SALMO 𝟞𝟚

Somente em Deus espera silenciosa a minha alma; dele vem a minha salvação.

Só ele é a minha rocha e a minha salvação; é ele a minha fortaleza; não serei grandemente abalado.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 62


§ 62:1  Somente em Deus espera silenciosa a minha alma; dele vem a minha salvação.

§ 62:2  Só ele é a minha rocha e a minha salvação; é ele a minha fortaleza; não serei grandemente abalado.

§ 62:3  Até quando acometereis um homem, todos vós, para o derrubardes, como a um muro pendido, uma cerca prestes a cair?

§ 62:4  Eles somente consultam como derrubá-lo da sua alta posição; deleitam-se em mentiras; com a boca bendizem, mas no íntimo maldizem.

§ 62:5  Ơ Ó minha alma, espera silenciosa somente em Deus, porque dele vem a minha esperança.

§ 62:6  Só ele é a minha rocha e a minha salvação; é a minha fortaleza; não serei abalado.

§ 62:7  Em Deus está a minha salvação e a minha glória; Deus é o meu forte rochedo e o meu refúgio.

§ 62:8  Ƈ Confiai nele, ó povo, em todo o tempo; derramai perante ele o vosso coração; Deus é o nosso refúgio.

§ 62:9  Ƈ Certamente que os filhos de Adão são vaidade, e os filhos dos homens são desilusão; postos na balança, subiriam; todos juntos são mais leves do que um sopro.

§ 62:10  Ɲ Não confieis na opressão, nem vos vanglorieis na rapina; se as vossas riquezas aumentarem, não ponhais nelas o coração.

§ 62:11  Uma vez falou Deus, duas vezes tenho ouvido isto: que o poder pertence a Deus.

§ 62:12  A ti também, Senhor, pertence a benignidade; pois retribuis a cada um segundo a sua obra.


O SALMO 62



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Em consideração aos que ainda talvez ignorem muitas coisas a respeito do nome de Cristo, pois ele, que por todos deu o seu sangue, reúne gente de todas as partes, convém não me estender muito, a fim de que ouçam de boa vontade os que as conhecem e aprendam os que não sabem. Estes salmos que cantamos foram pronunciados e escritos, sob inspiração do Espírito de Deus, antes que nosso Senhor Jesus Cristo nascesse da virgem Maria. Davi foi rei dos judeus; este povo adorava um só Deus, que fez o céu e a terra, o mar e todas as coisas que eles contêm, visíveis ou invisíveis. Os demais povos, ou adoravam ídolos fabricados por suas mãos, ou qualquer criatura de Deus e não o próprio Criador; isto é, adoravam o sol, a lua, as estrelas, o mar, os montes ou as árvores. Tudo isso foi feito por Deus. E ele quer ser louvado por causa delas e não que sejam adoradas em seu lugar. Em verdade, o rei Davi pertencia ao povo judaico e de sua estirpe nasceu nosso Senhor Jesus Cristo, da virgem Maria (cf Rm 1,3).

A virgem Maria que gerou o Cristo era desta estirpe (cf Lc 2,7).

Davi compôs estes salmos, que profetizavam a vinda de Cristo após muitos anos. E os profetas daquele povo anunciaram, apesar de viverem antes de nosso Senhor Jesus Cristo nascer de Maria virgem, tudo o que haveria de acontecer em nossos dias. Nós agora lemos e vemos estas coisas, e muito nos alegramos porque vemos o objeto de nossa esperança predito por santos que não as viam realizadas, mas as contemplavam em espírito a se realizar no futuro. E isto lemos e ouvimos ao ser lido; e explicamos. Conforme foi descrito nas Escrituras, vemos cumprir-se por toda a terra. Quem não se alegra com isto? Quem não há de esperar as realizações que ainda não se verificaram, diante de tantas coisas que já se cumpriram? Agora, pois, irmãos, vedes que o mundo inteiro, a terra toda, todos os povos, todas as regiões acorrem para o nome de Cristo e crêem em Cristo. Certamente, o vedes; em toda parte são destruídas as futilidades dos pagãos; vós o vedes; é evidente. Porventura não se cumpre diante de vossos olhos o que lemos no Livro? Todos os eventos que se dão perante vossos olhos foram escritos há um número imenso de anos pelos profetas que agora lemos, enquanto nós os vemos já realizados. Mas, estão escritos também os acontecimentos que ainda não se deram, isto é, que nosso Senhor Jesus Cristo há de vir a julgar, ele que da primeira vez veio para ser julgado, veio primeiro humildemente, mas depois virá de modo sublime, veio para nos dar exemplo de paciência, mas depois há de vir para julgar a todos conforme os méritos de cada um, sejam bons ou maus; por conseguinte, como ainda não veio o que esperamos, a saber, que Cristo virá como juiz dos vivos e dos mortos, tudo isso devemos crer. Este pouco que resta para vir, creiamos que virá, quando já vemos tantos fatos que então eram futuros, agora se realizarem. É loucura não acreditar no pouco que ainda falta, ao se verificar que tanto já se cumpriu e que não existia quando era predito.



§ 2
Este salmo é recitado, referindo-se a nosso Senhor Jesus Cristo, Cabeça e membros. Aquele que nasceu de Maria, sofreu, foi sepultado, ressuscitou, subiu ao céu, e agora está sentado à direita do Pai e intercede por nós, é nossa Cabeça. Se ele é a Cabeça, nós somos os membros. Toda a sua Igreja espalhada por toda parte é seu corpo, enquanto ele é a Cabeça. Mas, não somente os fiéis de hoje; igualmente os que existiram antes de nós, os que virão depois de nós até o fim do mundo, todos pertencem a seu corpo; deste corpo é Cabeça aquele que subiu ao céu (cf Cl 1,18).

Por conseguinte, já sabemos que há uma Cabeça e um corpo; ele é a Cabeça, nós somos o corpo. Ao ouvirmos sua voz, devemos ouvi-la como provinda da Cabeça e do corpo. Tudo o que ele padeceu, nele também nós padecemos, pois também o que nós sofremos, ele sofre em nós. Se a cabeça sofre algo, pode dizer a mão que não sofre? Ou se os pés sofrem algo, diz a cabeça que não sofre? Quando um de nossos membros sofre alguma coisa, todos os membros acodem para socorrer o membro sofredor. Se, portanto, quando ele sofreu, nós sofremos nele, e ele já subiu ao céu e está sentado à direita do Pai, tudo o que sofre sua Igreja nas tribulações deste século, nas tentações, nas necessidades, nas angústias (pois ela deve assim aprender, e ser depurada pelo fogo como o ouro), ele é que sofre. Provamos que nós sofremos nele, pela palavra do Apóstolo:

Se morrestes com Cristo, por que vos sujeitais, como se ainda vivêsseis no mundo, a proibições? (Cl 2,20).

E ainda diz ele:

Nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destruído este velho corpo de pecado(Rm 6,6).

Se, portanto, com ele morremos, com ele também ressuscitaremos. Pois exorta ainda o Apóstolo:

Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto(Cl 3,1).

Se, portanto, com ele morremos e com ele ressuscitamos, também ele morre conosco e conosco ressurge. Ele é a unidade da Cabeça e do corpo. Com justeza, sua voz é também a nossa, e nossa voz é a dele. Ouçamos, por conseguinte, o salmo, e entendamos que nele Cristo é quem fala.



§ 3
1 O salmo tem este título:

Salmo de Davi, ao se achar no deserto da Iduméia”.

Pelo nome de Iduméia se entende este mundo. O povo idumeu era nômade e idólatra. Não é em bom sentido que aqui se fala em Iduméia. Em mau setindo refere-se à vida presente, onde sofremos tantos trabalhos, e estamos sujeitos a tantas necessidades. Aqui é um deserto, onde se passa muita sede, e logo haveis de ouvir a voz de alguém que sofre sede no deserto. Se reconhecemos que estamos sedentos, também reconheçamos que bebemos. Quem aqui, neste século, tem sede, no futuro será desalterado, conforme a palavra do Senhor:

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).

Em conseqüência disso, neste mundo não devemos amar a saciedade. Aqui é preciso ter sede; lá seremos desalterados. Agora, porém, a fim de não desfalecermos neste deserto, Deus destila sobre nós o orvalho de sua palavra, e não nos deixa inteiramente áridos, de tal sorte que não voltemos ao estado inicial, mas tenhamos sede para beber. E para isto, destila-nos sua graça; no entanto, continuamos a ter sede. E o que diz a Deus a nossa alma?



§ 4
2 “Deus, meu Deus, desde o raiar da aurora, estou de vigília a procurar-te”.

Que quer dizer estar vigilante? Quer dizer não dormir. Que é dormir? Existe um sono da alma e um sono do corpo. Todos nós devemos ter o sono do corpo, porque se não tivermos sono desfalecemos e o corpo se enfraquece. Nosso corpo frágil não suporta por longo tempo o peso do espírito desperto e empenhado na ação; se o espírtio se empenhar longamente na ação, o corpo frágil e terreno não agüenta, não suporta esta ação contínua, desfalece e sucumbe. Por isso Deus deu ao corpo o sono, reparador das forças corporais, a fim de que seja capaz de suportar o espírito desperto. No entanto, devemos nos precaver de que durma a alma; o sono desta é um mal. É um bem o sono corporal que restaura a saúde corporal. O sono da alma, porém, consiste em se esquecer de seu Deus. Toda alma que se esquece de seu Deus dorme. Por isso o Apóstolo censura a alguns que, esquecidos de seu Deus, como que em sonho, entregam-se ao delírio do culto idolátrico. Os que adoram os ídolos são como os que sonham; quando acordam, entendem quem os criou e não adoram o que eles mesmos fabricaram. Exorta o Apóstolo a alguns:

Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará(Ef 5,14).

Acaso o Apóstolo despertava a alguém entregue a um sono corporal? Ao contrário, acordava a alma adormecida, e a despertava para ser iluminada por Cristo. É de acordo com esta espécie de vigília que reza o salmista:

Deus, meu Deus, desde o raiar da aurora, estou de vigília a procurar-te”.

Não estarias desperto, se não tivesse raiado tua luz, para te acordar. Pois, Cristo ilumina as almas e as faz vigilantes; se ele subtrai a sua luz, elas adormecem. Por esta razão, pe-de-lhe outro salmo:

Ilumina os meus olhos, a fim de que não adormeça em sono mortal(Sl 12,4).

Pode acontecer também que elas se afastem de Cristo e adormeçam; apesar de estar presente a luz, elas não podem vê-la porque dormem. Assim sucede ao corpo adormecido durante o dia; o sol já nasceu, o dia vai adiantado, mas ele está na noite, porque não está acordado para ver que o dia já raiou. De igual modo, Cristo está presente para alguns, porque a verdade já foi anunciada, mas a alma está mergulhada no sono. Por isso, vós, se estais despertos, dizei-lhe cada dia:

Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará”.

Vossa vida, então, vossos costumes devem estar despertos para Cristo, a fim de que os outros, os pagãos mergulhados no sono, acordem ao som de vossas vigílias, sa-cudam o torpor, e comecem convosco a repetir:

Deus, meu Deus, desde o raiar da aurora, estou de vigília a procurar-te”.



§ 5
De ti a minha alma está sequiosa”.

Aqui o salmista se refere ao deserto da Iduméia. Vede como tem sede o salmista, neste lugar; mas também o bem que aí se encontra:

De ti está sequiosa”.

Existem os que têm sede, mas não de Deus. Todo aquele que procura algo para si mesmo, sente o ardor do desejo; este desejo é a sede da alma. E observai quantos desejos existem nos corações humanos: um deseja ouro, outro deseja prata, outro deseja as posses, outro heranças, outros muito dinheiro, outro numerosos rebanhos, outro uma grande casa, outro uma esposa, outro honras, outro filhos. Notais como existem tais desejos nos corações dos homens. Os homens todos ardem de desejo; e mal se encontra um que diga:

De ti a minha alma está sequiosa”.

Os homens no mundo têm sede, e não compreendem que estão no desero da Iduméia, onde sua alma deve estar sequiosa de Deus. Digamos, pois:

De ti a minha alma está sequiosa”.

Digamos todos, porque na concórdia de Cristo todos nós somos uma só alma. E esta alma tenha sede, na Iduméia.



§ 6
De ti a minha alma está sequiosa e de quantas maneiras também a minha carne”.

Não basta que minha alma esteja sequiosa; deve ter sede também a minha carne. Mas, pondera. Se a alma está sequiosa de Deus, como também a carne estará? Quando a carne tem sede, tem sede de água; quando é a alma que está sequiosa, tem sede da fonte da sabedoria. Nesta fonte nossas almas se inebriam, conforme diz outro salmo:

Inebriar-se-ão na abundância de tua casa. Na torrente de tuas delícias lhes dás de beber(Sl 35,9).

Por conseguinte, devemos ter sede da sabedoria, ter sede da justiça. Delas não nos saciaremos, não nos fartaremos, a não ser quando terminar a vida presente, e alcançarmos o objeto das promessas de Deus. Pois Deus prometeu a igualdade com os anjos (cf Lc 20,35).

Agora os anjos não têm sede como nós, não têm fome como nós, mas se saciam da verdade, da luz, da imortal sabedoria. Por isso, são felizes. Tão grande é a bem-aventurança que possuem que naquela cidade celeste, Jerusalém, da qual estamos como exilados, eles nos esperam, a nós peregrinos, compadecem-se de nós, e por ordem do Senhor nos auxiliam a voltar um dia àquela pátria comum, e lá em companhia deles sermos saciados na fonte da verdade e da eternidade do Senhor. Agora, portanto, nossa alma seja sequiosa; mas como também nossa carne está sedenta e de muitas maneiras? Diz o salmo:

E de quantas maneiras também a minha carne”.

A ressurreição foi prometida também a nossa carne. Como foi prometida a nossa alma a bem-aventurança, também a nossa carne foi prometida a ressurreição. Tal ressurreição nos é prometida; ouvi, aprendei e retende na memória qual a esperança dos cristãos, por que motivo somos cristãos. Não somos cristãos para ambicionarmos a felicidade terrena, que muitas vezes têm igualmente os ladrões e criminosos. Nós, cristãos, somos destinados a outra felicidade, que receberemos quando houver passado inteiramente a vida neste mundo. Portanto, foi-nos prometida a ressurreição da carne; e tal ressurreição da carne nos é prometida que esta mesma carne que agora temos há de ressurgir no fim. Este fato não vos pareça incrível. Se Deus nos criou quando não existíamos, será grande coisa restaurar-nos no que fomos? Por isso, não vos pareça incrível, pelo fato de notardes que os mortos entram em decomposição, e se tornam cinzas e pó. Ou se algum morto foi incinerado, ou for devorado por cães, julgais que não haverá de ressuscitar? Todos os corpos que forem dilacerados e se desfizerem em pó, continuam íntegros para Deus. Voltam aos elementos da natureza, de onde foram tirados, ao serem criados. Não os vemos; contudo, sabe Deus de onde há de retirá-los, porque antes de existirmos, sabia de onde nos tirar. Por conseguinte, tal ressurreição da carne nos é prometida: embora seja a mesma carne que agora temos que há de ressuscitar, contudo não estará sujeita à corrupção como agora. Agora, devido à corrupção e fragilidade, se não comermos, desfalecemos e temos fome; se não bebermos, desfalecemos e temos sede; se ficarmos longamente despertos, desfalecemos e dormimos; se dormirmos por muito tempo, desfalecemos e por isso ficamos acordados; se comermos e bebermos demais, embora comamos e bebamos para nos refazermos, o excesso torna-se prejudicial; se ficamos de pé por mais tempo cansamo-nos e nos assentamos; e se ficarmos muito tempo sentados, também ficamos fatigados e nos erguemos. Daí se conclui que nossa carne não permanece em estado algum: a infância logo se transforma em meninice; procuras a infância e já não existe, porque a meninince tomou seu lugar; por sua vez, a meninice se muda em adolescência; procuras a meninice e não a vês; o adolescente se fez jovem; buscas o adolescente e já não existe; o jovem se transforma em velho; procuras o jovem e não o achas; e o velho morre; procuras o velho, e não o encontras. Nossas idades não duram. Por toda parte fadiga, cansaço, corruptibilidade. Atendendo a que esperança de ressurreição nos leva a promessa de Deus, no meio destas nossas múltiplas falhas, ficamos sedentos da incorrupção, e deste modo multíplice se torna nossa sede de Deus. Nesta Iduméia, neste deserto tem nossa carne tanta sede quantos são os trabalhos: tantas vezes tem sede daquela incorrupção sem cansaços quantas são as fadigas que sente agora.



§ 7
Embora, meus irmãos, a carne dos bons cristãos e fiéis, mesmo neste mundo esteja sequiosa de Deus, se esta mesma carne precisa de pão, se necessita de água, de vinho, de dinheiro, de um jumento, deve pedir a Deus, não aos demônios, aos ídolos, a não sei que potentado deste mundo. Existem os que ao sofrerem fome neste mundo, abandonam a Deus, e rogam a Mercúrio, ou rogam a Júpiter, ou ao denominado Celeste, ou a outros demônios semelhantes a este que lhes dêem pão. A carne deles não está sequiosa de Deus. Os sedentos de Deus, em toda parte devem ter sede, tanto na alma como no corpo, porque Deus dá à alma seu pão, isto é, a palavra da verdade, e ao corpo Deus concede o necessário, porque Deus criou a alma e o corpo. Rogas aos demônios em favor de tua carne; então foi Deus quem fez a alma, e os demônios fizeram tua carne? Quem criou a alma, criou também o corpo; e o Criador de ambas, a ambas alimenta. Nossas duas partes estejam sequiosas de Deus, e devido à múltipla fadiga sejam simplesmente saciadas.



§ 8
3 Onde é que nossa alma está sequiosa e também de muitas maneiras a nossa carne, não de qualquer um, mas de ti, ó Senhor, nosso Deus? Onde tem sede? “Em terra deserta, ínvia e sem água”.

Referimo-nos a este mundo, que se identifica com a Iduméia, ou antes com o deserto da Iduméia, do qual o salmo recebeu o título.

Em terra deserta”.

Não basta ser “deserta”, desabitada; além disso é “ínvia e sem água”.

Oxalá tivesse o deserto ao menos algum caminho! Oxalá um homem ali soubesse por onde sair! Não encontra para seu alívio estradas pois o deserto delas carece. Por conseguinte ele fica errando por ali. Se ao menos tivesse água para se refazer, uma vez que não consegue sair! Deserto péssimo, horrível, temível! E no entanto, Deus se compadeceu de nós, abriu-nos um caminho no deserto, o próprio Jesus Cristo, nosso Senhor (cf Jo 14,6); e deu-nos um consolo no deserto, enviando-nos os pregadores de sua palavra; e deu-nos água no deserto, enchendo do Espírito Santo os seus pregadores, a fim de que neles se tornasse uma fonte de água que jorra para a vida eterna (cf Jo 4,14).

Mas eis que aqui temos tudo; todavia não provém do deserto. Por este motivo, o salmo em primeiro lugar relembrou as propriedades do deserto, de sorte que ao ouvires em que más condições te encontravas, se pudesses aqui ter consolos, companheiros, estradas ou água, não os atribuísses ao deserto, mas àquele que se dignou te visitar no deserto.



§ 9
Apresentei-me diante de ti no santuário para contemplar teu poder e tua glória”.

Primeiro minha alma esteve sequiosa de ti no deserto, e de muitas maneiras também a minha carne, numa terra ínvia e sem água e depois “apresentei-me diante de ti no santuário para contemplar teu poder e tua glória”.

A não ser que antes tenha sede neste deserto, isto é, nas más condições em que se acha, jamais alguém alcançará o bem, que é Deus. Mas, diz o salmo:

Apresentar-me-ei a ti, no santuário”.

Já é grande consolo estar no santuário. O que é: Apresentar-me-ei a ti? Para me veres; tu me viste para que eu te visse.

Apresentei-me a ti para contemplar”.

Não disse: Apresentar-me-ei a ti, para veres, mas:

Apresentar-me-ei a ti para contemplar teu poder e tua glória”.

Daí vem a palavra do Apóstolo:

Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus(Gl 4,9).

Primeiro, pois aparecestes a Deus, para que Deus vos possa aparecer.

Para contemplar teu poder e tua glória”.

Efetivamente, neste deserto, isto é, neste ermo, se do deserto como tal quiser o homem exigir o que lhe é salutar, jamais verá o poder do Senhor e a glória do Senhor, mas ficará ali para morrer de sede, sem encontrar caminho, nem consolo, nem água que o faça suportar o deserto. Ao se erguer, porém, para Deus, dizendo-lhe com todas as forças:

De ti a minha alma está sequiosa e de quantas maneiras também a minha carne”, sem talvez pedir o necessário à manutenção da carne a outros que não seja Deus, ou desejando a ressurreição da carne prometida por Deus; ao se erguer nestas condições, encontrará não pequenas consolações.



§ 10
Eis, irmãos, como nossa carne, enquanto é mortal, frágil, e antes da ressurreição final encontra alívio nos alimentos de que vivemos: pão, água, frutas, vinho, óleo, apesar de ainda não ter recebido aquela perfeita incolu-midade, em que não há angústia, nem indigência. Se nos faltarem aqueles alívios e subsídios todos, não subsistimos. Assim também nossa alma, enquanto na terra se acha unida a esta carne, no meio das tentações e perigos deste mundo, ainda é fraca, tem o socorro da palavra, o auxílio da oração e do diálogo. Isto é para nossa alma como aquilo é para nossa carne. Ao ressurgir, porém, a nossa carne, terá uma espécie de lugar e de estado de incorrupção de tal maneira que já não precisaremos destes alívios. Igualmente nossa alma terá como seu alimento o próprio Verbo de Deus, pelo qual tudo foi feito (cf Jo 1,3).

Demos, contudo, graças a Deus, que agora neste deserto não nos abandona, seja dando-nos o necessário à carne, seja concedendo-nos o necessário à alma. Quando ele nos ensina, através de algumas necessidades, quer que o amemos mais; não aconteça que nos arruinemos devido à saciedade, e dele nos esqueçamos. Por vezes, subtrai-nos coisas necessárias e nos oprime para sabermos que ele é Pai e Senhor e não somente acaricia, mas também castiga. Pois, ele nos prepara uma herança incorruptível e grande. Se cogitas deixar a teu filho um tonel ou uma adega, ou outra coisa que tenhas em tua casa, para que ele não perca esses objetos, tu o educas e corriges com açoites, para ensinar-lhe a não perder nada do que é teu, que, no entanto, ele há de deixar um dia aqui, como tu. Não queres, então, que nosso Pai nos instrua, mesmo com os flagelos das necessidades e tribulações, se nos há de dar tal herança, que não é transitória? Deus se nos dá como herança a ele mesmo, a fim de que o possuamos e sejamos sua posse eternamente.



§ 11
Apresentemo-nos, portanto, diante de Deus no santuário, para que ele se apresente a nós; apresentemo-nos a ele com santo desejo, a fim de que ele nos apareça com o poder e a glória do Filho de Deus. A muitos ele não apareceu; estejam no santuário e lhes aparecerá também. Pois, muitos pensam que ele era apenas homem, porque se prega que nasceu como homem, foi crucificado e morreu, andou pela terra, comeu e bebeu, e praticou atos humanos. Pensam que foi igual aos demais homens. Acabastes de ouvir da leitura do evangelho como ele relembrou sua majestade:

Eu e o Pai somos um(Jo 10,30).

Tão grande majestade, tal igualdade com o Pai e desceu até a carne, por causa de nossa fraqueza! Eis como fomos amados, antes de amarmos a Deus! Se antes que amássemos a Deus, fomos tão amados por ele que fez seu Filho igual a si tornar-se homem por nossa causa, que nos reserva agora que já o amamos? De fato, muitos pensam que é coisa sem importância, a um ponto que nem sei, ter aparecido na terra o Filho de Deus. Não estando eles no santuário, não lhes aparecem seu poder e sua glória. Quer dizer, como ainda não têm o coração santificado para entenderem a eminência de seu poder e darem graças a Deus por ter o Filho de tanta grandeza, por causa deles vindo a terra, ter nascido e padecido; por isso, não podem ver sua glória e seu poder.



§ 12
4 “Porque mais preciosa que a vida é tua misericórdia”.

Há muitas espécies de vidas humanas, mas Deus promete uma só vida; e não nô-la dá por causa de nossos méritos, mas devido a sua misericórdia. Que fizemos de bom para merecê-la? Que atos bons foram precedentes, para que Deus nos desse a sua graça? Por acaso encontrou atos justos para coroar, e não delitos a perdoar? Com efeito, se quisesse punir os delitos que perdoou, não seria injusto. Que há de mais justo do que castigar o pecador? Sendo justo punir o pecador, compete a sua misericórdia não castigar, mas justificar o pecador, e do pecador fazer um justo, e do ímpio fazer um piedoso. Por conseguinte, “mais preciosa que a vida é tua misericórdia”.

Que vida? A que os homens haviam escolhido para si. Um escolhe a vida de negócios, outro a de trabalhos no campo, outro a de empréstimos, outro a da milícia. Um esta, outro aquela. Diversas são as vidas, porém “mais preciosa que” as vidas que escolhemos “é a tua misericórdia”.

É preferível o que dás aos que se corrigem do que aquilo que os perversos escolhem. Dás uma só vida, superior a todas as espécies de vida que temos, as que podemos escolher neste mundo.

Porque mais preciosa que a vida é tua misericórdia. Meus lábios entoarão os teus louvores”.

Meus lábios não entoariam teus louvores se não precedesse a tua misericórdia. Teu dom faz-me louvar-te, em teu louvor por tua misericórdia. Não poderia louvar a Deus, se ele não me fizesse capaz de louvá-lo.

Porque mais preciosa que a vida é tua misericórdia. Meus lábios entoarão os teus louvores”.



§ 13
5 “Assim te bendirei em minha vida, com as mãos erguidas em honra de teu nome. Assim te bendirei em minha vida”.

Já tenho a vida que me deste e não aquela espécie de vida que eu escolhi, no estilo do mundo com os demais homens, dentre as muitas variedades, mas aquela vida que me deste por tua misericórdia, a fim de que te louvasse.

Assim te bendirei em minha vida”.

Que quer dizer este:

Assim?” Que eu atribua a tua misericórdia esta vida, durante a qual te louvo; e não a meus méritos.

Com as mãos erguidas em honra de teu nome”.

Levanta, pois, as mãos para a oração. Nosso Senhor ergueu as mãos na cruz em nosso favor, e por nós estendeu os braços. Por conseguinte, suas mãos se abriram na cruz. Abramos as nossas às boas obras, porque sua cruz nos ofereceu sua misericórdia. Ele ergueu as mãos e ofereceu por nós o sacrifício de si mesmo a Deus. Por tal sacrifício foram apagados todos os nossos pecados. Ergamos também nós as mãos para Deus em prece. Não nos envergonharemos de erguer as mãos para Deus, se as empregarmos em boas obras. Que faz aquele que ergue as mãos? Onde se acha o preceito de orarmos a Deus com as mãos erguidas? Ordena o Apóstolo:

Erguendo mãos santas, sem ira e sem animosidade(1 Tm 2,8).

Ao ergueres as mãos para Deus, venham à tua memória tuas obras. Porque ao ergures as mãos a fim de obteres o que queres, cuida de empregá-las em boas obras, para não teres vergonha de as ergueres para Deus.

Com as mãos erguidas em honra de teu nome”.

Elevamos estas nossas preces na Iduméia, neste deserto, em terra ínvia e sem água; aí Cristo é o caminho (cf Jo 14,6); mas não caminho desta terra.

Com as mãos erguidas em honra de teu nome”.



§ 14
6 E que direi, com as mãos erguidas em honra de teu nome? Que pedirei? Vamos, irmãos. Ao erguerdes as mãos, procurai saber o que pedir, pois é ao Onipotente que pedis. Pedi coisa importante; não formuleis pedidos como os que ainda não crêem. Vedes quais os bens concedidos aos maus também. Vais pedir dinheiro a teu Deus? Ele não o dá aos malvados que nele não acreditam? Que grande coisa é esta que vais pedir, se é o que ele dá igualmente aos maus? Não te cause desprazer que sejam tão insignificantes as coisas que Deus dá também aos maus são dignas deles. Não te pareçam grandes coisas esses bens que podem ser doados também a eles. Pertencem a Deus, de fato, todos os dons terrenos; mas considerai que os dons feitos igualmente aos maus não devem ser tidos em grande conta. Outros são os que Deus nos reserva. Ponderemos os dons feitos aos maus, e daí tiremos a conclusão sobre o que reserva aos bons. Observai o que dá aos maus: dá-lhes esta luz, percebida por bons e maus; dá-lhes a chuva que desce sobre a terra e quantos bens ela faz nascer! Estas dádivas são prestadas aos maus e aos bons, conforme declara o evangelho:

Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos(Mt 5,45).

Esses dons que fazem brotar a chuva ou o sol, devemos pedi-los a nosso Senhor, pois são necessários; mas não são os únicos indispensáveis, esses concedidos aos bons e aos maus. Que havemos, pois, de pedir, ao erguermos as mãos? O salmo o exprimiu, à medida do possível. Por que eu disse: à medida do possível? À medida do possível a uma boca humana falar a ouvidos humanos. Essas coisas foram proferidas por boca humana, empregando certas comparações, para que pudessem entender todos os fracos, todos os pequenos. O que disse? O que pediu? “Com as mãos erguidas, em honra de teu nome”.

E o que há de receber? “Como de manjar gorduroso e suculento há de fartar-se a minha alma”.

Pensais, meus irmãos, que esta alma desejou uma carne gordurosa? Não desejou como um dom valioso carneiros gordos, que lhe fossem mortos porcos bem gordos; ou ir a alguma hospedaria onde encontrasse manjares suculentos, para se fartar. Se assim acreditarmos, merecemos ouvir tais coisas. Por conseguinte, devemos entender que se trata de algo de espiritual. Nossa alma busca outra qualidade de gordura. Existe certa saciedade numa grande sabedoria. As almas carentes desta sabedoria definham; e podem a tal ponto serem dela desprovidas que logo abandonem todas as boas obras. Por que logo abandonam todas as boas obras? Porque sua saciedade não as fortalecem. Ouve o Apóstolo falar da alma robusta, ao preceituar que todos pratiquem boas obras. Como se exprime ele? “Deus ama a quem dá com alegria(2 Cor 9,7).

Como a alma se robustece, se não for saturada pelo Senhor? Todavia, por mais robusta que seja aqui, como será no século futuro, ao ser alimentada por Deus? Por enquanto, em nossa peregrinação, é inexprimível o que seremos então. Talvez, ao erguermos aqui as nossas mãos, anelamos pela própria saciedade, e seremos lá de tal modo saciados daquela gordura que passará inteiramente toda nossa indigência e nada mais desejaremos. Teremos tudo o que aqui desejamos, tudo o que amamos aqui como sendo coisa valiosa. Nossos pais já morreram; Deus, porém, vive. Aqui não podemos ter para sempre nossos pais; lá, contudo, sempre teremos vivo nosso único Pai, possuindo também nossa pátria. Não ficamos para sempre numa pátria terrena. Forçoso é que nasçam outros homens, e os filhos dos cidadão destas pátrias terrenas excluam dela os seus pais. O menino que nasce dirá a seus maiores: O que fazeis aqui? Necessariamente os que sucedem, os que nascem, vêm ocupar o lugar dos que os precederam. No céu todos viveremos juntos; não haverá ali sucessor, nem antepas-sado. Como será aquela pátria? Amas as riquezas desta? O próprio Deus será tua riqueza. Amas a fonte do bem? Que há de mais ilustre do que aquela sabedoria? De mais luminoso? Em lugar de tudo aquilo que podes amar aqui estará aquele que tudo criou.

Como de manjar gorduroso e suculento há de fartar-se minha alma. Com a alegria nos lábios louvarei teu nome. Neste deserto, erguerei as mãos em honra de teu nome. Como de manjar gorduroso e suculento há de fartar-se a minha alma e com a alegria nos lábios louvarei teu nome”.

Agora, enquanto dura a sede, tens a oração; ao passar a sede, terminará a prece e sucederá o louvor:

E com a alegria nos lábios louvarei teu nome”.



§ 15
7.8 “Se no leito de ti me lembrei, de madrugada meditarei sobre ti, porque foste o meu apoio”.

Chama de leito o seu repouso. Quando alguém estiver quieto, lembre-se de Deus; quando estiver quieto, não se entregue ao descanso, esquecendo-se de Deus. Se alguém se lembra de Deus quando está quieto, pensa em Deus em suas ações. Denomina aurora suas ações, porque é de madrugada que o homem começa a agir. Como, então, se exprime? “Se no leito de ti me lembrei, de madrugada meditava sobre ti”.

Se, portanto, não me lembrei no leito, também de madrugada não meditava sobre ti. Quem não pensa em Deus quando está ocioso, pode pensar nele no meio da ação? Quem, contudo, se lembra dele quando está quieto, ao agir pensa nele, para não desfalecer na ação. Por isso, o que acrescenta? “De madrugada meditava sobre ti, porque foste o meu apoio”.

Efetivamente, se Deus não nos ajudar em nossas boas obras, não podemos realizá-las. E devemos praticar ações dignas, a saber, como quem age à luz, quando agimos segundo o que Cristo nos mostra. Todo aquele que obra mal, age à noite, não de madrugada, conforme diz o Apóstolo:

Quem se embriaga, embriaga-se de noite. Quem dorme, dorme de noite. Nós, pelo contrário, que somos do dia, sejamos sóbrios”.

Exorta-nos a andarmos honestamente, como de dia:

Como de dia, andemos decentemente(Rm 13,13).

E ainda:

Todos vós sois filhos da luz, filhos do dia. Não somos da note, nem das trevas(1 Ts 5,5-8).

Quais são os filhos da noite e filhos das trevas? Os obreiros do mal. São filhos da noite a tal ponto que têm medo de serem vistas as suas obras. Os seus malfeitos públicos, fazem-nos às claras porque são muitos que assim agem. Os atos de poucos, são feitos às ocultas. Os que os praticam às claras, estão de fato à luz do sol, mas seu coração está em trevas. Com efeito, só os que agem em Cristo, agem de manhã. Aquele que se lembrou de Cristo em seu repouso, pensa nele em todas as suas ações. Cristo o auxilia em sua boa ação, para que não desanime por fraqueza.

Se no leito me lembrei de ti, de madrugada meditava sobre ti, porque foste o meu apoio”.



§ 16
À sombra de tuas asas me regozijarei”.

Regozijo-me com as boas obras, porque estou à sombra de tuas asas. Se não proteges a mim pintinho, o gavião me arrebata. O próprio nosso Senhor diz em certa passagem a Jerusalém, aquela cidade, onde ele foi crucificado:

Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas, e não o quiseste!(Mt 23,37) Somos pequeninos; por isso, proteja-nos Deus à sombra de suas asas. Que acontecerá quando crescermos? É bom para nós que mesmo então Deus nos proteja, e continuemos como pintinhos, submissos a este Deus tão grande. Ele sempre será maior, por mais que cresçamos. Ninguém diga: Proteja-me enquanto sou pequeno, como se pudesse alguma vez chegar a tamanha grandeza que se torne auto-suficiente. Sem a proteção de Deus nada és. Queiramos sempre ser protegidos por ele; então sempre poderemos ser grandes nele, se sempre formos pequenos, submissos a ele.

À sombra de tuas asas me regozijarei”.



§ 17
9 “A minha alma aderiu a ti”.

Notai como adere a Deus este homem desejoso, sedento. Tal afeto nasça em vós. Se já germina, que chova para que cresça. Chegue a tal vigor que possais dizer de todo coração:

A minha alma aderiu a ti”.

Onde está o adesivo? Adesivo é a caridade. Possui a caridade; com tal adesivo tua alma adira a Deus. Não somente adira a Deus, mas vá após ele. Ele preceda e tu sigas. Quem quer passar na frente, quer viver segundo sua vontade e não seguir os preceitos de Deus. Por este motivo também Pedro foi repelido, ao tentar dar conselho a Cristo que ia sofrer por nós. Pedro era ainda tão fraco e desconhecia o grande bem que adviria ao gênero humano do sangue de Cristo. Pois, o Senhor, que viera para nos remir e dar seu sangue como preço de nossa redenção, começou a predizer sua paixão. Pedro ficou horrorizado ao pensamento da morte do Senhor, que ele desejava vivesse sempre do modo em que ele o via, porque preso à visão carnal, tinha pelo Senhor um afeto carnal. E respondeu-lhe:

Deus não o permita, Senhor! Isto jamais te acontecerá!” E o Senhor:

Arreda-te de mim”, Satanás! “Tu não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens(Mt 16,22.23).

Por que:

as dos homens?” Porque queres me preceder; vem para trás, para me seguires. Já seguidor de Cristo diria:

A minha alma aderiu a ti”.

Com razão acrescenta:

Tua direita me amparou. A minha alma aderiu a ti. Tua direita me amparou”.

Cristo proferiu estas palavras por nós; isto é, na natureza humana que assumira por nós, que oferecia por nós, proferiu estas palavras. Agora também as pronuncia a Igreja em Cristo, pronuncia em sua Cabeça. Ela igualmente sofreu na terra grandes perseguições, e cada um dos fiéis também as suporta agora. Quem é que pertença a Cristo que não seja agitado por várias tentações e cada dia o diabo e seus anjos, não o ataquem para pervertê-lo por alguma ambição, por sugestões, por promessa de lucro ou por medo de prejuízo, por promessa de vida ou ameaça de morte, por poderosas amizades ou potentes inimizades? O diabo insiste de todos os modos para derrubar. Vivemos no meio de perseguições e temos inimigos perpétuos, o diabo e seus anjos; mas não temamos. Assemelham-se o diabo e seus anjos ao gavião; estamos sob as asas daquela galinha, e ele não pode nos tocar. A galinha que nos protege é forte. Fez-se fraca por nossa causa; mas em si é forte nosso Senhor Jesus Cristo, a própria sabedoria de Deus. Por esta razão diz também a Igreja:

A minha alma aderiu a ti. Tua direita me amparou”.



§ 18
10 “Quanto a eles, porém, em vão procuraram tirar-me a vida”.

Que me fizeram os que procuraram tirar-me a vida? Oxalá procurassem a minha vida para acreditarem comigo! Mas procuraram a minha vida para me perderem. O que hão de fazer? Não hão de arrebatar o adesivo, com o qual a minha alma aderiu a ti.

Quem nos separará do amor do Cristo? A tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, espada”? (Rm 8,35).

Tua direita me amparou”.

Portanto, devido àquele adesivo e a tua poderosíssima direita, “em vão procuraram tirar-me a vida”.

Estas palavras aplicam-se a quantos perseguiram ou querem perseguir a Igreja; mas referem-se principalmente aos judeus, que procuraram tirar a vida a Cristo, crucificando nossa própria Cabeça e perseguindo depois seus discípulos.

Procuraram tirar-me a vida. Cairão nas profundezas da terra”.

Não quiseram perder a terra, e crucificaram a Cristo; cairão nas profundezas da terra. Quais são as “profundezas da terra?” As ambições terrenas. É melhor andar sobre a terra corporalmente do que descer pela ambição às profundezas da terra. Quem prefere a terra a si mesmo, coloca a terra acima de si, e fica abaixo, pois todo aquele que contra sua salvação deseja bens terrenos, está abaixo da terra. Os judeus, portanto, receando perder a terra, o que disseram a respeito do Senhor Jesus Cristo, ao verificarem que as multidões o seguiam, por causa dos milagres que fazia? “Se o deixarmos assim, os romamos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação(Jo 11,48).

Tiveram medo de perder a terra, e desceram às profundezas da terra. Aconteceu-lhes aquilo que recearam. Pois, quiseram matar a Cristo para não perderem o lugar; mas justamente perderam a terra por terem matado a Cristo. O próprio Senhor lhes dissera:

O reino vos será tirado e confiado a um povo que produza seus frutos de justiça(Mt 21,43).

Morto, pois, o Cristo, seguiram-se grandes calamidades de perseguições. Os imperadores romanos e os reis dos gentios os venceram. Foram expulsos do lugar onde crucificaram a Cristo. Agora aquele lugar está cheio de cristãos que louvam a Cristo; nenhum judeu ali se encontra. O lugar está livre dos inimigos de Cristo e encheu-se dos que o louvam. Assim os romanos lhes tomaram o lugar, porque eles mataram o Cristo; e eles quiseram matá-lo para não lhes ser tirado o lugar pelos romanos. Por conseguinte:

cairão nas profundezas da terra”.



§ 19
11 “Serão passados ao fio da espada”.

Com efeito, isto lhes sucedeu visivelmente; foram expulsos pelos inimigos invasores.

E se tornarão presa das raposas”.

São chamados de raposas os reis do mundo, reinantes então, ao ser debelada a Judéia. Ouvi para ficardes cientes e entenderdes porque são chamados raposas. O próprio Senhor chamou o rei Herodes de raposa:

Ide dizer a esta raposa(Lc 13,32).

Vede, irmãos, dai atenção: os judeus não quiseram ter a Cristo por rei, e se tornaram presa das raposas. Quando o procurador Pilatos, legado na Judéia, matou a Cristo, atendendo aos gritos dos judeus, disse-lhes:

Crucificarei o vosso rei?” Disse isto porque ele era denominado rei dos judeus, e verdadeiramente era rei. Mas os judeus, rejeitando a Cristo, disseram:

Não temos outro rei a não ser César(Jo 19,15).

Rejeitaram o cordeiro e escolheram a raposa; mereceram tornar-se presa das raposas como aconteceu.



§ 20
O rei, porém”.

Assim fala o salmista porque eles escolheram a raposa e não quiseram o rei.

O rei, porém”, isto é, o verdadeiro rei, cujo nome estava inscrito no título, quando padeceu. Pois, Pilatos mandou colocar este título, acima de sua cabeça; “Rei dos judeus”, em hebraico, grego e latim, para que todos os transeuntes lessem o que constituía a glória do rei e a ignomínia dos próprios judeus, que, rejeitando o verdadeiro rei, escolheram aquela raposa, César.

O rei, porém, alegrar-se-á em Deus”.

Eles se tornaram presa das raposas.

O rei, porém, alegrar-se-á em Deus”.

Aqueles que, aparentemente eles superaram, ao crucificá-lo, uma vez crucificado pagou o preço da terra inteira.

O rei, porém, alegrar-se-á em Deus. Serão louvados todos os que juram por ele”.

Por que serão louvados os que juram por ele? Por terem escolhido a Cristo, não uma raposa. Quando os judeus insultaram a Cristo, ele deu o preço de nossa redenção. Por conseguinte pertencemos àquele que nos remiu, que venceu o mundo por nós, não com armas militares, mas com a cruz ludibriada.

O rei, porém, alegrar-se-á em Deus. Serão louvados todos os que juram por ele”.

Quem é que jura por ele? Quem lhe oferece a vida, quem faz um voto e o cumpre, quem se torna cristão. É este o sentido da palavra:

Serão louvados todos os que juram por ele, porque foi tapada a boca dos que falavam iniqüidades”.

Quantas iniqüidades proferiram os judeus? Quantas coisas más não disseram não somente os judeus, mas ainda todos aqueles que perseguiram os cristãos por causa dos ídolos? Ao se enfurecerem contra os cristãos, pensavam que poderiam acabar com eles; julgavam que podiam acabar, mas os cristãos aumentaram e foram eles que acabaram.

Foi tapada a boca dos que falavam iniqüidades”.

Ninguém ousará agora falar publicamente contra Cristo, porque todos já o temem.

Foi tapada a boca dos que falavam iniqüidades”.

Enquanto o Cordeiro se achava em condição de fraqueza, até as raposas ousavam atacá-lo. Venceu o Leão da tribo de Judá (cf Ap 5,5), e as raposas se calaram, “porque foi tapada a boca dos que falavam iniqüidades”.