ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 67 | ||
§ 67:1 | Ɗ Deus se compadeça de nós e nos abençoe, e faça resplandecer o seu rosto sobre nós, | |
§ 67:2 | ᵽ para que se conheça na terra o seu caminho e entre todas as nações a sua salvação. | |
§ 67:3 | Ł Louvem-te, ó Deus, os povos; louvem-te os povos todos. | |
§ 67:4 | Ɑ Alegrem-se e regozijem-se as nações, pois julgas os povos com eqüidade, e guias as nações sobre a terra. | |
§ 67:5 | Ł Louvem-te, ó Deus, os povos; louvem os povos todos. | |
§ 67:6 | Ɑ A terra tem produzido o seu fruto; e Deus, o nosso Deus, tem nos abençoado. | |
§ 67:7 | Ɗ Deus nos tem abençoado; temam-no todas as extremidades da terra! | |
O SALMO 67 | ||
§ 1 | 1.5 O título deste salmo não parece ser difícil de explicar, pois, à primeira vista, é simples e acessível. Assim se formula: “Para o fim, de Davi. Salmo de cântico”. Já tratamos, em muitos salmos, do sentido da expressão: “Para o fim”, porque “o fim da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Fim que dá acabamento, e não que consome ou perde. No entanto, se alguém estiver empenhado em verificar o que quer dizer: “Salmo de cântico”, e por que razão não se encontra “salmo” ou “cântico”, mas ambos, ou então, que diferença há entre salmo de cântico ou cântico de salmo (porque assim se intitulam alguns salmos), descobrirá talvez algo que deixamos para os mais perspicazes e que disponham de mais lazer. Alguns comentadores antes de nós distinguiram os salmos dos cânticos. Tendo em vista que o cântico é oral, e o salmo é acompanhado de instrumento visível, isto é, do saltério, parece que o cântico representa o entendimento do espírito, enquanto o salmo representaria as obras corporais. Assim, neste salmo sexagésimo sétimo, que agora empreendemos comentar, o versículo: “Cantai a Deus, salmodiai a seu nome”, foi interpretado por alguns, com uma distinção. Parece ter sido dito: “Cantai a Deus”, porque aquilo que a mente opera em si mesma é conhecido de Deus, mas não é visto pelos homens. Quanto às boas obras, uma vez que devem ser vistas pelos homens para que glorifiquem nosso Pai que está nos céus (cf Mt 5,16), com justeza foi dito: “Salmodiai a seu nome”, isto é, sejam divulgadas, para que o Pai seja nomeado com louvores. Quanto me lembro, eu também, em outro lugar, segui esta interpretação. Lembro-me de que nós também lemos: “Salmodiai a Deus” (Sl 46,7) assim: Agradam as nossas boas obras visíveis não apenas aos homens, mas também a Deus. Pois, nem tudo o que apraz a Deus agrada também aos homens, que não o podem ver. Daí ser de admirar que se leiam ambas as expressões: “Cantai a Deus e salmodiai a Deus”, como também em outro lugar: “Cantai a seu nome”. Se também isto se encontra nas Sagradas Escrituras, foi inútil estabelecer uma diferença. Impressiona-me também que, em geral, sejam chamados salmos de preferência a cânticos. Assim, o Senhor disse: “Tudo o que está escrito sobre mim na Lei, nos profetas e nos salmos” (Lc 24,44). O próprio livro é dito: dos salmos, não: dos cânticos. Ele declarou: “Pois está escrito no livro dos salmos” (At 1,20), enquanto era preferível, conforme esta diferença, chamar de cânticos, uma vez que um cântico pode existir sem ser salmo, mas o salmo sem cântico não existe. Com efeito, podem existir cogitações da mente, sem serem acompanhadas de obras corporais; nenhuma boa obra, porém, é realizada sem que haja antes idéia na mente. Por isso, ambos são cânticos, mas não salmos. Contudo, conforme disse, geralmente são chamados de salmos, não de cânticos; e livro dos salmos, não dos cânticos. E se entendemos e discutimos o sentido das palavras, onde no título se encontra somente: “salmo”, e onde apenas: “cântico” e onde não está: “salmo de cântico”, como no presente título, mas “cântico de salmo”, não sei se é possível falar de diferença. Por conseguinte, conforme começaremos a dizer, deixando estas questões aos que podem tratá-las, e têm tempo de distinguir e delimitar com base segura estas diferenças, nós, à medida que o Senhor nos ajudar, consideremos e analisemos o texto do salmo. | |
§ 2 | 2 “Levante-se Deus e dispersem-se os seus inimigos”. Já se realizou. Cristo ressuscitou, ele que é acima de tudo Deus, bendito pelos séculos (cf Rm 9,5), e seus inimigos a saber, os judeus, se dispersaram por todos os povos. No mesmo lugar onde deram expansão a sua inimizade, foram vencidos, e de lá dispersados para todos os lados. Agora odeiam, mas têm medo, e devido a este medo fazem o seguinte: “E fujam de sua face aqueles que o odeiam”. Efetivamente, o temor é espiritualmente uma fuga. Pois, como poderiam fugir corporalmente da presença daquele que demonstra em toda parte os efeitos de sua mesma presença? Diz o salmista: “Aonde irei para longe de teu espírito e aonde fugirei de tua face”? (Sl 138,7). Fogem, portanto, espiritual, não corporalmente, a saber, tendo medo e não se escondendo; nem se trata de uma face invisível, mas de uma face que são forçados a ver. De fato, denomina-se sua face a sua presença na Igreja. Daí declarar o Senhor aos que lhe mostravam hostilidade: “De ora em diante, vereis o Filho do homem, que vem sobre as nuvens do céu” (Mt 26,64), como vem em sua Igreja, difundindo-a por toda a terra, onde estão dispersos os seus inimigos. Vem, contudo, através das nuvens, assim referidas: “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela ” (Is 5,6). “Fujam, portanto, de sua face aqueles que o odeiam”. Temam a presença dos santos e fiéis, dos quais foi fito: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). | |
§ 3 | 3 “Dissipem-se como se dissipa a fumaça”. Exaltaram-se com o inchaço da soberba, inflamados de ódio; e investindo com a boca contra o céu e clamando: “Crucifica-o, crucifica-o” (Sl 72,9; Jo 19,6), ridicularizavam-no quando preso e zombaram dele quando crucificado. Mas, tendo-se inchado de orgulho quando venceram, logo se dissiparam quando vencidos. “Como ao contato com o fogo se derrete a cera, assim diante de Deus pereçam os pecadores”. Embora talvez essa passagem se refira aos que dissolvem sua dureza nas lágrimas da penitência, todavia, também pode-se tratar da ameaça do futuro juízo. Pois, como neste mundo se exaltam como a fumaça, isto é, perecem por causa da soberba, virá sobre eles no fim a suprema condenação, de modo que perecerão eternamente diante de Deus, por ocasião da manifestação de sua glória; que será como um fogo, para pena dos ímpios e luz dos justos. | |
§ 4 | 4 Finalmente, continua o salmo: “Mas os justos se regozijem e exultem na presença de Deus e alegres rejubilem”. Pois então ouvirão: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino” (Mt 25,34). “Regozijem-se”, portanto, os que trabalharam, “e exultem na presença de Deus”. Por certo não provirá de uma vã jactância esta exultação, como se fosse na presença dos homens; mas será na presença daquele que, sem perigo de erro, examina seus dons. “Alegres se rejubilem”, e não mais exultando com tremor, como neste mundo, em que durante todo tempo é uma tentação a vida humana sobre a terra (cf Sl 2,11; Jó 7,1). | |
§ 5 | 5.6 Em seguida, volta-se o salmista para aqueles aos quais deu tamanha esperança, e enquanto vivem aqui fala-lhes, exortando-os: “Cantai a Deus, salmodiai ao seu nome”. Sobre este versículo, falamos previamente o que pensávamos, na explanação do título. Canta a Deus quem vive para Deus; salmodia a seu nome quem trabalha para sua glória. Assim cantando e salmodiando, isto é, deste modo vivendo e trabalhando, “abri caminho àquele que sobe do poente”. Abri caminho a Cristo de sorte que pelos pés maravilhosos dos que anunciam a boa nova (cf Is 52,7), os corações dos fiéis lhe dêem acesso. É ele quem sobe do poente. E isto porque somente o acolhe o que se converte a ele por uma nova vida e que houver renunciado a este mundo, matando a velha vida; ou então, sobe do ocaso porque ao ressurgir vence a destruição de seu corpo. “Seu nome é o Senhor”. Se o tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). | |
§ 6 | “Exultai em sua presença”. Vós, a quem foi dito: “Cantai a Deus, salmodiai ao seu nome; abri caminho àquele que sobe do poente”, igualmente “exultai em sua presença”, como tristes e, não obstante, sempre alegres (cf 2Cor 6,10). Enquanto lhe abris caminho, enquanto lhe preparais a estrada pela qual há de vir e tomar posse das nações, muitos acontecimentos tristes havereis de suportar diante dos homens. Mas, não somente não deveis desanimar, e sim exultar; não na presença dos homens, mas diante de Deus. “Alegrando-vos na esperança, perseverantes na tribulação” (Rm 12,12). “Exultai em sua presença”. Pois, aqueles que vos perturbam diante dos homens, “perturbar- se-ão diante dele. Ele é o pai dos órfãos e juiz das viúvas”. São considerados abandonados os que muitas vezes a espada da palavra de Deus separa, a saber, os pais dos filhos, os maridos das mulheres (Mt 10,34.35); mas estes desprovidos e desamparados são consolados por aquele que “é o pai dos órfãos e juiz das viúvas”; recebem conforto os que dizem ao Senhor: “Pois meu pai e minha mãe me abandonaram. O Senhor, porém, acolheu-me” (Sl 26,10). Puseram a confiança no Senhor e perseveraram nas orações dia e noite (cf 1Tm 5,5); os maus perturbar-se-ão diante do Senhor, vendo que nada conseguem, porque todo o mundo vai atrás dele (cf Jo 12,19). | |
§ 7 | 7 Com efeito, o Senhor transforma em templo seu estes órfãos e viúvas, isto é, os destituídos pela sociedade de qualquer esperança mundana. Por isso, o salmista continua: “O Senhor, em seu lugar santo”. Revela qual é este lugar, dizendo: “É o Deus que faz habitar numa só casa os de um mesmo modo de viver”, unânimes, de igual maneira de pensar. Este é o lugar santo do Senhor. Tendo dito: “O Senhor, em seu lugar santo”, como se perguntássemos em que lugar, visto que ele está todo inteiro em toda parte, sem estar circunscrito em lugar algum material, o salmista logo acrescenta: Que não o procuremos fora de nós, mas antes, morando “numa casa” de um só estilo de vida, mereçamos que ele se digne habitar em nós. Tal é o lugar santo do Senhor, que muitos homens procuram, a fim de terem onde rezar e ser ouvidos. Sejam eles mesmos aquilo que buscam. E aquilo que dizem no coração, isto é, em tais leitos, digam-no com compunção (cf Sl 4,5), habitando “numa só casa, com um mesmo modo de viver”, de tal sorte que neles more o Senhor da grande casa, e sejam ouvidos no interior de si mesmos. Pois, existe uma grande casa, onde não há somente vasos de ouro e prata, mas também de madeira e barro; uns para uso nobre, outros para uso vulgar (cf 2Tm 2,20). Aqueles, pois, que se purificarem desses erros, adotarão “um mesmo modo de viver, numa só casa”, e serão um lugar santo para o Senhor. Com efeito, numa grande casa, o dono não descansa em qualquer lugar, mas em algum quarto mais íntimo e honroso; assim também Deus não habita em todos os que estão em sua casa (pois não habita nos vasos de uso vulgar), mas tornam-se seu lugar santo aqueles que ele faz “habitar numa casa” por que têm “um mesmo modo de viver”, ou “os mesmos costumes”. A palavra grega tropoi verte-se para o latim tanto por modo de viver como por costumes. O grego também não traz: aquele que faz morar dentro, mas somente: faz habitar. Por conseguinte, o “Senhor, em seu lugar santo”. Que lugar é este? O próprio Deus o cria para si. Pois, “Deus que faz habitar numa só casa os de um mesmo modo de viver”. Aí está o seu lugar santo. | |
§ 8 | Considerando que ele edifica este lugar para si por meio de sua graça, sem méritos precedentes daqueles com os quais edifica, vê como continua o salmo: “Que liberta por seu poder os prisioneiros”. O Senhor rompe as cadeias pesadas dos pecados, que os impedia de andar no caminho dos mandamentos; liberta por seu poder aqueles que estavam anteriormente desprovidos de sua graça. “Igualmente os que o irritam e já moram nos sepulcros”, isto é, inteiramente mortos, ocupados em obras mortas. Estes o irritam, resistindo à justiça. Talvez aqueles prisioneiros queiram andar e não possam. Pedem a Deus que lhes dê a possibilidade, dizendo: “Livra-me da necessidade” (Sl 24,17). Quando ouvidos, dão graças, dizendo: “Rompeste as minhas cadeias” (Sl 115,17). Estes, porém, que o irritam e já moram nos sepulcros, são daquela espécie de homens a que alude a Escritura em outra passagem, declarando: “Para o morto, como se não existisse mais nada, o louvor acabou” (Eclo 17,26). Daí a palavra: “O pecador, quando chega às profundezas dos males, despreza” (cf Pr 18,3). Uma coisa é sentir falta da justiça, outra atacá-la; uma coisa é querer ser libertado do mal, outra defender seu pecado ao invés de confessá-lo; ambos, no entanto, a graça de Cristo “liberta por seu poder”. Com que força, senão aquela que os faz combater contra o pecado até o derramamento do sangue? De ambas as espécies de homens ele faz capazes de entrarem na construção de seu lugar santo; a uns, sendo libertados, a outros, ressuscitados. O Senhor rompeu os vínculos da mulher que satanás prendera por dezoito anos, por meio de uma ordem, e venceu a morte em Lázaro, por seu clamor (cf Lc 13,16; Jo 11,43.44). Aquele que realizou isto nos corpos, pode fazer maiores maravilhas nos costumes, e “fazer habitar numa só casa os de um mesmo modo de viver”. “Que liberta por seu poder os prisioneiros; igualmente os que o irritam e já moram nos sepulcros”. | |
§ 9 | 9.10 “Deus, quando saías à frente de teu povo”. Entende-se por sua saída a sua manifestação em suas obras. Aparece, porém, não a todos, mas àqueles que sabem ver suas obras. Não me refiro agora às obras evidentes a todos, tais o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas às realizadas naqueles “prisioneiros que ele liberta por seu poder”; igualmente “nos que o irritam e já moram nos sepulcros”, e naqueles “que ele faz habitar numa só casa” e que têm “um mesmo modo de viver”. Assim Deus sai à frente de seu povo, isto é, daqueles que compreendem esta graça. Enfim, continua: “Quando atravessavas o deserto, a terra estremeceu”. Deserto representa os povos que ignoravam a Deus. Era um deserto, pois ali Deus não promulgara lei alguma; ali nenhum profeta habitara, nem predissera que o Senhor haveria de vir. “Quando atravessavas o deserto”, quando eras pregado no meio dos povos, “a terra estremeceu”, os homens terrenos foram estimulados a abraçar a fé. Mas como estremeceu? “Pois os céus orvalharam diante da face de Deus”. É possível que nesta passagem alguém se recorde do tempo em que Deus atravessava o deserto diante dos filhos de Israel, de dia numa coluna de nuvem e de noite numa coluna de fogo (cf Ex 13,21); e então, pensará que “os céus orvalharam diante da face de Deus”, porque o maná caiu como chuva para seu povo (cf Ex 16,13). Quanto ao que vem em seguida: “O monte Sinai estremeceu perante o Deus de Israel. Chuva benfazeja reservarás, ó Deus, para tua herança”, porque no monte Sinai Deus falou a Moisés, ao lhe dar a lei, de tal modo que o maná fosse a chuva benfazeja que Deus reservou para sua herança, isto é, para seu povo, pois alimentou somente a este, não aos demais povos (cf Ex 19,18 etc; Nm 11,5.6). A expressão seguinte: “Ela se enfraqueceu”, subentende-se, a própria herança, porque os hebreus murmurando rejeitaram o maná com fastio, desejando comer carne, conforme costumavam comer no Egito. Mas se procurarmos nestas palavras apenas o sentido literal, e não o espiritual, teríamos de entender também literalmente os prisioneiros e os que moravam nos sepulcros, mas foram libertados por seu poder. Em seguida, se aquele povo, a saber, a herança de Deus se enfraqueceu por ter rejeitado com fastio o maná, o salmista não deveria prosseguir: “Tu a restabeleceste”, e assim: Tu, porém, a feriste. Efetivamente, aquelas murmurações e aquele fastio ofenderam a Deus, e em conseqüência seguiu-se uma enorme praga. Finalmente todos eles foram prostrados no deserto, e nenhum deles, exceto dois, entrou na terra da promissão (cf Nm 11,33; Nm 14,29.30). Embora se diga que a herança se consumou nos filhos deles, devemos sustentar com certa liberdade o sentido espiritual. Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo, “antes que a brisa sopre e as sombras se dissipem” (cf 1Cor 10,11; Ct 2,17). | |
§ 10 | Que o Senhor nos abra a porta, ao batermos, e se nos revelem os seus mistérios, á medida que ele se dignar manifestar. De fato, enquanto a terra se abalou, dirigindo-se para a fé, e o evangelho atravessou o deserto dos povos, “os céus orvalharam diante da face de Deus”. Quanto a estes céus, canta outro salmo: “Narram os céus a glória de Deus”. Pouco adiante, no mesmo salmo está dito: “Não são linguagens, nem discursos, sons imperceptíveis. Seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,2-5). Todavia, não é atribuível a estes céus tanta glória que derivasse dos homens a graça para o deserto dos povos, movendo a terra em direção à fé. Pois, os céus não orvalharam por si mesmos, mas “diante de Deus” que, efetivamente, habitava neles, e fazia com que habitassem numa só casa os que tinham um mesmo modo de viver. Eles também se identificam com os montes, a respeito dos quais se diz: “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio”. No intuito, porém, de que não parecesse pôr sua esperança nos homens, imediatamente prosseguiu: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 120,1.2). Foi-lhe dito, efetivamente, em outro lugar: “Vieste, especialmente de luz, das montanhas eternas” (Sl 75,5). Apesar de vires das montanhas eternas, no entanto és tu mesmo que iluminas. Aqui também: “os céus orvalharam, contudo, diante da face de Deus”. Mesmo os que foram salvos pela fé (cf Ef 2,8-10), não o foram por si mesmos, mas isto veio de um dom de Deus; não provém das obras, a fim de não acontecer que alguém se orgulhe disso. Somos criaturas daquele que “faz habitar numa só casa os de um mesmo modo de viver”. | |
§ 11 | Qual o motivo por que o salmo prossegue: “O monte Sinai, perante o Deus de Israel?” Subentende-se: orvalhou? Pelo nome de céus o salmista quer que se entenda também o monte Sinai? Diríamos que são montes o que ele denomina céus? Não nos impressionemos pelo fato de encontrar-se: “monte”, e não: montes, enquanto encontramos: céus, e não: céu, uma vez que em outro salmo, tendo ele dito: “Narram os céus a glória de Deus”, conforme o costume da Escritura, repetindo em outras palavras a mesma coisa, acrescenta em seguida: “E proclama o firmamento as obras de suas mãos” (Sl 18,2). Primeiro disse: céus, e não: céu; contudo, em seguida, não usou a palavra: firmamentos, e sim: firmamento. Pois, “Deus chamou ao firmamento céu” (Gn 1,8), conforme se acha escrito no Gênesis. Assim, por certo, céus e céu, montes e monte, não são coisas diferentes, mas idênticas; como muitas Igrejas e uma só Igreja não diferem, mas identificam-se. Então, qual a razão de declarar o Apóstolo: “Uma, a do monte Sinai, que gera para a escravidão”! (Gl 4,24). Talvez represente a própria Lei dada no monte Sinai, “os céus que orvalharam diante da face de Deus”, de tal sorte que a terra estremeceu? E terremoto seria a perturbação dos homens, que não podem cumprir a Lei? Se assim é, seria esta a chuva benfazeja, a que alude em seguida o salmo: “Chuva benfazeja reservarás, ó Deus, para tua herança”. Ele não agiu desta maneira para com outros povos, nem lhes manifestou os seus juízos (cf Sl 147,20). Deus, portanto, reservou esta chuva benfazeja para sua herança, à qual deu a Lei. “E ela se enfraqueceu”: ela é a própria Lei, ou a herança. Pode-se aplicar o verbo: enfraqueceu à Lei, porque não seria cumprida. Não quer isso dizer que ela seja fraca, mas que torna os homens fracos, ameaçando com castigos, sem ajudar com a graça. O próprio Apóstolo usou desta palavra, ao afirmar: “De fato, coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne” (Rm 8,3). Queria indicar que pelo espírito ela é cumprida. Todavia, declarou que ela se enfraqueceu, porque não poderia ser praticada pelos fracos. Entende-se, por conseguinte, sem dúvida alguma, que a herança se enfraqueceu, quer dizer, o povo, ao lhe ser dada a Lei. “Ora, a Lei interveio para que avultassem as faltas” (Rm 5,20). Quanto ao versículo seguinte: “Tu a restabeleceste”, refere-se à Lei, pois é perfeita, segundo o acima exposto, isto é, foi cumprida, conforme assevera o Senhor no evangelho: “Não vim revogar, mas dar pleno cumprimento” (Mt 5,17). Daí vem que o Apóstolo, após ter afirmado que a Lei se enfraquecera pela carne, porque a carne não cumpre o que se cumpre pelo espírito, isto é, pela graça espiritual, declara também: “A fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito (Rm 8,3.4). Isto é o que quer dizer: Tu a aperfeiçoaste, porque a caridade é a plenitude da Lei; e o amor de Deus foi derramado em nossos corações, não por nós mesmos, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 13,10; 5,5). “Tu a aperfeiçoaste”, isto é, se entendermos que Cristo cumpriu a Lei; se, porém, a referirmos à herança, fica mais fácil de entender. Se, porém, foi dito que a herança de Deus se enfraqueceu, isto é, que o povo de Deus se enfraqueceu com a promulgação da Lei, porque “a Lei interveio para que avultassem as faltas”, o versículo: “Tu a aperfeiçoaste” corresponde ao que, em seguida, diz o Apóstolo: “Mas onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20). Pois, com a abundância dos pecados, as fraquezas deles se multiplicaram; depois precipitaram-se (Sl 15,4). Eles gemeram, invocaram o Senhor e com o seu auxílio poderiam realizar o que não conseguiam apenas por seu mandamento. | |
§ 12 | Encerram estas palavras igualmente outro sentido, que, a meu ver, apresenta maiores probabilidades. Convém muito mais dizer que a chuva benfazeja seria a própria graça, concedida gratuitamente sem méritos precedentes. “E se é por graça, não é pelas obras; do contrário, a graça não é mais graça” (Rm 11,6). Diz ainda o Apóstolo: “Nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou” (1 Cor 15,9.10). Esta é a chuva benfazeja. “Por vontade própria ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1,18). Esta é a chuva benfazeja. Por isso, diz-se em outra passagem: “Como um escudo nos cercaste de benevolência” (Sl 5,13). Quando Deus atravessava o deserto, isto é, quando era anunciado às nações, tal foi a chuva que os céus fizeram cair, não, porém, proveniente de si mesmos, mas “diante da face de Deus”, pois também eles são o que são, pela graça de Deus. E, por este motivo, é “o monte Sinai”. Trata-se daquele que trabalhou mais do que todos; não ele, mas a graça de Deus que estava com ele, para que, com maior fartura, orvalhasse entre as nações, isto é, no deserto, onde Cristo não fora anunciado, “para não construir sobre alicerces lançados por outros” (cf 1Cor 15,10; Rm 15,20). Ele, digo, era israelita, da raça de Israel, da tribo de Bemjamim (cf Fl 3,5). Fora gerado para a escravidão, sendo da Jerusalém terrena, que é escrava com seus filhos, e por isso, ele perseguia a Igreja. Pois, ele mesmo observou que, “então o nascido segundo a carne perseguia o nascido segundo o espírito; assim também agora” (Gl 4,25.29). Mas obteve misericórdia, porque agiu por ignorância, na incredulidade (1 Tm 1,13). Portanto, admiramo-nos, visto que “os céus orvalharam diante da face de Deus”; admiremos antes que o monte Sinai, isto é, aquele que primeiro perseguia, hebreu de hebreus, fariseu segundo a Lei, o faça. Mas, por que razão havemos de admirar? Isso não provém dele mesmo, mas origina-se conforme o que se segue: “diante da face do Deus de Israel”, a respeito do qual diz o mesmo Apóstolo: “E sobre o Israel de Deus” (Gl 6,16). Deste, declara o Senhor: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (Jo 1,47). Deus reservou para sua herança esta chuva benfazeja, sem méritos precedentes de boas obras. “E ela se enfraqueceu”. Reconheceu ela que nada era por si mesma e que havia de atribuir à graça de Deus, não às suas forças, o que era. Aceitou para si a palavra: “Prefiro gloriar-me das minhas fraquezas” (2 Cor 12,9). Reconheceu a verdade da palavra: “Não te ensoberbeças, mas teme” (Rm 1,20). Reconheceu também: “Mas Deus dá a graça aos humildes” (Tg 4,6). Ela se enfraqueceu: tu a aperfeiçoaste, “pois é na fraqueza que a força se manifesta” (2 Cor 12,9). Com efeito, alguns códices latinos e gregos não trazem: “monte Sinai”, mas: “diante da face do Deus do Sinai, perante o Deus de Israel”. Isto é: “Os céus orvalharam diante da face de Deus”. À possível pergunta: De que Deus? responde o salmista: “Diante da face do Deus Sinai, perante o Deus de Israel”, a saber, perante o Deus que promulgou a Lei para o povo de Israel. Por que razão, pois, “os céus orvalharam diante da face de Deus”, diante da face deste Deus, senão porque se realizou a predição: “Dará a misericórdia quem deu a lei”? (Sl 83,9). Lei que cause temor em quem presume das forças humanas, “bênção” que liberta quem em Deus espera. Tu, portanto, ó Deus, aperfeiçoaste a tua herança. Enfraquecera-se por si mesma, a fim de ser aperfeiçoada por ti. | |
§ 13 | 11 “Nela morarão teus animais. Teus”, não seus; sujeitos a ti, não livres para si; necessitados de ti, não auto-suficientes. Enfim, o salmista prossegue: “Em tua benignidade, ó Deus, tu preparaste para o pobre. Em tua benignidade”, e não por sua capacidade. Pois, ele é pobre, uma vez que se enfraqueceu a fim de ser aperfeiçoado. Reconheceu que é pobre, com o desejo de ser cumulado. Eis a suavidade da qual se fala em outra parte: “O Senhor dará a suavidade, e nossa terra produzirá seu fruto” (Sl 84,13). Então a boa obra será realizada não por temor, mas por amor; não por medo do castigo, mas pelo deleite da justiça. Aí está a verdadeira e genuína liberdade. Mas, o Senhor preparou alguma coisa para este pobre, e não para o rico que considera opróbrio tal pobreza. Destes ricos foi declarado em outra passagem: “É opróbrio para os que vivem na abundância e desprezo para os soberbos” (Sl 122,4). O salmista denomina soberbos os mesmos dos quais afirma que vivem na abundância. | |
§ 14 | 12 “O Senhor dará uma palavra”, a saber, alimento a seus animais que nela moram. Mas, o que farão estes animais, aos quais o Senhor dá uma palavra? Não seria apenas o que segue: Evangelizar, com grande poder? Que poder, senão aquela força com a qual o Senhor liberta os prisioneiros? Talvez também se refira àquele poder de fazer grandes milagres concedido aos evangelizadores. | |
§ 15 | 13 Quem é que “dará uma palavra aos evangeliza-dores, com grande poder? O rei é o dos exércitos do bem-amado”. O Pai, portanto, é o rei dos exércitos do Filho. Bem-amado, quando não se indica qual é, por antonomasia entende-se o Filho único. O rei dos exércitos, isto é, dos poderosos servos, é o próprio Filho? Pois, ele “dará uma palavra aos evangelizadores com grande poder”, aquele que “é o rei dos exércitos”, a respeito do qual foi dito: “O Senhor dos exércitos é o rei da glória” (Sl 23,10). Se o salmista não usou a expressão: Rei de seus exércitos, mas: “Rei dos exércitos do bem-amado”, trata-se de um modo de falar muito comum nas Escrituras, como é fácil de observar. Aparece principalmente quando um nome próprio é citado a fim de que não se possa duvidar absolutamente que se trata do mesmo indivíduo. Em muitas passagens do Pentateuco encontra-se tal locução: “E Moisés fez isto e aquilo, conforme ordenou o Senhor a Moisés” (Nm 17,11 etc., seg. LXX). Não fala como é costume em nossas expressões: E fez Moisés conforme o que lhe ordenou o Senhor; mas “Moisés fez conforme ordenou o Senhor a Moisés”, como se fosse um o Moisés que recebeu a ordem e outro o que a executou, enquanto era um só e mesmo Moisés. Tais locuções dificilmente se encontram no Novo Testamento. Daí vem, contudo, o que diz o Apóstolo: “Que diz respeito a seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, predestinado Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade, Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 1,3.4), como se fosse um o Filho de Deus, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, e outro Jesus Cristo nosso Senhor, quando, na verdade, é um só e o mesmo. Nos antigos livros esta locução é freqüente; e por isso quando se torna obscura, deve ser explicada por exemplos claros da mesma espécie. Nesta passagem do salmo que explanamos, é muito obscura. Por certo, se estivesse nomeado Jesus Cristo: rei dos exércitos Jesus Cristo, seria tão clara quanto a frase: Moisés fez conforme ordenou o Senhor a Moisés. Mas, como se acha: “Rei dos exércitos do bem-amado”, não nos ocorre tão facilmente que o rei dos exércitos se identifica com o bem-amado. Por conseguinte, “rei dos exércitos do bem-amado” pode-se interpretar como sendo: rei dos seus exércitos, porque o rei dos exércitos é Cristo, e o bem-amado é o mesmo Cristo. Embora esta interpretação não seja tão necessária que outra não possa ser aceita, pois é possível aplicar ao Pai a expressão: rei dos exércitos de seu Filho bem-amado, ao qual diz o próprio bem-amado: “Tudo o que é meu é teu” (Jo 17,10). Se acaso alguém quiser saber se Deus, Pai do Senhor Jesus Cristo, pode ser denominado rei, não sei se é possível a ousadia de negar-lhe este nome, uma vez que o Apóstolo diz: “Ao rei dos séculos, ao Deus incorruptível, invisível e único” (1 Tm 1,17). Se isto se refere à própria Trindade, nela está incluído Deus Pai. Se, porém, não entendermos literalmente o versículo: “Ó Deus, ao rei concede teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei” (Sl 71,2), não sei se tem outro sentido que: teu Filho. Por conseguinte, rei é também o Pai. Daí poder este versículo do presente salmo: “rei dos exércitos do bem-amado”, ser interpretado de ambos os modos. De fato, tendo dito: “O Senhor dará uma palavra aos evangelizadores, com grande poder”, e visto que ele dirige este grande poder e quem o recebe milita em suas fileiras, “o Senhor” que “dará uma palavra aos evangelizadores, com grande poder”, é o rei dos exércitos do bem-amado. | |
§ 16 | Continua o salmo: “Do bem-amado que divide os despojos àquela que é o ornamento da casa”. A repetição constitui uma recomendação, apesar de não se encontrar esta repetição em todos os códices, e os mais exatos trazerem anotada uma estrela, denominada asterisco, querendo dar a conhecer que não se acham na versão dos Setenta, mas estão no texto hebraico, as palavras assim assinaladas. Mas, quer se repita, quer se diga uma só vez o vocábulo: “bem-amado”, julgo que as palavras da continuação: “que divide os despojos àquela que é o ornamento da casa” devem se interpretar como se fosse dito: “Bem-amado” mesmo aquele “que divide os despojos àquela que é o ornamento da casa”, isto é, ele é bem-amado mesmo quando divide os despojos. Cristo, efetivamente, fez bela a casa, isto é, a Igreja, dividindo os despojos, assim como o corpo é belo pela disposição dos membros. De fato, denominam-se depojos os bens arrebatados ao inimigo vencido. Quem seja ele, declara-nos o evangelho, onde lemos: “Como pode alguém entrar na casa de um forte e roubar os seus pertences, se primeiro não o amarrar”? (Mt 12,29). Cristo amarrou o diabo com vínculos espirituais, superando a morte, e subindo da região dos mortos aos céus. Amarrou-o pelo mistério de sua encarnação, porque nada se achava nele que fosse digno de morte, no entanto, permitiu que fosse morto. Estando assim o diabo amarrado, ele roubou-lhe os pertences. O diabo operava nos filhos da desobediência (cf Ef 2,2), de sua infidelidade ele usava, segundo sua vontade. O Senhor purificou esses vasos, pela remissão dos pecados, santificou estes despojos que arrancara ao inimigo prostrado e ligado, dividiu-os àquela que é o ornamento de sua casa, constituindo a uns apóstolos, a outros profetas, a outros pastores e doutores, em vista do ministério, para a edificação do corpo de Cristo (cf Ef 4,11-12). “Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo. Porventura, são todos apóstolos? Todos profetas? Todos realizam milagres? Todos têm o dom das curas? Todos falam línguas? Todos as interpretam? Mas, isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz” (1 Cor 12,12.29.30.11). Em favor deste ornamento da casa os despojos são divididos, de tal sorte que inflamado de amor diante de tal beleza exclama o salmista: “Senhor, amei a beleza de tua casa” (Sl 25,8). | |
§ 17 | 14.15 Quanto aos versículos seguintes, o salmista se dirige aos próprios membros que constituem o ornamento da casa, com as palavras: “Se repousais no meio das sortes, refulgem as asas de uma pombra prateada e suas penas no dorso têm o brilho do ouro”. Em primeiro lugar, examinemos a ordem das palavras, como termina a sentença; pois, de fato, está pendente: “Se repousais”. Depois, a locução: “asas de uma pomba prateada” acha-se no singular, desta asa, ou no plural, estas asas. Mas o texto grego exclui o singular; lá se lê, sem dúvida alguma, no plural. Mas fica ainda incerto se está no nominativo: estas asas, ou no vocativo; ó vós, asas, de tal modo que pareça dirigir-se às próprias asas. Por conseguinte, se estas palavras terminariam a sentença precedente, sendo desta forma a ordem: “O Senhor dará uma palavra aos evangeliza-dores, com grande poder, se repousais no meio das sortes, ó vós, asas de uma pomba prateada” ou se ligar-se-iam às seguintes, de modo que a ordem seria: “Se repou-sais no meio das sortes, as asas de uma pomba prateada branquearão como a neve no Selmon”; isto é, as próprias asas branquearão, se repousais no meio das sortes. Entender-se-ia então que isto se diria àqueles que são como que despojos e são divididos àquela que é o ornamento da casa, correspondendo a: Se repousais no meio das sortes, ó vós, que dividis os dons àquela que é o ornamento da casa, pela manifestação do Espírito para utilidade de todos, de sorte que a um o Espírito dê a mensagem da sabedoria, a outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito, a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas, etc. (Cf 1Cor 12,7-9). Se, portanto, repousais no meio das sortes, então as asas de uma pomba prateada branquearão como a neve no Selmon. É possível ser também assim: “Se vós, ó asas de uma pomba prateada, repousais no meio das sortes, branquerão como a neve no Selmon”, subentendendo-se homens, que pela graça recebem a remissão dos pecados. Daí vem que igualmente se diz da Igreja no Cântico dos cânticos: “Quem é esta que sobe branqueada”? (Ct 3,6, seg LXX). Realiza-se, de fato, a promessa de Deus, por intermédio do profeta: “Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve” (Is 1,18). Ainda se pode interpretar: “as asas de uma pomba prateada”, subentendendo-se: sereis, com o seguinte sentido: Ó vós, que sois divididos como despojos àquela que é o ornamento da casa, se repousais entre as sortes, sereis as asas prateadas de uma pomba, isto é, elevar-vos-eis às alturas, contanto que permaneçais ligados ao conjunto da Igreja. Com efeito, a nenhuma outra julgo que melhor se aplica a expressão: pomba prateada do que àquela à qual foi dito: “Uma só é minha pomba” (Ct 6,8). Prateada, porém, porque instruída pela palavra de Deus; pois, a palavra do Senhor em outro salmo é denominada: “Prata pelo fogo acrisolada de terra, depurada sete vezes” (Sl 11,7). Por certo, é bem valioso repousar no meio das sortes, que, na opinião de alguns, designam os dois Testamentos, de tal forma que repousar no meio das sortes seria repousar na autoridade destes Testamentos. Quer dizer, aquiescer a ambos os Testamentos. Então, quando algo é deles tirado, ou por eles se prova, termina toda disputa pacificamente. Se assim é, a respeito de que procuram nos advertir os evangelizadores, com grande poder, senão que o Senhor lhes dará uma palavra a fim de que evangelizem, se repousarem no meio das sortes? Então transmite-se-lhes a palavra da verdade, contanto que não larguem a autoridade proveniente dos dois Testamentos. Tornam-se eles, também, as asas de uma pomba prateada. Por sua pregação a glória da Igreja eleva-se até o céu. | |
§ 18 | “Nas espáduas”. Trata-se evidentemente de uma parte do corpo. Situa-se ao redor do coração, porém nas costas, isto é, acha-se no dorso. Desta parte da pomba prateada se diz que tem o brilho do ouro, isto é, o vigor da sabedoria. Por este vigor nada de melhor entendo do que a caridade. Mas, porque no dorso e não no peito? Embora admire como esta palavra aparece em outro salmo, onde se diz: “Cobrir-te-á com a sombra de suas espáduas (inter scapulas), e sob as suas asas esperarás” (Sl 90,4), visto que não pode estar à sombra das asas senão o que estiver diante do peito. Talvez em latim, “inter scapulas” pode-se entender das duas partes: frente e costas, de modo que espáduas seriam as partes que estão aos lados, tendo no meio a cabeça. Provavelmente em hebraico é ambíguo a que se refere. Mas no grego encontra-se metaphrena que só se aplica ao dorso: “inter scapulas”. Se ali se encontra o brilho do ouro, isto é, a sabedoria e a caridade, seria onde estão as raízes das asas, ou porque ali se carrega o fardo que é leve? (cf Mt 22,40). Que seriam as próprias asas, senão os dois preceitos da caridade, dos quais dependem toda a Lei e os profetas? (Mt 22,40). Qual é este fardo leve senão a própria caridade, que se cumpre de acordo com estes dois preceitos? Leve é para quem ama o que há de difícil no preceito. Não há maneira melhor de entender a palavra: “O meu fardo é leve” (Mt 11,30) senão que o Senhor nos dá o Espírito Santo, pelo qual a caridade se difunde em nossos corações (cf Rm 5,5), e assim praticamos livremente, por amor, o que faríamos servilmente, se o fizéssemos por temor. Não é amigo da retidão quem preferisse, se fosse possível, não ser ordenado o que é reto. | |
§ 19 | Poder-se-ia questionar por que não se disse: Se repousais nas sortes, mas: “no meio das sortes”; que sentido tem? Se traduzíssemos literalmente do grego, diríamos: no meio das sortes (“inter medium clerorum”). Não o encontrei em versão alguma; por isso, acredito que equivale a: “inter medios cleros”. Vou expor a minha opinião. Muitas vezes a expressão: “no meio de” costuma ser usada para ligar e unir, e não haver separação. Assim é que a Escritura emprega esta palavra para o testamento entre Deus e o povo. Em vez daquilo que se acha no texto latino: “entre nós (inter me et vos)” o grego traz: “no meio de nós (inter medium meum et vestrum)”. Igualmente, ao se tratar do sinal da circuncisão, Deus assim fala a Abraão: “Eu instituo minha aliança entre mim e ti (inter me et te), e a tua raça” (Gn 17,2.7). O texto grego traz: “no meio de mim e de ti (inter medium meum et tuum) e no meio de tua raça (inter medium seminis tui)”. De igual modo, ao se referir ao sinal do arco-íris nas nuvens, quando Deus fala a Noé (cf Gn 9,12), freqüentemente aparece esta palavra. Enquanto os códices latinos usam a expressão: “(inter me et vos) entre mim e vós, ou entre mim e toda alma viva (inter me et omnem animam vivam)” e outras frases semelhantes, encontra-se no grego: “no meio de mim e de vós (inter medium meum et vestrum)”, isto é, anà méson. Davi também e Jonatas combinam entre si um sinal (cf 1Rs 20,20-23), para não discordarem de opinião. Enquanto a versão latina traz: “entre ambos, no meio de ambos (inter ambos, inter medium amborum)”, a grega emprega as mesmas palavras: anà méson. Assim aconteceu exatamente que nossos tradutores neste salmo não usaram: entre as sortes, locução usual em latim, mas “no meio das sortes (inter medios cleros)”, como se fosse: “inter medium clerorum”, como prefere o grego, que costuma assim se exprimir, conforme disse acima, a respeito de coisas que devem concordar entre si. A Escritura, portanto, ordena que repousem no meio das sortes os que constituem as asas da pomba prateada, ou que, estas lhes dão possibilidade de ser. Efetivamente, se estas “sortes” significam os dois Testamentos, somos advertidos a não recusarmos estes dois Testamentos, que estão de acordo ente si. Ao contrário, adiramos pelo entendimento, e nos façamos sinal e prova de sua concordância, admitindo que um nada diz contra o outro, e o demonstramos com pacífica admiração, quase num êxtase. O motivo por que pela expressão: sortes se entendem os Testamentos (e a palavra, de fato, é grega), mas não se fala em Testamento, é que o testamento acarreta uma herança, que se diz em grego kleronomía, e herdeiro, kleronómos. klerros em grego eqüivale a sortes, e chamam-se sortes, segundo as promessas de Deus, as partes da herança distribuídas ao povo. Daí se origina que foi ordenado à tribo de Levi não ter herança no meio de seus irmãos, pois seria sustentada com os dízimos (cf Nm 18,20). Penso que são denominados sortes, clérigos aqueles que foram estabelecidos nos vários graus do ministério na Igreja, porque Matias, o primeiro que foi ordenado pelos apóstolos, conforme lemos, foi escolhido por sorte (cf At 1,26). Por conseguinte, devido ao fato de que se transmite a herança pelo testamento, pelo nome de sortes se designam os próprios Testamentos, como se designa a causa pelos efeitos. | |
§ 20 | Apesar disso, ocorre-me outro sentido, se não me engano, preferível: é provável que por sortes devamos antes entender as próprias heranças. Mas, como a herança no Antigo Testamento, embora seja sombra significativa do futuro, designa a felicidade terrena, e a herança no Novo Testamento é a imortalidade eterna, repousar no meio das sortes seria não procurar mais com ardor a primeira e esperar a segunda ainda, com toda paciência. Pois, os que servem a Deus, ou antes não querem servir, procurando a felicidade nesta vida e nesta terra, perdem o sono, não dormem. Agitados pelo ardor das cobiças, são incitados para as maldades e crimes e não repousam. Desejam adquirir, têm medo de perder. Diz a Sabedoria: “Quem me escuta viverá na esperança, e repousará sem temer mal algum” (Pr 1,33). É isto, a meu ver, repousar no meio das sortes, isto é, no meio das heranças; ainda não na realidade, contudo na esperança da herança celeste; estabelecer-se e já se abster da ambição da felicidade terrena. Ao chegar, porém, o que esperamos, já não repousaremos no meio das duas heranças, e sim reinaremos de posse da nova e verdadeira, da qual a antiga era apenas sombra. Por isso, embora entendamos assim: “Se repousais no meio das sortes”: Se morrerdes no meio das sortes, da morte da carne que a Escritura costuma denominar sono, é morte excelente aquela em que o homem, refreando as ambições terrenas, e perseverando até o fim na esperança da herança celeste, encerra o último dia de sua vida. Aqueles que assim repousam no meio das sortes, serão as asas da pomba prateada, de sorte que ao ressurgirem, serão arrebatados ao encontro de Cristo nas nuvens, e sempre viverão com o Senhor (cf 1Ts 4,16). Ou então, quer dizer que por intermédio daqueles que morrem desta maneira, a Igreja se propaga com tanto maior segurança quanto maior é a elevação, erguendo-se com as asas de um excelso louvor. Não é ocioso o dito: “Antes da morte não louves a ninguém” (Eclo 11,28). Por conseguinte, todos os santos de Deus, desde o início do gênero humano até o tempo dos apóstolos porque estes também souberam dizer: “Não desejei o dia fatal, tu o sabes” (Jr 17,16) e: “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei” (Sl 26,4), e no tempo dos apóstolos — quando a diferença entre os dois Testamentos foi revelada mais claramente, — os próprios apóstolos, os santos mártires e demais justos, como cordeiros e cordeirinhos das ovelhas repousaram até nosso tempo no meio das sortes, já desprezando a felicidade dos reinos terrenos e esperando o reino eterno dos céus, que ainda não possuem. E visto que repousaram tão bem, a Igreja, pomba prateada, agora emprega suas asas para voar, e é exaltada com louvores. Sua fama convida os pósteros a imitá-los. Enquanto assim os demais igualmente dormem, aumenta o número das asas, através das quais ela é anunciada de modo sublime até o fim do mundo. | |
§ 21 | 15 “Enquanto o supra-excelso discrimina os reis que estão sobre ela, branquearão como a neve no Selmon”: aquele supra-excelso, que subiu acima de todos os céus, a fim de dar plenitude a todas as coisas, “enquanto o supra-excelso discrimina os reis que estão sobre ela”, isto é, sobre a pomba prateada. O Apóstolo prossegue: “E ele é que concedeu a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores”. Pois, que quer dizer discriminar os reis que estão sobre ela, senão ter “em vista o ministério, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4,10-12), sendo ela, de fato, o corpo de Cristo? Eles recebem o nome de “reis” que provém de reger; e o que, senão as concupiscências da carne, para que o pecado não impere em seu corpo mortal, sujeitando-os as suas paixões, nem entreguem seus membros, como armas de injustiça, ao pecado; pelo contrário, ofereçam-se a Deus como vivos dentre os mortos, e seus membros como armas de justiça a serviço de Deus? (cf Rm 6,12.13). Assim serão reis, anteriormente separados dos estranhos, porque não devem carregar o jugo com os infiéis; depois, são distintos, mas concordes entre si, cada um com o dom que lhe é peculiar. “Porventura, são todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos têm o dom das curas? Todos falam línguas? Todos as interpretam? Mas, isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz” (1 Cor 12,29.30.11). Distribuindo-os, aquele Senhor supra-excelso discrimina os reis que estão sobre a pomba prateada. Ao falar o anjo com sua mãe cheia de graça e esta perguntasse como se faria o parto anunciado, uma vez que ela não conhecia varão, tratava-se deste mesmo Espírito Santo, conforme foi dito: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1,35). Que significa: “cobrir com a sua sombra”, a não ser: fará sombra? Por isso, também esses reis, que pela graça do Espírito de Cristo Senhor se distinguem sobre a pomba prateada, “branquearão como a neve no Selmon”. De fato, Selmon se traduz por: sombra. Eles não se distinguem por seus méritos ou virtude própria. “Pois quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido”? (1 Cor 4,7). Para serem distinguidos dos ímpios, recebem a remissão dos pecados da parte daquele que disse: “Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve” (Is 1,18). Eis como “branquearão como a neve no Selmon”; na graça do Espírito de Cristo, que faz distintos os dons peculiares a cada um. Dele foi escrito o que acima relembrei: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra”, isto é, fará sombra para ti; “por isso o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Com efeito, esta sombra significa uma defesa contra o ardor das concupiscências carnais. Por isso, a virgem concebeu a Cristo, não por concupiscência carnal, mas espiritualmente pela fé. Pois, a sombra consta de luz e de um corpo; em vista disso, aquele Verbo que era no princípio, aquela luz verdadeira, a fim de se tornar para nós uma sombra ao meio dia, fez-se carne e habitou entre nós (cf Jo 1,1.14). O homem se aproximou de Deus, como o corpo se achega à luz, e a sombra protetora recobriu os que nele criam. Esta sombra não é daquelas das quais se disse: “Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,9); nem daquela a que se refere o Apóstolo: “Ninguém vos julgue por questões de comida e de bebida, ou a respeito de festas anuais ou de lua nova ou de sábados, que são apenas sombra de coisas que haviam de vir” (Cl 2,16.17), mas daquela da qual está escrito: “À sombra de tuas asas, protege-me” (Sl 16,8). Por conseguinte, enquanto aquele supra-excelso discrimina os reis que estão sobre a pomba prateada, que eles não se orgulhem de seus méritos, não confiem no próprio valor; de fato, “branquearão como a neve no Selmon”, alvejarão pela graça sob a proteção do corpo de Cristo. | |
§ 22 | 16 Em conseqüência disso, o salmista denomina este monte de “monte de Deus, monte fértil, monte ubérrimo de queijo, ou monte pingüe”. Que quer dizer pingüe senão ubérrimo? Pois, o monte está designado por este nome, isto é, “Selmon”. Mas, que representa “o monte de Deus, monte fértil, ubérrimo de queijo” a não ser o mesmo Cristo Senhor, sobre o qual declara outro profeta: “Dias virão em que o monte do Senhor será estabelecido no mais alto das montanhas”? (Is 2,2). Ele é o monte ubérrimo de queijo, em favor dos pequeninos, que devem ser nutridos com leite. Monte fértil que fortifica e enriquece com a excelência dos dons. O leite, com o qual se faz o queijo, representa admiravelmente a graça, pois ele jorra dos seios maternos e é dado a sugar pelos pequeninos por misericórdia deleitável e gratuitamente. No grego é ambíguo se a palavra monte está no nominativo ou no acusativo, porque naquela língua monte é neutro, não masculino; por isso alguns verteram para o latim não no acusativo, montem Dei, mas no nominativo: mons Dei. Minha opinião é que seria melhor: “para o Selmon, monte de Deus”, isto é, para o monte de Deus chamado Selmon, segundo o sentido que acima expusemos, quanto possível. | |
§ 23 | 17 Em seguida, quanto às expressões: “monte de Deus, monte ubérrimo de queijo, monte fértil”, não se tenha a ousadia de comparar nosso Senhor Jesus Cristo aos demais santos, também eles denominados montes de Deus. De fato, lê-se: “A tua justiça é como as montanhas de Deus” (Sl 35,7); daí dizer o Apóstolo: “A fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2 Cor 5,21). Acerca destas montanhas, está dito em outra passagem: “Vieste, esplendente de luz, das montanhas eternas” (Sl 75,5), porque lhes foi concedida a vida eterna, e por meio deles a autoridade eminente das Sagradas Escrituras foi estabelecida, mas por inspiração daquele ao qual foi dito: “Tu vieste, esplendente de luz. Ergui os olhos para os montes para ver de onde me viria o auxílio”; meu auxílio, contudo, não se acha propriamente nos montes, mas “o meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 120,1.2). No entanto, um daqueles montes, muito alto, disse que trabalhou mais do que todos os outros: “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15,10). Visando a que não ousasse alguém comparar o monte mais belo entre os filhos dos homens (cf Sl 44,3) aos montes que são os filhos dos homens — com efeito, não faltaram os que declarassem ser ele João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou um dos profetas (cf Mt 16,14) — o salmista dirige-se a eles com estas palavras: “Por que olhais com inveja, montes ubérrimos de queijo, o monte que Deus escolheu para morar”? Por que olhais com inveja? Como eles, de fato, são luz, pois foi-lhes dito: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14), de Cristo foi afirmado: “A luz verdadeira que ilumina todo homem” (Jo 1,9); e como eles são montes, muito mais elevado é outro monte, acima de todos os montes. Em verdade, estes montes, na base do outro, são gloriosos. Um deles declara: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. A fim de que aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (Gl 6,14; 1Cor 1,31), e não em si mesmo. “Por que olhais com inveja montes ubérrimos de queijo aquele monte que o Senhor escolheu para morar?” Não significa isso que nos outros Deus não habite, mas que habita neles através deste que escolheu. “Pois nele habita toda a plenitude da divindade”, não em figura, como no templo construído pelo rei Salomão, mas “corporalmente”, isto é, sólida e verdadeiramente (Cl 2,9). “Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo” (2 Cor 5,19), quer apliquemos a palavra ao Pai, porque o Cristo disse: “O Pai, que permanece em mim, realiza suas obras; eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10), quer se entenda do modo seguinte: “Deus estava em Cristo”, o Verbo na natureza humana; de tal modo o Verbo estava na carne que propriamente só o Verbo se fez carne, isto é, a natureza humana se uniu ao Verbo na única pessoa de Cristo. “Por que olhais com inveja montes ubérrimos de queijo aquele monte que o Senhor escolheu para morar?” Certamente, de maneira muito diferente do que naqueles montes que o invejam, também a ele. Apesar de serem pela graça da adoção, também eles filhos de Deus, nenhum deles é o Unigênito, ao qual foi dito: “Assenta-te a minha direita até que ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés” (Sl 109,1). “Sim, o Senhor habitará nele até o fim”, isto é, o Senhor habitará naqueles montes que não podem ser comparados àquele onde habita o próprio Senhor, monte estabelecido acima de todos os montes. Ele os conduzirá ao fim, isto é, a si mesmo, Deus que há de ser contemplado. “O fim da Lei é Cristo para justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Aprouve a Deus, portanto, habitar neste monte, estabelecido acima dos outros e ao qual ele diz: “Tu és meu Filho amado em quem ponho minha afeição” (Mt 3,17). Este monte é o Senhor, que habita nos outros até o fim, e que se acha estabelecido acima de todos eles. “Há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus” (1 Tm 2,5), monte dos montes, assim como é o santo dos santos. Daí dizer ele: “Eu neles e tu em mim” (Jo 17,23). “Por que olhais com inveja, montes ubérrimos de queijo, o monte que Deus escolheu para morar?” Pois, este Senhor, monte ubérrimo de queijo, habitará até o fim naqueles montes que produzem queijo em abundância, de sorte que sejam algo aqueles aos quais ele diz: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). | |
§ 24 | 18 Assim se realiza o seguinte: “O carro de Deus é escoltado de muitas dezenas de milhares” (em latim: decem milium, ou denum milium, ou decies milies). Cada um dos tradutores latinos verteu uma só palavra grega, como pôde. Em latim não se pôde falar exatamente, porque mil para os gregos é csilia, e miriades seria muitas dezenas de milhares. Uma mirias equivale a dez mil. Trata-se, por conseguinte, de enorme multidão de santos e fiéis, que se tornando portadores de Deus, são de certo modo o carro de Deus, e trazem este nome. Deus, dentro dele e dirigindo-o, leva-o à meta, como se fosse um carro que devesse ir a determinado lugar. Pois, “como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. Em seguida, haverá o fim” (1 Cor 15,23.24). Aí se vê a santa Igreja, que consta do que segue: “São milhares que se rejubilam”. Efetivamente, estão “alegres na esperança”, até que sejam conduzidos ao fim que agora aguardam na perseverança (cf Rm 8,25). Causa estranheza que tendo dito: “São milhares que se rejubilam”, imediatamente acrescente o salmo: “O Senhor está no meio deles”. Não é de admirar que eles se alegrem: “O Senhor está no meio deles. Pois, é preciso passar por muitas tribulações para entrar no reino de Deus” (At 14,21). Mas, “o Senhor está no meio deles”. Por isso, “tidos como tristes e, não obstante, sempre alegres” (2 Cor 6,10), ainda não chegaram ao fim, mas estão “se alegrando na esperança, perseverantes na tribulação” (Rm 12,12), porque “o Senhor está no meio deles, como no Sinai, como no santuário”. Na tradução dos nomes hebraicos (cf Hier. Lib. interpr. Hebraic. nom.) encontramos que Sinai significa mandamento. Há ainda outra tradução, mas, a meu ver, esta se adapta melhor à presente passagem. Pois, dando o motivo da alegria daqueles milhares, de que consta o carro de Deus, disse o salmista: “O Senhor está no meio deles como no Sinai, no santuário”, isto é, o Senhor está no meio deles, através do mandamento. Este mandamento é santo, segundo o dizer do Apóstolo: “De modo que a Lei é santa, e santo, justo e bom é o preceito” (Rm 7,12). Mas, de que serviria o mandamento, se o Senhor ali não se encontrasse, conforme se diz dele: “Pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade”? (Fl 2,13). O mandamento, efetivamente, sem o auxílio do Senhor, é letra que mata (cf 2Cor 3,6). “Ora, a Lei interveio para que avultassem as faltas” (Rm 5,20). “Como a caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13,10), cumpre-se a Lei por meio da caridade e não pelo temor. “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Por isso, alegram-se estes milhares. Eles praticam a justiça da Lei na medida que as graças do Espírito os ajudam; porque “o Senhor está no meio deles, como no Sinai, no santuário”. | |
§ 25 | 19 Em seguida, o salmista volta a falar ao próprio Senhor: “Subiste às alturas, levaste presos os cativos, recebeste dons entre os homens”. Isto lembra o Apóstolo, expondo a respeito do Cristo Senhor: “Mas a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom de Cristo; por isso é que se diz: Tendo subido às alturas, levou cativo o cativeiro, deu dons aos homens. Que significa subiu, senão que ele também desceu às profundezas da terra? O que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, a fim de cumprir todas as coisas” (Ef 4,7-10). Sem dúvida alguma foi a Cristo que foi dito: “Subiste às alturas, levaste presos os cativos, recebeste dons entre os homens”. Não nos cause estranheza que o Apóstolo citando esse testemunho não disse: “Recebeste dons entre os homens”, mas: “Deu dons aos homens”. Com efeito, ele falou com a autoridade de Apóstolo, considerando que o Filho é Deus com o Pai. De acordo com isso, ele “deu dons aos homens”, enviando-lhes o Espírito Santo, que é o Espírito do Pai e do Filho. Segundo a outra expressão, porém, trata-se do mesmo Cristo em seu corpo, que é a Igreja, porque seus membros são os santos e fiéis. Daí ser-lhes dito: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros (1 Cor 12,27). Sem dúvida também ele “recebeu dons entre os homens”. Cristo, de fato, subiu ao alto e está sentado à direita do Pai (cf Mc 16,19), mas se não estivesse também na terra, não exclamaria: “Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4). Tendo ele mesmo dito: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes” (Mt 25,40), porque duvidaríamos que ele recebe em seus membros os dons que estes mesmos recebem? | |
§ 26 | Mas o que significa: “Levaste presos os cativos?” Seria porque venceu a morte, que mantinha cativos aqueles sobre os quais reinava? Ou denomina cativeiro os homens, presos pelo diabo? Este mistério acha-se contido no título deste salmo: “Quando se edificava a casa, depois do cativeiro” (Sl 95,1), isto é, a Igreja, depois do paganismo. Chama de cativeiro os próprios homens cativos, como se chama de milícia os soldados. O salmista diz que o Cristo levou preso o cativeiro. Por que não seria feliz cativeiro, se os homens podem ser presos para seu bem? Daí ter sido dito a Pedro: “Doravante serás pescador de homens” (Lc 5,10). Cativos porque apanhados, e apanhados porque subjugados. Debaixo daquele jugo leve, libertados do pecado de que eram servos e feitos servos da justiça da qual estavam livres (cf Mt 11,30; Rm 6,18). Por este motivo, está neles aquele que “deu dons aos homens e recebeu dons entre os homens”. Por certo neste cativeiro, nesta escravidão, neste carro, sob este jugo não existem milhares em pranto, mas “milhares que se rejubilam”. Efetivamente, “o Senhor está no meio deles, como no Sinai, como no santuário”. Concorda com este sentido a outra interpretação do Sinai, enquanto medida. Pois, o Apóstolo, referindo-se a esses dons de alegria espiritual, disse o que citei acima: “Mas a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom de Cristo”. E logo a seguir, o mesmo que na continuação do salmo: “Por isso é que se diz: Tendo subido às alturas, levou cativo o cativeiro, deu dons aos homens”, e aqui: “Recebeu dons entre os homens”. Que há de mais concorde do que uma e a outra dessas verdades? Que há de mais evidente? | |
§ 27 | Mas, o que o salmista acrescenta ainda? “Pois, aqueles que não acrescentam habitar (qui non credunt)”; ou como consta em alguns códices: “Pois os incrédulos quanto a habitar (non credentes)”. Que diferença há entre: os que não acreditam e os incrédulos? Não é fácil de entender. Como se estivesse dando a razão das palavras anteriores, tendo dito: “Levaste presos os cativos, recebeste dons entre os homens”, acrescentou: “Pois aqueles que não acreditam habitar”, isto é, que não acreditam a fim de habitarem. Que significa isto? De quem ele fala? Será que quer mostrar onde está o mau cativeiro antes que ele se transforme em bom cativeiro? Enquanto eles não acreditavam eram possuídos pelo inimigo, “que opera nos filhos da desobediência. Com ele, vós também andáveis outrora, quando vivíeis nos delitos” (cf Ef 2,2.3). Em conseqüência dos dons de sua graça, Cristo recebeu dons entre os homens e levou presos os cativos. Pois, eles não acreditavam a fim de habitarem. Com efeito, a fé os libertou desses vínculos, a fim de que, já fiéis, habitassem na casa de Deus, transformados também eles em casa de Deus, e carro de Deus escoltado de milhares que se rejubilam. | |
§ 28 | 20.21 Por tudo isso o salmista, ao cantar essas palavras e prevendo no espírito sua realização, repleto também ele de alegria, irrompeu num hino: O Senhor Deus seja bendito, “bendito o Senhor Deus, dia após dia (de die in diem)”. Alguns códices trazem: por dia, cada dia (“die quotidie”), porque assim se encontra nos gregos: eméran kath’ eméron, o que literalmente se exprime de modo mais exato por : “die quotidie”. A meu ver, o sentido é: “dia após dia”. Cotidianamente, de fato, assim se realiza até o fim: levou presos os cativos, recebendo dons entre os homens. | |
§ 29 | Visto que aquele carro leva ao fim, prossegue o salmo: “Caminho próspero nos abrirá o Deus que tantas vezes nos cura. O nosso Deus é um Deus que tem o poder de salvar”. A graça é muito acentuada. Pois, quem se salvaria se ele não curasse? Mas no intuito de que não ocorra ao pensamento por que razão morremos, se fomos salvos por sua graça, logo acrescenta: “e do Senhor é a saída da morte”, como se dissesse: Por que te sentes indignado, uma vez que, pela condição humana, passas pela morte? A partida de teu Senhor não foi outra que a da morte. Deves antes ficar consolado do que te indignares; “do Senhor é a saída da morte”. Pois fomos salvos em esperança. E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos (cf Rm 8,24). Por conseguinte, suportemos com paciência a própria morte, segundo o exemplo daquele que, apesar de não ser devedor da morte por não ter pecado algum, e ser o Senhor de quem ninguém podia arrebatar a vida, mas ele mesmo a daria por si mesmo, também esteve sujeito à passagem pela morte. | |
§ 30 | 22 “Deus, porém, esmagará a cabeça de seus inimigos e o crânio hirsuto dos que persistem em seus delitos”, isto é, dos que se exaltam em demasia, dos que se ensoberbecem demais em seus delitos. Deviam ao menos ser humildes, dizendo: “Senhor, tem piedade de mim, pecador!” (Lc 18,13). Mas, esmagará a cabeça deles, “pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (id 14). Entretanto, embora do Senhor seja a saída da morte, o mesmo Senhor, uma vez que é Deus, e morreu segundo a carne, por própria vontade, e não por necessidade, “esmagará a cabeça de seus inimigos”. E isto, não somente daqueles que diante do crucificado injuriavam-no, meneando a cabeça e dizendo: “Se é Filho de Deus, desça da cruz” (cf Mt 27,49.40), mas também dos que exaltavam contra sua doutrina e zombavam dele como de um homem sujeito à morte. Aquele mesmo, do qual foi dito: “A outros salvou, a si mesmo não pode salvar” (cf Mt 18,42), “é o Deus que tantas vezes nos cura; o nosso Deus é um Deus que tem o poder de salvar”. Mas para exemplo de humildade e de paciência, e a fim de apagar com seu sangue o quirógrafo de nossos pecados, quis fosse sua a saída da morte, a fim de não temermos a morte corporal, e sim aquela da qual ele nos livrou por meio desta. Certamente, injuriado e morto, “esmagará a cabeça de seus inimigos”, a respeito dos quais disse: “Ergue-me e dar-lhes-ei a merecida retribuição” (Sl 40,11), seja o bem em troca dos males, submetendo as cabeças dos fiéis; seja a justiça em troca das injustiças, punindo as cabeças dos orgulhosos. De ambas as maneiras são quebradas e esmagadas as cabeças dos inimigos, derrubados por sua soberba, quer corrigidos pela humildade, quer arremessados no profundo do tártaro. | |
§ 31 | 23.24 O Senhor disse: “De Basan voltarei”, ou conforme alguns manuscritos: “De Basan os farei voltar”. Efetivamente, ele nos faz voltar para sermos salvos, segundo o que foi declarado acima: “O Deus que tantas vezes nos cura e o Deus que tem o poder de salvar”. De fato, em outro lugar, pede-se-lhe: “Senhor, Deus dos exércitos, restabelece-nos. Mostra-nos, propício, a tua face e seremos salvos” (Sl 79,20). E em outro salmo: “Converte-nos, ó Deus, tu que nos curas” (Sl 84,5). Ele, que disse: “De Basan farei voltar”. A tradução de Basan é: confusão. Então, qual o sentido de: farei voltar da confusão? A não ser que afirme estar confundido por causa de seus pecados e pedir a misericórdia de Deus para que seus delitos sejam perdoados. Eis a razão por que aquele publicano nem ousava erguer os olhos para o céu; considerando-se deste modo confundia-se, mas desceu do templo justificado, porque “disse o Senhor: De Basan farei voltar”. Basan também se traduz por aridez; é certo que o Senhor faz voltar da aridez, isto é, da carência. Pois, os que se julgam na abundância estando famélicos, e saciados quando estão completamente vazios, não se convertem. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). Desta aridez, o Senhor faz voltar. Dize-lhe a alma árida: “A ti estendi minhas mãos. Como terra sem água minha alma está diante de ti” (Sl 142,6). Igualmente não é absurdo o que contêm outros códices: “De Basan voltarei”. Pois, converte-se também para nós aquele que diz: “Retornai a mim e eu retornarei a vós” (Zc 1,3); mas isto não se realiza sem confusão, porque nosso pecado está sempre diante de nós (Sl 50,5), nem fora da aridez, que nos leva a desejar a chuva, chuva benfazeja, reservada a sua herança. Com efeito, a herança se enfraqueceu, mas ele, voltando-se aperfeiçoou aquela à qual foi dito: “voltando-te para mim, deste-me vida” (Sl 70,20). Disse, pois, o Senhor: “De Basan farei voltar, voltar ao fundo do mar”. Se diz: Farei voltar” por que razão “ao fundo do mar?” O Senhor, quando volta a fim de trazer a salvação, volta-se para si mesmo, que, evidentemente, não é o fundo do mar. Ou há um erro na tradução latina, e traz “ao fundo” ao invés de: profundamente? De fato, ele não se converte, mas converte aqueles que nas profundezas do mundo jazem afundados devido ao peso dos pecados. Assim convertido, diz o salmista: “Das profundezas clamei a ti, Senhor” (Sl 129,1). Se, porém, não é “farei voltar”, mas “voltarei”, entende-se que nosso Senhor disse: “ao fundo do mar”, porque sua misericórdia se volta até ao fundo do mar, para libertar também aqueles que fossem os piores dos pecadores, sem esperança do arrependimento. Em um manuscrito grego não encontrei: “no fundo”, mas: “nas profundezas”, en buthois, o que confirma a primeira explicação, a saber, que Deus se volta para os que por ele chamam das profundezas. É exato entendermos que ele se volta para libertar mesmo a esses tais; e de tal modo os converte, ou se volta para libertá-los que seus pés se tingem de sangue. É o que o profeta diz ao Senhor: “Para que se tinjam de sangue os teus pés”, isto é, aqueles que se convertem a ti, ou aos quais te voltas para libertá-los, apesar de estarem mergulhados no fundo do mar pelo peso de suas iniqüidades, progridem tanto em tua graça, “porque onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20). Assim teus pés se contem entre teus membros, para anunciar teu evangelho, e sofrendo longamente o martírio por teu nome, combatam até o derramamento do sangue. É deste modo, a meu ver, que melhor se explicam os pés tintos no sangue. | |
§ 32 | Logo acrescenta: “A língua de teus cães, que procedem dos inimigos, por meio dele”. Denomina cães os mesmos que haveriam de combater até a efusão do sangue pela fé do evangelho, e de certo modo ladram em favor de seu Senhor. Não se trata dos cães mencionados pelos apóstolos: “Cuidado com os cães” (Fl 3,2), mas aqueles que “comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos”. Assim declarou a cananéia, que mereceu ouvir do Senhor: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!” (Mt 15,25.28). Cães louváveis e não detestáveis. Fiéis a seu dono, que ladram contra os inimigos para defender-lhe a casa. Não disse o salmista: “cães”, e sim “teus cães”. Não são elogiados os seus dentes, e sim as suas línguas. E isto, não foi inutilmente. Foi por grande mistério que Gedeão mandou fossem alistados somente os que lambessem como os cães a água do rio. E estes não somaram mais que trezentos, de tão grande multidão (cf Jz 7,5.6). Neste número assinala-se a cruz, porque a letra r em grego reprenta o número trezentos. De tais cães refere outro salmo: “Eles se converterão à tarde, famintos como cães” (Sl 58,15). Certos cães são repreendidos pelo profeta Isaías, não pelo fato de serem cães, mas porque não sabem ladrar e gostam de dormir (cf Is 56,10). Com isso demonstrou que se vigiassem e ladrassem em benefício de seu dono, seriam cães ótimos, como estes de que aqui se fala: “a língua de teus cães”. O profeta predisse que eles proviriam dos inimigos, que passariam por aquela conversão supra mencionada. Daí a palavra do outro salmo: “Eles se converterão à tarde, famintos como cães”. Depois, como se alguns perguntassem de onde lhes proveio tamanho bem, que apesar de terem sido seus inimigos se tornassem seus cães, obtiveram a resposta: “por meio dele”. Pois, lê-se o seguinte: “A língua de teus cães, que procedem dos inimigos, por meio deles”. Com efeito, é através de seu amor, de sua misericórdia, de sua graça. Pois quando o poderiam por si mesmos? Pois quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho (cf Rm 5,10). Também aqui do Senhor foi a saída da morte. | |
§ 33 | 25 “Teus passos, ó Deus, foram vistos”. Os passos pelos quais vieste através do mundo, como que disposto a atravessar o orbe da terra naquele carro. Passos e nuvens que no evangelho representam os santos e fiéis: “De ora em diante, vereis o Filho do homem, que vem sobre as nuvens do céu”. Sem falar naquela vinda em que ele será juiz dos vivos e dos mortos (2 Tm 4,1). “De ora em diante, vereis o Filho do homem, que vem sobre as nuvens do céu” (Mt 26,64; Mc 13,126). Estes “teus passos, ó Deus, foram vistos”, isto é, manifestados, com a graça da revelação do Novo Testamento. Daí vem a palavra: “Quão maravilhosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam boas notícias!” (Rm 10,15). Esta graça e esses passos estavam latentes no Antigo Testamento; ao vir a plenitude dos tempos, e tendo agradado a Deus revelar seu Filho, a fim de que fosse anunciado entre os gentios (cf Gl 4,4), “teus passos, ó Deus, foram vistos; a entrada de meu Deus, de meu rei no santuário”. Em que “santuário” se não é o seu templo? “Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1 Cor 3,17). | |
§ 34 | 26 No intuito de que fossem vistos estes passsos, “precediam os príncipes com os cantores, no meio as jovens a tocar tamborins”. Príncipes são os apóstolos; eles vieram na frente, e em seguida os povos. “Precederam”, anunciando o Novo testamento; “com os cantores”, por cujas boas obras, mesmo visíveis, como instrumentos de louvor, Deus fosse glorificado. Os próprios príncipes, tendo “no meio as jovens a tocar tamborins”, isto é, em honroso ministério, pois os chefes das novas igrejas acham-se no meio de ministros. “Jovens”, os que louvam a Deus, depois de vencerem a carne. “Tamborins” feitos de couro curtido e esticado. | |
§ 35 | 27 Então, tendo em vista que ninguém tome isto em sentido carnal, e imagine por estas palavras coros impuros, o salmista continua: “Bendizei ao Senhor Deus nas igrejas”, como se dissesse: Por que, ouvindo falar de jovens a tocar tamborins, pensais em deleites ilícitos? “Bendizei ao Senhor nas igrejas”. A palavra: igrejas designa o sentido místico. Igrejas são as jovens, decoradas de nova graça. Igrejas são as jovens a tocar tamborins, sonoros espiritualmente, depois de dominada a carne. Portanto, “bendizei ao Senhor Deus nas igrejas, vós os descendentes das fontes de Israel”. Deste povo Deus escolheu primeiro os que se tornariam fontes. Pois, dele foram escolhidos os apóstolos, que ouviram antes: “Quem beber da água que eu lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,13.14). | |
§ 36 | 28 “Eis Benjamim, o mais jovem, em êxtase”. Eis Paulo, o último dos apóstolos que disse: Pois “também eu sou israelita, descendente de Abraão, da tribo de Benjamim” (cf Fl 3,5, 2Cor 11,21). Mas em verdade, “em êxtase”. Todos ficaram apavorados diante do milagre tão grande de seu chamado. Êxtase é arroubo da mente, algumas vezes devido ao pavor; algumas vezes, porém, devido a alguma revelação, feita num arroubo da mente que a torna alheia aos sentidos corporais, a fim de ser mostrado ao espírito o que deve ser mostrado. Assim se pode entender a expressão: “em êxtase”, porque ao ouvir Paulo perseguidor a palavra vinda do céu: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4-7) e tendo perdido a visão dos olhos corporais, respondia ao Senhor que ele via em espírito. Os que se achavam em sua companhia, porém, ouviam a voz a responder, mas não viam a quem ele falava. Pode-se também entender daquele êxtase de que ele fala: “Conheço um homem que foi arrebatado até o terceiro céu — se em seu corpo, se fora do corpo, não sei — foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (cf 2Cor 12,2-4). “Judá, seus chefes, os príncipes de Zabulon, os príncipes de Neftali”. Quando o Apóstolo alude a príncipes, inclui também Benjamim, o mais jovem, em êxtase. Se, com tais palavras, ninguém duvida que Paulo quer chamar de príncipes os melhores e merecedores de imitação nas igrejas, a que propósito vêm aqui os nomes das tribos israelíticas? Se ele fizesse menção apenas da tribo de Judá, de onde se originaram os reis e da qual nasceu o Cristo Senhor segundo a carne (cf Rm 9,5), pensaríamos que esta tribo figuraria também os príncipes do Novo Testamento; como, porém, acrescenta: “os príncipes de Zabulon, os príncipes de Neftali”; talvez afirme alguém que os apóstolos eram originários destas tribos e não das outras. Não vejo como se poderia provar isto; no entanto, como também não encontro como refutá-lo, e vejo que neste lugar se recomendam os príncipes das igrejas, e os chefes daqueles que nas igrejas bendizem ao Senhor, não acho absurdo este sentido; mas agrada- me mais o que se evidencia pela tradução destes nomes. De fato, são nomes hebraicos. Deles, Judá diz-se que significa confissão; Zabulon, morada da fortaleza; Neftali, minha dilatação. Tudo isso nos insinuam os verdadeiros príncipes das igrejas, dignos do governo, dignos de imitação, dignos de honras. Pois os mártires detêm nas igrejas os supremos lugares, e se elevam ao ápice da dignidade santa. Mas, no martírio, tem o primero lugar a confissão, e tudo o que se deva tolerar por ela é abrangido pela fortaleza em segundo lugar, depois de tolerados todos os sofrimentos, terminadas as angústias, segue a amplidão do prêmio. Uma vez que o Apóstolo principalmente recomenda essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, pode-se entender que a confissão refere-se à fé, a fortaleza à esperança e a amplidão à caridade (cf 2Cor 13,13). É peculiar à fé crer de coração para obter a justiça e confessar com a boca para obter a salvação (cf Rm 10,10). São tristes os sofrimentos das tribulações, mas a esperança é forte. “Pois, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,25). A caridade tem como própria a amplidão, porque alarga o coração; pois, “o perfeito amor lança fora o temor” (1Jo 4,18). Este temor traz consigo tormento, as angústias da alma. Por conseguinte, são “príncipes de Judá, os chefes” que bendizem ao Senhor nas igrejas. “Príncipes de Zabulon, príncipes de Neftali”, príncipes da confissão, da fortaleza, da amplidão; príncipes da fé, da esperança e da caridade. | |
§ 37 | 29 “Manifesta, ó Deus, o teu poder”. Pois, um só é nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos (1 Cor 8,6). Lemos que ele é poder de Deus e sabedoria de Deus (id 1,24). Como, porém, Deus envia seu Cristo, senão demonstrando-o? “Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8). “Como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele?” (Rm 8,32) “Manifesta, ó Deus, o teu poder, confirma o que fizeste por nós”. Manifesta ensinando, confirma ajudando. | |
§ 38 | 30.31 “De teu santo templo que está em Jerusalém. Os reis te oferecerão presentes. De teu templo em Jerusalém”, nossa mãe, que é livre (cf Gl 4,26)), porque ela mesma é teu santo templo; deste templo “os reis te oferecerão presentes”. Sejam quais forem estes reis, quer se trate dos reis da terra, quer dos reis que o supra-excelso discrimina, na pomba prateada, “os reis te oferecerão presentes”. E que presentes agradáveis, que sacrifícios de louvor! Mas como perturbam este louvor os que têm o nome de cristãos, mas pensam de modo diverso! Faça-se, portanto, o que segue: “Reprime a fera do canavial”. De fato, existem feras, sem inteligência, que causam dano; são feras do canavial, porque erram quanto ao sentido das Escrituras. O caniço representa tão bem as Escrituras quanto a língua representa a palavra. Fala-se em língua hebraica, ou grega, ou latina, ou outra qualquer, pela causa representando o efeito. É comum na língua latina que o escrito se denomine estilo, porque se produz com o estilete; assim também se chama caniço (catamus) o que se faz com o caniço. O apóstolo Pedro afirma que os ignorantes e vacilantes torcem as Escrituras, para a sua própria perdição (cf 2Pd 3,16). São as feras do canavial, aqui mencionadas: “Reprime a fera do canavial”. | |
§ 39 | Trata-se ainda deles na continuação: “A manada de touros com o rebanho dos povos, para que sejam excluídos os que foram experimentados como a prata. Chama de touros, por causa da soberba e de dura e indômita cerviz, os hereges. “Rebanhos dos povos”, porém, são, a meu ver, as almas que se deixam seduzir, que facilmente seguem estes touros. Pois, eles não seduzem todos os povos, entre os quais existem povos graves e estáveis. Daí estar escrito: “Louvar-te-ei no meio da multidão compacta” (Sl 34,18), mas naqueles povos onde existem rebanhos. “Entre estes se encontram os que se introduzem nas casas e conseguem cativar mulherzinhas carregadas de pecados, possuídas de toda sorte de desejos, sempre aprendendo, mas sem jamais poder atingir o conhecimento da verdade” (2 Tm 3,6.7). Diz o mesmo Apóstolo: “É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados” (1 Cor 11,19), e o salmo também continua: “Para que sejam excluídos os que foram experimentados como a prata”, isto é, que foram experimentados pelas palavras do Senhor. Efetivamente, “palavras do Senhor, palavras puras, prata pelo fogo acrisolada de tarra” (Sl 11,7). Pois, foi dito: “para que sejam excluídos”, apareçam, destaquem-se, conforme disse o Apóstolo: “se tornem manifestos”. Por isso, em ourivesaria chamam-se extratores (excluídos) os que sabem da massa confusa tirar a forma dos vasos. Muitos dos sentidos das Sagradas Escrituras são ocultos, e a poucos, mais inteligentes, são notórios. São afirmados com mais exatidão e tornam-se mais aceitáveis quando o cuidado de responder aos hereges a isto impele. Então, mesmo os que negligenciam o estudo da doutrina, sacodem o torpor e despertam a solicitude de ouvir para refutarem os adversários. Enfim, quantos sentidos das Sagradas Escrituras sobre a divindade de Cristo foram declarados contra Fotino! Quantos a respeito da humanidade de Cristo contra Manes! Quantos argumentos a respeito da Trindade contra Sabélio! Quantas asserções sobre a unidade da Trindade contra os arianos, eunomianos, macedonianos! Quantas afirmações sobre a Igreja católica espalhada por toda a terra, acerca da mistura de bons e maus até o fim do mundo e de que não prejudica aos bons sua participação nos sacramentos, contra os donatistas e luciferianos e quaisquer outros, que, por erro semelhante, são dissidentes da verdade! Quantos pronunciamentos contra os demais hereges, que seria longo demais enumerar ou lembrar, o que é desnecessário para a presente obra! Os dignos defensores destas verdades, ou ficariam inteiramente escondidos, ou não se destacariam tanto quanto as contradições dos soberbos os pusera em foco. A esses últimos, quais touros, isto é, insubmissos ao jugo pacífico e leve da disciplina, cita o Apóstolo, ao afirmar que para o episcopado dever-se-ia escolher alguém que fosse “capaz de ensinar a sã doutrina como também de refutar os que a contradizem” (Tt 1,9). De fato, há muitos insubmissos; são touros, de cabeça erguida, que não suportam arado nem jugo: falam vaidades e seduzem os espíritos. Tais espíritos o presente salmo denominou rebanhos. Para esta finalidade, a providência divina permite que haja manada de touros no rebanho dos povos, “para que sejam excluídos os que foram experimentados como a prata”, isto é, para que se destaquem. Foi permitido existirem hereges “a fim de que se tornem manifestos aqueles que são comprovados”. Embora também se possa interpretar: “A manada de touros com o rebanho dos povos”, de sorte que “do rebanho sejam excluídos os que foram experimentados como a prata”. Esta é a intenção dos instruídos entre os hereges: que para longe dos ouvidos das almas que eles se empenham em seduzir sejam excluídos, isto é, separados os que são comprovados como a prata, a saber, que são capazes de ensinar as palavras do Senhor. Seja este ou aquele o sentido desta palavra, continua o salmo: “Dispersa as nações que se comprazem na guerra”. Elas não estão empenhadas em se corrigir, e sim em disputar. Por isso, profetiza o salmista que é preferível sejam dispersos os incorrigíveis, que procuram dispersar o rebanho de Cristo. O salmista chamou de nações os dispersos, não por causa das famílias, mas por causa das espécies de seitas, das quais as séries que se sucedem confirmam-nas no erro. | |
§ 40 | 32.34 “Virão embaixadores do Egito; a Etiópia se adiantará a estender as mãos para Deus”. Sob o nome de Egito ou Etiópia indica todas as gentes que abraçaram a fé, pela parte designando o todo, e chamando de embaixadores os pregadores da reconciliação. “Em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus” (2 Cor 5,20). Deste modo aqui foi misticamente profetizado não somente acerca dos israelitas, de onde foram escolhidos os apóstolos, mas também os futuros pregadores da paz cristã dentre os gentios. Quanto à expressão: “Adiantar-se-á a estender as mãos”, os gentios adiantar-se-ão à vingança, a saber, convertendo-se para Deus, a fim de lhes serem perdoados os pecados e não serem castigados por permanecerem pecadores. É o que exprime igualmente outro salmo: “Com a confissão saiamos ao seu encontro” (Sl 94,2). Assim como as “mãos” representam a vingança, “face” significa revelação e presença, no futuro juízo. Tendo figurado no Egito e na Etiópia os povos da terra inteira, logo acrescenta: “Para Deus, reinos da terra”. Não é para Sabélio, nem Ario, nem Donato, nem outros touros de dura cerviz, mas “para Deus, os reinos da terra”. | |
§ 41 | Todavia, vários códices latinos e principalmente gregos têm diferenças nestes versículos. Não se acha no mesmo versículo: “Para Deus, reinos da terra”, mas “para Deus” está no final de versículo anterior, da seguinte maneira: “A Etiópia se adiantará a estender as mãos para Deus” e prossegue o outro versículo: “Reinos da terra, cantai a Deus, entoai salmos ao Senhor”. Indubitavel-mente esta diferença, confirmada pela autoridade de muitos dos melhores códices, é preferível, pois, a meu ver, recomenda a fé que precede as obras. Pois, o ímpio se justifica pela fé sem o mérito das boas obras, conforme a palavra do Apóstolo: “A quem, ao invés, crê naquele que justifica o ímpio, é sua fé que é levada em conta de justiça” (Rm 4,5), de sorte que de então em diante a própria fé começa a atuar por amor. Com efeito, somente são denominadas boas obras as que se realizam por amor de Deus. É portanto necessário que preceda a fé e assim daí comecem as boas obras e não o inverso. Ninguém obra por amor a Deus, se primeiro não acreditar nele. De tal fé trata o Apóstolo: “Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas a fé, que age pela caridade” (Gl 5,6). Desta fé se fala à Igreja no Cântico dos cânticos: “Virás e passarás do início da fé” (Ct 4,8, sg. LXX). A Igreja veio como o carro de Deus escoltado de milhares que se rejubilavam, tendo aberto um caminho próspero, e passou deste mundo ao Pai (cf Jo 13,1), realizando-se nela o que disse o próprio esposo, o qual passou deste mundo ao Pai: “Quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo” (Jo 17,24), mas com o início da fé. Para que as boas obras venham em seguida, a fé precede; não existe boa obra, se não for após a fé e por isso parece que: “a Etiópia se adiantará a estender as mãos para Deus” quer dizer apenas: a Etiópia acreditará em Deus. Assim, pois, “estenderá sua mão”, isto é, as suas obras. Quem, senão a Etiópia? Pois, em grego não é ambíguo. “Suas” aqui é bem claro que é do gênero feminino. Por este motivo, nada mais se diz aqui senão “a Etiópia se adiantará a estender as mãos para Deus”, isto é, acreditando em Deus adiantar-se-á a suas obras. “Porquanto nós sustentamos”, diz o Apóstolo, “que o homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei. Ou acaso ele é Deus só dos judeus? Não é também dos gentios?” (Rm 3,28.29). Assim, portanto, a Etiópia, que parece a nação do ponto extremo, se justifica pela fé, sem as obras da Lei. Pois, não se gloria das obras da Lei para ser jutificada; nem prefere seus méritos à fé, mas a fé antecipa-se às suas obras. De fato, muitos códices não trazem “mãos”; mas são equivalentes, porque vêm em lugar de obras. Preferiria que os tradutores latinos vertessem assim: “A Etiópia se adiantará a estender as suas mãos, ou sua mão para Deus”; ficaria mais claro do que o texto atual: “dela (ejus)”; com isso se poderia conservar a exatidão, porque o pronome grego autes pode ser tanto “dela”, como “sua” ou “suas”; “sua”, pois se for mão; “suas” se a tradução for: “mãos”. Pois, conforme se acha no grego: keira autes se encontra em vários códices, pode significar: “mão dela” e “sua mão”. O que é raro nos códices gregos: keiras autes pode-se dizer em latim: “mãos dela” e “suas mãos”. | |
§ 42 | Já tendo percorrido tudo o que encerra a profecia, e como vemos tudo já cumprido, o salmista exorta ao louvor a Cristo, e por isso anuncia sua futura vinda. “Reinos da terra, cantai a Deus, entoai salmos ao Senhor; salmodiai a Deus que sobe ao céu dos céus, para o oriente”, ou conforme trazem alguns códices: “Que sobe ao céu do céu, para o orien-te”. Não verá, nestas palavras, a Cristo quem não acredita em sua ressurreição e ascensão. O acréscimo: “para o oriente”, não se refere ao lugar onde se deram, porque foi nas par-tes orientais que ele ressuscitou e subiu ao céu? Por conseguinte, acima do céu do céu senta-se à direita do Pai. Isto afirma o Apóstolo: “É também o que subiu acima de todos os céus” (Ef 4,10). Que céu ainda resta depois do céu do céu? Podemos dizer céus dos céus, assim como Deus chamou ao firmamento céu; quanto a este céu, lemos também céus, no salmo: “Águas que estão acima dos céus, louvem o nome do Senhor” (Sl 148,4). E como ele há de vir de lá a julgar os vivos e os mortos, observe-se o seguinte: “Eis que ele faz ouvir a sua voz, voz poderosa”. Ele que, “como uma ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores” (Is 53,7) eis que faz ouvir a sua voz; não uma voz fraca, como se devesse ser julgado, mas “voz poderosa”, como quem há de julgar. Pois, não será um Deus oculto, como anteriormente, que não abriu a boca no juízo dos homens; mas “Deus virá manifestamente; nosso Deus, e não se calará” (Sl 49,3). Por que desesperais, ó infiéis? Por que zombais? Como se exprimiu o servo mau: “O meu Senhor tarda a vir”? (Lc 12,45). Eis que ele faz ouvir a sua voz, voz poderosa. | |
§ 43 | 35 “Rendei glória a Deus por Israel, sua magnifi-cência”. Dele fala o Apóstolo: “Sobre o Israel de Deus” (Gl 6,16). “Nem todos os que descendem de Israel são israe-litas” (Rm 9,6), porque existe também o Israel segundo a carne. Daí dizer o Apóstolo: “Considerai o Israel segundo a carne” (1 Cor 10,18). “Não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são tidos como descendentes” (Rm 9,8). Quando seu povo estiver livre de qualquer mistura com os maus, como a massa que foi ventilada na eira (Mt 3,12), e como Israel em quem não há fingimento (Jo 1,47), então será evidente “sobre Israel sua magnificência e seu poder se revelará nas nuvens”. Ele não virá sozinho para o julgamento, mas com os anciãos de seu povo (cf Is 3,14). Ele lhes prometeu que haveriam de se sentar sobre tronos para julgar (cf Mt 19,28), e julgariam até os anjos (1 Cor 6,3). Estes são os que as nuvens figuram. | |
§ 44 | 36 Finalmente, para que se entendesse bem de que nuvens se trata, acrescentou logo: “É admirável em seus santos Deus, o Deus de Israel”. Então, com toda verdade e plenitude se realizará o nome de Israel, que significa: Aquele que vê a Deus, “porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). “Ele mesmo dará a seu povo poder e força. Bendito seja Deus”. Seu povo agora é frágil e fraco. Pois, “trazemos este tesouro em vasos de argila” (2 Cor 4,7). No fim, porém, também através da transformação gloriosa dos corpos, “ele mesmo dará a seu povo poder e força”. Pois, “este corpo semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força” (1 Cor 15,43). “Ele, portanto, dará a força”, ele que primeiro deu a sua carne, sobre a qual declarou o Apóstolo: “O poder da sua ressurreição” (Fl 3,10), poder com que destruiu o último inimigo, a morte (cf 1Cor 15,26). Uma vez que, enfim, com o auxílio do Senhor, terminamos este salmo tão longo e difícil de entender, “bendito seja Deus”. Amém. 1 Cf Com. ao salmo LIV, 22,8ss. | |