ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 66 | ||
§ 66:1 | Ł Louvai a Deus com brados de júbilo, todas as terras. | |
§ 66:2 | Ƈ Cantai a glória do seu nome, dai glória em seu louvor. | |
§ 66:3 | Ɗ Dizei a Deus: Quão tremendas são as tuas obras! pela grandeza do teu poder te lisonjeiam os teus inimigos. | |
§ 66:4 | Ŧ Toda a terra te adorará e te cantará louvores; eles cantarão o teu nome. | |
§ 66:5 | ⱴ Vinde, e vede as obras de Deus; ele é tremendo nos seus feitos para com os filhos dos homens. | |
§ 66:6 | Ƈ Converteu o mar em terra seca; passaram o rio a pé; ali nos alegramos nele. | |
§ 66:7 | ⱻ Ele governa eternamente pelo seu poder; os seus olhos estão sobre as nações; não se exaltem os rebeldes. | |
§ 66:8 | Ꞗ Bendizei, povos, ao nosso Deus, e fazei ouvir a voz do seu louvor; | |
§ 66:9 | ɑ ao que nos conserva em vida, e não consente que resvalem os nossos pés. | |
§ 66:10 | Ꝓ Pois tu, ó Deus, nos tens provado; tens nos refinado como se refina a prata. | |
§ 66:11 | Ƒ Fizeste-nos entrar no laço; pesada carga puseste sobre os nossos lombos. | |
§ 66:12 | Ƒ Fizeste com que os homens cavalgassem sobre as nossas cabeças; passamos pelo fogo e pela água, mas nos trouxeste a um lugar de abundância. | |
§ 66:13 | ⱻ Entregarei em tua casa com holocaustos; pagar-te-ei os meus votos, | |
§ 66:14 | ⱱ votos que os meus lábios pronunciaram e a minha boca prometeu, quando eu estava na angústia. | |
§ 66:15 | Ꝋ Oferecer-te-ei holocausto de animais nédios, com incenso de carneiros; prepararei novilhos com cabritos. | |
§ 66:16 | ⱴ Vinde, e ouvi, todos os que temeis a Deus, e eu contarei o que ele tem feito por mim. | |
§ 66:17 | Ɑ A ele clamei com a minha boca, e ele foi exaltado pela minha língua. | |
§ 66:18 | ᶊ Se eu tivesse guardado iniqüidade no meu coração, o Senhor não me teria ouvido; | |
§ 66:19 | mas, na verdade, Deus me ouviu; tem atendido à voz da minha oração. | |
§ 66:20 | Ꞗ Bendito seja Deus, que não rejeitou a minha oração, nem retirou de mim a sua benignidade. | |
O SALMO 66 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 2 V. Caridade está lembrada de que em dois salmos já explanados, exortamos a nossa alma a bendizer o Senhor, num cântico piedoso: “Bendize, minha alma, ao Senhor” (Sl 102,1; 103,1). Se naqueles salmos animamos nossa alma a bendizer ao Senhor, neste salmo com justeza se reza: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe”. Bendiga nossa alma ao Senhor e Deus nos abençoe. Quando Deus nos abençoa, nós crescemos, e quando bendizemos ao Senhor, também crescemos; ambas as coisas são para nosso proveito. Ele nada ganha quando o bendizemos, nem diminui por nossas maldições. Quem maldiz ao Senhor, ele próprio diminui; quem bendiz ao Senhor, cresce. A bênção do Senhor vem-nos em primeiro lugar, e por conseqüência também nós bendizemos ao Senhor. A primeira é a chuva, e esta é o fruto. Por isso, estamos entregando a Deus, o agricultor, que nos manda a chuva e nos cultiva, o fruto que produzimos. Cantemos estas palavras com devoção, mas não estéril, nem só de voz, mas com um coração sincero. Deus Pai é chamado claramente de agricultor. O Apóstolo o declara: “Vós sois a seara de Deus, o edifício de Deus” (1 Cor 3,9). Neste mundo visível, a videira não é edifício, nem o edifício é vinha. Nós, porém, somos a vinha do Senhor, porque ele nos cultiva para darmos frutos; somos o edifício de Deus, porque aquele que nos cultiva habita em nós. Como se exprime a esse respeito o mesmo Apóstolo? “Eu plantei, Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer. Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa tão-somente Deus, que dá o crescimento” (1 Cor 3,6-9). Ele, portanto, dá o crescimento. Acaso estes são agricultores? Pois, se chama agricultor aquele que planta, que rega; e o Apóstolo afirma: “Eu plantei; Apolo regou”. Perguntamos como ele pôde fazê-lo. Responde o Apóstolo: “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15,10). Por conseguinte, para qualquer lado que te voltares, seja para os anjos, descobrirás que Deus é teu agricultor; seja para os profetas, ele é teu agricultor; seja para os apóstolos, ele próprio é o teu agricultor. E nós, então? Talvez sejamos operários daquele agricultor, e mesmo isso será por meio das forças que ele distribui, através da graça que ele dá. Ele, portanto, cultiva e dá o crescimento. Um agricultor humano cultiva a sua vinha até esse ponto: ara, limpa, emprega outros meios pertencentes ao trabalho agrícola; mas fazer chover sobre sua vinha, ele não pode. E se pode irrigar, pelo poder de quem o pode? Ele, com efeito, abre o canal para o rio, mas é Deus que enche a fonte. Enfim, não pode fazer crescer os sarmentos em sua vinha, não pode formar os frutos, não pode modificar as sementes, não pode determinar o tempo do nascimento. Deus, porém, que pode tudo isso, é nosso agricultor; fiquemos tranqüilos. É possível que diga alguém: Tu dizes que Deus é nosso agricultor; eu prefiro dizer que agricultores são os apóstolos, que afirmaram: “Eu plantei; Apolo regou”. Se sou eu que afirmo, que ninguém acredite. Mas se é Cristo quem o declara, ai de quem não crê. Que é, então, que diz Cristo Senhor nosso? “Eu sou a videira e vós os ramos e meu Pai é o agricultor” (Jo 15,5.1). Fique sedenta a terra, e emita os gritos de sede, porque está escrito: “Como terra sem água minha alma está diante de ti” (Sl 142,6). Diga, pois, nossa terra, nós mesmos, desejando a chuva de Deus: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe”. | |
§ 2 | “Faça luzir sobre nós o brilho de sua face”. Provavelmente ias perguntar o sentido da expressão: “nos abençoe”. Os homens querem de muitas maneiras serem abençoados por Deus. Um quer ser abençoado a fim de ter uma casa cheia de tudo o que é necessário nesta vida; outro ambiciona ser abençoado para ter uma saúde corporal completa; outro almeja ser abençoado, de sorte que, se adoecer, recupere a saúde; outro deseja filhos, e talvez triste porque não nascem, quer a bênção a fim de conseguir uma posteridade. E quem pode enumerar os diversos anelos dos homens, para cuja obtenção querem ser abençoados pelo Senhor Deus? Quem de nós não há de afirmar que é uma bênção de Deus que o cultivo do campo dê frutos, ou a casa de alguém possua grande abundância de bens temporais, ou a saúde do corpo não se perca, ou seja recuperada? Mesmo a fecundidade das mulheres, e os castos desejos de filhos, de onde vêm senão do Senhor Deus? Pois, aquele que os criou quando eles não existiam, é quem faz subsistir a prole que criou. Deus é quem faz estas coisas, quem as dá. Não basta dizer: Deus faz estas coisas, e as dá; mas ele é o único que as faz e as dá. Que seria se Deus as fizesse, mas também outro que não Deus as fizesse igualmente? Ele as faz, e é o único a fazê-las. É inútil pedi-las aos homens ou aos demônios. Todos os bens que recebem os inimigos de Deus, é dele que os recebem; e se pedem a outros e o recebem, é dele que recebem sem o saberem. Da mesma forma que ao serem castigados e pensam que são castigados por outros, sem o saberem é por ele que são castigados. Assim igualmente quando têm vigor, são saciados, são salvos, libertados, embora o desconheçam e atribuam aos homens, ou aos demônios, ou aos anjos, não o recebem senão dele, em cujas mãos se acha o poder de todos eles. Dissemos estas coisas, irmãos, a fim de que se alguém desejar estes bens terrenos, para suprir uma necessidade ou por alguma fraqueza, não o espere senão daquele que é a fonte de todos os bens, Criador e restaurados do universo. | |
§ 3 | Mas, uns são os dons que Deus concede também a seus inimigos, e outros os que reserva a seus amigos. Quais as dádivas que concede a seus inimigos? Aqueles que enumerei. Pois, não são apenas os bons que têm casas repletas de todas as coisas necessárias; nem somente os bons que gozam de saúde ou convalescem de uma doença; nem só os bons que têm filhos, só os bons que possuem dinheiro, só os bons que têm tudo o que é adequado a esta vida temporal e passageira. Igualmente os maus o possuem, e por vezes estes bens faltam aos bons; mas faltam também aos maus, e freqüentemente mais a estes que àqueles; de outras vezes são mais abundantes para aqueles do que para estes. Deus quis que estes bens temporais fossem distribuídos em mistura; porque se os desse só aos bons, julgariam os maus que por causa deles deviam adorar a Deus; ao invés, se os concedesse apenas aos maus, os bons, mas fracos, teriam medo de se converterem e de lhes faltarem esses bens. Uma alma ainda fraca é menos idônea para o reino de Deus; Deus, nosso agricultor, deve sustentá-lo. Pois, a árvore que já suporta com vigor as tempestades, ao brotar da terra era uma erva. Aquele agricultor, portanto, sabe não somente podar e limpar as árvores possantes, mas também cercar as ainda tenras, devido ao recente nascimento. Por isso, caríssimos, conforme começara a dizer, se estes bens fossem dados apenas aos bons, todos, para recebê-los, procurariam converter-se a Deus; ao contrário, se os mau apenas os recebessem, os fracos ficariam com medo de se converterem e perderem aquilo que só os maus possuíssem. Indistintamente, portanto, são dados aos bons e aos maus. E ainda, se fossem negados só aos bons, o mesmo receio tomariam os fracos de se converterem a Deus. E se apenas os maus os perdessem, considerar-se-ia castigo só este que atingiu os maus. O fato de serem dados aos bons consola os viajantes; por serem doados também aos maus, isto serve de admoestação aos bons a desejarem outros bens, que não lhes seja comuns com os maus. Ainda, Deus os retira dos bons quando quer, a fim de que estes se interroguem sobre suas próprias forças; e descubram, o que talvez lhes fosse oculto, se já podem dizer: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; conforme aprouve ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Bendisse o Senhor também aquela alma, e deu frutos após uma chuva reconfortante e abençoada. “O Senhor o deu, o senhor o tirou”. Tirou pois os dons, mas o doador não se subtraiu. Alma bendita a alma simples, que não adere aos bens terrenos, nem jaz por terra com as asas presas no visco, mas brilha com as virtudes e exulta respirando o ar da liberdade e voando com as duas asas do amor. São-lhe tiradas as posses que calcava aos pés, mas não o objeto de seus esforços e diz com segurança: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; conforme aprouve ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor”. Deu e tirou. Permanece o doador e retirou as dávidas; seja bendito o seu nome. Efetivamente, é para isso que são tiradas dos bons. Mas não diga um homem fraco: Quando poderei ter tanta força quanto o santo varão Jó? Admiras o vigor da árvore, porque nasceste agora; esta grande árvore que admiras, sob cujos ramos e sombra te refazes, foi um arbusto. Mas temes que teus bens sejam arrebatados, quando te tornares assim? Observa que também são arrebatados aos maus. Por que, então diferes a conversão? Aquilo que receias perder, se te tornares bom, talvez o percas mesmo continuando a ser malvado. Se o perderes, sendo bom, estará a teu lado o consolador que o tirou. A arca está vazia de ouro, mas o coração está cheio de fé. Por fora és pobre, por dentro és rico. Trazes contigo riquezas que não podes perder, mesmo se saíres despojado de um naufrágio. Daqueles bens que é possível perderes, sendo mau, por que não preferes que o prejuízo te alcance enquanto és bom, quando, de fato, ele atinge também os maus? Mas estes são atingidos por dano maior; têm a casa vazia, e mais vazia ainda a consciência. Todo homem malvado que sofre este prejuízo, não tem exteriormente o que possuir, não tem interiormente onde descansar. Ele foge do lugar onde sofreu o dano, onde costumava se gabar diante dos olhares humanos, com ostentação de suas riquezas. Já não pode se gabar diante dos olhos dos homens; não volta para seu íntimo, porque lá nada tem. Ele não imitou a formiga; não recolheu os grãos, no verão (Pr 6,6; 30,25). O que significa: no verão? Na tranqüilidade de vida, quando possuía a prosperidade neste mundo, quando tinha lazer, quando era denominado feliz por todos, era verão. Teria imitado a formiga, se tivesse ouvido a palavra de Deus. Teria recolhido os grãos e guardado em reserva interiormente. Viera a tentação da tribulação, sobreviera o inverno do torpor, a tempestade do medo, o frio da tristeza, seja por algum prejuízo, seja por perigo de vida, ou pela perda de entes queridos, ou por alguma injúria e humilhação: era inverno. A formiga volta à reserva que reunira no verão e interiormente, num lugar secreto que ninguém vê, refaz-se com o produto do trabalho do verão. Todos a viam quando o recolhia no verão; ninguém vê quado ela no inverno se alimenta. Que significa isto? Observa a formiga de Deus. Levanta-se diariamente, corre à Igreja de Deus, ora, ouve a leitura, canta o hino, rumina o que ouviu, medita, recolhe no seu íntimo os grãos apanhados na eira. Aqueles que ouvem com prudência o que agora foi dito, agem deste modo, e todos os vêem ir à igreja, voltar da igreja, ouvir o sermão, ouvir a leitura, tomar o livro, abri-lo e lê-lo. Tudo isso se vê fazer. Aquela formiga está trilhando o caminho, carregando e depositando, perante os que a olham. Virá um dia o inverno. Para quem ele não chega? Acontece um prejuízo, a perda de um ente querido. Os outros dele se compadecem, tomando-o por infeliz, porque não sabem que a formiga tem interiormente o que comer, e dizem: Infeliz dele, porque lhe aconteceu isto, ou aquilo! O que não estará sentindo? Como está abatido! Ele mede por si, tem compaixão de acordo com suas próprias forças, e por isso se engana, pois quer aplicar àquele que não conhece a medida com que se mede a si mesmo. Vês que ele sofreu prejuízo, ou foi humilhado, ou atingido pela morte dos seus. O que pensas? Este fez algum mal para lhe suceder tal infelicidade. Tenham meus inimigos tal coração, tal ânimo. Ignoras, ó homem! Em verdade és teu próprio inimigo se no correr do verão não colhes o que este recolheu. Agora a formiga come no formigueiro o fruto do trabalho do verão. Podias vê-la recolhendo, mas não podes vê-la comendo. Isto é, irmãos, o que dissemos, à medida que Deus nos deu, tudo o que ele se dignou sugerir e incutir à nossa fraqueza e humildade e que aprendemos quanto nos foi possível, a respeito da questão por que Deus dá tudo isto indiferentemente aos bons e aos maus, e por que o tira dos bons e dos maus. Se ele te deu, não te orgulhes. Se te retirou, não te abatas. Tens medo de que ele o retire de um bom; pode também tirar de um mau. É melhor perderes um bem de Deus, mas conservares para ti a Deus. Assim sucede também a determinado homem malvado. Exortamo-lo: Hás de sofrer um dano (quem não passa pela privação de um ente querido?), advirá um caso qualquer, alguma calamidade em contrário, pois todas as partes do mundo estão cheias disso; não acabam os exemplos. Falo-te no verão, mas não faltam grãos para recolheres. Preguiçoso, olha a formiga (cf Pr 6,6; 30,25). Acumula no verão, enquanto é possível; o inverno não te permitirá recolher, mas deve comer o que haveria acumulado. Quantos são, de fato, os que sofrem tanta tribulação que não conseguem nem ler, nem ouvir alguma coisa; talvez mesmo nem aceitem consolo. A formiga fica dentro do formigueiro; veja se reúne alguma coisa no verão, com que enfrente o inverno. | |
§ 4 | Mas, então, se Deus nos abençoa, por que motivo nos abençoa? Qual a bênção pedida por esta palavra: “E nos abençoe?” A bênção reservada a seus amigos, e que ele concede somente aos bons. Não peças como algo de importante aquilo que também os maus recebem; Deus é bom e assim age, pois faz seu sol nascer sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos (cf Mt 5,45). Qual o dom principal aos bons? Qual o mais importante dom aos justos? “Faça luzir sobre nós o brilho de sua face”. Fazes brilhar o disco do sol sobre bons e maus; sobre nós faze luzir o brilho de tua face. Esta luz do sol é visível aos animais, aos bons e aos maus; mas bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (cf Mt 5,8). “Faça luzir sobre nós o brilho de sua face”. Há duas maneiras de entender a frase; será útil enunciar as duas. Faze brilhar sobre nós a luz de tua face; mostra-nos a tua face. Não quer dizer que Deus por vezes faça luzir a sua face, como se algumas vezes ficasse privado de luz; mas ilumina sobre nós, a fim de desacobrirmos o que nos estava oculto, o que existia, mas era-nos desconhecido. Seja-nos revelado, isto é, faça-se brilhar. Ou é possível que seja: faze brilhar sobre nós a tua imagem, de tal sorte que teria dito: Faze brilhar teu rosto sobre nós; imprimiste em nós teu rosto, fizeste-nos a tua imagem e semelhança (cf Gn 1,26), fizeste de nós a tua moeda. Mas tua imagem não deve permanecer nas trevas. Envia um raio de tua sabedoria para expelir nossas trevas e fazer luzir em nós a tua imagem. Reconheçamos que somos tua imagem, ouçamos a palavra do Cântico dos cânticos: “Se não te conheces a ti mesma, ó mais bela das mulheres” (cf Ct 1,7). Diz-se à Igreja: Se não te conheces a ti mesma. Qual o sentido desta palavra? Se não sabes que és feita à imagem de Deus. Ó alma preciosa da Igreja, remida com o sangue do Cordeiro imaculado, presta atenção a quanto vales; pensa no que foi pago por ti. Digamos, portanto, e prefiramos o seguinte: “Faça luzir sobre nós o brilho de sua face”. Trazemos em nós o seu rosto. Assim como se fala em rosto do imperador, é uma espécie de rosto sagrado de Deus a sua imagem. Mas os iníquos não reconhecem em si a imagem de Deus. Para que sobre eles brilhe a sua face, o que deve dizer? “Senhor, farás brilhar a minha lâmpada. Iluminarás, meu Deus, as minhas trevas” (Sl 17,29). Estou mergulhado nas trevas dos pecadores, mas o raio de tua sabedoria dissipe minhas trevas; apareça teu rosto, e se acaso aparecer por minha causa um tanto deformado, seja reformado por ti, o que por ti foi formado. Por conseguinte: “Faça luzir sobre nós o brilho de sua face”. | |
§ 5 | 3 “Para que conheçamos na terra o teu caminho. Na terra”, aqui, nesta vida, “conheçamos o teu caminho”. Que é o teu caminho? Aquele que conduz a ti. Saibamos por onde ir, saibamos para onde ir; ambas as coisas são impossíveis nas trevas. Estás longe dos peregrinos; abriste-nos um caminho para voltar a ti: “Conheçamos na terra o teu caminho”. Qual o seu caminho, uma vez que optamos por ele, “para que conhecer na terra o teu caminho”? Perguntávamos por ele, impossibilitados de descobri-lo por nós mesmos. Podemos aprendê-lo do evangelho: “Eu sou o caminho”, disse o Senhor. Cristo disse: “Eu sou o caminho”. Mas tens medo de errar? Acrescentou: “E a verdade”. Quem erra, possuindo a verdade? Erra aquele que dela se afastou. Cristo é a verdade, Cristo é o caminho. Anda. Temes morrer antes de chegar? “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); como se dissesse: Por que tens medo? Andas por mim, andas em mim, em mim repousas. Tendo dito: “Para que conheçamos na terra o teu caminho”, não é o mesmo que: Conheçamos na terra o teu Cristo? Mas responda o próprio salmo. Não julgues necessário trazer o testemunho de outras passagens da Escritura que aqui não se achasse contido; por isso, repetindo, mostra o que significa dizer: “Para que conheçamos na terra o teu caminho”. E como se interrogasses: Em que terra, qual caminho? “Em todos os povos a tua salvação”. Em que terra? perguntas. Ouve: “Em todos os povos”. Que caminho procuras? Ouve: “A tua salvação”. Acaso não é Cristo a própria salvação? E o que foi que disse o velho Simeão? Refiro-me àquele ancião de que fala o evangelho, muito idoso, que viveu até a infância do Verbo. Aquele velho tomou nos braços o Verbo de Deus menino. Aquele que se dignou entrar no seio da virgem, julgaria indigno de si estar nos braços do ancião? É o mesmo no seio da Virgem que nos braços do ancião; criança débil no seio e nos braços do ancião para nos dar firmeza aquele que fez todas as coisas. E se fez tudo, inclui-se a própria mãe. Veio humilde, fraco, mas revestido de uma fraqueza que devia ser transformada: “Por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus” (2 Cor 13,4), afirma o Apóstolo. Estava, portanto, nos braços do ancião. E o que disse aquele ancião? Que disse, congratulando-se porque já podia ser libertado dos laços da terra, vendo em seus braços aquele por quem e em quem obteria sua salvação? Disse: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,29-30). Em conseqüência: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça luzir sobre nós o brilho de sua face, para que conheçamos na terra o teu caminho”. Em que terra? “Em todos os povos”. Que caminho? “A tua salvação”. | |
§ 6 | 4 Como continua o salmo? Uma vez que se conhece na terra o caminho de Deus, que se conhece em todos os povos a salvação de Deus? “Confessem-te todos os povos, ó Deus. Confessem-te”, diz o salmo, “todos os povos”. Apresenta-se um herege e diz: Eu na África encontro povos. Outro de diferente região: Eu na Galácia encontro povos. Tu na África, ele na Galácia. Mas eu procuro alguém que os encontre em toda parte. Certamente, vós ousastes pular de alegria ao ouvir esta palavra, porque ouvistes dizer: “Confessem-te todos os povos, ó Deus”. Escuta o versículo seguinte, que não fala de uma parte do mundo: “Todos os povos te confessem”. Andai no caminho com todos os povos, andai pelo caminho com todas as nações, ó filhos da paz, filhos da única Igreja católica. Andai pelo caminho, cantai durante a caminhada. Assim fazem os caminhantes para alívio do cansaço. Cantai neste caminho. Exorto-vos em lugar do próprio caminho, cantai, por este caminho. Cantai o cântico novo. Ninguém se dê aí às velhas canções. Mas cantai os cânticos de amor da pátria. Que ninguém se dedique às velhas canções. Caminho novo, novo viajante, cântico novo. Ouve o Apóstolo a exortar que cantes o cântico novo: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas: eis que se fez uma realidade nova” (2 Cor 5,17). Cantai o cântico novo no caminho que conhecestes “na terra”. Em que terra? “Em todos os povos”. Por tal razão o cântico novo não pertence só a uma parte da terra. Quem canta com parcialidade, canta canções antigas; qualquer de seus cânticos é velho, é o velho homem que canta. Está dividido, é carnal. Certamente, enquanto é carnal é velho, e à medida em que é espiriual, é novo. Vê como se expressa o Apóstolo: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais. Como prova que são carnais? “Quando alguém declara: Eu sou de Paulo, e outro diz: Eu sou de Apolo, não procedeis de maneira meramente carnal”? (1 Cor 3,1.4). Por isso, canta espiritualmente o cântico novo num caminho seguro. Como cantam os viajantes, e muitas vezes cantam durante a noite. De todos os lados ruídos medonhos, ou melhor, não há barulho, mas um silêncio assustador; e quanto maior o silêncio, tanto mais assusta; no entanto, eles cantam, mesmo com medo dos ladrões. Quanto maior é tua segurança, que cantas em Cristo? Este caminho não tem ladrões, se não te desvias para cair nas mãos de um deles. Canta, digo, com segurança o cântico novo no caminho que conheceste “na terra”, isto é, “em todos os povos”. Observa que não canta contigo o mesmo cântico novo aquele que preferiu ficar só com uma parte da terra. Exorta o salmo: “Cantai ao Senhor um cântico novo”, e continua: “Cantai ao Senhor, terra inteira (Sl 95,1). Confessem-te todos os povos, ó Deus”. Encontraram seu caminho: eles confessam. O próprio canto é uma confissão. Confissão de teus pecados e do poder de Deus. Confessa tua iniqüidade, confessa a graça de Deus. Acusa-te a ti mesmo, glorifica-o. Repreende-te, louva-o, a fim de que ele, quando vier, te encontre punindo-te, e se apresente como teu salvador. Por que, então, receais confessar, vós que encontrastes este caminho em todos os povos? Por que motivo tendes medo de confessar, e em vossa confissão cantar o cântico novo com toda terra, em toda terra, na paz da Igreja católica? Temes confessar a Deus, a fim de que não te condene depois de confessares? Se te escondes quando não confessas, serás condenado ao confessares. Temes confessar. E se não confessando, não podes te ocultar, serás condenado ficando calado quando podias ser libertado confessando. “Confessem-te os povos, ó Deus. Todos os povos te confessem”. | |
§ 7 | 5.6 Uma vez que esta confissão não conduz ao suplício, continua o salmo: “Alegrem-se e exultem as nações”. Se os ladrões que confessam o roubo se lastimam perante um homem, alegrem-se diante de Deus os fiéis que confessam. Se é um homem que julga, exige do ladrão a confissão, através do carrasco e do medo. Ou antes, às vezes, o medo impede a confissão, mas a dor a arranca. Aquele que geme nos tormentos, tem medo de ser morto se confessar, e suporta os tormentos enquanto pode; e se for vencido pela dor, faz a confissão para sua morte. Por conseguinte, nunca com alegria, nunca exultante. Antes que confesse, as unhas de ferro o rasgam. Se confessar, o carrasco arrasta-o, depois de condenado. Sempre infeliz. Mas, “alegrem-se e exultem as nações”. Como? Devido a própria confissão. Por que motivo? Porque é bom aquele a quem confessam. Exige a confissão para libertar o humilde. Condena o que não se confessa, para punir o soberbo. Por isso, deves ficar triste antes de confessares; uma vez tendo confessado exulta, porque já serás curado. Tua consciência apanhara a infecção, inchara-se com o tumor, atormentava-te, não te deixava sossegado. O médico por vezes emprega os curativos das palavras, e outras vezes corta. Emprega o bisturi medicinal, para correção da tribulação. Reconhece a mão do médico. Confessa. Saia todo puz pela confissão e corra para fora. Já podes exultar, alegrar-te. O restante facilmente ficará curado. “Confessem-te todos os povos, ó Deus. Todos os povos te confessem”. E como se confessa, “alegrem-se e exultem as nações, porque julgas os povos com eqüidade”. Ninguém te engane. Quem teve temor do futuro juiz, alegra-se ao ser julgado, pois previu e foi ao seu encontro com a confissão (cf Sl 94,2). O Senhor, porém, em sua vinda, julgará os povos com eqüidade. De que servirá a astúcia do acusador, se a testemunha é a consciência, e tu estarás com tua causa lá onde o juiz não exige testemunhas? Ele enviou-te um advogado. Por ele e por causa dele, confessa. Trata de tua causa, é defensor do penitente, pedindo perdão para ele, e é juiz do inocente. Com efeito, podes temer por tua causa, quando teu advogado é teu juiz? “Alegrem-se”, portanto, “e exultem as nações, porque julgas os povos com eqüidade”. Mas poderão ter medo de serem julgados injustamente. Entreguem-se para a correção, para a direção àquele que vê os que devem ser julgados. Corrijam-se aqui na terra, e não terão medo ao serem julgados. Corrijam-se aqui, e não terão medo do juízo. Vê o que se diz em outro salmo: “Salva-me ó Deus, pela honra de teu nome; por teu poder, faze-me justiça” (Sl 53,3). Que quer dizer com isso? Se não me salvas primeiro em teu nome, devo temer ao me julgares em teu poder. Se, porém, antes me salvas em teu nome, por que hei de temer quem me julga em seu poder, se é em seu nome que minha salvação precedeu? Assim, eqüivale a esta passagem: “Confessem-te todos os povos”. No intuito de não pensardes que há o que temer na confissão, acrescenta: “Alegrem-se e exultem as nações”. Por que “alegrem-se e exultem?” Porque julgas os povos com eqüidade”. Ninguém dá presentes contra nós, ninguém te corrompe, ninguém te engana. Por esta razão, fica tranqüilo. Mas, que sucederá a tua causa? A Deus ninguém corrompe. É evidente. Então, não há o que temer. Ele, de forma alguma, pode ser corrupto. De que modo, então, estás seguro? Conforme o que já foi citado: “Salva-me, ó Deus, pela honra de teu nome; por teu poder, faze-me justiça”. Assim igualmente se diz aqui: “Alegrem-se e exultem as nações, porque julgas os povos com eqüidade”. E para que os iníquos não temam, acrescentou: “E diriges na terra as nações”. As nações eram más, eram tortuosas, as nações eram perversas. Temiam, merecidamente, o juiz que viria, por causa de sua maldade, distorção e perversidade. Ele deu-lhes a mão, estendeu-a misericordiosamente para os povos. São dirigidos para andarem no caminho reto. Por que haverão de temer o futuro juiz, que primeiro reconheceram como aquele que vem corrigir? Entreguem-se a suas mãos; ele dirige as nações na terra. Quanto às nações que são orientadas, andam à luz da fé, e exultam nele, praticam boas obras. E se acaso, uma vez que navegam no mar, entra a água na nave por pequeninos buracos, por veios à sentina, retiram-na por meio das boas obras, a fim de que não continue a entrar e se acumule, e pese na nave. Tiram-na cada dia, jejuando, orando, dando esmolas, repetindo com o coração puro: “Perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12). Se assim rezares, anda com segurança, e exulta no caminho, canta na estrada. Não temas o juiz; antes de seres fiel, encontraste-o como salvador. Procurou-te quando eras ímpio para te redimir; uma vez redimido, há de abandonar para perder? “E dirigirás na terra as nações”. | |
§ 8 | 6.7 O salmista exulta, alegra-se, exorta, repete os mesmos versos em exortação. “Confessem-te todos os povos, ó Deus. Todos os povos te confessem. Deu a terra os seus frutos”. Quais? “Confessem-te todos os povos”. Era terra, cheia de espinhos. Acedeu a mão daquele que arranca, chegou o chamado de sua majestade e de sua misericórdia. A terra começou a confessar, a dar seu fruto. Daria seus frutos, se primeiro não chovesse? A terra daria seus frutos, se anteriormente a misericórdia de Deus não viesse do alto? Dizes: onde se lê que a terra, irrigada pela chuva, deu seus frutos? Ouve como o Senhor enviou a chuva: “Convertei-vos, porque o reino dos céus está próximo” (Mt 3,2). Choveu. Chuva com trovões. Atemorizou. Teme o trovão e recebe a chuva que Deus envia. Depois daquele trovão e daquela chuva que vem de Deus, depois destas vozes, vejamos alguma coisa do próprio evangelho. Temos aquela mulher de má fama, na cidade, que entra em casa alheia, onde não fora convidada pelo dono, mas chamada por um dos convivas; não vocalmente, mas pela graça. Ela sabia que uma doente tinha seu lugar ali onde seu médico estava à mesa. Entrou aquela que era pecadora. Não ousa aproximar-se senão dos pés. Chora a seus pés, rega-os de lágrimas, enxuga com os cabelos, unge-os com ungüento (cf Lc 7,37-38). Por que admirar? “Deu a terra os seus frutos”. Com efeito, isto se realizou. Ali o Senhor fez cair a chuva através de sua boca. Realizou-se o que lemos no evangelho. Ao enviar o Senhor a chuva através de suas nuvens, os apóstolos, que pregaram a verdade, “a terra” mais largamente deu os seus frutos”, e esta messe já encheu a terra inteira. | |
§ 9 | 8 Examina o que se diz em seguida: “Abençoe-nos Deus, nosso Deus; abençoe-nos Deus. Abençoe-nos”, conforme já disse. Abençoe uma, duas vezes. Multiplique a bênção. Preste atenção V. Caridade. Já precedera o fruto da terra em Jerusalém. Daí começou a Igreja. Veio o Espírito Santo e ficaram repletos os santos reunidos em comum; realizaram-se milagres, e eles falaram as línguas de todos (cf At 2,1-4). Encherram-se do Espírito Santo e converteram-se os que ali estavam; com temor e recebendo a chuva divina, em sua confissão deram tanto fruto que puseram em comum tudo o que tinham, distribuindo-o aos pobres, de tal sorte que ninguém dizia ser sua coisa alguma, mas tudo era comum entre eles, e tinham uma só alma e um só coração em Deus (cf At 4,32). Pois, fora-lhes dado o sangue que o Senhor derramara. Fora-lhes dado, depois do perdão do Senhor, de tal modo que aprenderam a beber o sangue que haviam derramado. Ali houve grande fruto: “Deu a terra os seus frutos”. Grande fruto, ótimo fruto. Porventura somente aquela terra devia dar seus frutos? “Abençoe-nos Deus, nosso Deus. Abençoe-nos Deus”. Ainda abençoe. Pois, a bênção costuma ser aplicada principal e propriamente à multiplicação de seres. Comprovemo-lo pelo Gênesis: vê as obras de Deus. Deus fez a luz. E Deus separou a luz das trevas. Denominou à luz dia, e às trevas deu o nome de noite. Não se disse: Abençoou a luz. Efetivamente, a mesma luz volta e alterna-se dias e noites. Chamou de céu o firmamento entre as águas; não foi dito: Abençoou o céu. Separou o mar da terra firme, e deu a ambos um nome: ao elemento seco denominou terra e à reunião das águas, mar. Nem então se disse: Deus abençoou. Vieram então as aves que haveriam de ter a força da fecundidade, e sairiam das águas. Elas possuem a maior capacidade de multiplicar-se; e o Senhor as abençoou, dizendo: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra”. Assim igualmente, ao submeter ao homem todas as coisas, tendo-o feito à sua imagem, foi escrito: “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (cf Gn 1). A bênção, portanto, vale propriamente para a multiplicação, para encher a face da terra. Ouve também este salmo: “Abençoe-nos Deus, nosso Deus; abençoe-nos Deus”. De que vale esta bênção? “E o temam todos os confins da terra”. De fato, meus irmãos, Deus nos abençoou assim abundamentemente em nome de Cristo, a fim de encher com seus filhos a face da terra, filhos adotados em vista de seu reino, co-herdeiros de seu Unigênito. Gerou um só filho, mas não quis que ficasse só um. Gerou um só, disse, mas não quis que permanecesse sozinho. Deu-lhe irmãos; não gerando, no entanto, mas adotando-os, tornou-os co-herdeiros. Fez com que ele primeiro fosse participante de nossa condição mortal, a fim de crermos que podemos ser partícipes de sua divindade. | |
§ 10 | Consideremos qual foi o nosso preço. Todas essas realidades foram preditas, todas se apresentam, o evangelho avança por todo o orbe da terra. Todo o labor humano atual dá testemunho. Cumprem-se todas as predições da Escritura. Como até hoje tudo aconteceu, assim também as restantes predições hão de vir. Temamos o dia do juízo. O Senhor há de vir. Veio humildemente, mas virá exaltado; aquele que veio para ser julgado, há de vir para julgar. Reconheçamo-lo quando humilde, a fim de não temermos quando exaltado. Abracemos o humilde, para desejarmos o excelso. Virá, propício, para aqueles que o desejam. Desejam-no os que mantiverem a fé em Cristo, e praticarem seus mandamentos. Pois, mesmo que não o queiramos, ele virá. Queiramos, portanto, que venha, aquele que virá mesmo contra nossa vontade. Como queremos que venha? Vivendo bem, agindo bem. Não nos aprazam as coisas passadas, as presentes não nos prendam; não tapemos os ouvidos, como a víbora, com a cauda, não comprimamos o ouvido na terra1. Não nos retardemos, ouvindo as coisas passadas, a fim de não nos envolvermos no presente e meditarmos as coisas futuras. Avancemos para o que está adiante, esqueçamo-nos do passado (cf Fl 3,13). E obteremos para nosso gozo na ressurreição dos justos aquilo por que agora trabalhamos, gememos, suspiramos, de que falamos, e que percebemos em pequenina parte, mas não podemos abarcar. Nossa juventude renovar-se-á como a da águia (cf Sl 102,5); contanto que esmaguemos nossa velha vida contra a pedra, que é Cristo (cf Sl 136,9; 1Cor 10,4). Quer seja verdade, irmãos, o que se diz da serpente, ou o que se diz da águia, quer seja antes opinião humana do que verdade, contudo, a verdade se encontra nas Escrituras. Não foi em vão que as Escrituras falaram assim. Façamos nós aquilo a que aludem, e não nos empenharemos em saber se é verdade como tal. Sê do número daqueles que podem renovar a juventude como a da águia. E saiba que ela não se poderá renovar, se o que há de velho em ti não for esmagado contra a pedra; isto é, não poderás te renovar sem o auxílio da pedra, sem o auxílio de Cristo. Pelos prazeres da vida passada não ensurdeças diante da palavra de Deus. Não te deixes prender e impedir pelos bens presentes, de modo a dizeres: Não tenho tempo de ler, não tenho tempo de ouvir. É isso comprimir o ouvido no chão. Não sejas, portanto, desses tais; mas sê o contrário, isto é, esqueçe o passado, avança para o que está adiante, para esmagares contra a pedra o que há de velho em ti. E acredita nas comparações que te forem apresentadas, que encontrares nas Escrituras; se descobrires que não foram ditas senão por estas opiniões, não acredites muito. Pode ser assim, pode não ser. Tu, porém, tira proveito daí. A comparação sirva para tua salvação. Não queres aceitá-la como meio? Aceita outra, contanto que faças alguma coisa. E aguarda com segurança o reino de Deus, para que tua oração não entre em disputa contigo. Pois, tu, ó cristão, ao dizeres: “Venha o teu reino” (Mt 6,10), de que maneira proferes: “Venha o teu reino?” Examina o teu coração. Vê. Eis: “venha o teu reino”. Ele clama a ti: Venho. Não tens medo? Freqüentemente repetimos a V. Caridade. Nada é pregar a verdade, se o coração discorda da língua. E ouvir a verdade nada é, se os frutos não acompanham a audição. Deste lugar, como sendo mais alto, nós vos falamos; mas quanto estamos, pelo temor, debaixo de vossos pés, conhece-o Deus, que é propício aos humildes. De fato, não nos agradam tanto as vozes dos que nos elogiam quanto a dedicação dos que confessam e as ações retas. E quanto nos aprazem apenas vossos progressos, quanto periclitamos no meio destes louvores sabe-o aquele que nos libertará de todos os perigos e se dignará coroar-nos convosco em seu reino, depois de nos salvar de todas as tentações. 1 Cf Com s/ sl. 57,7,37 ss. | |