SALMO 𝟞𝟜

Ouve, ó Deus, a minha voz na minha queixa;

preserva a minha voz na minha queixa;

preserva a minha vida do horror do inimigo.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 64


§ 64:1  Ouve, ó Deus, a minha voz na minha queixa; preserva a minha voz na minha queixa; preserva a minha vida do horror do inimigo.

§ 64:2  Esconde-me do secreto conselho dos maus, e do ajuntamento dos que praticam a iniqüidade,

§ 64:3  os quais afiaram a sua língua como espada, e armaram por suas flechas palavras amargas.

§ 64:4  Para em lugares ocultos atirarem sobre o íntegro; disparam sobre ele repentinamente, e não temem.

§ 64:5  Ƒ Firmam-se em mau intento; falam de armar laços secretamente, e dizem: Quem nos verá?

§ 64:6  Planejam iniqüidades; ocultam planos bem traçados; pois o íntimo e o coração do homem são inescrutáveis.

§ 64:7  ɱ Mas Deus disparará sobre eles uma seta, e de repente ficarão feridos.

§ 64:8  Assim serão levados a tropeçar, por causa das suas próprias línguas; todos aqueles que os virem fugirão.

§ 64:9  E todos os homens temerão, e anunciarão a obra de Deus, e considerarão a obra de Deus, e considerarão prudentemente os seus feitos.

§ 64:10  O justo se alegrará no Senhor e confiará nele, e todos os de coração reto cantarão louvores.


O SALMO 64



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 No próprio título deste salmo se reconhece a santa voz profética. Traz a inscrição:

Para o fim. Salmo de Davi. Cântico de Jeremias e de Ezequiel, do povo da transmi-gração, no começo da saída”.

Os eventos que experimentaram nossos pais no tempo da transmigração de Babi-lônia não são conhecidos de todos, mas somente daqueles que com empenho dão atenção às santas Escrituras, ouvindo-as ou lendo-as. O povo de Israel tornou-se cativo e da cidade de Jerusalém foi levado ao cativeiro de Babilônia. O santo profeta Jeremias predisse que depois de setenta anos o povo voltaria do cativeiro, e restauraria a cidade de Jerusalém, que ele chorara ao ser vencida pelos inimigos (cf 2Rs 24,25; Jr 25,11; 29,10).

Naquele tempo, porém, enquanto o povo estava cativo em Babilônia, surgiram profetas, entre os quais o profeta Ezequiel. O povo, porém, esperava que se cumprissem os setenta anos, segundo a profecia de Jeremias. Aconteceu que, completos os setenta anos, o templo que fora destruído foi restaurado, e grande parte daquele povo regressou do cativeiro. Mas, conforme diz o Apóstolo:

Estas coisas lhe aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, para nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos(1 Cor 10,11), devemos também nós primeiro ter conhecimento de nosso cativeiro e em seguida de nossa libertação; devemos conhecer Babilônia, onde estivemos presos, e Jerusalém, para onde suspiramos voltar. Em verdade estas duas cidades, segundo a letra, são duas cidades concretas. Aquela Jerusalém, de fato, atualmente não é habitada por judeus. Depois que o Senhor foi crucificado, a vingança caiu sobre eles, na forma de um grande flagelo. Foram desaraigados do lugar onde, por ímpia liberdade, furiosos contra o médico enlouqueceram, e dispersos por todos os povos, aquela terra foi entregue a cristãos. Realizou-se o que lhes predissera o Senhor:

O reino vos será tirado e confiado a um povo que pratique a justiça(cf Mt 21,43).

Os príncipes daquela cidade, ao considerarem que grandes multidões iam após o Senhor, que pregava o reino dos céus, e fazia milagres, disseram:

Se o deixarmos assim, todos o seguirão; e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação(Jo 11,48).

Para não perderem o lugar, mataram o Senhor e perderam o lugar porque o mataram. Com efeito, aquela cidade terrena era de certo modo sombra da cidade eterna. Mas, logo que a cidade representada em figuras começou a ser mais claramente pregada, a sombra que a assinalava foi afastada; por este motivo, ali agora não existe o templo, que fora fabricado como imagem do futuro corpo do Senhor. Estamos na luz, e a sombra passou; no entanto, ainda estamos em determinado cativeiro:

Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor(2 Cor 5,6).



§ 2
2 E vede os nomes destas duas cidades: Babilônia e Jerusalém. Babilônia traduz-se por confusão, e Jerusalém por visão de paz. Prestai atenção à cidade de confusão agora, a fim de entenderdes a visão de paz. Tolerai a primeira e suspirai pela segunda. Como se podem distinguir estas duas cidades? Acaso podemos separá-las uma da outra? Estão conjuntas e desde os inícios do gênero humano percorrem juntas o tempo até o fim dos séculos. Jerusalém teve seu início em Abel; Babilônia em Caim. Depois, construíram-se cidades. Aquela Jerusalém foi edificada na terra dos jebuseus; de fato, antes denominava-se Jebus (cf 2Rs 5,6; 18,28).

Daí foi expulso o povo jebuseu, quando o povo de Deus foi libertado do Egito e introduzido na terra da promissão. Babilônia, porém, foi fundada nas regiões interiores da Pérsia, que por longo tempo levantou a cabeça acima dos demais povos. Portanto, estas duas cidades foram fundadas em tempos distintos, para se manifestar a figura de duas cidades outrora iniciadas e que haverão de permanecer até o fim deste mundo, mas que serão então separadas. De que modo, então, podemos agora mostrá-las, se estão misturadas? O Senhor o mostrará ao colocar uns à direita, outros à esquerda. Jerusalém estará à direita; Babilônia à esquerda. Ouvirá Jerusalém a palavra:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”.

Babilônia há de ouvir:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,34.41).

Podemos, no entanto, apresentar algo, à medida que o Senhor nos conceder, por meio do qual se distinguem, os fiéis piedosos, já agora, os cidadãos de Jerusalém dos cidadãos de Babilônia. Dois amores constroem estas duas cidades: o amor de Deus constrói Jerusalém; o amor do mundo constrói Babilônia. Interrogue-se, portanto, cada um a si mesmo para saber o que ama, e descobrirá de onde é cidadão. Se perceber que é cidadão de Babilônia, extirpe a cobiça e plante a caridade. Se, porém, verificar que é cidadão de Jerusalém, tolere o cativeiro e espere a liberdade. Pois, muitos cidadãos da santa mãe, Jerusalém, estavam presos às ambições de Babilônia e corruptos, e devido a estas mesmas ambições corruptas haviam se tornado de certa maneira cidadãos desta última. São ainda muitos esses tais, e muitos depois de nós nesta terra existirão assim; mas o Senhor, fundador de Jerusalém, conhece-os, antes que eles mesmos se conheçam, os cidadãos que ele houver predestinado e que estão sob o domínio do diabo ainda, mas devem ser remidos pelo sangue de Cristo. De acordo com esta figura é que se canta o presente salmo. No título do mesmo encontram-se dois profetas, que viveram no tempo do cativeiro, Jeremias e Ezequiel. Cantavam alguns, “no começo da saída”.

Começa a sair quem começa a amar. Pois, muitos saem ocultamente, e os pés dos que saem são os afetos do coração; e saem de Babilônia. O que significa: de Babilônia? Da confusão. Como se sai de Babi-lônia, isto é, da confusão? Os que antes eram confundidos, devido à semelhança nas ambições, começam a se distinguir pela caridade; já distintos, não são mais confundidos. Embora se achem ainda materialmente misturados, distinguem-se no entanto por um desejo santo. Devido à mescla material ainda não saíram, mas por causa do desejo do coração começaram a sair. Por conseguinte, ouçamos, irmãos; ouçamos e cantemos, desejemos aquilo que nos faz cidadãos. Quais as alegrias que cantamos? Como em nós se forma novamente o amor a nossa cidade, que havíamos esquecido por causa da longa peregrinação? Mas nosso Pai mudou-nos de lá suas cartas, ministrou-nos as Escrituras de Deus, e com estas cartas fez com que nós sentíssemos o desejo de voltar, uma vez que apegando-nos a nossa peregrinação, olhávamos de frente os inimigos e voltávamos as costas à pátria. Com, então, canta aqui o salmo?



§ 3
A ti, ó Deus, convém um hino em Sião”.

Aquela pátria é Sião. Jerusalém é a mesma coisa que Sião. Deveis conhecer a tradução deste nome. Jerusalém significa: Visão de paz. E Sião: observação, isto é, visão e contemplação. Não sei bem qual é este magnífico espectáculo que nos é prometido. O próprio Deus é quem fundou esta cidade. Bela e formosa cidade que tem um fundador mais belo ainda! “A ti, ó Deus, convém um hino”.

Mas onde? “Em Sião”.

Em Babilônia, não. Por isso, quando alguém começa a renovar-se, já canta seu coração em Jerusalém, conforme o dito do Apóstolo:

Mas a nossa cidade está nos céus”.

Embora vivamos na carne, não militamos segundo a carne (Fl 3,20; 2Cor 10,3).

Já nos encontramos lá pelo desejo, já lançamos a esperança, qual âncora, naquela terra, a fim de não naufragarmos nesse mar tormentoso. Quando um navio está ancorado, dizemos com razão que já está em terra firme; ainda flutua, mas foi conduzido de certo modo ao porto, abrigado dos ventos e das tempestades. Assim, abrigados contra as tentações desta nossa peregrinação estamos, por meio de nossa esperança ancorada naquela cidade de Jerusalém, que não nos deixa ser jogados contra os rochedos. Quem, portanto, canta esta esperança, canta em Jerusalém. Diga, por isso:

A ti, ó Deus, convém um hino em Sião. Em Sião” não em Babilônia. Mas, agora lá estás, se ainda te achas em Babilônia? Responde o salmista: Estou lá. Este que ama, este cidadão. Estou lá, mas na carne, não pelo coração. Referi-me a duas condições: estou ali pela carne, não pelo coração. O lugar onde canto não é ali, porque não canto carnalmente, mas pelo coração. Mesmo os cidadãos de Babilônia ouvem o som material; mas o som que provém do coração, ouve-o o fundadaor de Jerusalém. Daí vem dizer o Apóstolo, exortando os próprios cidadãos a empregarem certos cânticos de amor, e a desejarem voltar àquela belíssima cidade, à visão de paz:

Cantando e louvando ao Senhor em vosso coração(Fl 5,19).

Que quer dizer:

Cantando em vosso coração?” Não canteis daí, de onde estais, de Babilônia; mas cantai lá do alto, onde habitais. Por conseguinte:

A ti, ó Deus, convém um hino em Sião”.

Convém-te um hino em Sião, não em Babilônia. Os cidadãos de Babilônia, que cantam em Babilônia, não cantam convenientemente nem mesmo um hino dedicado a Deus. Ouve a palavra da Escritura:

O louvor não é belo na boca do pecador(Eclo 15,9).

A ti convém um hino em Sião”.



§ 4
Diante de ti cumprir-se-ão os votos, em Jerusalém”.

Aqui fazemos os votos, e é bom cumpri-los ali. Quais os que aqui prometem e não cumprem? Aqueles que não perseveram até o fim naquilo que prometeram. Daí dizer outro salmo:

Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri-os(Sl 75,12).

Diante de ti cumprir-se-ão os votos em Jerusalém”.

Pois, lá estaremos totalmente, isto é, íntegros na ressurreição dos justos; lá cumprir-se-ão todos os nossos votos. Não somente a alma, mas também a carne não mais corruptível, porque já não está em Babilônia, mas se mudou num corpo celeste. Tal mudança nos é prometida, pois diz o Apóstolo:

Todos ressurgiremos, mas nem todos seremos transformados”.

Ele próprio disse quais os que serão transformados:

Num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final, pois a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, isto é, íntegros, e nós seremos transformados. Segue-se qual será aquela transformação:

Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade. Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está o teu aguilhão”? (1 Cor, 51-55).

Agora, portanto, tendo começado em nós as primícias do espírito, que não fazem desejar Jerusalém, muita coisa em nós, derivada da carne corruptível, combate contra nós. Não combaterá quando a morte for absorvida pela vitória. A paz vencerá, e terminará a guerra. Quando, de fato, vencer a paz, vencerá aquela cidade denominada: Visão de paz. Não haverá mais luta alguma, provinda da morte. Agora quantos combates com a morte! Dela provêm os deleites carnais, que nos sugerem muitas coisas até ilícitas; não consentimos, contudo lutamos para não consentir. No início a concupiscência da carne nos conduzia a nós seus seguidores; depois, ao resistirmos nos atraía; enfim, depois de recebermos a graça, começou a não nos conduzir, nem atrair, mas continua ainda a lutar conosco; após todas as lutas virá a vitória. Agora embora te ataque, não te vença; depois, quando a morte for absorvida pela vitória, cessará também de atacar. Que foi dito? “O último inimigo a ser destruído será a morte(1 Cor 15,26).

Cumprirei meu voto. Que voto? Quase um holocausto. Diz-se que há holocausto quando o fogo consome tudo. Holocausto é um sacrifício em que a vítima inteira é consumida pelo fogo. Pois olon significa todo, kausis combustão. Holocausto é combustão total. Que o fogo nos tome, o fogo divino em Jerusalém: comecemos a arder de caridade, até que se consuma tudo o que é mortal, e aquilo que nos combate, seja sacrificado ao Senhor. Daí vem a palavra de outro salmo:

Senhor, em tua bondade, derrama sobre Sião teus benefícios; reedifica os muros de Jerusalém. Aceitarás então o sacrifício de justiça, as oblações e holocaustos(Sl 50,20.21).

A ti, ó Deus, convém um hino em Sião. Diante de ti cumprir-se-ão os votos em Jerusalém”.

Perguntamos se não se trata do Rei da mesma cidade, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Cantemos, pois, até obtermos maior evidência. Poderia adiantar que é a ele que se diz:

A ti, ó Deus, convém um hino em Sião. Diante de ti cumprir-se-ão os votos em Jerusalém”.

Se fosse eu que o dissesse, acreditar-se-ia mais em mim do que na Escritura; e assim talvez não fosse digno de crédito. Ouçamos os versículos seguintes.



§ 5
Escuta a minha oração. A ti acorre toda carne”.

Temos o Senhor a dizer que foi-lhe dado o poder sobre toda carne (cf Jo 7,2).

Começou a aparecer aquele Rei, ao ser dito:

A ti acorre toda carne”.

Por que a ele acorre toda carne? Porque ele assumiu a carne. Por onde virá toda carne? Ele retirou as primícias do ventre virginal; e assumidas as primícias, o restante se seguirá a fim de que o holocausto seja completo. Por que então “toda carne”? Todo homem. E por que todo homem? Porventura todos os futuros fiéis foram prenunciados em Cristo? Acaso muitos ímpios que serão condenados? Muitos dos que acreditam cada dia não morrem em sua infidelidade? Em que sentido então entendemos:

A ti acorre toda carne?” O salmista denomina “toda carne”, todo gênero de carne; carne de todo gênero virá a ti. Que quer dizer: de toda espécie de carne? Acaso vieram os pobres e não vieram os ricos? Vieram os humildes e não os potentados? Vieram os indoutos e não os doutos? Acaso vieram os homens e não as mulheres? Vieram os senhores e não os escravos? Vieram os velhos e não os jovens? Vieram os jovens e não os adolescentes? Vieram os adolescentes e não os meninos? Vieram os meninos e não foram trazidas as crianças? Finalmente, vieram os judeus (pois dentre eles eram os apóstolos, e aqueles muitos milhares que primeiro entregaram o Cristo, mas depois acreditaram nele) e não vieram os gregos? Ou vieram os gregos e não vieram os romanos? Ou vieram os romanos e não os bárbaros? E quem poderá enumerar todas as gentes que vieram àquele ao qual foi dito:

A ti acorre toda carne? Escuta a minha oração. A ti acorre toda carne”.



§ 6
4 “As palavras dos ímpios prevaleceram sobre nós, mas perdoarás as nossas impiedades”.

Qual o sentido das palavras:

As palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós, mas perdoarás as nossas impiedades”? Uma vez que nascemos nesta terra, encontramos iníquos que ouvimos falar. V. Caridade me ajude prestando atenção, para ver se posso explicar o que penso. Todo homem, seja onde for que nasça, aprende a língua da terra, ou da região ou da cidade a que pertence; é imbuído de seus costumes, de sua vida. Que haveria de fazer o menino que nasceu no meio de pagãos, se não adorasse as pedras, culto insinuado pelos pais? Deles ouviu as primeiras palavras; sugou o seu erro com o leite materno; e como os que lhe falavam eram seus maiores, e o menino que aprendia a falar era uma criança, que autoridade poderia seguir o pequenino senão a de seus antepassados e considerar como bem aquilo que eles elogiavam? Por este motivo, os gentios que depois se converteram a Cristo, recordando as impiedades de seus pais, repetiam as palavras do profeta Jeremias:

Nossos pais não cultuaram senão mentira, vazio que não serve para nada(Jr 16,19).

Ao se exprimirem desta forma, renunciam às opiniões e sacrilégios de seus iníquos pais. Mas como para serem imbuídos de tais opiniões sacrílegas haviam-se deixado persudir por aqueles que eles julgavam ter tanto mais autoridade quanto precedência na idade, o salmista, desejoso de voltar de Babilônia para Jerusalém, confessa:

As palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós”.

Nossos guias ensinaram-nos o mal e fizeram de nós cidadãos de Babilônia. Abandonamos o Criador e adoramos a criatura. Deixamos aquele que nos fez e adoramos o que nós mesmos fizemos. Pois “as palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós”, contudo não nos oprimiram. Por quê? “Perdoarás as nossas impiedades”.

Não se diz tal coisa senão a um sacerdote que ofereça algum sacrifício de expiação e propiciação, por causa da impiedade. Diz-se que há propiciação para a impiedade quando Deus se faz propício aos ímpio. Que quer dizer que Deus se torna propício aos ímpios, que perdoa e dá vênia? Para que de Deus se impetre o perdão, a propiciação se faz por meio de um sacrifício. Aliás, existe um sacerdote nosso, enviado pelo Senhor Deus. Ele assumiu de nós a vítima para oferecer a Deus, queremos dizer, as primícias santas da carne assumida no seio da Virgem. Foi este holocausto que ele ofereceu a Deus: estendeu os braços na cruz para dizer:

Como incenso suba a tua presença a minha oração e a elevação de minhas mãos como o sacrifício vespertino(Sl 140,2).

Como sabeis, o Senhor foi crucificado pela tarde (cf Mt 27,46); e nossas impiedades foram perdoadas, pois do contrário teriam-nos absorvido.

As palavras dos iníquos prevaleceram contra nós”.

Haviam sido nossos guias os pregadores de Júpiter, de Saturno, e de Mercúrio:

As palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós”.

Mas tu, o que farás? “Perdoarás as nossas impiedades”.

Tu, sacerdote, tu vítima, tui oferente, tu oblação. Este é o sacerdote que agora entrou além do véu, e sendo ali o único dentre aqueles que viveram na carne, intercede por nós. Era figurado naquele povo primeiro, naquele primeiro templo pelo único sacerdote que entrava no Santo dos santos, enquanto todo o povo ficava do lado de fora. E ele entrava sozinho além do véu, e oferecia o sacrifício pelo povo que estava do lado de fora (cf Hbr 6,19.20; 9,7).

Se isto for bem entendido, o espírito vivifica; se não for entendido, a letra mata. Ouvistes há pouco a leitura do Apóstolo:

A letra mata, mas o Espírito comunica a vida”.

Os judeus não souberam o que se realizava em seu povo; nem mesmo agora sabem. Deles foi dito:

Todas as vezes que lêem Moisés, um véu está sobre o seu coração”.

Véu aqui é figura; retire-se a figura e aparecerá a realidade. Mas, quando há de ser tirado o véu? Escuta o que diz o Apóstolo:

É somente pela conversão ao Senhor que o véu cai”.

Por conseguinte, enquanto, lendo Moisés, não se converterem ao Senhor, terão o véu sobre o coração. Prefigurando tal mistério, brilhava então a face de Moisés, de tal modo que “os israelitas não podiam fixar os olhos no semblante de Moisés(assim ouvistes; acaba de ser lido).

O véu estava sobre a face de Moisés a falar, enquanto o povo ouvia. Ouvia as palavras através do véu, mas não viam a face. E que diz o Apóstolo? “Os israelitas não podiam fixar os olhos no semblante de Moisés”.

Não podiam fixar os olhos, até o fim (2 Cor 3,6-16).

Que significa: até o fim”? Até que entendessem quem era o Cristo. Na verdade diz o Apóstolo:

O fim da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê(Rm 10,4).

Havia, com efeito, um fulgor na face de Moisés, na face carnal e mortal; poderia esse fulgor ser diuturno ou eterno? Sobrevindo a morte, é certo que seria retirado. Mas, o esplendor da glória de nosso bem-aventurado Senhor Jesus Cristo é eterno. Mas aquele fulgor era uma figura temporária, ao passo que este esplendor é a realidade significada pela figura. Os judeus, portanto, lêem e não entendem a Cristo; não persistem no esforço até o fim, porque o véu interposto impede-lhes a visão do esplendor interior. E vê como Cristo se acha sob o véu. Disse o próprio nosso Senhor Jesus Cristo:

Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mim, porque foi a meu respeito que ele escreveu(Jo 5,46).

Perdoados, porém, nossos pecados e nossas impiedades por meio daquele sacrifício vespertino, passamos para junto do Senhor, e o véu é retirado. Foi por isso que, crucificado o Senhor, o véu do templo se rasgou (cf Mt 27,51).

Escuta a minha oração. A ti acorre toda carne. As palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós, mas perdoarás as nossas impiedades”.



§ 7
5.6 “Feliz aquele que escolheste e assumiste”.

Quem é que ele escolheu e assumiu? Alguém foi escolhido por nosso Salvador Jesus Cristo? Ou ele mesmo segundo a carne, enquanto homem, foi escolhido e assumido? De tal modo que, enquanto Verbo de Deus, se diz que era no princípio, conforme a palavra do evangelista:

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”, porque ele é o Filho de Deus, o Verbo de Deus, acerca do qual também diz o evangelista:

Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito(Jo 1,1-3).

Assim, se diga ao Filho de Deus, uma vez que ele é nosso sacerdote, depois que assumiu a carne:

Feliz aquele que escolheste e assumiste”, a saber, aquele homem que revestiste, que começou no tempo, nascido de mulher como um templo daquele que sempre, eternamente existe e existiu. Ou melhor, Cristo assumiu certo bem-aventurado, e não se refere ao que assumiu no plural, mas no singular? Assumiu um só, porque assumiu a unidade. Ele não assume os cismas, não assume as heresias. Múltiplas partes fizeram-se elas por si mesmas; não são este um só que é assumido. Os que permanecem na união de Cristo, e são seus membros, fazem de certa maneira um só homem, do qual fala o Apóstolo:

Até que alcancemos todos nós o pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de homem perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo(Ef 4,13).

Efetivamente, um só homem é assumido, cuja Cabeça é Cristo, porque “a Cabeça de todo homem é Cristo(1 Cor 11,3).

Ele é o homem “feliz que não entrou no conselho dos ímpios”, etc., do mesmo salmo (Sl 1,1).

Ele é quem é assumido. Não está fora de nós: somos seus membros, uma só Cabeça nos comanda, vivemos de um só espírito, todos desejamos uma só pátria. Vejamos, portanto, o que se diz a Cristo, verificando se nos toca, se nos é atinente; interroguemos nossas consciências, perscrutemos como está aquele amor; e se ainda é pequeno, se acaba de nascer (talvez em alguém agora germinou), com cuidado exterminemos os espinhos ao redor dos brotos, isto é, as preocupações mundanas, para que não sufoquem, crescendo, o germe sagrado.

Feliz aquele que escolheste e assumiste”.

Estejamos nele, e seremos assumidos; estejamos nele e seremos eleitos.



§ 8
E que nos será dado? “Habitará em teus átrios”.

Trata-se daquela Jerusalém, à qual cantam os que começam a sair de Babilônia:

Habitará em teus átrios. Seremos cumulados dos bens de tua casa”.

Quais os bens da casa de Deus? Irmãos, imaginemos uma casa opulenta. De quantos bens está repleta, que abundância, quantos objetos de ouro e também de prata; quantos escravos, quantos jumentos e animais; a própria casa, enfim, como deleita com pinturas, mármores, tetos com ornatos, colunas, átrios, quartos; e tais coisas são desejadas, mas são ainda da confusão de Babilônia. Corta todos esses desejos, ó cidadão de Jerusalém; corta! Se queres voltar, o cativeiro não te deleite. Mas, já começaste a sair; não olhes para trás, não fiques no caminho. Não faltam os inimigos aqui que te persuadam a amar o cativeiro e a peregrinação; já não prevaleçam contra ti as palavras dos iníquos. Deseja a casa de Deus, deseja os bens de sua casa. Não aneles por bens quais costumas almejar em tua casa, ou na casa de teu vizinho, ou na casa de teu patrono. É bem diferente a riqueza daquela casa. Que necessidade há de dizer quais os bens daquela casa? Indique-nos aquele que canta ao sair de Babilônia:

Seremos cumulados dos bens de tua casa”.

Quais são estes bens? Talvez tínhamos posto o coração no ouro, na prata e demais coisas preciosas. Não procure tais coisas. Elas oprimem, não elevam. Empenhemo-nos já aqui em obter aqueles bens de Jerusalém, os bens da casa do Senhor, os bens do templo do Senhor. Porque casa do Senhor e templo do Senhor se identificam.

Seremos cumulados dos bens de tua casa. Santo é teu templo, admirável em justiça”.

São essas as riquezas daquela casa. Não disse o salmista: Teu santo templo é admirável por suas colunas, admirável por seus mármores, admirável pelos tetos dourados; mas “admirável em justiça”.

Tens olhos exteriores que vêem os mármores e o ouro; interiormente existem olhos para verem a beleza da justiça. Interiormente, disse, existem olhos que vêem a beleza da justiça. Se a justiça não tem beleza alguma, como se pode amar um velho que é justo? Que tem ele no corpo para deleitar os olhos? Os membros encurvados, a fronte enrugada, a cabeça encanecida, inteiramente fraco e cheio de queixumes. Mas, talvez, embora este velho decrépito não deleite os olhos teus, pode deleitar teus ouvidos. Com que voz? Com que canto? É possível que enquanto era jovem cantasse bem, mas com a idade tudo se enfraqueceu. Acaso o som de suas palavras deleita teus ouvidos, se mal pronuncia inteiramente as palavras, porque os dentes cairam? No entanto, se é justo, se não deseja o bem alheio, se dá do que é seu aos necessitados, se dá bons conselhos, se pensa bem, se tem fé íntegra, se está disposto a dar pela verdade da fé até mesmo os ombros alquebrados, pois há muitos mártires entre os velhos, por que o amamos? Que bem vêem nele os olhos carnais? Nada. Por conseguinte, existe certa beleza na justiça, que vemos com os olhos do coração, que amamos com ardor. Os homens intensamente a amaram nos mártires, ao serem seus membros dilacerados pelas feras. Ao estarem manchados de sangue, e serem suas vísceras esparramadas devido as mordeduras dos animais ferozes, não se ofereciam aos olhos apenas motivo de horror? Que havia ali para ser amado, senão que a beleza da justiça permanecia íntegra entre aqueles horríveis membros dilacerados? São estes os bens da casa de Deus; prepara-te para te saciares com eles. Mas, a fim de te saciares ali quando chegares, terás de ter fome e sede durante a peregrinação. Tem sede disso, tem fome disso, porque tais são os bens de Deus. Escuta aquele rei, ao qual se dizem estas coisas. Ele veio te reconduzir e tornou-se o caminho para ti (cf Jo 14,6).

O que diz ele? “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).

Santo é teu templo, admirável em justiça”.

E não deveis, irmãos, imaginar um templo fora de vós. Amai a justiça e sois o templo de Deus.



§ 9
Escuta-nos, ó Deus, nosso salvador”.

Declara agora quem é que é denominado Deus. É o salvador, propriamente nosso Senhor Jesus Cristo. Apareceu agora mais claramente de quem é que falara:

A ti acorre toda carne. Escuta-nos, ó Deus, nosso salvador”.

Aquele único homem que é assumido como templo de Deus consiste em muitos e é um só. Como um só disse:

Escuta, ó Deus, a minha oração”.

E como consta de muitos, agora reza:

Escuta-nos, ó Deus, nosso salvador”.

Ouve como ele já está sendo mais claramente anunciado:

Escuta-nos, ó Deus, nosso salvador, esperança de todos os confins da terra e dos mares distantes”.

Eis por que diz o salmista:

A ti acorre toda carne”.

Acorre-se de todas as partes.

Esperança de todos os confins da terra”.

Não é esperança apenas de um canto, mas esperança somente da Judéia, nem esperança exclusivamente da África, nem esperança da Panônia, nem esperança do oriente ou do ocidente, mas “esperança de todos os confins da terra e dos mares distantes”.

Dos próprios confins da terra.

E dos mares distantes”.

Se é do mar, é longe. O mar é figura deste século, amargo pela salmora, turbulento em suas procelas, onde os homens cheios de ambições perversas e más se tornaram como peixes que se devoram mutuamente. Observai o mar malvado, o mar amargo, cruel em seus vagalhões; notai de que homens está repleto. Quem ambiciona uma herança, não quer a morte de outro? Quem anelar por um lucro, não procura o prejuízo de outro? Quantos os que querem subir com a queda de muitos! Quantos para comprar ambicionam que os outros vendam o que têm! Como não se oprimem mutuamente, e não devoram os que podem! E depois que um peixe maior devorar um menor, ele também é devorado por outro maior do que ele. Ó peixe malvado, queres fazer do pequeno uma presa; serás presa do grande. Estas coisas acontecem cada dia, diante de nossos olhos; nós as vemos e sentimos horror. Não façamos isto, meus irmãos, porque é Cristo a “esperança de todos os confins da terra”.

Se ele não fosse a esperança também “dos mares distantes” não teria dito a seus discípulos:

Eu vos farei pescadores de homens(Mt 4,19).

Já tendo sido capturados no mar pelas redes da fé, alegremo-nos de nadar ainda dentro das redes; pois, o mar ainda está enfurecido e tempestuoso, mas as redes que nos apanharam nos levarão à praia. A praia é o fim do mar; portanto, é a chegada ao fim do mundo. Neste ínterim dentro das redes, irmãos, vivamos bem; não rompamos as redes para saírmos. Muitos romperam as redes, criaram cismas, saíram, porque diziam que não queriam suportar os maus peixes capturados nas redes; e eles se tornaram piores do que aqueles que afirmaram não poder tolerar. Pois, as redes apanham peixes bons e maus. Declara o Senhor:

O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede lançada ao mar, que apanha de tudo. Quando está cheia, os pescadores puxam-na para a praia e, sentados, juntam o que é bom em vasilhas, mas o que não presta, deitam fora. Assim será no fim do mundo. Mostra o que é a praia, mostra o fim do mar. Virão os anjos e separarão os maus dentre os justos e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes(Mt 13,47-50).

Vamos, pois, cidadãos de Jerusalém, que estais dentro da rede e sois peixes bons. Tolerai os maus. Não rompais a rede. Estais com eles no mar, porém não estareis com eles nas vasilhas. Ele é a “esperança de todos os confins da terra”, ele é a esperança “dos mares distantes”.

Distantes, porque mares.



§ 10
7 “Estabeleces as montanhas em sua fortaleza. Não se trata do poder deles. Pois, o Senhor preparou grandes pregadores e os chamou de montes; humildes em si, elevados nele.

Estabeleces as montanhas em sua fortaleza”.

Como se exprime um desses montes? “Recebêramos em nós mesmos a nossa sentença de morte, para que a nossa confiança já não se pudesse fundar em nós mesmos, mas em Deus que ressuscita os mortos(2 Cor 1,9).

Quem confia em si mesmo e não em Cristo, não é destes montes que ele estabeleceu em sua fortaleza.

Estabeleces as montanhas em sua fortaleza, cingido de poder”.

Entendo aqui os potentados.

Cingido”, o que é? Os potentados põem Cristo no meio, cingem-no, isto é, cercam-no de todos os lados. Todos nós o possuímos em comum, portanto, ele está no meio. Cercamo-lo todos nós que nele acreditamos. E como nossa fé não provém de nossas forças, mas de seu poder, ele está “cingido de seu poder”, não de nossa força.



§ 11
8 “Abalas as profundezas do mar”.

Ele o fez. Vejamos o que fez. Estabeleceu as montanhas em sua fortaleza. Enviou-os a pregar. Foi cercado dos fiéis em poder. E o mar se abalou. Abalou-se o mundo e começou a perseguir seus santos.

Cingido de poder. Abalas as profundezas do mar”.

Não disse: Abalas o mar; mas:

as profundezas do mar”.

Profundezas do mar são os corações dos ímpios. Como o movimento que vem do fundo é mais veemente, e as profundezas contêm tudo, assim tudo o que parte da língua, das mãos, das diversas forças para perseguir a Igreja, veio das profundezas. Se a raiz da iniqüidade não estivesse no coração, não se originaria tudo aquilo contra Cristo. Abalou as profundezas, talvez para esgotá-las; pois quanto a certa espécie de males esgotou o fundo do mar e tornou-o vazio. Assim se exprime outro salmo:

Converte o mar em terra firme(Sl 65,6).

Todos os pagãos e ímpios que acreditaram eram um mar e se tornaram terra. Primeiro eram estéreis devido às ondas salgadas, mas depois se tornaram fecundos de frutos de justiça.

Abalas as profundezas do mar”.

Quem suportará o fragor das ondas?” Que quer dizer:

Quem suportará?” Quem suportará o fragor das ondas do mar, as ordens dos magnatas do mundo? Mas por que se suportam? Porque abala o Senhor as montanhas em sua fortaleza. A palavra:

Quem suportará?” é o mesmo que dizer: Nós, por nós mesmos não poderíamos suportar aquelas perseguições, se ele não nos desse a força.

Abalas as profundezas do mar. Quem suportará o fragor das ondas?



§ 12
8.9 “As nações se agitarão”.

Primeiro se agitarão; mas aquelas montanhas estabelecidas na fortaleza de Cristo, acaso se perturbaram? O mar se abalou, quebrou-se contra os montes. As ondas se quebraram, mas os montes ficaram inabaláveis.

As nações se agitarão e temerão todos”.

Eis que todos já temem; antes se perturbaram e agora já temem. Os cristãos não temeram, mas são temidos depois que se tornaram cristãos. Todos os que perseguiam, agora temem. Superou-os aquele que foi cingido de poder. De tal forma a ele acorre toda carne que os demais em sua pequenez já temem.

À vista de teus portentos temerão os habitantes dos confins da terra”.

Pois, os apóstolos fizeram milagres e por isso todos os confins da terra temeram e acreditaram.



§ 13
Alegrarás as saídas da manhã e da tarde”, isto é, tornas deleitáveis. Qual a promessa que temos para esta vida? “Alegrarás as saídas de manhã e à tarde”.

Há saídas de manhã e saídas à tarde.

De manhã” representa a prosperidade do mundo; “à tarde” a figura a tribulação neste mundo. Atenção, V. Caridade, para não se corromper pela prosperidade, nem se abater pela adversidade. Ambas tentam a alma humana. Por conseguinte, a manhã significa a prosperidade, porque de manhã tudo é alegre, havendo passado a tristeza da noite. Pois as trevas são tristes, ao cair da tarde. Foi, de certo modo, ao anoitecer do mundo que Cristo ofereceu o sacrifício vespertino. Por isso, ninguém tema a tarde, nem se deixe corromper pela manhã. Não sei bem que homem te prometeu lucro se fizeres determinada ação má. É de manhã: uma grande soma de dinheiro te sorri. Faz-se manhã para ti. Não te deixes corromper, e terás uma saída de manhã. Se tens como sair, não te deixes prender. A promessa de lucro serviu de isca na armadilha. Se fores pressionado, sem saída, serás apanhado na armadilha. Mas o Senhor teu Deus te proporcionou ocasião de escapar, de sorte que não sejas apanhado pelo lucro, ao te dizer no coração: Eu sou a tua riqueza. Não atendas às promessas do mundo, e sim às do Criador do mundo. Presta atenção ao que Deus te prometeu se praticares a justiça e desprezarás as promessas do homem que te quer afastar da justiça. Não atendas, portanto, ao que promete o mundo, e sim ao que promete o Criador do mundo e terás a saída de manhã, através da palavra do Senhor:

Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida”? (Mt 16,26).

Mas aquele que, com a promessa de lucro, não pôde te corromper e te levar à iniqüidade, ameaçará com penas e se tornará teu inimigo, começando a te dizer: Se não fizeres isto, hei de te mostrar, hei de agir; ter-me-ás por inimigo. Primeiro, enquanto te prometia lucro, era de manhã; agora já anoitece, tornou-se triste. Mas quem te deu uma saída de manhã, dará também como escapar à tarde. Como desprezaste a manhã do mundo por causa da luz do Senhor, assim despreza também a tarde, devido à paixão do Senhor, dizendo a tua alma: O que me fará este malvado a mais do que aquilo que meu Senhor sofreu por mim? Manterei a justiça, não consentirei na iniqüidade. Seja cruel contra minha carne: quebre-se o laço, e voarei para meu Senhor que me diz:

Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma(Mt 10,28).

E ele deu garantias ao próprio corpo, dizendo:

Mas nem um só cabelo de vossa cabeça se perderá(Lc 21,18).

Admiravelmente se exprimiu o salmista:

Alegrarás as saídas de manhã e à tarde”.

Se a própria saída te deleitar, não te custará sair daqui. Porás a cabeça no lucro prometido se não te deleitar a promessa do salvador. Ainda, cederás ao tentador, que te ameaça, se não te aprouver aquele que primeiro sofreu para te dar como sair.

Alegrarás as saídas de manhã e à tarde”.



§ 14
10 “Visitaste a terra e a inebriaste”.

Como inebriou a terra? “E teu cálice inebriante, como é excelente!(Sl 22,5).

Visitaste a terra e a inebriaste”.

Enviaste tuas nuvens, caiu a chuva da pregação da verdade, a terra se inebriou.

Cumulando-a de riquezas”.

Como a cumulaste de riquezas? “O rio de Deus encheu-se de água”.

Que é este “rio de Deus”? O povo de Deus. O primeiro povo ficou cheio, e por meio dele o restante da terra foi irrigado. Ouve o Senhor a prometer água:

Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva(Jo 7,37.38).

Rios e um só rio, porque devido à unidade muitos são um só. Muitas Igrejas e uma só Igreja; muitos fiéis, e uma só esposa de Cristo. Assim também muitos rios e um só rio. Muitos israelitas acreditaram, e ficaram repletos do Espírito Santo. Dali se dispersaram por muitos povos; começaram a pregar a verdade, e do rio de Deus que se encheu de água, a terra inteira foi irrigada.

Forneceste-lhes o sustento, quando assim a preparas”.

Não forneceste porque mereceram aqueles cujos pecados perdoaste, uma vez que só mereciam o mal, mas por causa de tua misericórdia.

Forneceste-lhes o sustento, quando assim a preparas”.



§ 15
11 “Irriga os seus sulcos”.

Abram-se primeiro os sulcos que devem ser irrigados; a dureza de nossos corações se amoleça pelo arado da palavra de Deus.

Irriga os seus sulcos, aumenta a sua reprodução”.

Nós o vemos. Uns acreditam, e através destes fiéis outros acreditam, e por meio desses outros crêem. E não basta a alguém que se tornou fiel lucrar um só. Assim a semente se multiplica. Poucos grãos são lançados e surge a messe.

Irriga os seus sulcos, aumenta a sua reprodução. Alegrar-se-á com o orvalho, ao nascer”.

Isto é, antes que seja talvez capaz de receber a água do rio, “ao nascer, com o orvalho”, conforme lhe convém, “alegrar-se-á”.

Orvalho um pouco dos sacramentos para os pequenos e fracos, porque não podem captar a plenitude da verde. Ouve como é que orvalha para os pequeninos, ao nascerem, isto é, aos menos capazes, recém-nascidos. Diz o Apóstolo:

Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a crianças em Cristo(1 Cor 3,1).

Com a expressão:

crianças em Cristo” refere-se aos já nascidos, mas ainda não idôneos a captar aquela sabedoria mais profunda, da qual diz:

É realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos(1 Cor 2,6).

Alegrar-se-á com o orvalho, ao nascer e crescer; já robusto captará a sabedoria, porque a criancinha se nutre de leite e torna-se capaz de ingerir alimento sólido; no entanto, antes retirou-se o leite do próprio alimento, do qual ainda a criança não era capaz.

Alegrar-se-á com o orvalho, ao nascer”.



§ 16
12 “Abençoarás a coroa do ano com teus benefícios”.

Semeia-se agora, cresce o que foi semeado, virá a messe. E então, o inimigo sobre a boa semente semeou o joio; e nasceram os maus entre os bons, os pseudocristãos, tendo folhas semelhantes, mas frutos desiguais. Pois chama-se propriamente joio a planta que nasce semelhante ao trigo, como a cizânia, a aveia e outras que têm as primeiras folhas inteiramente semelhantes. Por isso da semeadura da cizânia diz o Senhor:

Veio o inimigo e semeou o joio no meio do trigo. Quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio”.

Com efeito, “veio o inimigo, e semeou o joio no meio”; mas que fez o trigo? O trigo não ficou oprimido pelo joio; ao contrário, tolerando o joio, o trigo cresceu. O próprio Senhor respondeu a certos operários que queriam arrancar o joio:

Deixai-os crescer juntos até a colheita, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo. No tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; em seguida, recolhei o trigo no meu celeiro(Mt 13,24-30).

O fim do ano é a messe no fim do mundo.

Abençoarás a coroa do ano com teus benefícios”.

Ao se falar de coroa, alude-se à glória da vitória. Vence o diabo e terás a coroa.

Abençoarás a coroa do ano com teus benefícios”.

Recomenda novamente a bondade de Deus, a fim de que ninguém se glorie de seus méritos.



§ 17
13 “E teus campos se encherão de fartura. Os confins do deserto reverdecerão e as colinas cingir-se-ão de alegria”.

Campos, colinas, confins do deserto são os homens. Campos por causa da igualdade; portanto, devido à sua igualdade, os povos justos são denominados campos. Colinas por causa da elevação, porque Deus eleva em si aqueles que se humilham. Confins do deserto, todos os povos. Por que confins do deserto? Eles eram desertos; profeta algum havia sido enviado a eles. Assim eles eram semelhantes ao deserto, por onde ninguém passa. Nenhuma palavra de Deus fora enviada aos gentios; os profetas pregaram apenas ao povo de Israel. Veio o Senhor; creram os que eram trigo no povo judaico. Por isso, o Senhor disse aos discípulos naquela ocasião:

Não dizeis vós que a colheita ainda está longe? Erguei vossos olhos e vede os campos: estão brancos para a colheita”.

Foi esta a primeira colheita. Haverá outra no fim do mundo. A primeira colheita era a dos judeus, porque foram-lhes enviados os profetas que anunciavam o Salvador a vir. Por isso, o Senhor disse aos discípulos: Vede os campos:

Estão brancos para a colheita”, de fato, os campos da Judéia.

Outros trabalharam e vós aproveitastes os seus trabalhos”, disse ainda (Jo 4,35.38).

Os profetas trabalharam para semear, e vós entrastes com a foice para aproveitar seus trabalhos. Realizou-se, portanto, a primeira colheita; e de lá, do mesmo trigo que então ficou limpo, foram tiradas as sementes para a terra inteira, a fim de que haja outra colheita no fim dos tempos. No segundo plantio foi semeado por cima o joio; por isso agora se tem tanto trabalho. Como naquela primeira messe trabalharam os profetas, até que viesse o Senhor, assim nesta segunda trabalharam os apóstolos e todos os pregadores da verdade ainda trabalham até que no fim do mundo o Senhor envie os seus anjos para a messe. Antes, por conseguinte, era um deserto; mas “os confins do deserto reverdecerão”.

Eis que o Senhor dos profetas foi recebido lá onde os profetas não haviam falado.

Os confins do deserto reverdecerão e as colinas cingir-se-ão de alegria”.



§ 18
14 “Os cordeirinhos das ovelhas se revestiram”.

Subentende-se:

de alegria”.

Os cordeirinhos das ovelhas se revestirão da mesma alegria que cingirá as colinas. Cordei-rinhos e colinas aqui se identificam. São colinas pela graça superior; cordeirinhos, porque guias do rebanho. Por conseguinte, são cordeirinhos os apóstolos, revestidos de alegria, que se alegram com os frutos que conseguem. Não trabalharam inutilmente, não pregaram sem motivo.

Os cordeirinhos das ovelhas se revestiram; e os vales se encherão de trigais. Também os humildes do povo darão muito fruto.

Elevam-se clamores”.

Clamarão e se encherão de trigais. O que clamarão? “Entoam-se hinos”.

Uma coisa é clamar contra Deus e outra cantar um hino. Uma coisa gritar palavras sacrílegas, outra clamar os louvores de Deus. Se clamas uma blasfêmia, produziste espinhos; se clamas um hino, tens abundância de trigo.