. “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,12). A este rosto, pois, somente o opróbrio podia ser lançado. De fato, não podia haver confusão em sua consciência já curada, nem ignomínia numa fronte tão livre. Mas, quando alguns eram acusados de ter matado o Cristo, com razão se arrependeram do que lhes pesava na consciência, e confusos e convertidos para sua salvação, puderam dizer: “Conheces minha confusão”. Tu, portanto, Senhor, conheceste não somente meu opróbrio, mas também minha confusão. Em alguns, conheceste também a ignomínia, porque apesar de crerem em mim, publicamente, diante dos ímpios envergonham-se de me confessar, tendo maior valor para eles a língua humana do que a promessa divina. Vede-os, pois; recomendai-os a Deus, a fim de que não os deixe neste estado, mas ajude-os a melhorarem. Disse ao Senhor certo homem que tinha uma fé hesitante: “Eu creio!”, Senhor. “Ajuda a minha incredulidade” (Mc 9,23). “Diante de ti estão todos os que me afligem”. Sabes qual o meu opróbrio. Sabes qual minha confusão. Sabes qual a minha ignomínia. Por conseguinte, por causa de meus inimigos, uma vez que conheces estas minhas fraquezas que eles desconhecem, e como elas estão em tua presença, não poderão confundir-se nem corrigir-se os que as desconhecem, se não me livrares manifestamente por causa de meus inimigos. | |
§ 5 | 21 “Meu coração aguardou apenas invectivas e misérias”. Que significa: aguardou? Ele previu o que havia de acontecer e o predisse. Não veio com outra finalidade. Se não quisesse morrer, nem teria nascido; ambas as coisas ele as fez por causa da ressurreição. Os dois fatos eram conhecidos no gênero humano, o outro era desconhecido. Efetivamente, sabíamos que os homens nascem e morrem; mas desconhecíamos que ressuscitariam e viveriam eternamente. No intuito de nos mostrar o que desconhecíamos, assumiu as duas fases que conhecíamos. Veio para este fim. “Meu coração aguardou apenas invectivas e misérias”. Mas, miséria de quem? Aguardou a miséria, mas principalmente a dos que crucificavam, dos perseguidores, de tal forma que a miséria existisse neles e no Senhor houvesse misericórdia. Ele se compadeceu da miséria daqueles, mesmo quando estava crucificado. Disse: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34). “Meu coração aguardou apenas invectivas e misérias. Esperei quem comigo se contristasse e não houve”. De que serviu ter eu esperado? isto é, que adiantou minha predição? Para que disse o fim de minha vinda? Vim para que se cumprisse o que afirmei: “Esperei quem comigo se contristasse e não houve; quem me consolasse e não achei”, isto é, não existiu. No primeiro versículo disse: “Esperei quem comigo se contristasse”, e no segundo, o mesmo: “quem me consolasse”. No primeiro versículo: “e não houve”, e no seguinte: “e não achei”. Portanto, não é oração subordinada, mas repetição da primeira sentença. Se reconsiderarmos esta sentença, poderá surgir uma questão. Acaso seus discípulos não se contristaram quando foi conduzido à paixão, quando foi pregado no madeiro, quando morreu? De tal forma se entristeceram que Maria Madalena, que o viu primeiro, com alegria anunciou aos discípulos que choravam aquilo que ela vira (cf Jo 20,18). Assim o declara o evangelho. Não é uma imaginação, uma conjectura minha. Consta que os discípulos estavam mergulhados na dor, que choraram. Mulheres estranhas choravam quando ele era levado à paixão; o Senhor voltando-se para elas, disse: “Chorai, antes, por vós mesmas” (Lc 23,28), não por mim. Como, então, esperou quem com ele se contristasse e não houve? Observamos, e encontramos os discípulos tristes, chorosos, gemendo; daí parecer-nos de admirar esta sentença: “Esperei quem comigo se contristasse e não houve; quem me consolasse e não achei”. Observemos mais atantamente e veremos que ele esperou quem com ele se contristasse e não houve. Pois, os discípulos se constris-tavam carnalmente acerca da vida mortal, que mudaria pela morte, mas seria restaurada pela ressurreição. Daí provinha aquela tristeza. Essa devia ter sido a daqueles cegos que mataram o médico, dos frenéticos com febre alta e permiciosa que injuriavam quem lhes dera a saúde. Ele queria curar, mas os outros se enfureciam; daí a tristeza do médico. Examina se ele encontrou quem o acompanhasse nessa tristeza. Não disse: esperei quem se contristasse e não houve, mas: “quem comigo se contristasse”, isto é, a respeito do motivo de minha tristeza, “e não houve”. Pedro, certamente amou-o muito, se lançou sem hesitar a andar sobre as ondas, e foi libertado a uma palavra do Senhor (Mt 14,29.31). Mas quando este foi levado à paixão, seguiu-o com a audácia do amor; no entanto, perturbou-se e o negou três vezes. Donde veio isto, senão porque parecia-lhe um mal a morte? Então, evitava o que considerava um mal. Doía-lhe ver no Senhor o que evitava para si. Foi por isso que dissera antes: “Deus não o permita, Senhor! Isto jamais te acontecerá” e então mereceu ouvir o nome: Satanás! depois de ter ouvido: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas” (Mt 16,17.122.23). Por conseguinte, na tristeza que sentiu o Senhor por causa daqueles pelos quais orou: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34), não encontrou quem lhe fizesse companhia. “Esperei quem comigo se contristasse e não houve”. Não houve absolutamente. “Quem me consolasse e não achei”. Quais são os consoladores? Os que procuram progredir. Pois estes nos consolam, são um conforto para todos os pregadores da verdade. | |
§ 6 | 22 “Deram-me fel por alimento e em minha sede deram-me vinagre a beber”. Realizou-se à letra. O evangelho nô-lo indica. Mas, entendamos, irmãos. O fato de não ter encontrando quem me consolasse, de não ter achado quem comigo se contristasse tornou-se fel para mim, foi amargo, foi vinagre. Amargo devido à tristeza, vinagre por causa de seus antigos costumes. Pois lemos que foi-lhe oferecido fel, mas sgundo o evangelho para beber e não como alimento (Mt 27,34). Todavia, deve-se entender que se cumpriu esta predição: “Deram-me fel por alimento”. Devemos no próprio fato e não somente nas palavras procurar o mistério, investigar os segredos, entrar através do véu rasgado do templo, ali contemplar o sacramento, a razão do que foi dito e realizado. Diz o salmista: “Deram-me fel por alimento”. Não era alimento o que fora dado, pois era bebida; mas deram-no como “alimento”. O Senhor já recebera alimento, misturado com fel. Recebera, porém, um alimento suave, ao comer a páscoa com seus discípulos; então apresentou o sacramento de seu corpo (cf Lc 22,19). Neste alimento tão suave, tão doce da unidade do Cristo, que o Apóstolo recomenda, dizendo: “Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo” (1 Cor 10,17), neste alimento tão suave quem é que coloca fel, senão os contraditores do evangelho, como aqueles perseguidores de Cristo? Menos pecaram os judeus que o crucificaram na terra do que aqueles que o desprezam quando já está sentado no céu. Fazem, pois, o mesmo que os judeus, os quais acrescentaram ao alimento que ele já tomara aquela bebida amarga, os que dão escândalo na Igreja, vivendo mal. Assim agem, os hereges rebeldes, mas não se elevem em si mesmos (cf Sl 65,7). Oferecem fel após alimento tão agradável. Mas o que faz o Senhor? Não os admite em seu corpo. Sinal disto é o próprio Senhor, que ao lhe oferecerem fel, provou e não quis beber (cf Mt 27,34). Se não os suportássemos, também de forma alguma os provaríamos; mas como é necessário suportá-los, temos de prová-los. Como esses tais não podem estar entre os membros de Cristo, podem ser provados, não porém ser recebidos no corpo. “Deram-me fel por alimento e em minha sede deram- me vinagre a beber”. Tinha sede e aceitei o vinagre; isto é, desejei a sua fé, mas encontrei os velhos costumes. | |
§ 7 | 23.24 “Sua mesa se lhes transforme em armadilha”. Sirva-lhes de armadilha a mesma que me armaram, dando-me tal bebida. Por que: lhes? Bastaria: “Sua mesa se transforme em armadilha”. Eles são dos tais que estão cientes de sua maldade e nela perseveram com pertinácia. Ela se lhes transforme em armadilha. São extremamente perniciosos estes que descem vivos à morada dos mortos (cf Sl 54,16). Finalmente, que se diz dos perseguidores? “Se o Senhor não estivesse conosco, decerto nos teriam devorado vivos” (Sl 123,2.3). Por que: “vivos?” Porque concordamos com eles, certos, no entanto, de que não devíamos consentir. Por isto, transforme-se-lhes em armadilha; e não se corrigem. Uma vez que a armadilha está diante deles, não reincidem? Eles sabem que ali está uma armadilha, põem o pé e dobram o pescoço. Como não seria melhor desviar-se da armadilha, reconhecer o pecado, condenar o erro, estar livre de amargura, entrar no corpo de Cristo, procurar a glória de Deus! Mas a tanto chega a presunção do espírito que a armadilha está diante deles e eles nela caem. Seus olhos se “obscureçam e não vejam”, prossegue o salmo. Uma vez que viram sem proveito, que não vejam mais. “Sua mesa se lhes transforme em armadilha. Transforme-se-lhes em armadilha”, não é desejo, mas profecia; não é para que se faça, mas porque há de acontecer. Freqüentemente notamos isto, e deveis vos lembrar, a fim de que não vos pareça malévola impressão o que a mente do profeta declara sob inspiração do Espírito de Deus. Faça-se, portanto; nem poderá ser de outro modo, senão que tais coisas aconteçam a eles. E como vemos que através do Espírito de Deus tais males hão de vir para os maus, entendamos que se referem a eles, de tal sorte que os evitemos. É bom que o entendamos e tiremos proveito do exemplo de nossos inimigos. Venha, pois, sobre eles a “punição, o tropeço. Seria injusto? Não, é justo. Por que razão? Porque é punição”. Não lhes acontece o que não mereciam. Torne-se “punição, tropeço”, porque eles mesmos são escândalos para si. | |
§ 8 | “Seus olhos se obscureçam e não vejam e seu dorso se incurve para sempre”. É conseqüente. Aqueles cujos olhos se obscureceram para que não vejam, em conseqüência disso, têm o dorso encurvado. Donde provém isto? Como deixaram de conhecer as coisas do alto, necessariamente cogitam das inferiores. Quem ouve bem: Corações ao alto, não curva o dorso. Ereto, aguarda a realização de sua esperança depositada no céu; principalmente se de antemão enviar para lá seu tesouro, aonde seguirá o coração (cf Mt 6,21). Ao invés, os que, já obcecados, não entendem a esperança da vida futura, pensam nas coisas inferiores. Isto é que se chama ter o dorso encurvado. Desta doença o Senhor livrou aquela mulher. Satanás a havia prendido havia dezoito anos. O Senhor ergueu a mulher recurvada; mas como o fizera no sábado, os judeus se escandalizaram. Está certo que os judeus se tenham escandalizado com a mulher reta, pois eles eram recurvados (cf Lc 13,16). “E seu dorso se incurve para sempre”. | |
§ 9 | 25 “Derrama sobre eles tua ira e a indignação de tua cólera os alcance”. É claro. Todavia, “os alcance”, como se estivessem fugindo. Para onde hão de fugir? Para o céu? Tu lá estás. Para o inferno? Estás presente (cf Sl 138,8). Não querem usar de suas asas, para voarem diretamente: “E a indignação de tua cólera os alcance”, não permitindo que fujam. | |
§ 10 | 26 “Sua habitação fique deserta”. Isto já se realiza manifestamente. Como havia aludido a sua libertação não só oculta com as palavras: “Atende a minha alma e resgata-a”, mas também à libertação manifesta, quanto ao corpo, acrescentando: “Por causa de meus inimigos livra-me”, assim também a eles prediz algumas calamidades futuras, mas ocultas, das quais falava um pouco acima. Pois, quantos são os que entendem a infelicidade do homem cujo coração já está cego? Arranquem-se-lhe os olhos do corpo e todos o chamarão de infeliz; perca os olhos espirituais, embora tenha abundância de bens e chamam-no de feliz, mas apenas os que igualmente perderam os olhos espirituais. Então, qual o castigo evidente, para que todos vejam que é castigo? Pois, a cegueira dos judeus foi punição oculta; qual a pública? “Sua habitação fique deserta e não haja quem habite em suas tendas”. Assim sucedeu à própria cidade de Jerusalém, na qual se viram os poderosos a clamarem contra o Filho de Deus: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Jo 19,6), e prevaleceram porque puderam matar aquele que ressuscitava mortos. Como se julgaram poderosos, importantes! Seguiu-se a vingança do Senhor. A cidade foi tomada, vencidos os judeus, mortos não sei quantos milhares de homens. Agora a nenhum judeu é permitido ter acesso a ela. Puderam ali clamar contra o Senhor; ali o Senhor não lhes permite habitar. Perderam o lugar onde se mostrou o seu furor; oxalá agora ao menos conheçam o lugar de seu repouso! De que lhes serviu a declaração de Caifás: “Se o deixarmos assim, os romanos virão, destruindo o lugar santo e a nação”? (Jo 11,48). Eis que eles não o deixaram vivo e no entanto ele vive; e vieram os romanos e lhes tomaram o lugar santo e o reino. Acabamos de ouvir na leitura do evangelho: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu juntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas, e não o quiseste! Eis que a vossa casa vos ficará abandonada” (Mt 23,37.38). Identifica-se com o que se diz no salmo: “Sua habitação fique deserta e não haja quem habite em suas tendas. Não haja quem habite” dentre os judeus. Pois aqueles lugares todos estão cheios de homens, mas desprovidos de judeus. | |
§ 11 | 27 Por que motivo? “Pois perseguiram aquele a quem feriste e agravaram a dor de minhas feridas”. Qual o seu pecado ao perseguir aquele a quem Deus feriu? Que lhe é imputado? A malícia. Pois, realizou-se em Cristo aquilo que importava se realizar. Viera, de fato, para sofrer, mas ele puniu o agente da paixão. O traidor Judas foi castigado, e Cristo foi crucificado, mas redimiu-nos com seu sangue, enquanto puniu a Judas pelo preço que recebeu. Este lançou fora as moedas de prata, pelas quais vendera o Senhor e não conheceu o resgate que o Senhor pagou por ele. Isto se cumpriu em Judas (cf. Mt 27,5). Mas se considerarmos certa medida de retribuição em todos, e que ninguém pode se enfurecer mais além do poder que recebeu, como foi que eles agravaram a sua dor, ou que significa este ferimento infligido ao Senhor? Com efeito, ele fala em lugar daquele do qual recebera ao corpo, de quem assumira a carne, isto é, do gênero humano, do próprio Adão, o primeiro a ser ferido de morte devido a seu pecado (cf Gn 3,19). Por conseguinte, os homens nascem mortais, marcados pela pena; esta pena se agrava em qualquer homem que for perseguido. Pois o homem não haveria de morrer se Deus não o ferisse; porque então, tu, ó homem, te encarniças mais ainda? É pouco que tenha de morrer um dia? Portanto, cada qual carrega a sua pena; e a esta pena querem agravar os que nos perseguem. Esta pena é infligida pelo Senhor. Efetivamente, a sentença do Senhor atingiu o homem: “No dia em que dela comeres terás de morrer” (Gn 2,17). Cristo assumiu esta carne atingida pela morte. Nosso velho homem foi crucificado com ele (cf Rm 6,6). No lugar deste homem o salmista proferiu estas palavras: “Pois perseguiram aquele a quem feriste e agravaram a dor de minhas feridas”. Que dor das feridas eles agravaram? Agravaram a do dos pecados. Chama de feridas os seus pecados. Mas não olhes para a Cabeça, volta a atenção para o corpo, em lugar de quem ele falou naquele salmo, onde sua voz aparece, uma vez que ele recitou da cruz seu primeiro versículo: “Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste?” E continua: “Longe de minha salvação as vozes de meus delitos” (Sl 21,2). São desta espécie as feridas infligidas pelos ladrões no caminho àquele que o samaritano levou em seu jumento e que o sacerdote e o levita de passagem viram e desprezaram e não puderam cuidar dele. O samaritano que passava teve compaixão dele. Aproximou-se e colocou-o em seu próprio jumento (cf Lc 10,30-34). Samaritano, traduzido para o latim, é guarda. Quem é este guarda, senão nosso Salvador o Senhor Jesus Cristo? Ele ressuscitou dos mortos para não mais morrer (cf Rm 6,9). Não dormita nem há de dormir o que guarda Israel (cf Sl 120,4). “E agravaram a dor de minhas feridas”. | |
§ 12 | 28 “Acumula iniqüidade sobre iniqüidade”. Que significa isto? Quem não se assustará? Diz-se a Deus: “Acumula iniqüidade sobre iniqüidade”. Como Deus acumulará iniqüidade? Acaso tem alguma para acumular? Sabemos que é verdade o que diz o apóstolo Paulo: “Que di-remos então? Que há injustiça por parte de Deus? De modo algum” (Rm 9,14). Então, como se diz: “Acumula iniqüidade sobre iniqüidade”? Como entender isto? Esteja Deus conosco para o explicarmos, e possamos fazê-lo brevemente, tendo em conta vosso cansaço. A iniqüidade deles consistia em terem matado o justo; acrescente-se ainda que crucificaram o Filho de Deus. Sua fúria se desencadeou contra um homem; mas se o conhecessem, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). Eles, em sua iniqüidade, quiseram matá-lo como a um homem; uma iniqüidade se acumulou a outra, ao crucificarem o Filho de Deus. Quem acumulou esta iniqüidade? Aquele que disse: “Irão poupar o meu filho”. Enviá-lo-ei (Mt 21,37). Eles costumavam matar os servos que lhes eram enviados para cobrar o aluguel e os juros. O senhor da vinha enviou o próprio Filho, para que eles o matassem. Deixou que acumulassem iniqüidade sobre iniqüidade. Deus assim agiu, furioso, ou antes retribuindo com justiça? “Transforme-se-lhes em punição, tropeço”. Haviam merecido esta cegueira de não reconhecerem o Filho de Deus. Deus assim agiu, deixando que acumulassem iniqüidade sobre iniqüidade, não ferindo, mas também não curando. Da mesma forma que aumentas a febre, aumentas a doença, não empregando outra doença, mas deixando de socorrer, assim eles eram dos que mereciam ser curados, e aumentaram de certo modo sua malícia, conforme está escrito: “Quanto aos homens maus e impostores, eles progredirão no mal” (2 Tm 3,13); e acumulou-se iniqüidade sobre iniqüidade. “E não participem de tua justiça”. Isto é evidente. | |
§ 13 | 29 “Sejam riscados do livro dos vivos”. Alguma vez eles estavam inscritos neste livro? Irmãos, não devemos pensar que Deus inscreva o nome de alguém no livro da vida, e apague-o. Se um homem declarou: “O que escrevi, está escrito”, a respeito do título: “O rei dos judeus” (Jo 19,22), Deus haveria de escrever e apagar? Ele é presciente. Predestinou antes da criação do mundo todos os que haveriam de reinar com seu Filho na vida eterna (cf Rm 8,29). Finalmente, como fala o Espírito de Deus no Apocalipse, ao se referir às angústias que provocará o anticristo? “Adoraram-na todos cujo nome não está escrito no livro da vida” (Ap 13,8). Em conseqüência, sem dúvida alguma não adorarão aqueles cujo nome está escrito. Como então será apagado o nome se nunca foi escrito? É um modo de se expressar conforme a esperança deles, que se julgavam inscritos. Que quer dizer: “Sejam riscados do livro da vida?” E no entanto, consta que eles lá não estão. Conforme este modo de se exprimir foi dito em outro salmo: “Mil cairão a teu lado, dez mil a tua direita” (Sl 90,7), isto é, muitos tropeçarão, pois esperavam ser do número dos que se sentarão a teu lado, esperavam ser do número dos que estarão à direita, e serão separados à esquerda, com os cabritos (cf Mt 25,33). Não digo que alguém estará ali primeiro e depois cairá, ou estará sentado junto dele e será rejeitado, mas que muitos cairão, com um choque, quando já se julgavam ali; isto é, muitos que tinham a esperança de sentar-se com Cristo, muitos que esperavam estar à direita, hão de cair. Assim acontece aqui com os que esperavam pelo mérito de sua justiça serem inscritos no livro de Deus, e aos quais se diz: “Vós examinais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna” (Jo 5,39); ao chegar sua condenação a seu conhecimento, serão apagados do livro dos vivos, isto é, conhecerão que lá não se encontram. Pois, o versículo seguinte expõe o que foi dito: “E não sejam inscritos entre os justos”. Disse, portanto: “Sejam riscados”, o que corresponde à esperança deles; de acordo com a eqüidade do Senhor que digo? “Não sejam inscritos”. | |
§ 14 | 30 “Quanto a mim, sou pobre e estou dolorido”. Por quê? Será para sabermos que este pobre maldiz devido à amargura do espírito? Proferiu ele muitas coisas que lhe acontecerão. E como se lhe tivéssemos dito: Por que tais coisas? Não queira tantos males, responderá: “Quanto a mim, sou pobre e estou dolorido”. Reduziram-me à pobreza, provocaram em mim tal dor; por isso assim falo. Não é, contudo, raiva de quem maldiz, mas predição de profeta. Pois, mais adiante trata de certas conseqüências de sua pobreza e de sua dor, recomendando-nos a aprendermos a ser pobres e doloridos. Pois, são “bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”; e: “bem-venturados os aflitos, porque serão consolados” (Mt 5,3.5). Por conseguinte, o próprio Senhor antes já nô-lo mostrou; por isso: “Quanto a mim sou pobre e estou dolorido”. É todo o seu corpo que assim reza. O corpo de Cristo na terra é pobre e dolorido. Mas, haja cristãos ricos. Se são efetivamente cristãos, são pobres; em comparação das riquezas celestes que esperam, todo seu ouro eles o consideram como areia. “Quanto a mim, sou pobre e estou dolorido”. | |
§ 15 | 31 “A salvação que vem de teu rosto, ó Deus, me amparou”. Acaso este pobre foi abandonado? Quando te dignarás receber em tua mesa um pobre em andrajos? Entretanto, a salvação que vem do rosto de Deus o amparou; em sua face ele escondeu a pobreza dele. Na verdade, foi dito a este respeito: “Abrigá-los-ás no esconderijo de tua face” (Sl 30,21). Quereis saber quais as riquezas escondidas naquele rosto? As riquezas da terra te possibilitam comer o que queres, quando queres, aquelas, porém, de que nunca tenhas fome. “Quanto a mim, sou pobre e estou dolorido. A salvação que vem de teu rosto, ó Deus, me amparou”. Com que finalidade? Para que deixe de ser pobre e sofredor. “Louvarei em cântico o nome de Deus e o engrandecerei com louvor”. Já foi dito: este pobre louva o nome de Deus com cânticos, engrandece-o com louvor. Quando ousaria cantar, se não tivesse saciado sua fome? “Louvarei em cânticos o nome de Deus e o engrandecerei com louvor”. Imensas riquezas! Que gemas de louvor a Deus retirou do seu tesouro interior! “Engrandecê-lo-ei com louvor”. Eis minhas riquezas. “O Senhor o deu, o Senhor o tirou”. Portanto, permaneceu infeliz? De forma alguma. Vê suas riquezas: conforme agradou ao Senhor, assim se fez “Bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). “Louvarei em cânticos o nome de Deus e o engrandecerei com louvor”. | |
§ 16 | 32 “Será isto mais grato a Deus” (será agradável que eu o louve) “do que um novilho tenro, já com chifres e unhas”. Mais aprazível lhe será o sacrifício de louvor que o sacrifício de um novilho. “O sacrifício de louvor me glorificará, e ali está o caminho em que lhe mostrarei a salvação de Deus. Oferece a Deus um sacrifício de louvor e cumpre os teus votos ao Altíssimo” (Sl 49,43.14). Por conseguinte, louvarei a Deus, e isto lhe será mais grato do que um novilho tenro, “já com chifres e unhas”. Muito mais, portanto, agradará a Deus seu louvor que sai de minha boca do que uma excelente vítima levada a seu altar. Falaríamos algo a respeito dos chifres e unhas deste novilho? Quem for bem treinado e generoso no louvor de Deus deve ter chifres para lançar ao ar o adversário e unhas para arranhar a terra. Sabeis que assim fazem os novilhos já maiores, quando começam a ter a audácia dos touros. Pois, é ainda tenro, pela vida nova que tem. Se então um herege o contradiz, seja atacado com os chifres. Outro não contradiz, mas tem gosto pelas coisas terrenas e abjetas; seja atacado com as unhas. Por conseguinte, agradar-te-á meu louvor mais do que este novilho, naquela eterna sociedade dos anjos, após a pobreza e a dor, quando não haverá adversário a ser projetado longe no combate, nem um preguiçoso a ser levantado da terra. | |
§ 17 | 33 “Vejam os pobres e se regozijem”. Creiam e se alegrem na esperança. É preferível serem pobres a fim de merecerem ser saciados; não arrotem a saturidade da soberba, pois do contrário ser-lhes-ia negado o pão que lhes traz vida sadia. “Buscai o Senhor”, ó pobres; sede fa-mintos e sedentos. Ele é o pão vivo que desceu do céu (cf Mt 5,6; Jo 6,51). “Buscai o Senhor e vossa alma reviverá”. Procurais o pão para que viva vossa carne; procurai o Senhor a fim que reviva a vossa alma. | |
§ 18 | 34 “Porque o Senhor ouviu os pobres”. Ouviu os pobres; não os ouviria se não fossem pobres. Queres ser atendido? Sê pobre. Clama por causa da dor e não do fastio. “Porque o Senhor ouviu os pobres; e não se descuidou de seus cativos”. Ofendido pelos escravos, mandou-os prender; mas não se descuidou do clamor de seus cativos. Quais são as suas cadeias? A mortalidade, a corruptibilidade da carne são as cadeias que nos prendem. E queres saber qual a gravidade dessas cadeias? “Um corpo corruptível pesa sobre a alma” (Sb 9,15). Quando os homens querem ser ricos neste mundo, procuram os andrajos, estas cadeias. Mas bastem os andrajos como cadeias; busca somente ter quanto necessário. Se procurares o supérfluo, desejas onerar tuas cadeias. Nesta prisão somente as cadeias. “Baste a cada dia o seu cuidado” (cf Mt 6,34). Desta preocupação brota nosso clamor a Deus: “Porque o Senhor ouviu os pobres; e não se descuidou de seus cativos”. | |
§ 19 | 35 “Louvem-no os céus e a terra, os mares e tudo o que neles se move”. As verdadeiras riquezas deste pobre consiste em observar a criação e louvar o Criador. “Louvem-no os céus e a terra, os mares e tudo o que neles se move”. A criação pode louvar a Deus somente quando quem a considera o louva. | |
§ 20 | 36.37 Ouve além: “Porque Deus salvará Sião”. Ele restaura sua Igreja, incorporando as gentes fiéis a seu Unigênito. Não defrauda os que nele crêem do prêmio prometido. “Porque Deus salvará Sião e reedificará as cidades da Judéia”. Trata-se das igrejas. Ninguém diga: Quando será que serão edificadas as cidades da Judéia? Oh! se quisesses reconhecer a construção, e ser uma pedra viva para nela entrares! Também agora se edificam as cidades da Judéia. Judá se traduz por confissão. Com a confissão da humildade se edificam as cidades da Judéia, de tal sorte que ficam fora os soberbos, os quais se envergonham de confessar. “Porque Deus salvará Sião”. Que Sião? Ouve os versículos seguintes: “E a descendência de seu servo a obterá e os que amam o seu nome nela terão morada”. | |
§ 21 | Terminamos o salmo; mas por um pouco ainda não deixemos estes dois versículos. Eles nos advertem acerca de alguma coisa, a fim de não perdermos a esperança e entrarmos naquela construção. “A descendência de seu servo a obterá”. Quem é “a descendência de seu servo?” Talvez respondes: Os judeus nascidos de Abraão; nós, porém, que não nascemos de Abraão, como possuiremos esta cidade? Mas não faziam parte da descendência de Abraão aqueles judeus aos quais foi dito: “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão” (Jo 8,39). “E a descendência de seu servo a obterá”. Os imitadores da fé de seus servos, “a obterão”. Enfim, o último versículo expõe o anterior. No intuito de não julgares, perturbado, aplicar-se aos judeus: “E a descendência de seu servo a obterá”, e replicares: Nós somos descendentes dos gentios, que adoraram os ídolos e serviram os demônios; que podemos esperar desta cidade? O salmista logo acrescenta, para presumires e esperares: “E os que amam o seu nome nela terão morada”, a saber, “a descendência de seu servo, que amam o seu nome”. Seus servos amaram seu nome. Todo aquele que não amar seu nome não diga que pertence à descendência de seus servos; ao invés, os que amam seu nome, não neguem que participam da desdendência de seus servos. | |