SALMO 𝟭

Ouve, ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração.

Desde a extremidade da terra clamo a ti, estando abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 61


§ 61:1  Ouve, ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração.

§ 61:2  Ɗ Desde a extremidade da terra clamo a ti, estando abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu.

§ 61:3  Pois tu és o meu refúgio, uma torre forte contra o inimigo.

§ 61:4  Ɗ Deixa-me habitar no teu tabernáculo para sempre; dá que me abrigue no esconderijo das tuas asas.

§ 61:5  Pois tu, ó Deus, ouviste os meus votos; deste-me a herança dos que temem o teu nome.

§ 61:6  Prolongarás os dias do rei; e os seus anos serão como muitas gerações.

§ 61:7  Ele permanecerá no trono diante de Deus para sempre; faze que a benignidade e a fidelidade o preservem.

§ 61:8  Assim cantarei louvores ao teu nome perpetuamente, para pagar os meus votos de dia em dia.


O SALMO 61



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 O deleite das palavras divinas e a suavidade que há em entender a palavra de Deus com o auxílio daquele que dá a suavidade para que nossa terra dê seu fruto (cf Sl 84,13), exorta-nos a falar e convida-vos a ouvir. Vejo que ouvis sem vos enfastiar e alegro-me de verificar o bom paladar de vosso coração, que não rejeita o que é salutar, mas ao invés absorve-o com avidez e o retém para vosso proveito. Por conseguinte, vamos vos falar ainda hoje, à medida que o Senhor nos conceder, sobre o salmo que acabamos de cantar. Seu título é o seguinte:

Para o fim, por Iditun, Salmo de Davi”.

Lembro-me de já ter aludido ao sentido do nome de Iditun1. Conforme conseguimos apurar, Iditun se traduz, da língua hebraica para o vernáculo, por: Aquele que atravessa por eles. Este cantor ultrapassou alguns, que ele olha de cima. Vejamos até onde atravessou, quais atravessou, e onde está localizado apesar de ter ultrapassado a alguns; de que espécie de lugar espiritual e seguro olha para baixo. Não olha para baixo com perigo de cair, mas a fim de que, tendo passado, estimule a outros, que são preguiçosos, a segui-lo e elogie o lugar aonde chegou, depois que passou. Assim este que ultrapassou está acima de alguma coisa, mas também debaixo de outra. Com isto, primeiro quis nos dar e entender debaixo de que coisa estará seguro, de tal modo que o fato de ter ultrapassado não lhe seja motivo de soberba, mas de aperfeiçoamento.



§ 2
2.3 Em conseqüência disto, achando-se em lugar defendido, diz:

Não se há de submeter a Deus a minha alma?” Pois, o salmista ouvira:

Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado(Mt 23,12).

Receoso de se orgulhar por ter ultrapassado, não se exaltando diante do que lhe é inferior, mas humilhando-se diante daquele que lhe é superior, responde àquela espécie de invejosos que tinham pena de que ele tivesse atravessado e ameaçavam de ruína:

Não se há de submeter a Deus a minha alma?” Por que, enquanto estou para atravessar, procurais armar-me laços? Quereis derrubar-me com insultos, ou enganar com seduções. Por acaso estou lembrado de que sou superior a alguns e esquecido daquele ao qual estou subordinado? “Não se há de submeter a Deus a minha alma?” Por mais que me aproxime, por mais que suba, por mais que ultrapasse, estarei submisso a Deus, não contra Deus. Confiante, portanto, ultrapasso os demais, quando me segura, submisso a si, aquele que está acima de todas as coisas.

Não se há de submeter a Deus a minha alma? Dele depende a minha salvação. Ele é meu Deus e minha salvação. Meu protetor, jamais vacilarei”.

Sei quem está acima de mim, sei quem é que estende sua misericórdia àqueles que o conhecem, sei quais as asas à cuja sombra esperarei:

Jamais vacilarei”.

Efetivamente, vós vos empenhais, diz o salmista àqueles que ele ultrapassa: Vós vos empenhais em que eu vacile, mas “não me pisoteie a soberba(Sl 35,12).

Por isso, o mesmo salmo continua:

Nem as mãos dos pecadores me sacudam”.

Concorda com o versículo:

Jamais vacilarei”.

Ao que foi dito esse outro salmo:

Nem as mãos dos pecados me sa-cudam”, corresponde aqui:

Jamais vacilarei”.

E à expressão do outro salmo:

Não me pisoteie a soberba” é paralelo aqui:

Não se há de submeter a Deus a minha alma?



§ 3
Então, o salmista garantido e seguro no lugar mais alto, tendo Deus se tornado o seu refúgio, e sendo Deus mesmo um lugar fortificado para ele, olha para trás, para aqueles que ultrapassou, e menosprezando-os fala, como que de uma elevada torre; pois também isto foi dito a respeito de Deus:

Torre forte na presença do inimigo(Sl 60,4).

Presta atenção a eles, pois, e diz:

Até quando inves-tireis contra um homem?” Insultando, lançando injúrias, armando insídias, perseguindo, impondes fardos a um homem, impondes quanto ele pode suportar; mas para que possa suportar, ele deve estar submisso àquele que criou o homem.

Até quando investireis contra um homem?” Se considerais que é um homem, “matai-o todos juntos”.

Sobrecarregai-o, encarniçai-vos, “matai-o todos juntos. Como a uma parede já inclinada ou um muro prestes a cair”.

Insisti, empurrai, quase derrubando-o. Mas como será realizada a palavra:

Jamais vacilarei?” Por que razão “jamais vacilarei?” Porque “ele é meu Deus e minha salvação, meu protetor”.

Portanto, como homem podeis acumular fardos sobre um homem; mas podereis fazê-lo a Deus que protege o homem?



§ 4
4 “Matai-o todos juntos”.

De que tamanho é o corpo deste homem para ser morto por todos? Mas devemos entender que se trata de nossa pessoa, a de nossa Igreja, a do corpo de Cristo. Pois, é um só homem, Cabeça e corpo, Jesus Cristo, salvador do corpo com os membros, dois numa só carne, numa só voz, numa só paixão (cf Gn 2,24; Ef 5,31); e quando passar a iniqüidade, num só repouso. A paixão de Cristo, portanto, não é só de Cristo; ao invés, melhor, a paixão de Cristo é somente de Cristo. Se, de fato, entendes Cristo enquanto Cabeça e corpo, a paixão de Cristo é só de Cristo; se ao contrário te referes apenas à Cabeça, a paixão de Cristo não é somente de Cristo. Se a paixão de Cristo fosse somente de Cristo, ou antes, só da Cabeça, como pôde dizer um de seus membros, o apóstolo Paulo:

Completo, na minha carne, o que falta das tribulações de Cristo”? (Cl 1,24).

Com efeito, se és dos membros de Cristo, seja quem fores que ouves ou que não ouves agora (mas hás de ouvir, se és dos membros de Cristo), tudo o que sofreres da parte dos que não são dos membros de Cristo, faltara à paixão de Cristo. Por isso acrescenta-se o que faltara. Completas a medida, sem derramares. Sofrerás na medida que teus sofrimentos devem unir-se à paixão de Cristo toda inteira; ele sofreu como nossa Cabeça e sofre em seus membros, isto é, em nós. Para o bem comum desta nossa sociedade, solvemos à medida de nossas forças nosso débito e conforme nossa capacidade contribuímos com uma parte de sofrimento. O pagamento plenário em sofrimento de todos não se dará senão quando acabarem os séculos.

Até quando investireis contra um homem?” Tudo o que padeceram os profetas, desde o derramamento do sangue do justo Abel até o do sangue de Zacarias (cf Mt 23,35), foi uma investida contra um homem, porque determinados membros de Cristo precederam a vinda da encarnação de Cristo, como em certo nascituro, a cabeça ainda não saíra do ventre materno e saiu a mão, embora a mão estivesse em união com a cabeça (cf Gn 38,27).

Não penseis, portanto, irmãos, que os justos que sofreram a perseguição da parte dos malvados, mesmo aqueles enviados antes da vinda do Senhor para prenunciá-la, não pertencessem aos membros de Cristo. De forma alguma deixam de pertencer aos membros de Cristo os pertencentes à cidade que tem Cristo por rei. Esta é a Jerusalém celeste, cidade santa; esta cidade tem um só rei. Cristo é o rei desta cidade; ela lhe diz:

Sião, minha mãe, dirá um homem”.

Diz-lhe:

Minha Mãe”; mas é “um homem”.

Pois, “Sião, minha mãe, dirá um homem: nasceu nela o homem, e o próprio Altíssimo a fundou(Sl 86,5).

Aquele seu rei, portanto, é o Altíssimo que a fundou: nela ele se tornou homem, em condição muito humilde. Com efeito, ele antes da sua encarnação enviou alguns de seus membros; depois que estes prenunciaram que ele haveria de vir, veio ele mesmo, unindo àqueles. Assemelha-se àquele nascimento, porque a mão que sai antes da cabeça está unida à cabeça e lhe é subordinada. Ao se referir o Apóstolo à excelência do povo primitivo, e ao lastimar que os ramos naturais tenham sido quebrados, tratava-se de Cristo. Diz o Apóstolo:

Os israelitas, aos quais pertencem a adoção filial, as alianças, a legislação, aos quais pertencem os patriarcas, e dos quais descende o Cristo, segundo a carne, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos (cf Rm 11,21; Rm 9,4.5).

Dos quais descende o Cristo, segundo a carne, como proveniente de Sião, porque nasceu nela o homem. O Cristo, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos, porque o próprio Altíssimo a fundou. Dos quais descende o Cristo, segundo a carne”, filho de Davi; que é acima de tudo, Deus bendito pelo séculos, senhor de Davi. Quem fala é pois aquela cidade inteira, desde que o sangue do justo Abel foi derramado até o sangue de Zacarias (cf Mt 23,35).

Doravante, desde o sangue de João, através do sangue dos apóstolos, do sangue dos mártires, do sangue dos fiéis de Cristo, é uma só cidade que fala, um só homem que diz:

Até quando investireis contra um homem? Matai-o todos juntos”.

Vejamos se apagais da terra o seu nome, vejamos se o extinguis, vejamos se o tirais, vejamos se os povos não tramaram em vão (Sl 2,1) ao dizerem:

Quando há de morrer e de extinguir-se o seu nome”? (Sl 40,6).

Como a uma parede inclinada ou um muro prestes a cair”, investi, empurrai. Ouvi um versículo mais acima:

Meu protetor, jamais vacilarei”, porque empurraram-me como a um monte de areia, para que caísse (cf Sl 117,13), mas o Senhor me acolheu.



§ 5
5 “Sim, pretenderam, de fato, arrancar-me a honra”.

Os que feriam, tentando matar, foram vencidos, pois o sangue dos mortos faz com que se multipliquem os fiéis; eles feriam, mas já não podiam matar.

Sim, pretenderam arrancar-me a honra”.

Uma vez que agora não se pode matar um cristão, cuidam de desonrá-lo. Agora a honra prestada aos cristãos atormenta o coração dos maus. Aquele José, em sentido espiritual, depois de vendido pelos irmãos, depois de transladado da pátria para o meio de gentios como os egípcios, depois da humilhação do cárcere, depois do falso testemunho, depois de sofrer o que foi dito:

O ferro transpassou-lhe a alma(Sl 104,18), já está glorificado, já não se acha subordinado aos irmãos que o venderam, mas até distribui trigo aos famintos (Gn 37; 39; 41) vencidos por sua humildade, castidade, incorrupção, tentações, padecimentos, já o vêem honrado e cogitam de como repelir suas honras. Entra em suas cogitações a palavra do salmo:

O pecador verá”.

Não pode deixar de ver, visto que não é possível fique escondida uma cidade sobre um monte (cf Mt 5,14).

Por conseguinte, “o pecador verá e se irritará. Rangerá os dentes e se consumirá(Sl 111,10).

O veneno dos que se enfurecem e se irritam fica latente no coração e oculto nos pensamentos. Por isso aqui há referência a seus planos:

Pretenderam arrancar-me a honra”.

Não ousam manifestar em palavras suas cogitações. Auguremos-lhes bens, apesar de sua opção pelo mal.

Julga-os, ó Deus. Malogrem seus ardis(Sl 5,11).

Que pode haver de melhor, de mais útil do que cair de onde estão mal colocados, e assim corrigidos poderem dizer:

Firmou-se os pés sobre a rocha”? (Sl 39,3).



§ 6
Sim, pretenderam arrancar-me a honra”.

Todos contra um só, ou um só contra todos, ou todos contra todos, ou um só contra um só? Tendo dito:

Investireis contra um homem”, parece tratar-se de um só; e a locução:

Matai-os todos juntos”, seriam todos contra um; contudo, trata-se também de todos contra todos, porque todos são cristãos, mas unidos em um só. Que acontece com os diversos erros do inimigo de Cristo? Devem ser ditos somente: todos? Ou também: um só? Sem dúvida, ouso dizer que são um só; porque de um lado há uma só cidade e do outro uma só cidade, um só povo e um só povo, um rei e um rei. Por que: uma cidade só e outra cidade uma só? Existe uma só Babilônia e uma só Jerusalém. Sejam quais forem os outros nomes místicos que se lhe derem, continuam a existir uma cidade de um lado, e outra de outro lado. Uma tem por rei o diabo; e outra possui como rei a Cristo. Pondero, então, certa passagem do evangelho que me faz pensar e provavelmente também a vós. Após terem sido convidados para as núpcias muitos bons e maus, e a sala das núpcias se encher de convidados (pois os servos tinham sido enviados e conforme lhes fora ordenado, convidaram bons e maus), o rei entrou para ver os convidados e encontrou um homem que não tinha a veste nupcial e interpelou-o como sabeis:

Amigo, como entraste aqui sem roupa nupcial? Ele, porém, ficou calado”.

E mandou amarrá-lo de mãos e pés e lançá-lo nas trevas exteriores. Certo homem foi arrancado do banquete e lançado no lugar do castigo, dentre tão grande multidão de convivas. Todavia, o Senhor, no intuito de mostrar que este único homem era um só corpo constituído de muitos membros, tendo ordenado que fosse lançado fora, e sofresse as devidas penas, acrescentou imediatamente:

Muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.

Que significa isto? Convocaste as multidões, e veio um grande número; anunciaste, falaste, multiplicaram-se acima de qualquer número (Sl 39,3), as salas do banquete nupcial se encheram de convivas; foi lançado fora apenas um, e dizes:

Muitos são chamados, mas poucos escolhidos(cf Mt 22.10-24).

Porque não disse: Todos são chamados, muitos escolhidos, um só lançado fora? Se tivesse declarado! Com efeito, muitos são chamados, muitos escolhidos, poucos de fato condenados, nestes poucos com verossimilhança teríamos entendido talvez aquele único homem. Ao contrário, ele afirma que só aquele único homem foi lançado fora dali, e acrescenta:

Muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.

Quais os escolhidos senão os que ficaram? Expulso um só, ficaram os escolhidos. Como é que, expulso foi um dentre muitos e são poucos os escolhidos, senão porque naquele único estão representados muitos? Todos os que têm gosto pelas coisas terrenas, todos os que preferem a felicidade terrena a Deus, todos os que procuram atender os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo (cf 2,21), pertencem àquela única cidade, que misticamente se chama Babilônia, e tem o diabo por rei. Ao invés, todos os que tem gosto pelas coisas do alto, que meditam as coisas celestes, que vivem neste mundo procurando com solicitude não ofender a Deus, que se precavêm de pecar e se pecarem não se coram de confessar, humildes, mansos, santos, justos, piedosos, bons, todos esses pertencem àquela única cidade que tem Cristo por rei. Aquela cidade está na terra como mais antiga no tempo; mas não por sublimidade e honra. Ela nasceu primeiro, enquanto a segunda é mais nova. A primeira começou com Caim; e a segunda com Abel. Estes dois corpos que agem em subordinação a seus respectivos reis, pertencentes a cada uma das cidades, são adversários até o fim do mundo, até que se faça a separação de sua convivência, e um seja colocado à direita e outro à esquerda. Será dito à segunda:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”; e à outra:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para seus anjos(Mt 25,34.41).

Cristo, pois, diz o seguinte:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”.

É rei de sua cidade, e vitorioso sobre todos. Dirá aos colocados à esquerda, esta cidade dos iníquos:

Ide para o fogo eterno”.

Por acaso separa-os de seu rei? Não; pois acrescenta:

preparado para o diabo e para seus anjos”.



§ 7
Atenção, irmãos. Peço-vos, prestai atenção. Apraz-me ainda falar-vos algumas coisas a respeito desta suave cidade.

Coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus. Se eu te esquecer, Jerusalém, esqueça-me a minha direita(Sl 86,3;136,5).

Efetivamente, é suave a pátria, uma só pátria e somente a pátria; fora dela, tudo é exílio. Direi o que sabeis, o que aprovais; relembro o que vos é notório. Diz o Apóstolo:

Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual, vem depois(1 Cor 15,46).

Aquela cidade, de fato, é mais velha, porque Caim nasceu primeiro e só depois Abel; mas nisto “o mais velho servirá ao menor(cf Gn 4,1.2; 25,23).

Caim, conforme lemos, edificou uma cidade; antes que houvesse cidade alguma, nos primórdios das coisas humanas, Caim edificou uma cidade. Sem dúvida, entende-se que já haviam nascido muitos homens (cf Gn 4,17) daqueles dois (Adão e Eva), e dos que eles geraram, para haver um número apto e suficiente para se dar ao local o nome de cidade. Por conseguinte, Caim edificou uma cidade, onde não havia cidade. Posteriormente foi edificada também Jerusalém, reino de Deus, cidade santa, cidade de Deus; e esta constituiu certa figura a significar realidades futuras. Entendei, pois, que existe aqui um grande mistério, e retende na memória o que foi dito acima:

Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual vem depois”.

Por isso, Caim primeiro edificou a cidade e a construiu onde nenhuma cidade havia. Quanto à construção de Jerusalém, contudo, não foi edificada onde nenhuma cidade existia; havia ali anteriormente uma cidade chamada Jebus, de onde se origina o nome de jebuseus. Foi tomada, vencida, subjugada, e foi edificada nova cidade sobre as ruínas da antiga, que foi denominada Jerusalém: Visão de paz, cidade de Deus (cf Js 18,28).

Não são, portanto, todos os nascidos de Adão que pertencem a Jerusalém; a descendência da iniqüidade traz consigo a pena do pecado e é destinada à morte, fazendo parte de certo modo da antiga cidade. Mas se há de se tornar o povo de Deus, destrói-se o que é velho e constrói-se o que é novo. Por este motivo, Caim edificou uma cidade onde nenhuma cidade havia. Cada um de nós começa, pois, na condição mortal e na malícia, para se tornar bom, posteriormente.

De modo que, como pela desobediência de um só, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos. Todos morrem em Adão(Rm 5,19; 1Cor 15,22).

Todos nós nascemos de Adão. Atravesse Jerusalém; seja destruído o que é velho e edificado o que é novo. Como se os jebuseus tenham sido vencidos, para se edificar Jerusalém, ordena o Apóstolo:

Despi o velho homem e revesti-vos do novo(cf Cl 3,9.10).

Já edificados em Jerusalém, e brilhando pela luz da graça, ouvis a exortação:

Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor(Ef 5,8).

A cidade malvada, portanto, percorre o tempo, do início ao fim; a boa cidade se funda com a conversão dos maus.



§ 8
Por enquanto, estas duas cidades estão intercaladas uma na outra, para serem separadas no fim. Combatem-se mutuamente. Uma em favor da justiça e outra em favor da iniqüidade; uma em vista da vaidade e a outra em prol da verdade. Por vezes esta mistura temporal faz com que alguns integrantes da cidade de Babilônia administrem bens de Jerusalém; e em sentido contrário, alguns dos membros de Jerusalém administrem bens pertencentes a Babilônia. Parece-me que prometi mostrar algo de difícil. Tende paciência até que demonstre com exemplos. Todas as coisas, pois, naquele povo antigo, como escreve o Apóstolo, acontecia-lhes em figura; “foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos(1 Cor 10,11).

Considerai, pois, aquele primeiro povo, criado também para representar os pósteros e vede aí o que digo. Houve grandes reis em Jerusalém. Isto é notório. Foram enumerados, citados pelo nome. Mas, todos os que foram iníquos eram cidadãos de Babilônia e administravam os bens de Jerusalém. No fim, serão retirados de lá, e pertencem ao diabo. De outro lado, encontramos cidadãos de Jerusalém cuidando da administração em Babilônia. Assim os três jovens, que o rei Nabucodonosor, vencido pelo milagre, transformou em administradores de seu reino, e estabeleceu-os como sátrapas; eram cidadãos de Jerusalém e administravam em Babilônia (cf Dn 3,97).

Observai que agora isso se realiza na Igreja, em nossos dias. Todos aqueles aos quais foi dito:

Observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações”, são cidadãos de Babilônia, a administrarem o bem público da cidade de Jerusalém. Se nada administrassem na cidade de Jerusalém, de onde viria a expressão:

Observai tudo quanto vos disserem?” De onde:

Estão sentados na cátedra de Moisés”? (Mt 23,2.3).

Em sentido oposto, se são cidadãos da própria Jerusalém, que reinarão eternamente com Cristo, de onde provém a sentença:

Afastai-vos de mim, vós todos, que sois malfeitores”? (Lc 13,27).

Por conseguinte, notais que os cidadãos da cidade malvada administravam em certos atos da cidade boa. Vejamos agora se também os cidadãos da boa cidade administram em certos atos da cidade malvada. Toda república terrena um dia, de fato, há de perecer. Seu domínio há de passar com a chegada daquele reino, acerca do qual rezamos:

Venha o teu reino”, e do qual foi predito:

E o seu reinado não terá fim(Mt 6,10; Lc 1,33).

Por conseguinte, a república terrena tem nossos cidadãos a administrarem seus bens. Pois, quantos fiéis, quantos homens bons são em suas cidades magistrados, juízes, generais, condes e reis? Todos justos e bons, que não têm no coração senão as coisas gloriosas que são ditas de ti, cidade de Deus. Cumprem a tarefa contratada na cidade transitória, e aí recebem dos doutos da santa cidade a orientação de manter a fidelidade para com seus superiores, “seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como enviados seus para a punição dos malfeitores e para o louvor dos que fazem o bem(1Pd 2,13.14).

Que os escravos sejam submissos a seus senhores, e os cristãos aos pagãos; e o melhor conserve a fidelidade ao pior, servin-do por algum tempo, mas havendo de reinar para sempre. Pois, essas coisas se realizam até que passe a iniqüidade. Os servos recebem o mandamento de suportar os senhores iníquos (cf Sl 56,2) e difíceis (1Pd 2,18).

Os ci-dadãos de Babilônia devem ser tolerados pelos cidadãos de Jerusalém, e prestar-lhes mais obséquio do que se fossem cidadãos da mesma Babilônia. Cumprem de certo modo a exortação:

E se alguém te obriga a andar uma milha, caminha com ele duas(Mt 5,41).

O salmo se dirige a toda esta cidade dispersa, difusa, mesclada, com os seguintes dizeres:

Até quando investireis contra um homem? Matai-o todos juntos”, vós que estais de fora, como espinhos nas sebes, ou como uma árvore infrutífera nas florestas, vós que sois qual cizânia ou palha. Todos vós que estais separados, mesclados e que tendes de ser suportados, separados, “matai-o todos juntos. Como a uma parede já inclinada ou um muro prestes a cair. Sim, pretenderam arrancar-me a honra”.

Não o disseram, contudo o planejaram.

Pretenderam arrancar-me a honra”.

1 Cr Cr. Com ao salmo 38, nº 1.



§ 9
Corri sedento”.

Pois eles me retribuíam o bem com o mal (cf Sl 34,12).

Matavam, repeliam. Eu tinha sede deles. Eles pretenderam arrancar-me a honra; eu tinha sede de enxertá-los em meu corpo. Que fazemos ao beber, senão inserir em nossos membros um líquido que está fora de nós, e introduzi-lo em nosso corpo? Foi isso que fez Moisés com a cabeça do bezerro. A cabeça do bezerro representava um grande mistério. Pois, a cabeça do bezerro era o corpo dos ímpios, semelhante a um boi que come feno (cf Sl 105,20).

Eles se interessam só pelos bens terrenos; porque toda carne é como feno (Is 40,6).

Era, pois, conforme disse, o corpo dos ímpios. Moisés, irado, jogou o bezerro ao fogo, esmigalhou-o, misturou-o com água e fez o povo beber (cf Ex 32,20).

A ira do profeta ministrou a profecia. O corpo do bezerro jogado ao fogo das tribulações, é triturado pela palavra de Deus. Pouco a pouco, os maus se desligam da unidade daquele corpo. Como acontece com a veste, que se gasta com o tempo. Cada um que se faz cristão, separa-se daquele povo, e a massa como que se esmigalha. Os malvados, quando em concórdia, odeiam; esmigalhados, acreditam. Que há de mais evidente? Os homens deviam pelo batismo ingressam naquele corpo da cidade de Jerusalém, cuja imagem era o povo de Israel. Por isso foi misturado com água e dado a beber. Quanto a este, sente sede até o fim; corre e sente sede. Já observou a muitos; mas não deixará jamais de ter sede. Daí provém a palavra:

Mulher, tenho sede. Dá-me de beber(Jo 4,7).

Aquela samaritana percebeu que o Senhor junto do poço tinha sede e foi saciada através daquele sedento. Primeiro, ela o percebeu sedento, para que depois, sendo já fiel ele a absorvesse. E o Senhor na cruz disse:

Tenho sede!(Jo 19,28).

Apesar disso, não lhe deram aquilo de que sentia sede. Ele tinha sede dos que o cercavam, mas eles lhe deram vinagre; não foi um vinho novo, com que enchesse odres novos (Mt 9,17), mas vinho velho e fermentado. O vinagre é também chamado vinho velho, isto é, representa os homens velhos, dos quais foi dito:

Eles não se emendam(Sl 54,20), de tal sorte que, derrotados os jebuseus, fosse edificada Jerusalém.



§ 10
Assim, não só a Cabeça, mas ainda o corpo, do começo até o fim corre com sede. Seria como se lhe fosse dito: Por que tens sede? Que te falta, ó corpo de Cristo, ó Igreja de Cristo? Estabelecida com tantas honras, tanta sublimidade, tanta dignidade mesmo neste século, que te falta? Cumpre-se a predição a teu respeito:

Adorá-lo-ão todos os reis da terra, todas as nações o servirão(Sl 71,11).

De onde vem, então, a sede? De que tens sede? Não te saciam tantos povos? A que povos te reportas? “Bendiziam-me com a boca, amaldiçoavam-me no coração. Muitos são chamados, mas poucos escolhidos(Mt 22,14).

A mulher que sofria de um fluxo sanguíneo, tocou a fímbria de sua veste e foi curada; e como o Senhor se admirasse de ter sido tocado, pois sentira sair de si o poder de curar a mulher, disse:

Quem me tocou”? Os discípulos admirados disseram-lhe:

Estás vendo a multidão que te comprime e perguntas: Quem me tocou?” Mas ele respondeu:

Alguém me tocou(Mc 5,25-31).

Foi como se dissesse: Uma só me tocou; a multidão me comprime. Aqueles que nas solenidades de Jerusalém enchem as igrejas, nas festas de Babilônia enchem os teatros; contudo, servem, honram, prestam obséquio, não somente os que têm os sacramentos de Cristo, mas odeiam seus preceitos, mas também aqueles que nem mesmo têm os sacramentos, sejam pagãos, sejam judeus. Honram, louvam, apregoam, mas só “bendiziam com a boca”.

Não dou atenção à boca; conheço bem aquele que me instruiu:

amaldiçoavam no coração”.

Amaldiçoavam ali, onde pretenderam arrancar-me a honra.



§ 11
6 Que fazes tu, ó Iditun, corpo de Cristo, que os ultrapassas? Como te comportas no meio de tudo isso? Como te portas? Desanimas? Não perseverarás até o fim? Não ouves a palavra:

Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo”, apesar de que, “pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará”? (Mt 24,13.12).

E como os ultrapassaste? Como é que nossa cidade está nos céus? (cf Fl 3,20).

Os outros se interessam pelas coisas terrenas; como habitantes da terra, têm gosto pelas coisas da terra, e são de terra, alimento da serpente. E tu, no meio de tudo isto? Com efeito, embora eles assim façam, embora assim pensem, apesar de impelirem, de investirem contra uma parede já inclinada, embora percebam que já me ergui e eles pretendam arrancar-me a honra, embora abençoem com a boca, mas amaldiçoem no coração, apesar de armarem insídias onde for possível, e de caluniarem quanto puderem, “todavia, minha alma se há de submeter a Deus”.

E quem pode tolerar tantos males, guerras declaradas, insídias ocultas? Quem há de tolerar tantas coisa entre inimigos declarados e falsos irmãos? Quem há de tolerar tantas desgraças? Porventura um homem? Se um homem, acaso com suas próprias forças humanas? Não ultrapassei para me orgulhar e cair:

Minha alma se há de submeter a Deus. É dele que depende a minha paciência”.

Qual paciência, entre tantos escândalos, a não ser que, se esperamos o que não vemos, é na paciência que o esperamos? (cf Rm 8,25).

Veio-me a dor, virá também meu repouso; adveio-me a tribulação, virá igualmente minha purificação. Por acaso brilha o ouro no cadinho do ourives? Há de brilhar na jóia, brilhará no adorno; contudo, há de sofrer na fornalha, para voltar à luz purificado das impurezas. Nesta fornalha existe palha, ouro, fogo. Em tal material trabalha o ourives. Na fornalha a palha se queima e purifica-se o ouro. A palha se converte em cinzas, e o ouro se livra das impurezas. O mundo é a fornalha; palhas são os iníquos, ouro os justos; a tribulação é o fogo, Deus o ourives. Faço o que quer o ourives. Onde me coloca, suporto. Recebo a ordem de tolerar. Ele sabe purificar. Apesar de arder a palha, esquentando-me e quase me consumindo, ela se converte em cinzas e eu me purifico dos resíduos. Por que razão? “Porque minha alma se há de submeter a Deus. Dele depende a minha paciência”.



§ 12
7 Quem é este de quem depende a tua paciência? “Ele é meu Deus, minha salvação, meu protetor, não emigrarei. Ele é meu Deus”, por isso me chama; “e minha salvação”, portanto me justifica; “meu protetor”, por conseguinte me glorifica. Aqui, na terra, sou chamado e justificado; lá, porém, sou glorificado; e deste céu onde sou glorificado, “não emigrarei”.

Também não permanecerei em peregrinação; é um lugar aqui, de onde emigrarei, mas irei para onde não emigrarei. Pois, sou forasteiro na terra diante de ti, como todos os meus pais (Sl 38,13).

Por este motivo migrarei de meu exílio, mas não emigrarei da casa celeste.



§ 13
8 “Acha-se em Deus a minha salvação e a minha glória”.

Em Deus, serei salvo; em Deus serei glorioso. Não apenas salvo, mas glorioso. Salvo, porque de ímpio tornei-me justo, justificado por ele; glorioso, porque não somente justificado, mas ainda honrado. Pois, “os que predestinou, também os chamou”.

Tendo chamado, que fez? “Os que chamou, também os justificou, e os que justificou, também os glorificou(Rm 4,5; 8,30).

A justificação, portanto, pertence à salvação, a glorificação à honra. Não é preciso explanar como a glorificação se relaciona com a honra. Procuremos, porém, alguma prova de que a justificação pertence à salvação. Eis o que nos ocorre do evangelho: Havia alguns que se consideravam justos, e censuravam o Senhor por admirar a aproximação de pecadores e aceitar convites de comer com publicanos e pecadores. A estes tais soberbos, portanto, fortes na terra e excelsos, que muitos se gabavam da saúde que julgavam ter, mas não tinham de fato, que respondeu o Senhor? “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes”.

Quais são os que são denominados sadios? Quais os doentes? Continua o evangelista, com a palavra do Senhor:

Não vim chamar justos, mas pecadores à penitência(Mt 9,12.13).

Denominou sãos, portanto, os justos. Os fariseus não o eram, mas se consideravam tais e por isso se orgulhavam, invejavam aos doentes seu médico e mais doentes ainda, matavam o médico. Mas, o Senhor chamou os justos de sãos e os pecadores de doentes. Para me justificar, diz este homem que atravessa, preciso dele; e para ser glorificado, ele me é necessário:

Acha-se em Deus a minha salvação e a minha glória. Minha salvação”, para ser salvo; “minha glória”, para ser honrado. Isto se realizará então; e agora? “Deus é meu auxílio. Minha esperança está em Deus”, até que eu chegue à perfeita justificação e salvação, “fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar(Rm 8,24), até que eu chegue àquela glorificação, quando os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai (cf Mt 13,43).

Neste interim, agora, no meio das tentações, iniqüidades, escândalos, ataques abertos ou discursos enganosos, entre aqueles que bendizem com a boca e maldizem no coração, entre os que pretendem arrancar-me a honra, o que importa? “Deus é meu auxílio”, pois auxilia os combatentes. Contra quem? “Nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Potestades(Ef 6 ,12).

Deus é meu auxílio. A minha esperança está em Deus”.

A esperança até a realização da promessa, leva a crer o que não se vê. Realizada esta, virão a glorificação e a salvação. Mas, não ficamos desamparados na demora da realização.

Deus é meu auxílio. A minha esperança está em Deus”.



§ 14
9 “Confiai nele assembléia de o todo povo. Imitai a Iditun. Ultrapassai vossos inimigos. Ultrapassai os atacantes, os que põem obstáculos em vosso caminho, os que vos odeiam.

Confiai nele assembléia de todo povo. Expandi o coração diante dele”.

Não cedais diante dos que nos interrogam: Onde está vosso Deus? “Minhas lágrimas noite e dia se tornaram o meu pão; quando se me rediz cada dia: Onde está o teu Deus?” Mas, como se exprime o mesmo salmo? “Meditei sobre essas coisas. Minha alma acima de si mesma se expandiu(Sl 41,4.5).

Lembro-me do que ouço: onde está o teu Deus? Lembrei-me disso, “e minha alma acima de si mesma se expandiu”.

À procura de meu Deus, expandi minha alma acima de si mesma, a fim de atingi-lo; não parei em mim mesmo. Por isso:

Confiai nele assembléia de todo o povo. Expandi o coração diante dele”, suplicando, confessando, esperando. Vosso coração não se detenha dentro de si mesmo:

Expandi vosso coração diante dele”.

Não se perde nesta expansão. Pois, Deus é “meu protetor”.

Se ele te acolhe, por que receias expandir o coração? Lança sobre o Senhor os teus cuidados, espera nele (Sl 54,23).

Expandi o coração diante dele. Deus será nosso auxílio”.

O que temeis no meio de murmuradores, detratores, odiosos a Deus? (cf Rm 1,29.30).

Onde podem, opõem-se abertamente; onde não podem, ocultamente armam insídias. Louvam com falsidade, mas na verdade são inimigos. No meio deles, de que tendes medo? “Deus é nosso auxílio”.

Eles agem com emulação relativamente a Deus? Porventura são mais fortes do que ele? “Deus será nosso auxílio”, ficai tranqüilos. Se Deus está conosco, quem estará contra nós? (cf Rm 8,31).

Expandi o coração diante dele”, passando para junto dele, elevando vossas almas:

Deus será nosso auxílio”.



§ 15
10 Já estabelecidos num lugar fortificado, numa torre forte diante do inimigo, tende pena daqueles dos quais tínheis medo; pois deveis correr sedentos. Menosprezai-os, pois, visto que vos achais estabelecidos naquele lugar e dizei-lhes:

Vãos, porém, são os filhos dos homens, mentirosos os filhos dos homens”.

Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido? Os filhos dos homens são vãos, os filhos dos homens são mentirosos; por que amais a vaidade e procurais a mentira? (cf Sl 4,3).

Repeti isso com comiseração, e sede sábios. Se atraves-sastes, se amais os vossos inimigos, se quereis destruir para edificar, se amais aquele que julga no meio dos povos (cf Sl 109,6), e repara as ruínas, repeti essas coisas, sem ódio, sem pagar o mal com o mal (cf Rm 12,17).

Mentirosos, porém, são os filhos dos homens na balança, e enganam todos juntos acerca do que é vão”.

Certamente são muitos; mas aí está aquele único homem, aquele que foi expulso da multidão dos convivas (cf Mt 22,13).

Conspiram, todos procuram os bens temporais, os carnais as coisas carnais, e os que esperam aguardam o futuro; apesar da variedade de opiniões em questões diversas, quanto à vaidade, porém, todos estão de acordo. Efetivamente os erros são diversos e multiformes, e um reino dividido contra si mesmo acaba em ruína (cf Mt 12,25); mas a vontade vã e enganosa é semelhante em todos e pertence a um só rei, com o qual há de ser precipitada no fogo eterno (cf Mt 25,41):

Todos juntos, acerca do que é vão”.



§ 16
11 Mas vede que o Senhor tem sede deles; vede que corre sedento. Volta-se para eles, com sede deles:

Não confieis na iniqüidade”.

Pois, “a minha esperança está em Deus. Não confieis na iniqüidade”.

Vós que não quereis aproximar-vos e ultrapassar, “não confieis na iniqüidade”.

Eu, porém, ultrapassei e a minha esperança está em Deus; e pode existir iniqüidade em Deus? (cf Rm 9,14).

Não confieis na iniqüidade”.

Façamos isto e aquilo, pensemos naquilo, assim terminemos com as insídias, todas juntas, acerca do que é vão. Tu tens sede: aqueles que absorves manifestam os que contra ti fazem estes planos.

Não confieis na iniqüidade”.

A iniqüidade é vã, é nada; poderosa é apenas a justiça. A verdade pode ocultar-se por algum tempo, mas é impossível vencê-la. A iniqüidade pode florescer de modo passageiro, mas não dura.

Não confieis na iniqüidade, nem cobiceis rapinas”.

És rico e queres roubar? Que obténs? Que perdes? Oh, lucros prejudiciais! Encontras o dinheiro e perdes a justiça.

Não cobiceis rapinas”.

Sou pobre, nada tenho. Por isso queres roubar? Vês o que roubas, mas não vês quem te rouba? Não sabes que o inimigo te rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar? (cf 1Pd 5,8).

Aquela presa que queres captar é uma cilada; apanhas e és apanhado. Não cobices rapinas, ó pobre, mas deseja a Deus, que nos dá todas as coisas em abundância para nosso uso (cf Tm 6,17).

Alimenta-te aquele que te fez. Quem alimenta o ladrão, não há de sustentar o inocente? Alimenta-te aquele que faz seu sol se levantar sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (cf Mt 5,45).

Se alimenta os futuros condenados, não há de alimentar os que serão libertados? Por conseguinte, não cobices rapinas. Isto foi dito para o pobre, que talvez por necessidade há de tirar alguma coisa. O rico então avança: Eu não tenho necessidade de roubar; nada me falta; tenho fartura de tudo. Também tu escuta:

Se afluírem as riquezas, a elas não prendais o coração”.

O primeiro nada tem; o segundo tem. O pobre não procure roubar o que não tem, nem o rico prenda o coração ao que tem.

Se afluirem as riquezas”, isto é, se transbordarem, vindas da fonte.

A elas não prendais o coração”.

Não presumas a respeito de ti mesmo, não te prendas a elas; sem dúvida deves temer também isto:

Se afluirem as riquezas”.

Não vês que se a elas prenderes o coração, tu também decorres como a água? És rico, e já não cobiças ter mais, porque tens muito. Ouve:

Aos ricos deste mundo, exorta-os à que não sejam orgulhosos. Que significa: A elas não prendais o coração? Nem ponham a esperança na instabilidade da riqueza(1 Tm 6,17).

Por isso:

Se afluirem as riquezas, a elas não prendais o coração”.

Não confieis nas riquezas, delas não presumais, delas nada espereis, para que não se diga:

Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas depositou confiança na afluência de suas riquezas e prevaleceu-se de sua vaidade(Sl 51,9).

Portanto, são vãos os filhos dos homens, mentirosos os filhos dos homens. Não roubeis. Se afluirem as riquezas a elas não prendais o coração; não ameis a vaidade, nem busqueis a mentira. Feliz o homem que pôs no Senhor Deus a esperança, e não olhou vaidades e enganosas loucuras (cf Sl 39,5).

Quereis enganar, quereis defraudar; que meio empregais para enganar? Balanças falsas.

Mentirosos os filhos dos homens na balança”.

Procuram enganar, usando de balança falsa. Enganas os que olham para um fiel falso. Não sabeis que um é o que pesa e outro o que julga este modo de pesar? Ele não olha aquele para o qual tu pesas; quem vê é aquele que te pesa a ti e a ele. Por isso, não defraudeis, não cobiceis rapinas. Não depositeis confiança no que tendes, conforme admoestou e disse anteriormente este Iditun.



§ 17
12.13 Como continua o salmo? “Deus falou uma só vez e estas duas coisas eu ouvi: a Deus pertencem o poder e a misericórdia, porque ele retribuirá a cada um segundo suas obras”.

Fala Iditun. Sua voz vem do alto, para onde ele passou. Lá ouviu alguma coisa que nos transmite. Mas esta mensagem me perturba um pouco, irmãos. Desejo-vos bem atentos, enquanto participais de minha perturbação, ou de meu alívio. Com efeito, por auxílio do Senhor, vamos até o fim do salmo. Depois do que vamos dizer, nada resta a expor. Por isso, esforçai-vos comigo para podermos entender isso; e se eu não puder, e algum de vós penetra naquilo que não consigo, ficarei mais alegre do que invejoso. É muito difícil investigar o que vem primeiro:

Deus falou uma só vez”, e em seguida, tendo ele falado uma só vez, eu “ouvi duas coisas”.

Se ele houvesse dito: Deus falou uma só vez, e esta única coisa eu ouvi, pareceria estar cortada uma parte desta questão, e só procuraríamos saber o que significa:

Deus falou uma só vez”.

Agora, todavia, vamos investigar o que significa:

Deus falou uma só vez”, e o sentido da palavra:

estas duas coisas eu ouvi”, se ele falou uma só vez.



§ 18
Deus falou uma só vez”.

Que dizes, Iditun? Tu, que os atravessastes, falas:

Deus falou uma só vez?” Consulto outra passagem da Escritural que me diz:

Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos pais pelos profetas(Hb 1,1).

Que quer dizer:

Deus falou uma só vez?” Não é ele o Deus que nos primórdios do gênero humano falou a Adão? Não foi ele que falou a Caim, a Noé, a Abraão, a Isaac, a Jacó, a todos os profetas, e a Moisés? Moisés era um homem só; e quantas vezes Deus lhe falou? Eis que a este único homem Deus falou, não uma só vez, mas freqüentemente. Em seguida, falou ao Filho, aqui na terra:

Este é meu Filho amado(Mt 3,17).

Deus falou aos apóstolos, falou a todos os santos, embora não tenha sido por uma voz saída de uma nuvem, e sim no coração, onde ele mesmo é o mestre. Daí dizer o salmista:

Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo(Sl 84,9).

Como, então:

Deus falou uma só vez”.

O salmista ultrapassara muitas coisas, para chegar lá onde Deus falou uma só vez. Eis que já o disse brevemente a V. Caridade. Aqui, no meio dos homens Deus falou aos homens, muitas vezes, de muitos modos, em muitas partes, por muitas criaturas; em si mesmo, Deus falou uma só vez, porque Deus gerou um só Verbo. Este Iditun, portanto, atravessara por eles, ultrapassara pela penetração forte, fiel e válida da mente a terra e tudo o que é terreno, o ar, as nuvens todas, através das quais Deus falara muitas coisas, freqüentemente e a muitos; ultrapassara também todos os anjos pela intensidade da fé. E este Iditun, ao ultrapassar, não se contentara com as coisas terrenas, mas como uma águia a voar, fora além de toda a névoa que envolve toda a terra. Pois, diz a Sabedoria:

Como a neblina cobri a terra(Eclo 24,3).

Chegou a certa parte líquida, além da criação inteira, e buscando a Deus, e expandindo a sua alma acima de si mesma, alcançou o princípio, o Verbo, Deus junto de Deus (cf Jo 1,3); e encontrou o único Verbo de um só Deus Pai; e viu que Deus falou uma só vez; viu o Verbo pelo qual foram feitas todas as coisas, e no qual simultaneamente estão todas, não diversas, não separadas, não de iguais. Pois, Deus, o que fazia por meio do Verbo, também conhecia; se, porém, sabia o que fazia, estavam nele antes que fizesse o que fazia. Se não estivesse nele o que fazia antes que o fizesse, como saberia o que fazia? Pois, não podes dizer que Deus fizesse o que ignorava. Por conseguinte, Deus sabia o que fez. E como sabia antes de fazer, se não se podem conhecer senão as coisas já feitas? O conhecimento das coisas já feitas não é possível antes de que sejam feitas; mas isto, por ti, pelo homem feito na terra, e nela colocado. Antes, porém, que tudo isso fosse feito, era conhecido por aquele que o fez, e fez o que conhecia. Portanto, naquele Verbo pelo qual fez todas as cosias, elas estavam antes de serem feitas; e depois de feitas, nele estão todas. Mas difere o modo aqui e ali. De uma maneira na própria natureza em que foram feitas, e de outra na arte pela qual foram feitas. Quem pode explicar tudo isso? Podemos nos esforçar por fazê-lo. Ide com Iditun, e vede.



§ 19
Assim, à medida do possível, dissemos como Deus falou uma só vez. Vejamos quais as duas coisas que Iditun ouviu:

Estas duas coisas eu ouvi”.

Talvez não seja consentâneo que tenha ouvido somente essas duas coisas. Mas ele disse:

Estas duas coisas eu ouvi”, ouviu duas coisas que será preciso que nos diga quais são. Talvez tenha ouvido muitas outras coisas; mas não é necessário que nô-las diga. Também o Senhor declarou:

Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora compreender(Jo 16,12).

Que quer dizer, então:

Estas duas coisas eu ouvi?” Estas duas coisas que tenho a vos dizer, não as digo de mim mesmo, mas digo o que ouvi.

Deus falou uma só vez”: ele tem uma só Palavra, o unigênito que é Deus. Naquele Verbo estão todas as coisas, porque pelo Verbo tudo foi feito. Tem um só Verbo, em quem se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2,3).

Tem um só Verbo; “Deus falou uma só vez. Estas duas coisas”, que vou vos dizer, “ouvi ali; não falo por mim mesmo; não digo de mim mesmo, por isso:

ouvi”.

O amigo do esposo está presente e o ouve”, a fim de falar a verdade (Jo 3,29).

Ele o ouve, para não dizer mentira, falando do que lhe é próprio (cf Jo 8,44).

E para não dizeres: Quem és tu que me falas essas coisas? De onde vem o que me dizes? Ouvi essas duas coisas, e falo-te por que ouvi essas duas coisas, e também conheci que Deus falou uma só vez. Não desprezes aquele que ouviu e te diz essas duas coisas que te são necessárias, aquele que ultrapassando todas as criaturas ao Verbo unigênito de Deus, onde soube que Deus falou uma só vez.



§ 20
Fale, portanto, essas duas coisas. Muito nos interessam essas duas.

A Deus pertencem o poder e a misericórdia”.

São estas duas: poder e misericórdia? Sim, estas; compreende o poder de Deus, compreende a misericórdia de Deus. Nelas estão contidas quase todas as Escrituras. Por causa delas, os profetas; por causa delas duas, os patriarcas, por causa delas, a lei, por causa delas, o próprio nosso Senhor Jesus Cristo; por causa delas os apóstolos; por causa delas todo anúncio e celebração da palavra de Deus na Igreja; por causa destas duas: por causa do poder e da misericórdia de Deus. Temei o seu poder, amai sua misericórdia. Não presumais a tal ponto da sua misericórdia que desprezeis o poder, nem temais de tal modo o poder que percais a esperança acerca da misericórdia. Nele há poder, nele misericórdia. Humilha a um e exalta a outro (cf Sl 74,8); humilha a um pelo poder, exalta a oturo pela misericórdia.

Ora, se Deus, querendo manifestar sua ira e tornar conhecido seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, prontos para a perdição”.

Ouvistes a referência ao poder: procura a misericórdia.

A fim de que fossem conhecidas as suas riquezas para com os vasos de misericórdia”.

Compete, pois, a seu poder condenar os iníquos. E quem lhe dirá: Por que fizeste isto? “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus”? (Rm 9,22.23.2.20).

Teme, por conseguinte e treme diante de seu poder, mas espera em sua misericórdia. O diabo tem certo poder; muitas vezes, contudo, quer prejudicar e não pode, porque seu poder é subordinado a outro. Pois se o diabo pudesse prejudicar tanto quanto quer, não ficaria justo algum, nem fiel algum sobre a terra. Ele, por meio de seus instrumentos, investe como contra uma parede já inclinada; mas investe tanto quanto recebe para isto poder. Para que a parede não caia, o Senhor a sustenta; porque aquele que dá poder ao tentador, oferece a misericórdia ao tentado. Permite ao diabo tentar com medida. Diz o salmo:

E dar-nos-eis a beber lágrimas com medida(Sl 79,6).

Não tenhas medo de alguma permissão dada ao tentador; pois tens um salvador misericordiosíssimo. Só permite que o diabo tente quanto te for útil, para te exercitar, para te provar. Tu que não te conhecias, descobrirás por ti mesmo como és. Pois, onde e de onde nos devemos sentir seguros senão deste poder e desta misericórdia de Deus, segundo a sentença do Apóstolo:

Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças”? (1 Cor 10,13).



§ 21
Por conseguinte:

A Deus pertence o poder. Não há autoridade que não venha de Deus(Rm 13,1).

Não digas: E porque lhe dá tanto poder? E não dê poder. Quem dá poder, tem eqüidade? Tu podes murmurar maldosamente, mas ele não pode perder a eqüidade.

Há injustiça por parte de Deus? (Rm 9,14).

De modo algum”.

Grava isto no coração; o inimigo não sacuda isto para fora de teu pensamento. Pode Deus fazer alguma coisa que ignoras por que assim age; mas não pode fazer injustiça, pois nele não existe iniqüidade. Ai está. Como que censuras a Deus acusando-o de iniqüidade (estou discutindo contigo; um pouco de atenção); não censurarias como iniqüidade, a não ser que visses a justiça. Não pode ser censor de uma iniqüidade quem não distingue o que é justiça, em comparação da qual censuraria a iniqüidade. Como podes saber que tal coisa seja injusta, se não sabes o que é justo? E se for justo o que afirmas ser injusto? Respondes: De forma alguma; é injusto; e gritas como se visses com teus olhos que tal fato é injusto segundo alguma norma de justiça, em comparação com a qual o que vês é ruim. Vendo que não condiz com a retidão de tua regra, censuras qual artífice que distingue o justo do injusto. Então, eu te interrogo: Com que base julgas que isto é justo? Como, digo, vês que isto é justo, e segundo esta visão censuras o que é injusto? De onde vem esta luz que se esparge em tua alma, em muitas partes mergulhada em trevas? Que iluminação desconhecida é esta que fulgura em tua mente? Donde provém o que torna a coisa justa? Não terá uma fonte? Vem de ti fazê-la justa, e tu podes dar a ti mesmo a justiça? Ninguém dá o que não tem. Por conseguinte, se és injusto, não é possível te tornares justo senão convertendo-te a uma justiça certa estável. Se dela te apartas, és injusto. Se te acercas dela, és justo. Se te afastas, ela não desaparece; se te aproximas não aumenta. Onde, pois, se encontra tal justiça? Procura-a sobre a terra. Absolutamente não. Ao buscares a justiça, não é ouro, pedras preciosas que procuras. Procura no mar, procura nas nuvens, procura nas estrelas, procura entre os anjos; neles a encontras, mas eles a haurem da própria fonte. Pois, a justiça dos anjos existe em todos eles, mas eles a captam de um só. Olha, portanto, transcende, vá até ali onde uma só vez Deus falou; e lá encontrarás a fonte da justiça, porque lá está a fonte da vida:

Pois em ti está a fonte da vida(Sl 35,10).

Se tu queres, com um pouquinho de orvalho, julgar o que é justo e o que é injusto, haverá acaso iniqüidade em Deus, donde mana este orvalho para ti, como que da fonte da justiça? E tu enquanto percebes uma coisa justa, em muitas outras erras? Deus possui, portanto, a fonte da justiça. Não procures ali iniqüidade; ali existe luz sem sombras. Mas, sem dúvida podes desconhecer a causa de tudo isso. Se não descobres a causa, considera tua ignorância, vê quem és. Atende a essas duas coisas:

A Deus pertencem o poder e a misericórdia. Não procures o que é muito difícil para ti, não investigues o que vai além de tuas forças”.

Aplica-te sempre ao que te ordenou o Senhor (Eclo 3,21.22).

Ao que o Senhor te ordenou pertencem essas duas coisas:

A Deus pertencem o poder e a misericórdia”.

Não tenhas medo do inimigo. Tanto age quanto de poder recebe. Teme aquele que tem o poder supremo; teme aquele que pode quanto quer, e que nada faz injustamente. Tudo o que ele faz é justo. Se há uma coisa qualquer que consideramos injusta: se foi Deus quem fez, acredita que é justa.



§ 22
Perguntas: Então, se alguém mata um inocente, age com justiça ou iniquamente? Sem dúvida, iniquamente. Então, por que Deus o permite? Considera primeiro se não deves fazer o seguinte:

Reparte o teu pão com o faminto, recolhe em tua casa os pobres desabrigados, veste aquele que vês nu(cf Is 58,7).

Tal é a justiça que hás de praticar. Foi o que te ordenou o Senhor:

Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Fazei justiça ao órfão e à viúva! Então, sim, poderemos discutir, diz o Senhor(Is 1,16-18).

Queres disputar, antes de fazeres o que te tornará digno de discutir por que razão Deus permitiu isso. Não posso, ó homem, te dizer qual é o plano de Deus. Somente te digo que o homem que matou um inocente agiu mal, e não o teria feito sem permissão de Deus; e apesar de que ele agiu mal, Deus não agiu mal por tê-lo permitido. A causa te é oculta deste fato que te abala, acerca desta inocência que te comove. Poderia responder-te por alto: Não seria morto se ele não fosse prejudicial; mas tu o consideras inocente. Poderia dar-te essa rápida resposta. Tu não perscrutarias seu coração, nem discutirias seus feitos, examinarias seus pensamentos, a fim de poderes me retrucar: Foi morto injustamente. Poderia, pois, facilmente responder; mas contrapõe-se a mim um justo, justo sem controvérsia, indubitavelmente o justo, que não tinha pecado e foi morto por pecadores, traído por um pecador. É o próprio Cristo Senhor, do qual não podemos dizer que tinha qualquer iniqüidade, que pagou o que não roubou (cf Sl 68,5), que se me opõe. E que direi de Cristo? Replicas: É o que te pergunto. E eu a ti. Propões uma questão a respeito dele; eu a resolvo, com ele. Sabemos que aqui se trata do plano de Deus, que só podemos conhecer por revelação sua. E ao descobrires que se trata de um desígnio de Deus permitir que o Filho inocente fosse morto por injustos, e tal desígnio te apraz, porque se és justo não pode te desagradar, acredite que também em seus outros planos Deus age do mesmo modo, embora te seja oculto. Eis, irmãos. Era preciso que o sangue do justo fosse derramado para apagar o quirógrafo dos pecados (cf Cl 2,14-15).

Era necessário um exemplo de paciência, um exemplo de humildade. Era necessário o signo da cruz para debelar o diabo e seus anjos. Era-nos indispensável a paixão de nosso Senhor, pois pela paixão do Senhor o mundo inteiro foi remido. Quantos bens derivam da paixão do Senhor! E no entanto, essa paixão do justo não teria sucedido se os iníquos não matassem o Senhor. Então os bens que nos advieram da paixão do Senhor hão de ser imputados aos iníquos que mataram a Cristo? De forma nenhuma. Eles quiseram, Deus permitiu. Mesmo que somente o planejassem, eles eram culpados, Deus, porém, não o teria permitido se não fosse justo. Quiseram matar — imagine que não o pudessem — eram iníquos, eram homicidas. Quem duvida disso? “O Senhor interroga o justo e o ímpio(Sl 10,6).

E:

Indagar-se-á sobre os planos do ímpio(Sb 1,9).

Deus examina o que cada um quis, não o que pôde. Por conseguinte, se eles quisessem e não o tivessem podido, e não matassem, seriam iníquos; quanto a ti, não te seria prestado o benefício da paixão de Cristo. Efetivamente, o ímpio quis cometer o crime para ser condenado; foi-lhe permitido para te ser prestado o benefício. A vontade do ímpio foi-lhe imputada como iniqüidade. A permissão é atribuída ao poder de Deus. Ele, portanto, é iníquo porque quis; Deus o permitiu, com justiça. Em conseqüência disso, irmãos, é maligno Judas, traidor de Cristo; os perseguidores de Cristo são todos malignos, todos ímpios, todos iníquos, todos devem ser condenados. Todavia, “o Pai não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós(Rm 8,32).

Dispõe, se podes; distingue, se podes: cumpre os votos feitos a Deus, que teus lábios articularam (cf Sl 65,13).

Vê o que fez o iníquo e qual a obra do justo. O primeiro quis, o segundo permitiu. O primeiro quis injustamente; o segundo permitiu com justiça. Seja condenada a vontade injusta e glorificada a permissão justa. Que mal constituiu para Cristo a sua morte? São maus aqueles que quiseram praticar o mal; mas nada de mal sofreu aquele ao qual eles quiseram infligi-lo. Foi morta a carne mortal, que matou a morte com a sua morte, apresentou um exemplo de paciência, e previamente deu uma prova da ressurreição. Quantos bens advieram ao justo de um mal injusto! É grandeza de Deus criar o bem que te concede fazer, e do mal que praticas tirar o bem. Não te admires. Deus permite, e permite por justiça. Permite com medida, número e peso. Nele não existe iniqüidade. Tu apenas mantém-te na pertença dele, põe nele a tua esperança. Seja ele teu protetor, tua salvação. Ele é um lugar fortificado, torre forte. Seja teu refúgio e não te deixará seres tentado além de tuas forças, mas com a tentação te dará os meios de sair dela (cf 1Cor 10,13).

Vem de seu poder deixar que sofras a tentação; e de sua misericórdia não permitir que vão além do que podes suportar:

A Deus pertencem o poder e a misericórdia. Ele retribuirá a cada um segundo suas obras”.

(Terminada a explanação do salmo, sendo apresentado ao povo um astrólogo, acrescentou a respeito dele:)



§ 23
A Igreja, em sua sede, quer absorver também a este, que vedes. Sabeis que muitos, misturados aos cristãos, bendizem com a boca, mas maldizem do coração. Sabeis igualmente que este homem era cristão e fiel e volta penitente; atemorizado com o poder do Senhor, volta-se para sua misericórdia. Quando fiel foi seduzido pelo inimigo, e durante muito tempo foi astrólogo. Seduzido seduziu, enganado enganou, aliciou, iludiu, falou muitas mentiras contra Deus, que deu aos homens o poder de fazer o que é bom e de não fazer o que é mau. Ele dizia que o adultério não provinha da vontade própria, mas de Vênus; que o homicídio não se originava da própria vontade, mas de Marte; que não era Deus quem fazia o justo e sim Júpiter; e outras muitas grandes afirmações sacrílegas. De quantos cristãos, pensais que ele tirou dinheiro? Quantos dele compraram mentiras! A estes dizíamos: Filhos dos homens até quando tereis o coração empedernido? Por que amais a vaidade e procurais a mentira? (cf Sl 4,3).

Agora, como acreditamos, tem horror da mentira, e tendo sido sedutor de muitos homens, sentiu por fim que estava sendo enganado pelo diabo, e converte-se para Deus, fazendo penitência. Pensamos, irmãos, que isto aconteceu, devido a grande temor do coração. Que dizer? Se fosse um astrólogo pagão que se convertesse grande seria a alegria; mas poderia parecer que se convertesse procurando tornar-se clérigo na Igreja. Mas é um penitente; procura apenas a misericórdia. Torna-se, portanto, recomendável a vossos olhos e a vossos corações. A este que vedes amai de coração, conservai diante de vossos olhos. Vede-o, conhecei-o, e seja para onde for, mostrai-o aos irmãos que agora aqui não estão. Esta providência é misericórdia, a fim de que o sedutor não lhe feche o coração e o ataque. Precaução; seja-vos conhecida sua vida, seus caminhos, para que por vosso testemunho se confirme que ele sinceramente se converteu a Deus. Não se apagará a fama de sua vida, quando ele é assim apresentado a vossa vista e a vossa compaixão. Sabeis que nos Atos dos Apóstolos está escrito que muitos homens perdidos, isto é, homens destes artifícios, seguidores de ensinamentos nefandos, levaram todos os seus códices aos apóstolos; e foram tantos os livros queimados que o escritor fez a estimativa deles e anotou a soma de seu valor (At 19,19).

De fato, isto foi pela glória de Deus, para que tais homens perdidos não desesperassem, por causa daquele que sabe procurar o que havia perecido (Lc 15,32).

Portanto, este também perecera; agora foi procurado, encontrado, trazido de volta; traz consigo códices que devem ser queimados. Estes códices o queimariam; lançados no fogo, trar-lhe-ão refrigério. Seja-vos notório, irmãos, que ele bateu à porta da Igreja, há mais tempo, antes da Páscoa; antes da Páscoa começou a pedir à Igreja de Cristo a sua cura. Mas como o ofício em que se empenhara é sempre suspeito de mentira e fraude, foi adiada a admissão, para não haver engano; por fim, foi admitido, para que ele não corresse perigo mais de ser tentado. Rezai por ele a Cristo. Derramai hoje vossas orações diante do Senhor nosso Deus em seu favor. Estamos certos e cientes de que vossa oração apagará todas as suas impiedades. O Senhor esteja convosco.