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Ó Deus, tu és o meu Deus; ansiosamente te busco.

A minha alma tem sede de ti; a minha carne te deseja muito em uma terra seca e cansada, onde não há água.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 63


§ 63:1  Ơ Ó Deus, tu és o meu Deus; ansiosamente te busco. A minha alma tem sede de ti; a minha carne te deseja muito em uma terra seca e cansada, onde não há água.

§ 63:2  Assim no santuário te contemplo, para ver o teu poder e a tua glória.

§ 63:3  Porquanto a tua benignidade é melhor do que a vida, os meus lábios te louvarão.

§ 63:4  Assim eu te bendirei enquanto viver; em teu nome levantarei as minhas mãos.

§ 63:5  A minha alma se farta, como de tutano e de gordura; e a minha boca te louva com alegres lábios.

§ 63:6  ɋ quando me lembro de ti no meu leito, e medito em ti nas vigílias da noite,

§ 63:7  pois tu tens sido o meu auxílio; de júbilo canto à sombra das tuas asas.

§ 63:8  A minha alma se apega a ti; a tua destra me sustenta.

§ 63:9  ɱ Mas aqueles que procuram a minha vida para a destruírem, irão para as profundezas da terra.

§ 63:10  Serão entregues ao poder da espada, servidão de pasto aos chacais.

§ 63:11  ɱ Mas o rei se regozijará em Deus; todo o que por ele jura se gloriará, porque será tapada a boca aos que falam a mentira.


O SALMO 63



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Sendo hoje a festa da paixão dos santos mártires, alegremo-nos com sua lembrança, recordando-nos do que sofreram e compreendendo o que eles tinham em vista. Pois jamais teriam tolerado tantas tribulações da carne, se não tivessem concebido espiritualmente grande quietude. Percorramos portanto o salmo, em consideração da própria solenidade. V. Caridade ouviu ontem muitas coisas; não pudemos, porém, negar nossa contribuição à festa de hoje. Este salmo, de fato, recomenda especialmente a paixão do Senhor. Os mártires não teriam sido fortes se não olhassem para aquele que foi o primeiro a sofrer. Não suportariam tais sofrimentos, à semelhança dele, se não esperassem tal ressurreição qual ele em si mesmo previamente mostrou. V. Santidade sabe que nossa Cabeça é nosso Senhor Jesus Cristo, e todos os que a ele aderem são membros desta Cabeça. Já conheceis muito bem sua voz, a falar não somente em lugar da Cabeça, mas ainda do corpo. Suas vozes não apenas significam ou pregam o próprio Senhor, Jesus Cristo, que já subiu ao céu, mas também seus membros que haverão de seguir a própria Cabeça. Reconheçamos aqui não só a sua voz, mas igualmente a nossa. E ninguém diga que hoje não sofremos a tribulação da paixão. Pois sempre ouvistes afirmar isto. Nos primeiros tempos quase toda a Igreja simultaneamente era atacada; agora, porém, é tentada em cada um em particular. O diabo está, em verdade, amarrado a fim de não fazer quanto pode, quanto quer; contudo, tem a permissão de tentar tanto quanto é útil àqueles que se aperfeiçoam. Não nos convém viver sem tentação. Nem pedimos a Deus que não sejamos tentados, e sim que não nos deixe cair em tentação.



§ 2
2 Digamos, portanto, também nós:

Ouve, Senhor, a minha oração quando sou atribulado. Do temor do inimigo livra a minha alma”.

Os inimigos encarniçaram-se contra os mártires; como rezava a voz do corpo de Cristo? Rezava que os seus membros fossem libertados dos inimigos, que não pudessem os inimigos matá-los. Por conseguinte, não foram ouvidos, pois foram mortos; então Deus abandonou seus servos de coração contrito, e desprezou os que nele confiavam? De forma alguma.

Quem invocou o Senhor e foi abandonado? Ou quem esperou nele e ele o desprezou”? (Ecl 2,10).

Eram ouvidos, portanto, e foram mortos; contudo eram libertados dos inimigos. Outros consentiam por medo e viviam: mas eram absorvidos pelos próprios inimigos. Os mortos eram libertados e os vivos absorvidos. Daí deriva a palavra de gratidão:

Decerto nos teriam devorado vivos(Sl 123,3).

Muitos foram devorados, e devorados vivos; muitos mortos foram devorados. Os que pensaram que era vão a fé cristã, foram devorados mortos; os que sabiam que a pregação do evangelho é verdadeira, que Cristo é o Filho de Deus, e assim crendo, assim pensando interiormente, cederam diante das dores e sacrificaram aos ídolos, foram absorvidos vivos. Os primeiros foram devorados, porque mortos. Os segundos, porém, por terem sido devorados, morreram. Não puderam viver depois de absorvidos, embora estivessem vivos quando foram devorados. Portanto, reza assim a voz dos mártires; “Do temor do inimigo livra a minha alma”.

Não peço que o inimigo não me mate, mas que eu não tema o inimigo que mata. Pede o servo que se realize aquilo que o Senhor ordenava no evangelho. Que é que ele ordenava? “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena de fogo(Mt 10,28).

E repetiu:

Sim, eu vos digo, a este temei(Lc 12,5).

Quais os que matam o corpo? Os inimigos. Qual a ordem do Senhor? Não sejam temidos. Peça-se, portanto, que ele dê aquilo que ordena.

Do temor do inimigo livra a minha alma”.

Livra-me do temor do inimigo e submete-me a teu temor. Que eu não tenha medo de quem mata o corpo; mas tema aquele que tem o poder de destruir corpo e alma na geena de fogo. Não quero estar isento de temor; mas quero estar livre do temor do inimigo e tornar- me servo sob o temor do Senhor.



§ 3
3 “Protegeste-me da conspiração dos malvados, da multidão dos malfeitores”.

Contemplemos nossa Cabeça. Muitos mártires sofreram tais tormentos; mas nenhum deles tem o brilho da Cabeça dos mártires; nela contemplamos melhor o que eles experimentaram. Foi protegido da multidão dos malfeitores, protegido por Deus, protegida sua carne pelo próprio Filho e pela humanidade que possuía. De fato, ele é Filho do homem, e Filho de Deus. Filho de Deus por causa de sua condição divina. Filho do homem por causa da condição de servo, tendo o poder de entregar sua vida e de retomá-la (cf Fl 2,6.7; Jo 10,18).

Que puderam fazer-lhe os inimigos? Mataram o corpo, mas não mataram a alma. Atenção. Não bastava que o Senhor exortasse os mártires com a palavra, se não confirmasse as palavras com o exemplo. Sabeis que os judeus se reuniram com desígnios malignos e qual era a multidão dos obreiros da iniqüidade. Que iniqüidade? A de querer matar nosso Senhor Jesus Cristo.

Eu vos mostrei inúmeras boas obras”, disse ele.

Por qual delas quereis lapidar-me”? (Jo 10,32).

Sustentou todos os seus enfermos, curou todos os seus doentes, pregou o reino dos céus, não calou seus vícios, de sorte que eles antes os aborrecessem e não o médico que os curava; e eles, ingratos diante de todas essas curas, como os frenéticos devido à febre alta, enlouquecendo contra o médico que viera curá-los, excogitaram o plano de matá-lo. Pareciam querer experimentar se ele era verdadeiramente homem, com a possibilidade de morrer, ou algo acima dos homens, que não permitisse sua morte. Conhecemos quais as suas palavras, pelo livro da Sabedoria, de Salomão:

Conde-nemo-lo a uma morte vergonhosa. Experimentemo-lo, para apreciar a sua serenidade; se é na verdade Filho de Deus, ele o libertará(Sb 2,18-20).

Vejamos os fatos.



§ 4
5 “Afiaram, qual espada, suas línguas”.

Conforme diz outro salmo:

Armas e flechas são os dentes dos filhos dos homens. Espada afiada, a sua língua(Sl 56,5), diz aqui o salmista:

Afiaram, qual espada, suas línguas”.

Não digam os judeus: Não matamos o Cristo. O motivo por que o entregaram ao juiz Pilatos foi para que eles mesmos parecessem imunes do crime de sua morte. Pois, ao lhes dizer Pilatos: Tomai-o vós mesmos e matai-o, responderam:

Não nos é permitido condenar ninguém à morte(Jo 18,31).

Queriam fazer recair a iniqüidade do crime sobre o juiz, que era um homem; mas por acaso enganavam ao juiz que é Deus? O ato de Pilatos, pelo fato mesmo, tornou-o partícipe do crime; mas em comparação com os judeus ele é muito mais inocente. Insistiu quanto pôde para libertá-lo de suas mãos. Foi por isso que o apresentou depois de flagelado. Não flagelou o Senhor, para persegui-lo, mas queria acalmar o furor dos judeus, para que ao menos assim amansassem e desistissem de querer matar, ao vê-lo flagelado. Assim fez ele. Mas, como eles persistissem, sabeis que Pilatos lavou as mãos, e disse que ele não o teria feito por si, que era inocente acerca de sua morte (cf Jo 19,1-5; Mt 27,24).

No entanto, ele assim fez. Mas, se é réu quem o fez quase contra a vontade, serão inocentes aos que o impeliram a assim agir? De modo algum. Mas, ele proferiu a sentença contrária a Cristo, mandou crucificá-lo e de certo modo foi ele quem matou; mas vós, também, ó judeus, matastes. Como o matastes? Com a espada da língua. Pois afiastes vossas línguas. E quando foi que feristes, senão quando clamastes:

Crucifica-o, crucifica-o”? (Lc 33,21).



§ 5
Além disso, não devo omitir o que me ocorre, que alguém pode ficar perturbado na leitura dos Livros divinos, porque um evangelista declara que o Senhor foi crucificado à hora sexta, e outro à hora terceira. Se não entendermos bem, perturbamo-nos. Está escrito que a hora sexta já começara quando Pilatos sentou-se no tribunal; e de fato quando o Senhor foi elevado no lenho da cruz, era a hora sexta. Mas outro evangelista, considerando o ânimo dos judeus que queriam parecer imunes acerca da morte do Senhor, em sua narração mostra que eles eram réus, dizendo que o Senhor foi crucificado à hora terceira.1 Levando em conta todas as circunstâncias da lição, quanto foi-lhes possível fazer, ao ser o Senhor acusado junto de Pilatos, a fim de ser crucificado, encontramos que pode ter sido à hora terceira que os judeus grita-ram:

Crucifica-o, crucifica-o(cf Mt 26,14-15).

Por conseguinte, é mais exato dizer que eles o mataram quando assim gritaram. Os executores do poder o crucificaram à hora sexta; os prevaricadores da Lei clamaram à hora terceira. O que os primeiros executaram à hora sexta, os segundos fizeram com a língua à hora terceira. São piores réus os que clamando se enfureciam do que aqueles que por obediência executaram a ordem. Aí está todo o engenho dos judeus; foi isso que eles procuraram obter como grande feito: Matemos e não matemos; matemos de tal maneira que não sejamos julgados por tê-lo matado.

Afiaram, qual espada suas línguas”.



§ 6
5 “Entesaram o arco. Que amargor!” O salmista chama de arco as insídias. Os que entram na luta de perto com espadas, combatem abertamente; os que lançam setas, enganam para ferir. A seta fere antes que se possa prever. Mas para quem estão escondidas as insídias do coração humano? Acaso para nosso Senhor Jesus Cristo, que “não necessitava de que o informassem sobre homem algum?” Porque “conhecia o que havia no homem(Jo 2,25), conforme atesta o evangelista. No entanto, ouçamo-los, vejamo-los, como se o Senhor ignorasse o que eles planejavam.

Entesaram o arco. Que amargor! para flecharem às ocultas o inocente”.

A palavra:

Entesaram o arco” equivale:

às ocultas”, como que enganando com insídias. Sabeis quais as fraudes que empregaram ao agir. Sabeis como corromperam o discípulo que aderira a ele, por meio de dinheiro, a fim de que o entregasse a suas mãos; como procuraram falsas testemunhas, que insídias e dolos empregaram, “para flecharem às ocultas o inocente.” Grande iniqüidade! Do esconderijo parte a flecha que fere o inocente que não estava manchado nem mesmo num ponto que pudesse ser atingido por uma seta. Efetivamente, era o Cordeiro imaculado, totalmente imaculado, sempre imaculado; e isto, não por lhe terem sido tiradas as manchas, mas porque jamais contraíra máculas. Pois, tornou a muitos imaculados, perdoando-lhes os pecados; ele, porém, é imaculado por não ter cometido pecado.

Para flecharem às ocultas o inocente”.



§ 7
6 “De improviso, com destemor, lançarão setas contra ele”.

Ó duro coração! Querer matar um homem que ressuscitava mortos! “De improviso”, isto é, insidiosamente, quase de repente, sem previsão. O Senhor achava-se entre eles como um ignorante. No entanto, eles não sabiam o que o Senhor ignorava e o que sabia, ou melhor, não sabiam que ele nada desconhecia, que ele tudo conhecia, e viera para que eles fizessem aquilo que julgavam fazer por seu próprio poder.

De improviso, com destemor, lançarão setas contra ele”.



§ 8
Obstinaram-se em seu perverso desígnio. Obstinaram-se”: tantos milagres foram realizados; eles não se comoveram, mas persistiram em seu perverso desígnio. Ele foi entregue ao juiz. Este vacila, e não trepidam os que o entregaram ao juiz. O poder treme, e não treme a crueldade; um lava as mãos e os outros mancham as línguas. Mas por que motivo? “Obstinaram-se em seu perverso desígnio”.

Quantos esforços empregou Pilatos? Quantos, para refreá-los? Que disse? Que fez? Mas, eles “obstinaram-se em seu perverso desígnio: Crucifica-o, crucifica-o!” A repetição constitui uma confirmação de seu perverso desígnio. Vejamos como “obstinaram-se em seu perverso desígnio. Crucificarei o vosso rei?” Responderam:

Não temos outro rei a não ser César(Jo 19,15).

Obstinaram-se em seu perverso desígnio”.

Pilatos apresentava-lhes por rei o Filho de Deus; eles recorriam a um homem. Mereciam ter a este e não aquele. Ainda ouve como “obstinaram-se em seu perverso desígnio. Nenhum motivo de morte encontrei nele”, diz o juiz (Lc 23,22).

Mas eles, que “se obstinaram em seu perverso desígnio, disseram: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos(Mt 27,25).

Obstinaram-se em seu perverso desígnio. Obstinaram-se em seu perverso desígnio”, não contra o Senhor, mas contra si mesmos. Como não seria contra si, ao dizerem: sobre nós, “e sobre nossos filhos?” A sua obstinação foi contra eles próprios. O mesmo se encontra em outra passagem:

Cavaram diante de mim uma fossa. E aí caíram eles(Sl 56,7).

A morte não atingiu o Senhor, mas foi ele quem matou a morte. Aos judeus, a iniqüidade matou, porque eles não quiseram matar a iniqüidade.



§ 9
Com efeito, irmãos, é coisa certa: ou matas a iniqüidade, ou ela te mata. Não procures matar a iniqüidade como algo fora de ti. Olha para ti mesmo, vê o que em ti luta contigo. Acautela-te para que a iniqüidade não te vença. Será tua inimiga, se não for morta; vem de ti, e a tua alma se rebela contra ti e não qualquer outra coisa. De um lado aderes a Deus; de outro deleita-te o mundo. A parte que se deleita no mundo, luta contra a mente que adere a Deus. Adira, adira, não desanime, não se omita, tem grande apoio. A alma vence o que nela se rebela, se perseverar na luta. O pecado habita em teu corpo, mas não reine.

O pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões(Rm 6,12).

Efetivamente, se não obedeceres, embora exista sugestão, prazer que atrai ao mal, não obedecendo fazes com que não reine o que há, e assim posteriormente não existirá mais o que havia. Quando? Quando a morte for absorvida na vitória, quando o que é corruptível tiver revestido a incorruptibilidade (cf 1Cor 15,54).

Então, não haverá ataques, não haverá deleite fora de Deus. Portanto, os judeus invejaram o Senhor; aprazia-lhes o domínio. Parecia a alguns que o principado lhes era tirado, e como este os deleitava, rebeleram-se contra o Senhor. Se eles se rebelassem contra seu prazer perverso, venceriam a inveja, não seriam vencidos por ela, e o Senhor se tornaria seu salvador, ele que viera para curar. Mas eles preferiram a febre e repeliram o médico. Faziam tudo o que lhes sugeria a febre, negligenciando os preceitos contrários do médico. Por isso, mataram antes a si mesmos e não o Senhor. Pois, se no Senhor a morte foi morta, neles vivia a iniqüidade; e vivendo esta, eles morreram.



§ 10
Conspiraram como esconder seus laços, dizen-do: Quem os verá?” Pensavam escondê-los daquele que matavam, esconder de Deus. Podes imaginar que Cristo fosse homem como os demais e não soubesse o que pensavam a seu respeito; acaso também Deus não saberia? Oh, coração humano! Por que disseste: Quem me verá, se te vê aquele que te fez? “Dizendo: Quem os verá?” Deus via, via também Cristo, porque Cristo é igualmente Deus. Mas por que lhes parecia que não os via? Ouve a continuação do salmo.



§ 11
7 “Planejaram crimes. Os investigadores esgotaram-se em investigar”, isto é, em planos acerbos e sutis. Não seja traído por nós, e sim por um discípulo seu; não seja morto por nós e sim pelo juiz. Façamos tudo, aparentando nada fazer. E os seus gritos:

Crucifica-o, crucifica-o”? Sois cegos a tal ponto que também sejais surdos. Inocência simulada não é inocência; eqüidade simulada não é eqüidade, mas dupla iniqüidade, porque é maldade e simulação. Nisto, portanto, “esgotaram-se em investigar os investigadores”.

Quanto mais sutilmente lhes parecia que planejavam, tanto mais perdiam forças, porque deixavam a luz da verdade e da eqüidade e mergulhavam nas profundezas das tramas malignas. A justiça possui certa luz que lhe é peculiar; espalha-se e ilustra quem a ela adere; a alma, porém, que se aparta da luz da justiça, quanto mais busca descobrir algo contra a justiça mais é repelida pela luz, e mergulha nas trevas. Com toda razão, portanto, estes investigadores que urdiam tramas contra o justo, se apartavam da justiça; e quanto mais se apartavam da justiça, tanto mais estafavam-se em investigar. Belo plano de inocentar-se! Quando o próprio Judas arrependeu-se de ter traído a Cristo, e lançou contra eles o dinheiro que eles lhe deram, não quiseram depositá-lo no tesouro do templo, e disseram:

Não é lícito depositá-lo no tesouro do Templo, porque se trata de preço de sangue(Mt 27,6).

Que é este “tesouro do Templo?” É o cofre de Deus, onde se recolhia o que era dado para atender às necessidades dos servos de Deus. Ó homem, seja antes teu coração o depósito de Deus, onde se recolham as riquezas de Deus, a moeda de Deus, pois a tua mente tem gravada a imagem de teu imperador! Sendo assim, que significa aquela simulação de inocência de não querer recolher no tesouro o preço do sangue, enquanto se punha na consciência o peso do próprio sangue?



§ 12
Mas que lhes aconteceu? “Os investigadores esgotaram-se em investigar”.

Como, uma vez que diz o salmista:

Quem os verá?” Quer dizer que ninguém os via. Isso diziam eles, pensavam consigo mesmos que ninguém os via. Vê o que sucede à alma do malvado: afasta-se da luz da verdade, e como não vê a Deus, pensa que Deus também não a vê. Assim estes, apartando-se, cairam nas trevas, de sorte que não viam a Deus e diziam: Quem nos vê? Via-os igualmente aquele que eles crucificavam; mas eles, falhando, não viam o Filho, nem o Pai. Mas, se o crucificado os via, porque suportava ser preso por eles, ser morto? Por que razão, se ele os via, quis que seus planos vingassem contra ele? Por quê! Porque era homem em benefício do homem, era Deus oculto na humanidade e viera para dar exemplo de fortaleza aos que o desconheciam. Foi por isso que ele bem ciente de tudo, tudo suportava.



§ 13
8 Como continua o salmo? “O homem se acercará, e as profundezas do coração; e Deus será exaltado”.

Eles disseram: Quem nos verá? “Os investigadores se esgotaram em investigar” planos malvados. O homem se acercou destes planos, e suportou ser preso como homem. Pois, não podia ser preso se não fosse homem, ou ser visto se não fosse homem, ou ser ferido se não fosse homem, ou ser crucificado ou morrer se não fosse homem. Portanto, o homem se acercou de todos aqueles padecimentos, que em nada o atingiriam se não fosse homem. Mas se ele não fosse homem, o homem não seria libertado.

Acercou-se o homem, e as profundezas do coração”, isto é, o coração secreto, apresentando-se aos olhares humanos como homem, e conservando-se interiormente como Deus; escondendo a condição divina, na qual é igual ao Pai e manifestando a condição de escravo, na qual é menor do que o Pai. Ele afirmou ambas as coisas; mas difere a condição divina da condição de escravo. Declarou conforme a condição divina:

Eu e o Pai somos um(Jo 10,30).

E assegurou conforme a condição de escravo:

O Pai é maior do que eu(Jo 14,28).

Por que disse segundo a condição divina:

Eu e o Pai somos um? Porque sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”.

Por que disse segundo a condição de escravo:

O Pai é maior do que eu? Porque aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo(Fl 2,6.7).

O homem, pois, se acercou, e as profundezas do coração, e Deus foi exaltado. O homem é morto, e Deus é exaltado. Morreu devido à fraqueza humana; ressuscitou e subiu ao céu, devido ao poder divino (cf 11Cor 13,4).

O homem se acercará e as profundezas do coração”, o coração secreto, coração escondido, que não mostra o que sabe, não mostra o que é. Eles, julgando ser o todo aquilo que viam, matam o homem no profundo do coração, e Deus é exaltado no coração divino; pois é exaltado pelo poder de sua majestade. E para onde foi quando exaltado? Para lá, de onde não se apartou quando humilhado.



§ 14
O homem se acercará, e as profundezas do coração; e Deus será exaltado”.

Efetivamente, meus irmãos, agora dai atenção às profundezas do coração humano. De que homem? “Sião, minha mãe, dirá um homem; nasceu nela o homem e o próprio Altíssimo a fundou(Sl 86,5).

Nesta cidade nasceu um homem. O próprio Altíssimo a fundou, e nela se fez homem. Portanto, “o homem” se acercou, “e as profundezas do coração”.

Contempla o homem, nas profundezas do coração; vê quanto puderes, se puderes, e Deus nas profundezas do coração. O homem se acercou. E como ele era Deus (havia de sofrer porque queria, de apresentar um exemplo aos fracos, e nada faria aos que se encarniçavam contra ele, qual um Deus que sofresse, mas no homem, na carne), o que vem de conseqüência? “As feridas que eles infligem são como de flechas de crianças”2. Onde está sua crueldade? Onde aquela fúria de leão, do povo que rugia dizendo:

Crucifica-o, crucifica-o?” Onde as insídias dos que tendiam o arco? As feridas que eles infligiram não se tornaram “como as de flechas de crianças?” Sabeis que as crianças fazem setas para si de caniços. Como ferem, ou onde ferem? Que mãos, ou que dardo? Que armas ou que membros? “As feridas que eles infligem são como as de flechas de crianças”.



§ 15
9 “Enfraqueceram-se, recaindo sobre eles mesmos os ataques de suas línguas”.

Afiem suas línguas agora, quais espadas, obstinem-se em seus desígnios malignos. Com razão obstinaram-se contra si mesmos, porque “recaíram sobre eles mesmos os ataques de suas línguas”.

Era possível que isso prevalecesse contra Deus?” A iniqüidade mentiu a si mesma, diz o salmo” (Sl 26,12).

Recaíram sobre eles mesmos os ataques de suas línguas”.

Mas ressuscitou o Senhor, que fora morto. Os judeus passavam diante da cruz, ou ficavam parados e o contemplavam, conforme tanto tempo antes predissera o salmo:

Trans-passaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Estiveram a olhar-me e me examinaram(Sl 21,17.18).

Então meneavam a cabeça dizendo:

Se é Filho de Deus, desça da cruz(cf Mt 27,40-43).

De certa maneira experimentaram se era Filho de Deus, e pareceu-lhes ter descoberto que não era, porque apesar de provocarem-no não descia da cruz. Se descesse da cruz, seria Filho de Deus. Que te parece, pois não desceu da cruz, mas ressuscitou do sepulcro? Que conseguiram eles? Mesmo que o Senhor não tivesse ressucitado, de que lhes serviria, senão o mesmo que adiantou aos perseguidores dos mártires ainda não ressucitaram, e no entanto isso de nada lhes serviu; já celebramos os dias natalícios daqueles que ainda não ressuscitaram. Onde se acha o furor dos perseguidores? “As feridas que eles infligem são como as de flechas de crianças. Enfraqueceram-se, recaindo sobre eles mesmos os ataques de suas línguas”.

Aonde os levaram suas maquinações, nas quais se esgotaram, de tal sorte que mesmo depois que o Senhor estava morto e sepultado, eles colocaram guardas junto do sepulcro? Pois, disseram a Pilatos:

Aquele impostor”.

Era o nome que davam a nosso Senhor Jesus Cristo, e serve de alívio a seus servos quando são chamados impostores. De fato, eles disseram a Pilatos:

Lembramo-nos de que aquele impostor disse, quando ainda vivo: Depois de três dias ressurgirei! Ordena, pois, que o sepulcro seja guardado com segurança até o terceiro dia, para que os discípulos não venham roubá-lo e depois digam ao povo: Ressurgiu dos mortos! e a última impostura será pior do que a primeira. Pilatos respondeu: Tendes uma guarda; ide, guardai o sepulcro, como entendeis. E, saindo, eles puseram em segurança o sepulcro, selando a pedra e montando guarda(Mt 27,63-66).

Puseram soldados para guardarem o sepulcro. A terra tremeu; o Senhor ressuscitou. Aconteceram tais milagres em torno do sepulcro que os próprios soldados que tinham vindo para guardá-lo, se tornariam testemunhas, se quisessem anunciar a verdade; mas aquela avareza que fizera cativo o discípulo e companheiro de Cristo, apossou-se igualmente dos soldados, guardas do sepulcro. Disseram os chefes dos sacerdotes: Nós vos damos dinheiro.

Dizei que os seus discípulos vieram enquanto dormíeis, e o roubaram(Mt 28,12.13).

De fato, “os investigadores esgotaram-se em investigar”.

Que é que disseste, ó astúcia infeliz? A tal ponto te apartas da luz do ditame da piedade, e mergulhas nas profundezas da falácia que declaras: Dizei que, enquanto dormieis, vieram seus discípulos e o roubaram? Apresentas testemunhas que dormiam; em verdade, tu mesmo dormiste, ao te consumires em tais tramas. Se eles dormiam, que puderam ver? Se nada viram, como são testemunhas? Mas “os investigadores se esgotaram em investigar. Apartaram-se da luz de Deus, esgotaram-se no próprio efeito de seus planos. De fato, perderam as forças quando nada conseguiram do que tramaram. Por que foi assim? Porque “o homem se acercou, e as profundezas do coração; e Deus foi exaltado”.

Por esta razão, pos-teriormente, ao se revelar a ressurreição de Cristo, e ao descer o Espírito Santo que encheu de confinça certos discípulos intimidados, a tal ponto que ousaram, sem temor da morte, apregoar o que haviam visto, e tendo sido exaltado Deus, em sua majestade, ele que por causa de nossa fraqueza foi humildemente julgado; e logo que começaram as trombetas celestes a anunciar a vinda do juiz que primeiro viram ser julgado:

perturbaram-se todos os que os viam”.

Depois que Deus foi exaltado, como disse, e Cristo foi anunciado, alguns dos judeus viram que os outros judeus, malvados, se esgotaram em seus planos. Pois, esses verificavam que os primeiros, em nome do Senhor crucificado, que eles haviam matado com suas mãos, realizavam tantos milagres. Afastaram-se de corações dos judeus que permaneceram na impiedade; não lhes aprazia a dureza dos maus; procuraram a própria salvação, e disseram aos apóstolos:

Que devemos fazer”? (cf At 2,1-37).

Por conseguinte, “perturbaram-se todos os que os viam”, isto é, entendiam que recaíam sobre eles mesmos os ataques de suas línguas, compreendiam que todas as cogitações de seus planos maus falharam completamente. Estes se perturbaram. 1 Cf Aug, de consensu evang. III,13, 42. Cf Jo 19,14; Mc 15 ,25, Jo 2,25 2 Esta parte do v. 8 foi comentada acima, no com. s/sl LVI, nº 13.



§ 16
10 “E os homens foram tomados de temor”.

Não eram homens os que não foram tomados de temor.

E os homens foram tomados de temor”, isto é, todos usaram a inteligência para penetrar o sentido dos fatos. Por isso, os que não foram tomados de temor, antes devem ser chamados animais, ou feras cruéis e atrozes. Leão rapace e rugidor, aquele povo. Mas, efetivamente, todos os homens foram tomados de temor, a saber, os que não quiseram acreditar, os que tiveram pavor do juízo futuro.

E os homens foram tomados de temor, anunciaram as obras de Deus”.

O salmista dizia:

Do terror do inimigo livra a minha alma(Sl 63,2), “mas os homens foram tomados de temor”.

Eram libertados do terror do inimigo, mas se submetiam ao temor de Deus. Não temiam os que matam o corpo, mas aquele que tem poder para lançar corpo e alma na geena (cf Mt 10,28).

Os apóstolos anunciaram o Senhor. Mas, primeiro Pedro teve medo, teve medo do inimigo; sua alma ainda não fora libertada do inimigo. Interrogado pela criada como sendo dos discípulos do Senhor, negou-o três vezes (cf Mt 26,69).

O Senhor ressuscitou e fortificou a coluna. Pedro já prega sem temor e com temor; sem temor daqueles que matam o corpo, com temor daquele que tem poder de perder corpo e alma na geena de fogo.

E os homens foram tomados de temor, e anunciaram as obras de Deus”.

Com efeito, ao anunciarem estes apóstolos as obras de Deus, apresentaram-se os príncipes dos sacerdotes e os ameaçaram, dizendo que não pregassem no nome de Jesus. Mas eles responderam: Dizei-nos a quem é preciso obedecer antes, a Deus, ou aos homens? (cf At 5,27-29).

Como replicariam eles? Mais aos homens do que a Deus? Sem dúvida não responderiam senão: Antes a Deus. Os apóstolos, porém, sabiam o que Deus ordenava, e desprezaram os sacerdotes que os ameaçavam. Mas, como “os homens foram tomados de temor”, não tiveram medo dos homens, e “anunciaram as obras de Deus”.

Se um homem teme, não se atemorize. O homem há de temer aquele que criou o homem. Teme aquele que está acima dos homens e estes não te aterrarão. Teme a morte eterna, e não terás cuidados com a presente. Deseja aquele deleite incorruptível, e aquele repouso imaculado; e zombarás de quem te prometer esses dons temporais e mesmo o mundo inteiro. Ama, portanto, teme; ama o que Deus promete, teme suas ameaças e não te tornarás corrupto pelas promessas humanas, nem terás medo das ameaças de um homem.

E os homens foram tomados de temor, anunciaram as obras de Deus, e reconheceram seus feitos”.

Que significa:

Reconheceram seus feitos?” Aqueles, ó Senhor Jesus Cristo, que calavas, e por isso como ovelha eras levado ao matadouro, e não abrias a boca diante do tosquiador, e nós te considerávamos um homem sujeito ao castigo e à dor e que sabia suportar a fraqueza? Era porque escondias tua beleza, tu o mais belo dos filhos dos homens? (cf Sl 44,3).

Era por que parecias não ter beleza nem esplendor? (cf Is 53,2-7).

Suportavas na cruz os que te insultavam, dizendo: Se é Filho de Deus, desça da cruz (Mt 27,40).

Qual dos teus servos, talvez, conhecendo teu poder e te amando, não terá exclamado em seu coração! Oh! Se ele descesse então e confundisse todos os que o insultavam? Não, não havia de ser assim; ele devia morrer por causa dos mortais, e ressurgir por causa daqueles que haveriam de viver para sempre. Isto não entendiam aqueles que queriam vê-lo descer da cruz; ao invés, quando ele ressuscitou e glorificado subiu ao céu, entenderam as obras do Senhor.

Anunciaram as obras de Deus e reconheceram seus feitos”.



§ 17
11 “Alegrar-se-á o justo no Senhor”.

O justo não está mais triste. Tristes estavam os discípulos ao verem o Senhor crucificado; contristados, entristecidos eles se afastaram; pensavam que toda esperança estava perdida. Ele ressuscitou e encontrou tristes mesmo aqueles aos quais aparecia. Deixou impedidos os olhos dos dois discípulos que andavam pela estrada, para que não o reconhecessem. O Senhor encontrou-os gemendo e suspirando; e os reteve até expor-lhes as Escrituras, e por meio delas mostrasse que importava tudo sucedesse como de fato aconteceu. Demonstrou-lhes pelas Escrituras que no terceiro dia o Senhor devia ressuscitar. E como ressurgiria ao terceiro dia se descesse da cruz? Vós que agora estais tristes no caminho, se vísseis o Senhor descer da cruz quando os judeus o insultavam, como não vos exaltaríeis? Alegrar-vos-íeis por terem sido tapadas as bocas dos judeus. Esperai a realização do plano do médico. O fato de não descer, de querer ser morto, é preparação de um antídoto. Eis que ele já ressuscitou, já fala; ainda não é reconhecido, para depois o ser com alegria maior. Abriu-lhes depois os olhos, na fração do pão. Reconhecem-no, alegram-se, exclamam (cf Lc 24,16-46).

Alegrar-se-á o justo no Senhor”.

Foi também anunciado a um discípulo mais incrédulo: O Senhor apareceu, o Senhor ressuscitou. Ficou ele ainda triste e não acreditou. Declarou:

Se eu não puser a minha mão e não puser o meu dedo no lugar dos cravos, não acreditarei”.

O Senhor apresenta-lhe o corpo para que o toque; ele estende a mão, toca, exclama:

Meu Senhor e meu Deus! Alegrar-se-á o justo no Senhor”.

Aqueles justos, portanto, se alegraram no Senhor. Eles viram, tocaram e creram. Que acontece aos justos do presente, que não vêem, não tocam, não se alegram no Senhor? Mas, e aquela palavra do Senhor ao próprio Tomé:

Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram”? (cf Jo 20,25-29).

Por conseguinte, alegremo-nos todos no Senhor: todos nós, segundo a fé, sejamos um só justo, tenhamos todos num só corpo uma só Cabeça, e alegremo-nos no Senhor, não em nós; porque o bem que há em nós não provém de nós mesmos, mas foi ele quem o fez, o nosso criador. Ele mesmo é o nosso bem a nos alegrar. E ninguém se alegre em si mesmo, ninguém presuma, ninguém perca a esperança a respeito de si mesmo, ninguém o faça acerca de nenhum outro homem; antes deve levá-lo a associar-se a sua esperança, embora não possa dá-la.



§ 18
Alegrar-se-á o justo no Senhor e nele esperará, e serão louvados todos os de reto coração”.

Uma vez que o Senhor já ressuscitou, já subiu ao céu, já demonstrou haver outra vida, já manifestou que os desígnios escondidos nas profundezas de seu coração não foram vãos, que aquele sangue foi derramado para ser o preço dos remidos; uma vez que tudo isso já foi apregoado, tudo foi acreditado, debaixo de todos os céus, “alegrar-se-á o justo no Senhor e nele esperará e serão louvados todos os de reto coração”.

Quais são os retos de coração? Vamos, meus irmãos. Sempre o dizemos, e é bom que o saibais. Quais são os retos de coração? São aqueles que em qualquer sofrimento não o atribuem à falta de sabedoria, mas à providência de Deus para sua própria cura; não presumam de sua justiça, pensando ser injusto o que padecem, ou ser Deus injusto uma vez que não são muitos os que pecam mais que eles a sofrerem. Vede, irmãos. Muitas vezes repetimos essas palavras. Sentes alguma dor, no corpo, ou por prejuízo no patrimônio familiar, ou pela perda de algum ente querido. Não consideres os que sabes serem piores do que tu (pois talvez não ouses afirmar-te justo, mas conheces alguns piores do que tu), e progridem, não são castigados. Então, te desagrada o plano de Deus e dizes: Olha! sou pecador e por isso sou punido; por que, então, não é castigado aquele homem, cujos crimes conheço? Por maiores que sejam os pecados que cometi, acaso fiz tantos quanto ele? Teu coração está distorcido.

Como é bom o Deus de Israel, mas para os retos de coração!(cf Sl 72,1-3).

Teus pés, contudo, resvalam, porque invejas os pecadores, vendo a paz de que gozam. Não tenhas cuidado acerca disso. Sabe o que fazer aquele que tem conhecimento da ferida. Aquele homem não é operado. Mas, se está perdido? E se tu és operado, porque ainda tens curas? Suporta, pois, tudo o que sofres, com um coração reto. Deus sabe o que te dar, e o que subtrair. Seus dons valham para consolo, não para corrupção; e aquilo que te subtrai valha para aumentares a paciência e não para blasfemares. Se, porém blasfemas, e Deus não te apraz, mas te comprazes em ti mesmo, tens o coração perverso e distorcido. Ainda pior, queres modelar o coração de Deus conforme o teu, de sorte que ele faça o que tu queres, enquanto tu é que deves fazer o que ele quer. Como é, então? Queres distorcer o coração de Deus, sempre reto, segundo a maldade de teu coração? Quanto melhor seria corrigir teu coração segundo a retidão de Deus! Não foi isto que te ensinou o teu Senhor, de cuja paixão acabamos de falar? Não era tua fraqueza que ele carregava, ao dizer:

A minha alma está triste até a morte?” Não te representava, ao rezar:

Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice?” O coração do Pai e do Filho são dois e diferentes; mas na condição de escravo carregou teu coração, para ensinar com seu exemplo. Teu coração, como se já fosse outro, encontrou a tribulação, querendo que passasse o que já estava iminente; mas Deus não quis. Deus não se conforma a teu coração; tu é que deves te conformar ao coração de Deus. Ouve suas palavras:

Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, Pai(cf Mt 26,38-39).



§ 19
E serão louvados todos os de reto coração”.

Como prossegue o salmista? Se “serão louvados todos os de reto coração”, serão condenados os de coração perverso. Agora te são propostas duas posições; escolhe enquanto é tempo. Se fores de coração reto, estarás à direita e serás louvado. De que modo? “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo(Mt 25,34).

Se fores de coração perverso, se zombares de Deus, se ridicularizares sua providênca, se disseres interiormente: Com efeito, Deus não cuida dos acontecimentos humanos; se ele cuidasse, aquele ladrão não teria tanto e eu, inocente, não padeceria necessidade, teu coração se perverteu. Virá o dia do juízo; aparecerá a razão por que Deus faz todas estas coisas. Tu, que não quiseste corrigir teu coração segundo a retidão de Deus e te preparares para estar à direita, onde “serão lou-vados todos os de reto coração”, estarás à esquerda, onde ouvirás então:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

Porventura então será ainda tempo de corrigir o coração? Corrigi-o, agora, irmãos; corrigi agora. Quem o impede? O salmo se canta; lê-se o evangelho, soa a voz do leitor, a voz do pregador. O Senhor é paciente. Pecas e ele perdoa; pecas outra vez, Deus ainda poupa e tu ainda aumentas os pecados. Até quando Deus será paciente? Perceberás que Deus é também justo. Ficamos atemorizados, pois tememos; ensinai-nos a não temer e não ficaremos aterrados. É melhor que Deus nos ensine a temer do que alguém a não temer.

Os homens foram tomados de temor; e anunciaram as obras de Deus”.

Deus nos conte entre aqueles que temeram e anunciaram. Nós vos anunciamos, irmãos, porque tememos. Vimos vosso empenho em ouvir a palava, em exigir o cumprimento de vossos votos, vemos vosso afeto. A terra está bem irrigada de chuvas; brote trigo, não espinhos; prepare-se o celeiro para o trigo e o fogo para os espinhos. Sabes o que fazer de teu campo, e Deus não sabe o que fazer de seu servo? A chuva que cai na terra fértil é suave; e a que cai num campo cheio de espinhos é suave. A chuva acusa o campo que produz espinhos? Não será aquela chuva uma testemunha no juízo de Deus, e não dirá: Eu fui suave para todos? Tu, portanto, vê o que hás de produzir, e dá atenção ao que te é preparado. Produzes trigo: espera o celeiro. Produzes espinhos: espera o fogo. Mas ainda não chegou o tempo do celeiro, ou o tempo do fogo; por enquanto estão sendo preparados e não assustam. Em nome de Cristo, vivemos nós que falamos, e viveis vós a quem nos dirigimos; não seria a ocasião de planejar a correção e mudança de uma vida má em uma vida boa? Não seria tempo? Se queres, não se realiza hoje? Se queres, não pode ser agora? Que é preciso comprar para realizá-lo? Que bazar hás de procurar? É preciso navegares até as Índias? Que navios terás de preparar? Eis, enquanto falo, muda o coração; e já se fez o que tão freqüentemente e por tanto tempo clamamos para que se faça, ou se está gerando uma pena eterna, se não se fizer.