ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 65 | ||
§ 65:1 | Ɑ A ti, ó Deus, é devido o louvor em Sião; e a ti se pagará o voto. | |
§ 65:2 | Ơ Ó tu que ouves a oração! a ti virá toda a carne. | |
§ 65:3 | Ꝓ Prevalecem as iniqüidades contra mim; mas as nossas transgressões, tu as perdoarás. | |
§ 65:4 | Ꞗ Bem-aventurado aquele a quem tu escolhes, e fazes chegar a ti, para habitar em teus átrios! Nós seremos satisfeitos com a bondade da tua casa, do teu santo templo. | |
§ 65:5 | Ƈ Com prodígios nos respondes em justiça, ó Deus da nossa salvação, a esperança de todas as extremidades da terra, e do mais remoto mar; | |
§ 65:6 | ʈ tu que pela tua força consolidas os montes, cingido de poder; | |
§ 65:7 | ɋ que aplacas o ruído dos mares, o ruído das suas ondas, e o tumulto dos povos. | |
§ 65:8 | Ꝋ Os que habitam os confins da terra são tomados de medo à vista dos teus sinais; tu fazes exultar de júbilo as saídas da manhã e da tarde. | |
§ 65:9 | Ŧ Tu visitas a terra, e a regas; grandemente e enriqueces; o rio de Deus está cheio d`água; tu lhe dás o trigo quando assim a tens preparado; | |
§ 65:10 | ⱻ Enches d`água os seus sulcos, aplanando-lhes as leivas, amolecendo-a com a chuva, e abençoando as suas novidades. | |
§ 65:11 | Ƈ Coroas o ano com a tua bondade, e as tuas veredas destilam gordura; | |
§ 65:12 | ɖ destilam sobre as pastagens do deserto, e os outeiros se cingem de alegria. | |
§ 65:13 | Ɑ As pastagens revestem-se de rebanhos, e os vales se cobrem de trigo; por isso eles se regozijam, por isso eles cantam. | |
O SALMO 65 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 Este salmo tem como título: “Para o fim. Cântico do salmo da ressurreição”. Ao se pronunciar no salmo: Para o fim, ouvis uma referência a Cristo, pois diz o Apóstolo: “O fim da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Ouvireis agora, na medida que o Senhor se dignar me mostrar e esclarecer, como se canta aqui a ressurreição e de que ressurreição se trata. Pois, nós, cristãos, sabemos que a ressurreição já se realizou em nossa Cabeça, e há de se efetuar nos membros. Cristo é a Cabeça da Igreja, e a Igreja consta de membros de Cristo (cf Cl 1,18). Os acontecimentos que precederam na Cabeça, virão em seguida a se darem no corpo. Esta é a nossa esperança; para isso acreditamos, e persistimos, e perseveramos em meio a tão grande maldade neste mundo, consolando-nos a esperança, antes que ela se transforme em realidade. Esta realidade virá ao ressucitarmos, e formos transferidos a uma vida celeste, tornando-nos iguais aos anjos. Quem ousaria esperar isso se a verdade não o houvesse prometido? Os judeus mantinham esta esperança, por causa da promessa que lhes foi feita; e muito se gloriavam de suas boas obras, que consideravam justas. Haviam recebido a Lei, e esperavam que vivendo segundo a Lei teriam aqui bens materiais, e na ressurreição dos mortos teriam bens semelhantes aos que aqui possuíam. Por isso, aos saduceus, que negavam a ressurreição futura, os judeus não podiam responder, quando os mesmos saduceus lhes propunham a questão que haviam apresentado ao Senhor. Sabemos que não haviam podido resolver esta questão, porque ficaram admirados quando o Senhor a resolveu. Os saduceus propuseram a questão de determinada mulher que teve sete maridos; não simultaneamente, mas sucessivos. Havia na Lei a norma, visando ao aumento do povo, de que se alguém morresse sem filhos, e tivesse um irmão, esse devia receber a viúva por mulher, e suscitar descendência para o seu irmão (cf Dt 25,5). Propondo, portanto, o caso daquela viúva que teve sete maridos e todos haviam morrido sem filhos e que a tomaram para cumprir o dever de se casar com a viúva de seu irmão, perguntaram: “Na ressurreição, de qual será a mulher?” Sem dúvida, os judeus não se dariam ao trabalho de fazer tal pergunta, nem ficariam perplexos, se não esperassem ter na ressurreição o mesmo que aqui nesta vida. O Senhor, porém, prometendo a igualdade com os anjos, sem a corrupção da carne humana, disse-lhes: “Estais enganados, desconhecendo as Escrituras e o poder de Deus. Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam, e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos de Deus” (Mt 22,23-30; Lc 20,27-36). Demonstrou que é necessária a sucessão, onde se chora a morte. Onde não houver mortos, não se procuram os sucessores. A esse respeito, o Senhor acrescentou: “Nem mesmo podem morrer” (Lc 20,6). Todavia, como os judeus tinham, embora de maneira carnal, a esperança da ressurreição futura, ficaram contentes com a resposta aos saduceus, com os quais eles mantinham uma disputa acerca desta questão ambígua e obscura. Efetivamente, os judeus tinham a esperança da ressurreição dos mortos. Mas esperavam que só eles haveriam de ressuscitar para a vida bem-aventurada, por causa das obras da Lei, e dos mandamentos das Escrituras, que só os judeus possuíam, e os gentios não. Cristo foi crucificado. Diz o Apóstolo: “o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios” (Rm 11,25). Então, começou a ser prometida a ressurreição dos mortos aos gentios, que acreditavam em Jesus Cristo ressuscitado. Daí vem que este salmo é contrário à presunção e soberba dos judeus, e a favor da fé dos gentios, chamados à mesma esperança da ressurreição. | |
§ 2 | De certa maneira, meus irmãos, ouvistes o que constitui o âmago do salmo. Toda vossa atenção se concentre no que disse, no que propus. Nenhum pensamento estranho vos afaste do que disse: que o salmo se refere à presunção dos judeus, a esperarem a ressurreição por causa das observâncias legais. Eles crucificaram a Cristo, o primeiro a ressuscitar, que não teria por membros ressuscitados apenas os judeus, e sim os que nele acreditassem, isto é, todos os gentios. Por isso, começa o salmista: “Jubilai diante de Deus”. Quem? “Ó terra inteira”. Por conseguinte, não apenas a Judéia. Vede, irmãos, como se recomenda a universalidade da Igreja, difundida por toda a terra, e não lamenteis somente os judeus, que invejavam esta graça concedida às nações, mas chorai mais ainda os hereges. Se devemos lamentar os que não foram congregados, quanto mais importa chorar os que estavam unidos e se separaram? “Jubilai diante de Deus, ó terra inteira”. Que quer dizer: “Jubilai?” Dai gritos de alegria, se não podeis exprimi-la com palavras. Pois, não se jubila com palavras; mas somente se emitem sons de alegria, que de certo modo são concebidos e gerados pelo coração, como expressão da idéia que for impossível manifestar por palavras. “Jubilai diante de Deus, ó terra inteira”; ninguém jubile só numa porção dela. Ninguém, digo, jubile numa só parte da terra: jubile a terra inteira, jubile a Igreja católica. A Igreja católica possui o todo. Qualquer um que tenha só uma parte, e se separou do todo, quer gritar, mas não jubilar. “Jubilai diante de Deus, ó terra inteira”. | |
§ 3 | 2 “Cantai salmos a seu nome”. Que disse o salmista? Bendizei o seu nome com vossa salmodia. Ontem expliquei o que é salmodiar e acredito que V. Caridade se lembra. Salmodiar é tomar um instrumento chamado saltério, e fazer a voz concordar com o toque e o movimento das mãos. Se, pois, jubilais de tal modo que Deus ouça, salmodiai também de sorte que os homens vejam e ouçam; mas não a vosso nome. “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles” (Mt 6,1). E a que nome, dirás, hei de salmodiar, de sorte que minhas obras não sejam vistas pelos homens? Dai atenção a esta outra passagem: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16). “Vendo as vossas boas obras, que eles glorifiquem”, não a vós, mas a Deus. Pois, se praticais boas obras para vossa própria glória, ser-vos-á dito o que o Senhor proferiu de alguns que assim agem: “Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa” (Mt 6,2). E ainda: “Se o fizerdes, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus” (Mt 6,2-1). Por conseguinte, dirás, devo esconder minhas obras, para não fazê-las “diante dos homens?” Não. Mas, então, como? “Brilhem as vossas boas obras diante dos homens”. Fico na dúvida. Falas-me assim: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens” e aqui me dizes: “Brilhem as vossas boas obras diante dos homens”. O que observarei? O que farei? O que deixarei? O homem tanto não pode servir a dois senhores que ordenam coisas diversas quanto lhe é impossível obedecer a um só que mande coisas contrá-rias. Não, diz o Senhor, não estou mandando coisas diversas. Presta atenção ao fim, conta com certa finalidade; considera qual o fim que te move. Se ages assim para seres glorificado, foi o que proibi; se, porém, para que Deus seja glorificado, foi o que mandei. Salmodiai, portanto, não a vosso nome, mas ao nome do Senhor vosso Deus. Salmodiai vós; ele seja louvado; vivei bem e ele seja glorificado. De onde vos vem a possibilidade de viver bem? Se a tivéssies eternamente, jamais viveríeis mal; se a tivésseis de vós mesmos, jamais viveríeis de modo menos bom. “Cantai, pois, salmos a seu nome”. | |
§ 4 | “Rendei-lhe glória e louvor”. Ele procura concentrar toda a nossa atenção no louvor de Deus; nada nos deixa para nosso próprio louvor. Por isso, exaltemo-lo mais ainda e alegremo-nos com isso; unamo-nos a ele, louvemo-lo com ele. Ouvistes a leitura do Apóstolo: “Vede, pois, irmãos, a vossa vocação. Não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, como o que é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é” (1 Cor 1,26-28). Que quis ele dizer? Que mostrar? Nosso Senhor Jesus Cristo desceu para restaurar o gênero humano e dar sua graça a todos os que entendem que isto provém de sua graça e não dos méritos que tiverem. A fim de que ninguém se gloriasse de qualidades carnais, ele escolheu os fracos. Pois, nem mesmo aquele Natanael foi escolhido. Que te parece, uma vez que o Senhor escolheu o publicano Mateus, sentado na coletoria de impostos, e não escolheu Natanael, a quem o próprio Senhor deu testemunho, dizendo: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”? (cf Mt 9,9). Entende-se, portanto, que este Natanael foi doutor da Lei. Como não haveria de escolher os doutos, se no início os escolhesse, eles julgariam ter sido escolhidos pelo méritos de seus conhecimentos. Então seria elogiada sua ciência e se diminuiria o louvor à graça de Cristo. Este deu testemunho de que Natanael era um bom fiel, no qual não havia fingimento; contudo, não o tomou entre seus discípulos, pois escolheu primeiro homens rudes. E como sabeis que Natanael era perito na Lei? Porque ao ouvir de um daqueles que haviam seguido o Senhor dizer: “Encontramos o Messias, que se traduz por: Cristo”, perguntou de onde era ele e lhe foi dada a resposta: “De Nazaré”. Então ele afirmou: “De Nazaré pode sair algo de bom”. Sem dúvida, entendeu que de Nazaré podia sair algo de bom, porque era perito na Lei e examinara bem os profetas. Sei que se podem pronunciar aquelas palavras de outro modo, mas não é aceita pelos mais prudentes. Pareceria nada esperar, ao ouvir e dizer: “De Nazaré pode sair algo de bom?” Isto é: Acaso poderia? Pronunciando desta forma, ele nada esperaria. O texto continua: “Vem e vê.” Estas palavras: “Vem e vê” podem ser a continuação de ambos os modos de pronunciar as primeiras palavras. Se disseres, como não acreditando: “De Nazaré pode sair algo de bom?” tens como resposta: “Vem e vê” o que não crês. Se, ao invés, disseres, confirmando: “De Nazaré pode sair algo de bom”, a resposta será: “Vem e vê” como é verdade a boa notícia de Nazaré; vem e experimenta como é certo o que acreditas. Daí, por conseguinte, se considera que ele era perito na Lei, e não foi escolhido para um dos discípulos pelo Senhor, que primeiro escolheu os que o mundo tinha por insensatos. E no entanto, o Senhor dera dele testemunho, dizendo: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (Jo 1,41-47). De fato, o Senhor posteriormente escolheu também oradores; mas eles se envaideceriam se ele primeiro não houvesse escolhido os pescadores. Escolheu ricos, mas diriam que foram escolhidos pelo mérito de suas riquezas, se ele antes não houvesse escolhido pobres. Escolheu depois imperadores; mas é melhor que o imperador indo a Roma, tire o diadema e chore junto ao túmulo do pescador, do que o pescador chorar junto ao túmulo do imperador. Pois, “o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, como o que é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é”. E o que segue? O Apóstolo conclui: “A fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus” (1 Cor, 27.28). Vede como nos tirou a glória, para dar a glória: tirou a nossa, para dar a sua; tirou a vã para dar a plena; tirou a vacilante para dar a sólida. Quanto mais forte e firme, portanto, será a nossa glória, porque se acha em Deus! Não deves, portanto, gloriar-te em ti mesmo. A Verdade o proibiu; mas o Apóstolo ordenou o mesmo que a Verdade: “Aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (1 Cor 1,31). “Rendei-lhe, pois, glória e louvor” Não imiteis os judeus, que procuravam atribuir sua justificação quase a seus méritos, e invejavam os gentios que acendiam à graça do evangelho, a fim de obterem o perdão de todos os pecados, como se eles não tivessem o que ser perdoado e esperassem, quais bons operários, a recompensa. Sendo ainda doentes, consideravam-se sadios, e daí vinha que sua doença era mais perigosa. Pois, se ao menos fossem mais calmos na doença, não teriam, como frenéticos, matado o médico. “Rendei-lhe glória e louvor”. | |
§ 5 | 3 “Dizei a Deus: Como são temíveis as tuas obras!” Por que temíveis e não amáveis? Ouve a palavra de outro salmo: “Servi ao Senhor com temor. E exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Que significam esses versículos? Ouve como se exprime o Apóstolo: “Operai a vossa salvação com temor e tremor. Por que motivo: com temor e tremor? Ele acrescenta a causa: “Pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade” (Fl 2,12.13). Se, portanto, Deus opera em ti, praticas o bem por graça de Deus, não por tuas forças. Por conseguinte, se te alegras, também teme, não aconteça que aquilo que foi dado ao humilde seja retirado ao soberbo. Pois, a fim de saberdes que isto sucedeu ao orgulho dos judeus, que se consideravam justos por causa das obras da Lei, e por isso caíram, afirma outro salmo: “Uns confiam nos carros e outros nos cavalos”, como se confiassem em determiados passos e instrumentos para sua elevação; “nós, porém, exaultaremos no nome do Senhor nosso Deus. Uns confiam nos carros e outros nos cavalos. Nós, porém, exultaremos no nome do Senhor nosso Deus”. Vede como eles se exaltavam; vede como estes se gloriam em Deus. Por isso, como continua o salmo? “Eles se emaranharam e caíram. Mas nós nos levantamos e ficamos firmes de pé” (Sl 19,8.9). Ouve como o próprio Senhor nosso diz a mesma coisa: “Eu vim para que os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos”. Vê de um lado a bondade, de outro certa malícia. Mas que há de melhor do que ele? De mais misericordioso? De mais justo? Por que, então, “para que os que não enxergam, vejam?” Por causa da bondade. E por que, “os que vêem tornem-se cegos?” Por causa do orgulho. De fato viam e tornaram-se cegos? Não viam, mas pensavam que viam. Pois, irmãos, vede o seguinte: ao dizerem os próprios judeus: “Acaso também nós somos cegos? Respondeu-lhes o Senhor: Se fôsseis cegos não teríeis culpa; mas dizeis: Nós vemos! Vosso pecado permanece” (Jo 9,39-41). Procuraste o médico; dizes que enxergas? Cortar-se-ão os colírios e continuarás cego; confessa que és cego e merecerás recuperar a vista. Observa os judeus; observa os gentios. “Os que não enxergam, vejam. Vim para que os vêem tornem-se cegos”. Os judeus viam, nosso Senhor Jesus Cristo corporalmente; os gentios, não. Os que o viram, crucificaram-no; os que não o viram, acreditaram. Por conseguinte, que fizeste, ó Cristo, contra os soberbos? Que fizeste? Vemos, porque te dignaste mostrar, e somos teus membros. Vemos: escondeste que és Deus, e apresentaste aos olhares a condição humana. Por quê? Porque o “endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios”. Por isso escondeste que és Deus e mostraste a condição humana. Viam e não viam; viam a natureza assumida e não viam o que eras; viam a condição de escravo e não viam a condição divina (cf Fl 2,6.7); a condição de escravo, da qual o Pai é maior e não a condição de Deus, por causa da qual acabastes de ouvir: “Eu e o Pai somos um” (cf Jo 14,28; 10,30). Prenderam o que viam, crucificaram o que viam; insultaram aquele que viam, não conheceram aquele que estava oculto. Ouve como diz o Apóstolo: “Se tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória” (1 Cor 2,8). Por isso, vós, gentios, que fostes chamados, notai os ramos cortados, devido à severidade de Deus; porém, enxertados devido a sua bondade, fostes feitos partícipes da abundância de óleo, mas não ambicioneis uma elevação, isto é, não sejais orgulhosos. “Não és tu que sustentas a raiz”, mas ela é que te sustenta. Antes atemorizai-vos, porque vedes cortados os ramos naturais. Pois, os judeus vieram dos patriarcas; nasceram da descendência de Abraão. Como se exprime o Apóstolo? Porém, dirás: “Foram cortados os ramos para que eu fosse enxertada. Muito bem! Eles foram cortados pela incredulidade e tu estás firme pela fé; não te ensoberbeças, mas teme, porque se Deus não poupou os ramos naturais, nem a ti poupará” (Rm 11,17-25). Olha os ramos cortados, e a ti enxertado; não te exaltes acima dos ramos cortados, mas dize antes a Deus: “Como são terríveis a tuas obras!” Irmãos, se não devemos nós nos exaltar contra os judeus, ramos outrora cortados da raiz dos patriarcas, mas antes temer, e dizer a Deus: “Como são terríveis as tuas obras!” quanto menos havemos nós de nos exaltar diante dos ferimentos de cortes mais recentes? Primeiro foram cortados os judeus e enxertados os gentios; destes ramos enxertados foram cortados os hereges; mas nem diante destes devemos nos ensoberbecer, de receio que mereça ser excluído quem se compraz em injuriar os que foram cortados. Meus irmãos, quaisquer que sejais vós, a cujos ouvidos sou a voz do bispo, nós vos rogamos que tenhais precaução. Quaisquer que sejais na Igreja, não ataqueis os que não estão dentro; mas antes rezai para que eles venham para dentro. “Pois Deus é capaz de os enxertar novamente” (Rm 11,23). O Apóstolo disse isto a respeito dos próprios judeus; e assim aconteceu. O Senhor ressuscitou e muitos acreditaram. Não haviam entendido ao crucificá-lo; no entanto, posteriormente acreditaram nele, e foi-lhes perdoado tão grande delito. O sangue que o Senhor derramou foi dado aos homicidas, para não dizer, aos deicidas; “porque se o tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória”. Agora aos homicidas foi dado o sangue inocente derramado; pela graça de Deus, beberam o mesmo sangue que por loucura derramaram. Por conseguinte, “dizei a Deus: como são terríveis tuas obras!” Por que terríveis? Porque “o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios” (Rm 11,25). Ó plenitude dos gentios, dize a Deus: “Como são terríveis as tuas obras!” Alegra-te, mas com tremor. Não te orgulhes diante dos ramos cortados. “Dizei a Deus: Como são terríveis as tuas obras!” | |
§ 6 | “Pela grandeza de teu poder, os teus inimigos te mentirão”. Os inimigos te lisonjeiam para que seja grande teu poder. Que significa isto? Ouvi com maior atenção. O poder de nosso Senhor Jesus Cristo apareceu principal-mente na ressurreição, a qual deu o título ao presente salmo. E tendo ressurgido apareceu a seus discípulos (cf At 10,41). Não apareceu aos inimigos, mas a seus discípulos. Quando estava crucificado mostrou-se a todos; ressuscitado, somente aos fiéis, de tal sorte que posteriormente os que quisessem acreditassem e fosse prometida a ressurreição ao fiel. Muitos santos fizeram numerosos milagres; nenhum deles ressuscitou-se a si próprio, mesmo os que eles ressuscitaram, ressuscitaram para morrer. V. Caridade preste atenção. O Senhor, recomendando suas obras disse: “Mesmo que não acrediteis em mim, crede nas obras” (Jo 10,38). Recomenda igualmente as obras dos apóstolos no passado; se não as mesmas, no entanto muitas delas, muitas de idêntico poder. O Senhor andou sobre as águas do mar e ordenou também a Pedro que o fizesse (cf Mt 14,25.29). Acaso não estava presente o próprio Senhor, quando o mar se dividiu para Moisés passar com o povo de Israel? (cf Ex 14,21). É o mesmo Senhor quem fazia estas coisas. Os primeiros milagres ele os fez corporalmente, estes últimos realizava pela ação corporal de seus servos. Uma coisa não fez por meio de seus servos (pois o Senhor é que fazia tudo isso), não fez com que alguém deles estivesse morto e ressuscitasse para a vida eterna. De fato, os judeus pode-riam dizer quando o Senhor realizava milagres: Moisés também fez isto, Elias fez, Eliseu fez. Poderiam dizer essas coisas porque também eles ressuscitaram mortos e fizeram muitos milagres. Por isso, quando eles pediam a Cristo um sinal, ele referiu-se a um sinal peculiar, realizado somente em si: “Uma geração má e implicante busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal do profeta Jonas. Pois, como Jonas esteve no ventre do monstro marinho três dias e três noites, assim ficará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12,39.40). Como esteve Jonas no ventre do monstro marinho? Não foi para depois ser vomitado vivo? O inferno foi para o Senhor o que foi o monstro para Jonas. Foi este sinal que o Senhor citou especialmente, porque é o mais importante. É sinal de maior poder fazer reviver um morto do que não deixá-lo morrer. A grandeza do poder do Senhor, segundo a natureza humana, revela-se na força da ressurreição. Também o Apóstolo a destaca, dizendo: “Não tendo a justiça da Lei, mas a justiça que vem de Deus, apoiada na fé, para conhecê-lo, conhecer o poder da sua ressurreição” (Fl 3,9.10). Ainda a recomenda em outra passagem: “Por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus” (2 Cor 13,4). Uma vez que este grande poder do Senhor evidencia-se na ressurreição, de onde este salmo extraiu o título, que quer dizer: “Pela grandeza de teu poder, os teus inimigos te mentirão?” A menos que signifique: Teus inimigos te mentirão para seres crucificado; e és crucificado para ressurgires. Por isso, a mentira deles valerá como recomendação de teu grande poder. Por que motivo costumam mentir os inimigos? Mentem para diminuir o poder de alguém. Tal fato te é adverso. Teu poder pareceria menor se eles não tivessem mentido contra ti. | |
§ 7 | Considerai a mentira das falsas testemunhas no evangelho, e verificai que trata da ressurreição. Ao ser dito ao Senhor: “Que sinal nos mostras para assim agires?” ele, deixando de lado o que dissera de Jonas, por meio de outra comparação disse o mesmo, de sorte que podeis estar cientes de que este sinal peculiar é o recomendado em grau sumo: “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei. Disseram-lhe, então, os judeus: Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este templo, e tu o levantarás em três dias?” E o evangelista expondo o que significa isso, disse: “Ele, porém, falava do templo do seu corpo” (Jo 2,18-21). Prometera aos homens que haveria de demonstrar este seu poder, e apresentara por isso a comparação com o templo, tendo em vista sua carne que era um templo da divindade oculta em seu interior. Os judeus viam o templo do lado de fora, mas não viam o espírito que o habitava interiormente. Destas palavras do Senhor as falsas testemunhas teceram a mentira que proferiam contra ele, justamente das palavras em que aludia a sua futura ressurreição, tratando do templo. As falsas testemunhas afirmaram contra ele, ao serem interrogadas sobre o que dele haviam ouvido: Ouvi-mo-lo dizer: “Posso destruir este templo e edificá-lo depois de três dias” (cf Mt 26,61). “Depois de três dias” edificá-lo-ei, isto ouviram; mas não haviam ouvido: “Destruirei”, e sim: “Destruí”. Mudaram uma só palavra, e poucas letras, para levantar o falso testemunho. Mas de quem é a palavra que mudas, ó vaidade humana, ó humana fraqueza? Mudas a palavra do Verbo imutável! Podes mudar tua palavra; mas, porventura, podes mudar o Verbo de Deus? Daí se dizer em outra passagem: “E a iniqüidade mentiu a si mesma” (Sl 26,12). Por que razão teus inimigos te mentiram, ó Senhor, diante do qual jubila a terra inteira? “Pela grandeza de teu poder, os teus inimigos te mentirão”. Eles dizem: “Destruirei”, ao passo que tu disseste: “Destruí”. Por que declararam que havias dito: “Destruirei”, e não declararam que havias dito: “Destruí?” Como se eles se defendessem do crime de destruir o templo, sem motivo. Pois Cristo morreu voluntariamente; contudo, vós o matastes. Eis aí. Nós vos concedemos, ó mentirosos; ele destruiu o templo. Pois, o Apóstolo assegurou: “Que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). Foi dito a respeito do Pai: “Não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós” (Rm 8,32). Se, portanto, o Pai entregou o Filho, e o Filho se entregou a si mesmo, que fez Judas? O Pai, entregando o Filho à morte por nós, fez bem; o Cristo entregando-se a si mesmo por nós, fez bem; Judas, entregando o mestre por causa de sua avareza, fez mal. Por conseguinte, o que nos foi concedido em conseqüência da paixão de Cristo, não será deputado à malícia de Judas. Ele terá o que merece sua malícia. Mas Cristo receberá o louvor de sua graça. Efetivamente, Cristo destruiu o templo; destruiu-o aquele que disse: “Tenho poder de entregar a minha vida e poder de retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente, para retomá-la” (Jo 10,17.18). Ele destruiu o templo por sua graça, por vossa malícia. “Pela grandeza de teu poder, os teus inimigos te mentirão”. Eis que eles mentem, que se lhes deu crédito, que és oprimido, crucificado, insultado e diante de ti se meneia a cabeça: “Se é Filho de Deus, desça da cruz” (cf Mt 27,40). Quando queres, entregas tua vida, és ferido no lado pela lança (cf Jo 19,34), e os sacramentos fluem de teu lado. És deposto do lenho, envolvido em lençóis, colocado no sepulcro, junto do qual se colocam guardas para que os discípulos não tirem o corpo. Veio a hora da ressurreição, a terra treme, os sepulcros se abrem, ressurges ocultamente e apareces manifestamente. Onde estão, então, aqueles mentirosos? Onde está o falso testemunho da malevolência? Pela grandeza de teu poder, não mentiram teus inimigos? | |
§ 8 | Notem-se também aqueles guardas do sepulcro. Contem o que viram. Recebam dinheiro e mintam também eles. Deponham também eles, perversos exortados por perversos, digam os que os judeus corromperam e que não quiseram manter-se íntegros em Cristo. Deponham, mintam eles também. Que haverão de dizer? Dizei. Vejamos. Menti vós também, diante da grandeza do poder do Senhor. Que haveis de dizer? “Enquanto dormíamos, vieram seus discípulos, e o tiraram do sepulcro” (cf Mt 28,13). Oh, verdadeira loucura adormecida! Ou estavas acordada e devias ter impedido o roubo; ou dormias, e não sabias o que acontecia. Também eles aderiam à mentira dos inimigos: aumentou o número dos mentirosos para crescer a recompensa dos que acreditaram, porque “pela grandeza de teu poder, os teus inimigos te mentirão”. Com efeito, mentiram; por causa da grandeza de teu poder, eles mentiram. Em oposição aos mentirosos, apareceste aos que foram verazes, e apareceste a estes verazes, que tu fizeste tais. | |
§ 9 | 4 Permaneçam os judeus em suas mentiras; a ti, uma vez que eles mentiram por causa da grandeza de teu poder, faça-se o seguinte: “Adore-te toda a terra e salmodie diante de ti; salmodie a teu nome, ó Altíssimo”. Pouco antes humílimo, agora “Altíssimo”. Humílimo entre as mãos dos inimigos que mentiam; Altíssimo nas alturas, onde os anjos louvavam. “Adore-te toda a terra e salmodie diante de ti; salmodie a teu nome, ó Altíssimo”. | |
§ 10 | 5 “Vinde contemplar as obras do Senhor”. Ó gentios, ó últimas das nações, deixai os judeus mentirosos e vinde confessar. “Vinde contemplar as obras do Senhor; ele é terrível em seus desígnios sobre os filhos dos homens”. Sem dúvida, ele foi denominado Filho do homem, e de fato tornou-se filho do homem. Verdadeiro Filho de Deus na condição divina; verdadeiro filho do homem na condição de escravo (cf Fl 2,6). Mas não penseis nesta condição de escravo conforme a condição de outros semelhantes. “É terrível em seus desígnios sobre os filhos dos homens”. Os filhos dos homens urdiram o plano de crucificar a Cristo; o crucificado cegou os que o crucificaram. Que fizestes, pois, filhos dos homens, tramando astutos planos contra vosso Senhor, no qual estava oculta a majestade e aparecia a fraqueza? Vós tramastes planos para perdê-lo, e ele para cegar e salvar; obcecar os orgulhosos e salvar os humildes. Visava, obcecando os soberbos, a que eles uma vez cegos se humilhassem, humilhados confessassem, e tendo confessado recuperassem a visão. “Ele é terrível em seus desígnios sobre os filhos dos homens”. De fato, terrível! Eis que a cegueira atingiu em parte a Israel (cf Rm 11,25); eis que os judeus, dos quais nasceu o Cristo, estão do lado de fora; eis que os gentios, contrários aos judeus, em Cristo estão do lado de dentro. “Ele é terrível em seus desígnios sobre os filhos dos homens”. | |
§ 11 | 6 Em vista disso, que fez ele em seus terríveis desígnios? “Converte o mar em terra firme”. Assim é que continua o salmo: “Converte o mar em terra firme”. Mar era o mundo; amargo pela salmorra, turbulento em suas tempestades, com as ondas enfurecidas das perseguições, tal era o mar. Por certo, o mar se converte em terra firme. Agora o mundo está sedento de água doce, porque estava cheio de sal. Quem fez isto? Aquele que “converte o mar em terra firme”. E agora, o que diz a alma de todos os gentios? “Como terra sem água minha alma está diante de ti” (Sl 142,6). “Converte o mar em terra firme. Atravessar-se-á o rio a pé enxuto”. Aqueles que se converteram em terra firme, quando anteriormente eram mar, atravessarão “o rio a pé enxuto”. Que é este rio? Rio é a mortalidade que há no mundo. Olhai o rio: vêm algumas águas e passam igualmente. Não é isto que sucede às águas do rio, que da terra nascem e manam? Todo aquele que nasce, há de ceder lugar ao que ainda vai nascer; e esta ordem inteira de coisas transitórias constitui uma espécie de rio. Não se meta nesse rio a alma ambiciosa, não se meta; fique firme. E como há de atravessar os prazeres das coisas perecíveis? Acredite em Cristo, e atravessará a pé enxuto; ele guia na passagem e passa a pé. Que quer dizer: passar a pé? Passar com facilidade. Não procura um cavalo para atravessar; não se eleva orgulhosamente para atravessar o rio; passa humildemente e atravessa com mais segurança. “Atravessar-se-á o rio a pé enxuto”. | |
§ 12 | “Alegrar-nos-emos nele”. Ó judeus, vós vos gloriais de vossas obras. Tendes o orgulho de vos gabardes. Acolhei a graça de vos alegrardes em Cristo. “Alegrar-nos-emos nele, não em nós. Ali, “alegrar-nos-emos nele”. Quando nos alegraremos? Ao atravessarmos o rio a pé enxuto. Foi-nos prometida a vida eterna; foi-nos prometida a ressurreição. Então, nossa carne já não será um rio; é rio agora, durante a condição mortal. Ponderai se alguma idade permanece. Os meninos querem crescer, sem saberem que a duração de sua vida diminui com o correr dos anos. Enquanto eles crescem, os anos não aumentam, mas subtraem-se, como a água do rio, sem dúvida, se avoluma, mas se afasta da fonte. E, no entanto, os meninos querem crescer, para escaparem do domínio dos maiores. Eis que eles crescem, rapidamente, chegam à juventude. Os que ultrapassam a meninice, retenham, se possível, a juventude. E esta igualmente passa. Vem a velhice em seguida. Seria eterna? A morte a arrebata. Por conseguinte, a carne que nasce é um rio. Facilmente atravessa este rio da condição mortal, no intuito de não ser arrebatado e derrubado pela ambição dos bens mortais, aquele que passa humildemente, isto é, a pé enxuto, tendo por guia o Senhor que atravessou em primeiro lugar, que bebeu da torrente no caminho até a morte, e por isso ergueu a cabeça (cf Sl 109,7). Se nós, portanto, passarmos este rio a pé enxuto, isto é, facilmente atravessarmos esta condição mortal e passageira, “alegrar-nos-emos nele”. Agora, porém, em quem nos alegraremos, a não ser nele, ou na esperança que nele depositamos? Pois, embora nos alegremos agora, é em esperança que nos alegramos; depois, será nele mesmo que nos alegraremos. Também agora é nele, mas pela esperança; então, será face a face. | |
§ 13 | 7 “Ali, alegrar-nos-emos nele”. Em quem? Naquele “que domina por seu poder eternamente”. Pois, nós que virtude temos? Acaso eterna? Se nossa virtude fosse eterna, não teríamos caído, não teríamos caído em pecado, não teríamos merecido a mortalidade penal. Cristo assumiu voluntariamente aquela condição onde nos lançou nosso demérito. Ele “que domina por seu poder eternamente”. Tornemo-nos partícipes dele, em cuja virtude seremos fortes; ele, contudo, é forte em sua própria virtude. Nós somos iluminados e ele é quem ilumina. Nós, afastados dele, ficamos nas trevas; ele não pode afastar-se de si. Aquecemo-nos em seu calor; apartando-nos dele ficamos enregelados de frio, aproximando-nos de novo aquecemo-nos. Por isso, digamos-lhe que nos guarde em seu poder, porque alegrar-nos-emos nele, que “domina por seu poder eternamente”. | |
§ 14 | Mas, este poder não é concedido apenas aos judeus que acreditam. Eles haviam se orgulhado em excesso, presumindo de seu próprio poder. Depois, conheceram qual o poder que os tornou fortes para sua salvação, e alguns acreditaram. Isto, porém, não bastou a Cristo. Foi muito o que deu, pagou um grande preço, e não devia valer o que pagou somente para os judeus. “Seus olhos observam as nações”. Por conseguinte, “seus olhos observam, as nações”. Então, que faremos? Os judeus murmuravam. Eles podem dizer: Temos o mesmo que eles; temos a boa nova e eles também; temos a graça da ressurreição e eles possuem a graça da ressurreição. De nada nos adianta termos recebido a Lei, termos vivido segundo a justiça da Lei, e observado os preceitos de nossos pais; nada disso nos vale. Eles têm o mesmo que nós! Não disputem, não abram contendas. “Não se elevem os rebeldes em si mesmos”. Ó carne infeliz e doentia, acaso não és pecadora? Como clama tua língua? Atenção à própria consciência. Pois, todos pecaram e necessitam da glória de Deus (cf Rm 3,25). Reconhece-te a ti mesma, ó fraqueza humana. Recebeste a Lei, para que também fosses prevaricadora da Lei; pois não mantiveste, nem cumpriste a Lei que recebeste. Da Lei te adveio, não a justificação que ela ordena, mas a prevaricação que praticaste. Se, portanto, o pecado abundou, por que invejas à graça que superabundou? (cf Rm 6,20). Não sejas rebelde, porque não se devem elevar “os rebeldes em si mesmos”. Parece uma maldição: “Não se elevem os rebeldes”; ao invés disso, exaltem-se, mas não “em si mesmos”. Humilhem-se em si mesmos; exaltem-se em Cristo. “Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23,12). “Não se elevem os rebeldes em si mesmos”. | |
§ 15 | 8.9 “Bendizei, ó nações, ao nosso Deus”. Aí se vêem repelidos os rebeldes, e se lhes dá razão: uns se converteram, outros continuaram soberbos. Não tenhais medo dos que invejam aos gentios a graça do evangelho; já veio a descendência de Abraão, na qual serão benditas todas as nações (cf Gn 12,3). Bendizei aquele no qual sois abençoados: “Bendizei, ó nações, ao nosso Deus e ouvi a voz de seu louvor”. Não vos louveis a vós mesmos, mas louvai-o. Qual é a voz de seu louvor? Reconhecer que provém de sua graça a bondade que temos em nós. “Ele conservou a minha alma em vida”. A voz de seu louvor é a seguinte: “Ele conservou a minha alma em vida”. Portanto, ela estava na morte; na morte e em ti. Daí vem que não devíeis exaltar-vos em vós mesmos. Ela estava na morte em ti. Onde estava em vida, senão naquele que disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida? (Jo 14,6). Conforme a alguns fiéis declarou o Apóstolo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Trevas, portando, em vós mesmos; luz no Senhor. Morte em vós, vida no Senhor. “Ele conservou a minha alma em vida”. Conservou em vida nossa alma, porque nele acreditamos; em vida conservou a nossa alma; mas doravante que é necessário senão que perseveremos até o fim? E quem o dará senão aquele do qual em seguida foi dito: “E não permitiu que os meus pés resvalassem?” Ele conservou a minha alma em vida, ele dirige meus pés para que não vacilem, não se abalem, nem resvalem. Ele nos faz viver, dá-nos perseverar até o fim, para que vivamos eternamente. “E não permitiu que os meus pés resvalassem”. | |
§ 16 | 10.12 Por que disseste: “E não permitiu que os meus pés resvalassem?” Que sofreste, ou que pudeste sofrer para que teus pés resvalassem? O quê? Ouve como continua o salmo. Por que disse o salmista: “Não permitiu que os meus pés resvalassem?” Porque sofremos muitas coisas que poderiam levar nossos pés a resvalarem no caminho, se o Senhor mesmo não nos dirigisse e não os deixasse escorregar. Que coisas são estas? “Porque nos provaste, ó Deus. Pelo fogo nos depuraste como a prata”. Não nos queimaste como feno, mas provaste no fogo como a prata. Usando do fogo, não nos converteste em cinzas, mas tiraste as impurezas. “Provaste-nos pelo fogo como se acrisola a prata”. E vê como Deus castiga aqueles cuja alma conservou em vida. “Deixaste-nos cair no laço”, mas não para morrermos presos, mas para experimentarmos de onde fomos libertados. “Descarregaste-nos sobre o dorso grandes aflições”. Pois, estávamos perversamente eretos, éramos soberbos. Fomos curvados quando estávamos perversamente eretos, a fim de que assim curvados, nos reerguêssemos bem. “Descarregaste-nos sobre o dorso grandes aflições. Impuseste homens sobre as nossas cabeças”. Tudo isso a Igreja sofreu em várias e diversas perseguições; sofreu coisa por coisa, e ainda agora sofre. Não há quem possa se dizer imune nesta vida destas provações. Portanto, também sobre nossas cabeças foram impostos homens; toleramos aqueles que não queremos, suportamos como superiores às vezes alguns que sabemos serem piores do que nós. O homem sem pecados é, de fato, superior; quanto mais pecados tiver, tanto é inferior. É bom que nos consideremos pecadores, a fim de tolerarmos os que estão acima de nosss cabeças, e assim confessemos a Deus se é justo o que sofremos. Por que sofrer com indignação aquilo que faz quem é justo? “Descarregaste-nos sobre o dorso grandes aflições. Impuseste homens sobre as nossas cabeças”. Deus parece cruel ao agir assim. Não tenhas medo. Ele é Pai e nunca se encoleriza para arruinar. Se vives mal e ele poupa, trata-se de cólera maior. Estas tribulações, absolutamente, são os flagelos do pai que corrige, para não ter de sentenciar castigo. “Descarregaste-nos sobre o dorso grandes aflições. Impuseste homens sobre as nossas cabeças”. | |
§ 17 | “Passamos pelo fogo e pela água”. Fogo e água, ambos são perigosos nesta vida. Certamente a água apaga o fogo e o fogo seca a água. Assim, também acontece nas tentações que abundam nesta vida. O fogo queima, a água estraga. Um e outro devem ser temidos: a queimadura da tribulação, e os estragos da água. Quando há carência e outras dificuldades que se denominam infelicidade neste mundo, seria o fogo; quando há prosperidade e aflui a abundância deste mundo, seria a água. Cuida para que o fogo não te queime, nem a água te corrompa. Fica firme contra o fogo; precisas ser cozido: como vaso modelado és metido no forno, para se consolidar a forma. O vaso já consolidado no fogo não receia a água; se, porém, o vaso não tiver sido queimado, se dissolverá na água, virando barro. Não te apresses a cair na água; através do fogo passa para a água, para atravessares também a água. Por isso, tanto nos sacramentos, como na catequese e nos exorcismos se emprega primeiro o fogo. Pois, por que é que muitas vezes os espíritos imundos clamam: Estou queimando, se aquilo não é fogo? Depois do fogo do exorcismo vem o batismo, como que do fogo à água, da água ao refrigério. Acontece nas provas deste mundo o mesmo que nos sacramentos. Em primeiro lugar vem a angústia do temor, em lugar do fogo; depois, afastado o temor, receia-se que a felicidade do mundo corrompa. Se o fogo, porém, não te arrebentar, se não te afogares na água, mas emergires, pela disciplina passas ao repouso, e passando pelo fogo e pela água, és conduzido ao refrigério. Nos sacramentos se encontram os sinais destas realidades constitutivas da perfeição da vida eterna. Quando já tivermos passado àquele refrigério, irmãos caríssimos, não teremos medo de inimigo algum, de nenhum tentador, de um invejoso, de fogo, de água; lá haverá refrigério perpétuo. Diz-se que há refrigério por causa do repouso. Pois se o denominares: calor, é verdade; se disseres: refrigério, é verdade. Se tomares refrigério em mau sentido, dirias que ficaremos entorpecidos ali. Ali não ficaremos entorpecidos, mas descansaremos. Nem se dissermos que é calor, teremos alta temperatura, mas ficaremos ardorosos de espírtio. Nota a alusão ao calor em outro salmo: “Ninguém se subtrai a seu calor” (Sl 18,7). Que diz o Apóstolo? “Fervorosos de espírito” (Rm 12,11). Por isso, “passamos pelo fogo e pela água, mas nos conduzistes ao refrigério”. | |
§ 18 | 13 Observa que não omitiu nem o refrigério, nem o fogo desejável: “Entrarei em tua casa com holocausto”. Que é holocausto? Combustão completa, mas pelo fogo divino. Um sacrifício se chama holocausto quando a vítima toda é consumida. Uma coisa é um sacrifício parcial, outra um holocausto. Quando tudo arde, é consumido pelo fogo divino chama-se holocausto; quando só uma parte, tem o nome de sacrifício. Com efeito, todo holocausto é sacrifício, mas nem todo sacrifício é holocausto. O salmo alude a um holocausto; é o corpo de Cristo que fala, fala a unidade de Cristo: “Entrarei em tua casa com holo-caustos”. Teu fogo me consuma totalmente; nada de meu me reste, seja tudo teu. Assim acontecerá na ressurreição dos justos, “quando este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absorvida na vitória” (1 Cor 15,54). A vitória é quase um fogo divino; absorvendo nossa morte é um holocausto. Nada de mortal permanece na carne, nada de culpa no espírito. Tudo o que é mortal será consumido pela vida, a fim de se consumar na vida eterna: serão, portanto, holocaustos. | |
§ 19 | 14 Que serão “os holocaustos? Cumprirei os votos que meus lábios distinguiram”. Qual a distinção entre os votos? Esta a distinção: que te acuses, mas o louves. Entendas que és criatura e ele o criador; tu és trevas, e ele o iluminador, a quem deves dizer: “Senhor, farás brilhar a minha lâmpada, iluminarás, meu Deus, as minhas trevas” (Sl 17,29). Pois, se disseres, ó alma, que a tua luz provém de ti, não distingues. Se não distingues, não cumprirás distintamente os teus votos. Cumpre-os distintamente. Confessa que és mutável, e Deus imutável; confessa que sem ele nada és, mas que ele sem ti é perfeito; que precisas dele, ele, contudo, não necessita de ti. Clama por ele: “Disse ao Senhor: És o meu Deus. Não precisas de meus bens” (Sl 15,2). Pelo fato de Deus te acolher como holocausto, ele não cresce, não aumenta, não se torna mais rico, nem mais instruído. É melhor para ti tudo o que ele faz de ti em teu favor; e não para ele mesmo. Se distingues isto, cumpres os votos a teu Deus, que teus lábios distinguiram. “Cumprirei os votos que meus lábios distinguiram. | |
§ 20 | 15 Em minha tribulação proferiu a minha boca”. Freqüentemente, como é doce a tribulação! Quão necessária! Que proferiu sua boca na tribulação? “Oferecer-te-ei pingües holocaustos”. Qual o sentido de: “pingües”? Conservarei interiormente a tua caridade; não será na superfície, mas em meu interior que te amarei. Nada de mais interior do que a medula de nossos ossos. Os ossos estão dentro da carne, e a medula dentro dos ossos. Quem, pois, na superfície adora a Deus, quer antes agradar aos homens. Pensando de outro modo em seu íntimo, não oferece um holocausto pingüe, da medula. Quem considera a medula do sacrifício, toma-o totalmente. “Oferecer-te-ei pingües holocaustos, com incensos e cordeiros”. Cordeiros são os chefes na Igreja. Fala o corpo de Cristo inteiro. É isto que ele oferece a Deus. Que é incenso? A oração. “Com incenso e cordeiros?” Principalmente os cordeiros rezam pelo rebanho. “Imolarei bois com cabritos”. Encontramos bois que trituram o grão, e eles são oferecidos a Deus. O Apóstolo declarou que se aplica aos que anunciam o evangelho a palavra: “Não amordaçarás o boi que tritura o grão. Acaso Deus se preocupa com os bois”? (1 Cor 9,9). Portanto, são importantes aqueles cordeiros, aqueles bois. Como são os outros, que talvez estejam conscientes de alguns pecados, e que talvez caíram no caminho, e feridos são curados pela penitência? Acaso ficarão ali, e não integrarão os holocaustos? A fim de que não tenham tal receio, o salmista acrescenta os cabritos: “Oferecer-te-ei pingües holocaustos, com incenso e cordeiros. Imolarei bois com cabritos”. Esta junção salva os cabritos; por si não podem, mas junto aos bois são aceitos. Com efeito, fizeram amigos com o dinheiro da iniqüidade, a fim de que os recebessem nos tabernáculos eternos (cf Lc 16,9). Por conseguinte, estes cabritos não estarão à esquerda, porque fizeram amigos com o dinheiro da iniqüidade. Quais os cabritos da esquerda? Aqueles aos quais se dirá: “Tive fome e não me destes de comer” (Mt 25,42), e não os que obtiveram remissão de seus pecados por meio de esmolas. | |
§ 21 | 16.17 “Vinde escutar, todos vós que temeis a Deus e narrarei”. Vamos, ouçamos o que ele vai contar. “Vinde escutar e narrarei. Vinde escutar”, quem? “Todos vós que temeis a Deus”. Se não temeis a Deus, não contarei. Não é possível contar onde não existe temor de Deus. O temor de Deus abra os ouvidos, para ter o que entrar, e por onde entrar o que vou contar. Mas o que vai contar? “Quanto ele fez por minha alma”. Eis que ele quer narrar; mas o que há de narrar? Acaso qual a extensão da terra, quanto se distende o céu, quantos são os astros, quais as fases do sol e da lua? A criação segue sua ordem. Aqueles que a investigaram com grande curiosidade, ignoraram seu criador. Ouvi-o, aceitai-o: “Todos vós que temeis a Deus, quanto ele fez a minha alma”; se quiserdes, também à vossa. “Quanto ele fez a minha alma. Clamei por ele com minha boca”. Também isto foi feito a sua alma; se clamou com sua boca, declara que isto foi feito a sua alma. Aí está, irmãos. Éramos gentios. Se não nós, nossos pais. E como se exprime o Apóstolo? “Sabeis que, quando éreis gentios, éreis irresistivelmente arrastados para os ídolos mudos” (1 Cor 12,2). Diga a Igreja agora: “Quanto ele fez por minha alma. Clamei por ele com minha boca”. Um homem clamava por uma pedra, gritava por um lenho surdo, falava com imagens surdas e mudas. Agora a imagem de Deus voltou-se para seu Criador. “Eu que dizia à madeira: Tu és meu pai! e à pedra: Tu me geraste!” (Lv 2,27) Agora digo: Pai nosso, que estás nos céus (Mt 6.9). “Clamei por ele com ‘minha boca’. Já com minha boca”, não com a boca dos outros. Quando clamava pelas pedras, segundo a vida cheia de vaidade da tradição dos pais (cf 1Pd 1,18) clamava pela boca dos outros; quando clamei pelo Senhor, com as palavras que ele me deu, que ele inspirou, “clamei por ele com minha boca e com minha língua o exaltei”. Preguei-o publicamente, e às ocultas louvei-o. Não basta exaltar a Deus com a língua; mas também sob a língua, de sorte que aquilo que proferes com certeza, penses igualmente em silêncio. “Clamei por ele com minha boca e com minha língua o exaltei”. Vê que ocultamente quer ser íntegro aquele que oferece holocaustos pingües. Assim agi, irmãos. Imitai o salmista, repetindo: Vinde escutar quanto ele faz por minha alma. Tudo o que o salmista narra realiza-se em nossa alma pela graça de Deus. Vede outras afirmações suas. | |
§ 22 | 18 “Se percebo iniqüidade em meu coração, o Senhor não me ouça”. Considerai agora, irmãos, com que facilidade, como diariamente os homens envergonhados acusam as iniqüidades dos outros: É um criminoso, praticou o mal, agiu perversamente; fala assim por causa dos outros homens. Verifica se não encontras em teu coração a iniqüidade, a fim de não suceder que estejas cogitando de fazer aquilo mesmo que censuras em outrem, e gritas contra ele, não porque fez o mal, mas porque foi descoberto. Volta a ti mesmo; sê interiormente teu próprio juiz. Ali, em teu quarto bem escondido, no íntimo do coração, onde te achas sozinho (mas com aquele que vê), aborrece tua iniqüidade, a fim de agradares a Deus. Não a consideres, isto é, não a ames, mas antes despreza-a, rejeita-a, afasta-te dela. Tudo o que ela te prometer de agradável para te arrastar ao pecado, tudo o que te ameaçar de triste para te impelir a fazer o mal, tudo isto nada é, tudo passa. Merece ser desprezado, calcado e não ser contemplado para ser aceito. (Sugere por vezes, pelos pensamentos, ou pelas conversas más. As más companhias corrompem os bons costumes (cf 1Cor 15,33). Não as contemples. Não basta fazê-lo com o rosto, com a língua. Não olhes com o coração, isto é, não ames, não aceites. É comum usar a palavra: olhar, em vez de amar. Em primeiro lugar, porque dizemos a respeito de Deus: Olhou-me. Que significa: Olhou-me? Antes ele não via? Ou atendeu novamente, e incitado por tuas preces, pôs em ti seus olhos? Ele te via, mesmo anteriormente. Mas dizes: Olhou-me. Amou-me. Mesmo a um homem que te vê e lhe pedes que tenha compaixão de ti, dizes: Olha-me. Ele te vê e tu lhe dizes: Olha-me. Que quer dizer: Olha-me? Ama, atende, tem compaixão de mim. Por isso, não diz: “Se percebo iniqüidade em meu coração”, como se não se sugerissem, absolutamente, iniqüidades ao coração humano. Ali se sugere, a sugestão não cessa; mas não se dê atenção a ela. Se dás atenção à iniqüidade, olhas para trás e incorres na sentença do Senhor, que diz no evangelho: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus” (Lc 9,62). Que fazer, então? O que ordena o Apóstolo: “Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante” (Fl 3,13). Para trás fica o que para nós passou, o que é iníquo. Ninguém vem a Cristo já sendo bom. Todos pecaram, mas crendo se justificam (cf Rm 3,22.23). Não haverá perfeita justiça senão na outra vida; no entanto, para nosso aperfeiçoamento, Deus nos inspira os bons costumes, e nô-los dá. Mas não os reputes como méritos teus. Não faças isto. E se a iniqüidade o sugerir, não consintas. Pois, o que diz o salmo? 1 “Se percebo iniqüidade em meu coração, o Senhor não me ouça”. | |
§ 23 | 19 “Mas Deus me escutou”, porque não percebo iniqüidade em meu coração. “E atendeu às vozes de minha oração”. | |
§ 24 | 20 “Bendito o meu Deus, que não rejeitou a minha súplica, nem retirou de mim a sua misericórdia”. O sentido da frase se encontra naquele versículo: “Vinde escutar, todos vós que temeis a Deus, e narrarei quanto ele fez por minha alma”. E declarou o que ouvistes, concluindo: “Bendito o meu Deus, que não rejeitou a minha súplica, nem rejeitou de mim a sua misericórdia”. Assim, pois, toca na ressurreição este homem que fala; e nós, em esperança já nos achamos ali; ou melhor, também nós estamos nele, e esta voz é nossa. Pois, enquanto estamos aqui, peçamo a Deus que não rejeite a nossa súplica, nem retire sua misericórdia; isto é, de tal modo supliquemos com perseverança que ele constantemente tenha misericórdia. Pois, muitos desanimam de rezar. No início de sua conversão rezam com fervor, mas depois rezam desanimados, frios, negligentes; sentem-se mais ou menos seguros. O inimigo está vigilante e tu dormes. O próprio Senhor ordenou no evangelho: É necessário “orar sempre, sem jamais esmorecer”. E apresenta a comparação com aquele juiz iníquo, que não temia a Deus, nem tinha consideração para com os homens, a quem uma viúva interpelava diariamente para que a ouvisse, e que cedeu por aborrecimento, ele que não se dobrava por misericórdia. Disse a si mesmo o juiz malvado: “Embora eu não tema a Deus, nem respeite os homens, como esta viúva está me dando fastio diariamente, vou fazer-lhe justiça”. E o Senhor acrescentou: “Se o juiz iníquo assim agiu, vosso Pai não faria justiça a seus eleitos que clamam a ele dia e noite? Digo-vos que lhes fará justiça muito em breve” (Lc 18,1-8). Em vista disso, não esmoreçamos na oração. Deus, que nos há de atender, embora difira, não se omite; seguros por sua promessa, não desanimemos de rezar; e isto é um benefício dele. Por isso, diz o salmo: “Bendito o meu Deus, que não rejeitou a minha súplica, nem retirou de mim a sua misericórdia”. Ao verificares que ele não rejeitou a tua súplica, fique certo de que não retirou de ti a sua misericórdia. 1 Muitos mss. omitem o trecho entre colchetes. | |