SALMO 𝟝𝟡

Livra-me do que praticam a iniqüidade, e salva-me dos homens sanguinários.

Pois eis que armam ciladas à minha alma; os fortes se ajuntam contra mim, não por transgressão minha nem por pecado meu, ó Senhor.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 59


§ 59:1  Ł Livra-me, Deus meu, dos meus inimigos; protege-me daqueles que se levantam contra mim.

§ 59:2  Ł Livra-me do que praticam a iniqüidade, e salva-me dos homens sanguinários.

§ 59:3  Pois eis que armam ciladas à minha alma; os fortes se ajuntam contra mim, não por transgressão minha nem por pecado meu, ó Senhor.

§ 59:4  Eles correm, e se preparam, sem culpa minha; desperta para me ajudares, e olha.

§ 59:5  Ŧ Tu, ó Senhor, Deus dos exércitos, Deus de Israel, desperta para punir todas as nações; não tenhas misericórdia de nenhum dos pérfidos que praticam a iniqüidade.

§ 59:6  Eles voltam à tarde, uivam como cães, e andam rodeando a cidade.

§ 59:7  Eis que eles soltam gritos; espadas estão nos seus lábios; porque (pensam eles), quem ouve?

§ 59:8  ɱ Mas tu, Senhor, te rirás deles; zombarás de todas as nações.

§ 59:9  Em ti, força minha, esperarei; pois Deus é o meu alto refúgio.

§ 59:10  O meu Deus com a sua benignidade virá ao meu encontro; Deus me fará ver o meu desejo sobre os meus inimigos.

§ 59:11  Ɲ Não os mates, para que meu povo não se esqueça; espalha-os pelo teu poder, e abate-os ó Senhor, escudo nosso.

§ 59:12  Pelo pecado da sua boca e pelas palavras dos seus lábios fiquem presos na sua soberba. Pelas maldições e pelas mentiras que proferem,

§ 59:13  ɔ consome-os na tua indignação; consome-os, de modo que não existem mais; para que saibam que Deus reina sobre Jacó, até os confins da terra.

§ 59:14  Eles tornam a vir à tarde, uivam como cães, e andam rodeando a cidade;

§ 59:15  vagueiam buscando o que comer, e resmungam se não se fartarem.

§ 59:16  Eu, porém, cantarei a tua força; pela manhã louvarei com alegria a tua benignidade, porquanto tens sido para mim uma fortaleza, e refúgio no dia da minha angústia.

§ 59:17  A ti, ó força minha, cantarei louvores; porque Deus é a minha fortaleza, é o Deus que me mostra benignidade.


O SALMO 59


SERMÃO AO POVO (Proferido em Cartago)



§ 1
1.2 O título deste salmo é um pouco prolixo: mas não nos assuste, porque o salmo é curto. Prestemos-lhe atenção, como se tratasse de um salmo um pouco mais longo. Falamos na Igreja de Deus aos que foram e devem ser nutridos em nome de Cristo e não a homens alheios ao sabor destas Sagradas Letras, pelas quais o mundo não se interessa. Não as deveis ter como alimentos sem gosto. Se ruminastes no pensamento, com prazer, as coisas que ouvistes com frequência, e não as sepultastes no esquecimento, como se as engolísseis rapidamente, muito poderá vos ajudar a vossa própria recordação e vossa memória; e não precisaremos falar muito para explanar, como se fôsseis ignorantes, coisas que sabemos ser de vosso conhecimento. Certamente lembramo-nos de que ouvistes muitas vezes o que dizemos. No salmo encontrará apenas as vozes de Cristo e da Igreja; ou só de Cristo, ou somente da Igreja, da qual, de fato, fazemos parte. Por este motivo, ao reconhecermos nossa voz, não o podemos fazer sem afeto; e tanto mais nela nos deleitamos quanto percebemos que dela participamos. O rei Davi foi um homem, mas não figurava apenas um só homem, a saber, figurava a Igreja que consta de muitos membros, e se estende até os confins da terra. Ao invés, quando representava só um homem, representava aquele que é o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus (cf 1Tm 2,5).

Neste salmo, portanto, ou antes no título deste salmo se referem alguns feitos vitoriosos de Davi, realizados com vigor, ao debelar certos inimigos, que tornou tributários seus, quando após a morte de seu perseguidor Saul, recebeu publicamente o reino de Israel. Pois, mesmo antes de sofrer perseguição era rei, mas só de Deus conhecido. Depois, portanto, o reinado seu já era manifesto, e tendo-o recebido de forma evidente e sublime, derrotou os inimigos mencionados neste título. Assim está anotado no título deste salmo:

Para o fim, por aqueles que serão mudados. Inscrição do título. De Davi. Para ensino. Quando ele incendiou a Mesopotâmia da Síria e a Síria de Soba e quando Joab, de regresso, desbaratou 12.000 homens de Edom, no vale do Sal”.

Lemos nos Livros dos Reis que todos esses aqui mencionados foram vencidos por Davi, isto é, a Mesopotâmia da Síria, a Síria de Soba, Joab, Edom (cf 2Rs 8).

Tudo isso se realizou, e foi registrado como se realizou, e assim se lê. Leia quem quiser. No entanto, como costuma o espírito do profeta, no título dos salmos, afastar-se um pouco da expressão dos fatos, e contar algo que não se encontra na história, com isso nos avisa antes que tais inscrições dos títulos não tratam de tornar conhecidos os fatos como se deram, mas são figuras de coisas futuras. Assim, foi dito que Davi alterou a expressão do rosto diante de Abimelec, deixou-o e partiu (cf Sl 33,1), enquanto a Escritura no livro dos Reis indica que ele agiu desta maneira não diante de Abimelec, mas do rei Aquis (cf 1Rs 21,13).

Igualmente neste título encontramos algo que aponta para outra coisa. Efetivamente, naquela narração dos feitos valorosos e das guerras do rei Davi, onde foram vencidos todos os que aqui citamos, não lemos que tenha incendiado alguma coisa. Aqui principalmente está escrito, o que lá não se encontra, que ele incendiou a Mesopotâmia da Síria e a Síria de Soba. Comecemos, pois, a discutir estes pontos segundo o significado de coisas futuras, e dissipar a opacidade das sombras com a luz do Verbo.



§ 2
Para o fim”, sabeis o que significa.

O fim da Lei é Cristo(Rm 10,4).

Conheceis também aqueles que serão mudados. Quais são senão os que passam da antiga vida à nova? Longe de nós pensar que aqui se trata de mudança culpável. Não se refere à mudança de Adão da justiça à iniqüidade e das delícias ao labor, mas à daqueles dos quais foi dito:

Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor(Ef 5,8).

Estes, pois, se mudam segundo a “inscrição do título”.

Conheceis a inscrição do título. Na cruz do Senhor foi afixado um título, com a inscrição:

Este é o rei dos judeus(Mt 27,37).

Mudam-se segundo a inscrição deste título os que passam do reino do diabo para o reino de Cristo. Mudam-se de maneira louvável, segundo a inscrição deste título. Mudam-se, de fato, como se segue:

Para ensino”.

Tendo dito o salmista:

Por aqueles que serão mudados. Inscrição do título”, acrescentou:

De Davi. Para ensino”, isto é, mudam-se não para si, mas para Davi, e mudam-se de acordo com o ensino. Pois, Cristo não é rei deste século, conforme declarou abertamente:

Meu reino não é deste mundo(Jo 18,36).

Por conseguinte, passemos para sua doutrina, se queremos nos transformar conforme a inscrição do título, não para nós mesmos, mas para o próprio Davi, de sorte que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles (cf 2Cor 5,15).

Como, pois, poderia Cristo nos transformar se não fizesse o que disse:

Eu vim trazer fogo à terra”? (Lc 12,49).

Se Cristo veio trazer fogo à terra, foi efetivamente de modo salutar e útil e não para lançar o mundo no fogo. Mas como trouxe “fogo à terra?” Uma vez que ele veio trazer fogo à terra, investiguemos o que é a Mesopotâmia que foi incen-diada, o que é a Síria de Soba. Interroguemos, pois, a tradução dos nomes de acordo com a língua hebraica, na qual foi proferida em primeiro lugar, esta passagem da Escritura. Diz-se que Mesopotâmia se traduz por vocação elevada. O mundo inteiro já foi elevado por uma vocação. Síria interpreta-se como sublime. Mas aquela que era sublime foi incendiada e humilhada. E como foi humilhada a que fora exaltada, assim se exalte a que fora humilhada. Soba se traduz por beleza vã. Graças a Cristo, que a incendiou. Quando se queimam os velhos matagais brotam novos, e estes nascem mais rapidamente e mais verdejantes quando o fogo passou antes pelos antigos. Não se tenha medo, portanto, do fogo de Cristo; ele consome o feno. Pois, toda carne é feno, e toda a glória do homem é como a flor do feno (cf Is 40,5).

Aquele fogo a queima.

E Joab” se voltou. Joab se traduz por inimigos. O inimigo se voltou. Entende isso como quiseres. Se ele se voltou fugindo, trata-se do diabo; se ele se voltou para a fé, é cristão. Como fugindo? Do coração do cristão:

Agora o príncipe deste mundo será lançado fora(Jo 12,31).

Por que se fala em inimigo que se voltou, quando o cristão se voltou para o Senhor? Porque se tornou fiel o que fora inimigo.

Desbaratou Edom”.

Edom significa terreno. Este homem terreno precisava ser batido. Como viver o homem terreno se deve viver como homem celeste? Portanto, a vida terrena foi destruída; viva a celeste. Assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também a imagem do homem celeste (cf 1Cor 15,49).

Vede como ele morre:

Mortificai, pois, os vossos membros terrenos(Cl 3,5).

Joab, ao desbaratar Edom, desbaratou “doze mil no vale do Sal”.

Doze mil é número perfeito. A este número perfeito se relaciona o duodenário número dos apóstolos. Não foi sem razão, porque a palavra devia ser anunciada no mundo inteiro. A palavra de Deus, que é o Cristo, encontra-se nas nuvens, isto é, nos pregadores da verdade. O mundo, porém, consta de quatro partes. Suas quatro partes são bem conhecidas de todos, e são relembradas muitas vezes nas Escrituras, sendo também denominadas quatro ventos: oriente, ocidente, norte e sul (cf Ez 37,9).

A palavra foi enviada a estas quatro partes, para que todas fossem chamadas em nome da Trindade. Três vezes quatro são doze. Com razão, portanto, doze mil homens terrenos foram mortos; todo o mundo foi ferido; de todo o mundo foi escolhida a Igreja, depois de mortificada sua vida terrena. Por que “no vale do Sal?” Vale representa a humildade; o sal representa o sabor. Pois, muitos são humilhados, mas em vão e de modo insensato: humilham-se mas devido a vetustez vã. Imaginemos que alguém sofre tribulação por causa de dinheiro, sofre tribulação devido a honras temporais, sofre tribulação relativa às comodidades desta vida. Se há de sofrer tribulação e ser humilhado, por que não será por causa de Deus? Por que não por causa de Cristo? Por que não por causa do sabor do sal? Ignorais o que vos foi dito:

Vós sois o sal da terra”; e:

Ora, se o sal se tornar insosso, para nada mais serve, senão para ser lançado fora”? (Mt 5,13).

É bom, portanto, ser humilhado com sabedoria. Agora os hereges não são humilhados? Não foram promulgadas leis contra eles, também da parte dos homens? Contra eles não há leis divinas, que anteriormente já os condenaram? Eis que são humilhados, afugentados, sofrem perseguição, mas sem sabor, por insensatez, por vaidade. Pois, o sal já é insosso, e por este motivo foi lançado fora a fim de ser pisado pelos homens. Ouvimos o título do salmo; ouçamos igualmente as palavras do salmo.



§ 3
3 “Ó Deus, tu nos rejeitaste e nos arruinaste”.

Acaso fala aquele Davi que feriu, que incendiu, que desbaratou, e não aqueles aos quais ele infligiu tudo isso, para abater e repelir os que eram maus, e ao contrário ainda vivificá-los, transformando-os em bons? Com efeito, aquele nosso Davi de mão forte, Cristo, fez tal devastação. Davi o figurou. Fez tal façanha, praticou esta devastação, com espada e fogo; ele trouxe ambas as coisas a este mundo. Temos no evangelho:

Eu vim trazer fogo à terra(Lc 12,49), e:

Vim trazer espada à terra(Mt 10,34).

Trouxe fogo para incendiar a Mesopotâmia da Síria e a Síria de Soba; trouxe espada para ferir Edom. Causou esta devastação por causa daqueles que são mudados, segundo a “inscrição do título. De Davi”.

Ouçamos, portanto, a sua voz; para sua salvação foram abatidos, e reerguidos falam. Digam, por conseguinte, os que mudaram para melhor; os que mudaram para a inscrição do título, mudaram para a doutrina, de Davi. Digam:

Ó Deus, tu nos rejeitaste e nos arruinaste; tu te iraste e te compadeceste de nós”.

Tu nos destruíste para nos edificares; tu nos destruíste porque estávamos mal construídos, destruíste a construção antiga e caduca, substituindo-a pela do homem novo, edificação que há de permanecer eternamente. Com razão, “tu te iraste e te compadeceste de nós”.

Não te compadecerias se não te houvesses irado. Tu nos destruíste em tua ira; tua ira, porém, foi contra nossa vetustez para destruí-la. Mas de nós te compadeceste em vista de uma vida nova, por causa daqueles que são mudados, conforme a inscrição do título, uma vez que, embora em nós o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia-a-dia (cf 2Cor 4,16).



§ 4
Fizeste tremer a terra e a perturbaste”.

Como se perturbou a terra? Foi com a consciência dos pecados. Para onde ir, para onde fugir, quando aquela espada foi brandida:

Convertei-vos, porque o reino dos céus está próximo”? (Mt 3,2).

Fizeste tremer a terra e a perturbaste. Repara suas brechas, porque vacila”.

Não merece ser curada, se não se comoveu. Falas, pregas, ameaças da parte de Deus, não deixas de dizer que o juízo virá, admoestas acerca do preceito de Deus. Nada disto omites. Se o ouvinte não teme, não se comove, não merece ser curado. Ouve outro. Comove-se, sente-se estimulado, bate no peito, derrama lágrimas.

Repara suas brechas, porque vacila”.



§ 5
Depois disso, tendo sido vencido o homem terreno e incendiado o que era velho, foi o homem transformado em melhor; e após serem dissipadas as trevas, tendo brilhado a luz, segue o que se encontra em outra passagem da Escritura:

Filho, se te dedicares a servir o Senhor”, permanece na justiça e no temor, e prepara-te para a prova” (Eclo 2,1).

O primeiro esforço consiste em não te comprazeres em ti mesmo, em expulsar o pecado, em mudares para melhor; em segundo lugar, esforçar-te, desde que estás mudado, por suportar tribulações e tentações neste mundo, e no meio delas perseverar até o fim. Depois de dizer estas coisas, e de as indicar, o que acrescenta o salmista? “Impuseste duras provações a teu povo”.

Quais? As perseguições suportadas pela Igreja de Cristo, quando tamanha quantidade de sangue dos mártires foi derramada.

Impuseste duras provações a teu povo. Fizeste-nos beber um vinho inebriante”.

Que significa:

Inebriante?” Vão mortífero. Não era para perder e matar, mas terapia cauterizante.

Fizeste-nos beber um vinho inebriante”.



§ 6
6 Qual a razão disso? “Aos que te temem deste um sinal para fugirem diante do arco”.

Por meio das tribulações temporais indicaste aos teus como fugir da ira do fogo eterno. Pois diz o apóstolo Pedro:

É tempo de começar o juízo pela casa de Deus”.

Fala o apóstolo Pedro, exortando os mártires à tolerância, quando o mundo se enfurecia, os perseguidores infligiam morticínios, por toda parte o sangue dos fiéis era derramado e os cristãos passavam por duros padecimentos, nas cadeias, nos cárceres, nos tormentos, a fim de não perderem o ânimo nestes pesados sofrimentos:

É tempo de começar o juízo pela casa de Deus. Ora, se ele começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a crer no evangelho de Deus? Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e pecador”? (1Pd 4,17.18).

Que acontecerá, pois, no juízo? O arco está tenso; por enquanto são apenas ameaças; ainda não veio a realização. E vede o que sucede com o arco. A flecha não é lançada para a frente? A corda, no entanto, é puxada para trás, ao contrário da direção que a flecha seguirá; e quanto maior for a tensão para trás, com ímpeto tanto mais intenso a flecha corre para a frente. Que quero dizer com isso? Quanto mais demorar o juízo, com ímpeto tanto maior há de vir. Por conseguinte, demos graças a Deus por causa das tribulações temporais, porque ele deu um sinal a seu povo “para fugir diante do arco”.

Os fiéis, exercitados nestas tribulações temporais, tornem-se dignos de escapar da condenação ao fogo eterno, que atingirá todos os que não acreditarem.

Aos que te temem deste um sinal para fugirem diante do arco”.



§ 7
6.7 “A fim de serem preservados teus amigos. Salva-me com a tua destra e escuta-me”.

A tua direita, Senhor, me salve; salva-me de sorte que fique à direita.

Salva-me com a tua destra”.

Não é a salvação temporal que peço; a respeito desta, faça-se a tua vontade. Ignoramos inteiramente o que nos é útil no tempo; não sabemos o que devemos pedir (cf Rm 8,26).

Mas, “salva-me com a tua destra”, de tal forma que, apesar de sofrer no tempo algumas tribulações, após haver passado a noite de todas as tribulações, encontre-me à direita entre as ovelhas e não à esquerda entre os cabritos.

Salva-me com a tua destra e escuta-me”.

Já estou pedindo aquilo que gostas de dar. Não clamo de dia com as palavras de meus delitos, e isso não ouves. E à noite, para não ouvires, e não me ser atribuída a loucura (cf Sl 21,2.3).

De fato, é aviso, acrescentando-se a ele sabor, devido ao vale do Sal, para que na tribulação saiba o que devo pedir. Peço, contudo, a vida eterna. Ouve-me, porque peço a tua direita. Entenda, portanto, V. Caridade que o fiel que guarda a palavra de Deus no coração, e com temor receia o juízo futuro, que vive de maneira honesta para que o nome santo de seu Senhor não seja blasfemado por causa dele, suplica muitas coisas temporais e não é atendido; quanto à vida eterna, seus pedidos sempre são atendidos. Quem há que não peça a saúde, quando está doente? Todavia, pode ser-lhe útil estar ainda doente. É possível, então, que não sejas atendido nesta questão; não és ouvido segundo tua vontade, mas és atendido conforme o que te é vantajoso. Ao invés, porém, ao pedires te seja dada por Deus a vida eterna, que Deus te conceda o reino dos céus e te possibilita estar à direita de seu Filho, quando ele vier julgar a terra, fica tranqüilo. Receberás, mesmo se agora não recebes; ainda não chegou o tempo de receberes. És atendido, sem o saberes. Realiza-se o que pedes, embora ignores como. O resultado está na raiz; ainda não em frutos.

Salva- me com a tua destra e escuta-me”.



§ 8
8 “Deus falou em seu santuário”.

Por que tens medo de que não se realize o que Deus falou? Se tivesses um amigo grave e sábio, como dirias? Ele disse isso, forçosamente será como ele falou; é um homem sério, não fala levianamente, não muda facilmente de parecer, o que prometeu é seguro. Contudo, é um homem que às vezes quer cumprir o que prometeu e não pode. Relativamente a Deus, não há o que temer. Consta que é veraz. Consta que é onipotente. Não pode te enganar. Tem com que cumprir. Por que hás de recear que serás decepcionado? É preciso que tu não te enganes, e perseveres até o fim, quando ele dará o que prometeu.

Deus falou em seu santuário”.

Em que “santuário? Era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo(2 Cor 5,19).

Naquele santuário, sobre o qual ouviste dizer em outro lugar:

No santuário, ó Deus, é o teu caminho (Sl 76,14).

Deus falou em seu santuário. Alegrar-me-ei e repartirei Siquém”.

Tendo Deus asim falado, assim se fará. É a voz da Igreja:

Deus falou em seu santuário”.

Não declara que palavras Deus proferiu; mas como “Deus falou em seu santuário”, e nada pode acontecer senão o que Deus falou, em conseqüência disso, virá o seguinte:

Alegrar-me-ei e repartirei Siquém e medirei o vale dos tabernáculos. Siquém significa ombros. Conforme a história, Jacó, ao voltar de junto de seu sogro Labão com todos os seus, escondeu em Siquém os ídolos que trouxera da Síria, onde peregrinara por muito tempo e de onde vinha afinal. Em Siquém levantou tendas, por causa de suas ovelhas e seus rebanhos, e denominou aquele lugar: Tabernáculos (cf Gn 35,4; 33,17).

E estes eu dividirei, diz a Igreja. Qual o sentido da frase:

Repartirei Siquém?” Se é referente à história dos ídolos que foram escondidos significa os povos. Reparto os povos. Qual o significado de: Reparto? Nem todos têm a fé (cf 2Ts 3,2).

Que significa: reparto? Uns crêem, outros não crêem; não tenham medo, contudo, os que crêem, no meio daqueles que não crêem. Agora se dis-tinguem pela fé; depois, no juízo, serão separados, as ovelhas à direita, os cabritos à esquerda (cf. Mt 25,33).

Aí está como a Igreja reparte Siquém. Como separa os ombros, conforme a tradução do nome? Separam-se os homens de acordo com os ombros, porque a uns pesam seus pecados e a outros é leve o fardo de Cristo. Ele procurava onde encontrar ombros piedosos, quando dizia:

O meu jugo é suave e o meu farod é leve(Mt 11,30).

Os outros fardos te oprimem e pesam sobre ti; o de Cristo, porém, te levanta. Outros fardos têm peso; o de Cristo tem asas. Pois, se tiras as penas de uma ave, pareces tirar-lhe um peso; e quanto mais peso tirares, mais presa à terra ficará. Aquela que quiseste aliviar jaz por terra; não voa porque lhe tiraste o peso; que este volte, e ela voará. Tal é o fardo de Cristo. Que os homens o carreguem; não sejam preguiçosos; não observem aqueles que não o querem carregar. Carreguem-no os que querem e verão como é leve, como é suave, como é agradável, como arrebata para o céu, livrando da terra.

Repartirei Siquém e medirei o vale dos tabernáculos”.

Talvez por causa das ovelhas de Jacó, entende-se por vale dos tabernáculos o povo judaico, que também é repartido, porque saíram dali os que acreditaram, enquanto os restantes ficaram.



§ 9
9 “Galaad é meu”.

Estes nomes se lêem nas Escrituras de Deus. Galaad interpreta-se como sendo um grande mistério; traduz-se por acervo do testemunho. Como são grandes os acervos de testemunho nos mártires! “Galaad é meu”, meu é o acervo do testemunho, meus são os verdadeiros mártires. Morram outros por causa de sua antiga vaidade sem sal; acaso pertencem ao acervo do testemunho? “Ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria(1 Cor 13,3).

Como o Senhor em certo lugar admoesta a respeito da paz que há de ser mantida, referiu-se antes ao sal:

Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros(Mc 9,49).

Por conseguinte:

Galaad é meu”, mas Galaad, isto é, o acervo do testemunho, evidentemen-te se constituiu em meio a grande tribulação. Então a Igreja era tida entre os homens por uma ignomínia, então se lhe objetava o opróbrio da viúva, porque era de Cristo e trazia na fronte o sinal da cruz. Esta, então, não era ainda uma honra; era um crime. Quando, pois, ainda não estava cercada de honrarias, mas era considerada um crime, então se produziu o acervo do testemunho; e por este dilatou-se a caridade de Cristo. A dilatação da caridade atingiu os povos. Segue:

Meu é Manassés”, que significa esquecido. Então se dizia à Igreja:

Hás de esquecer a tua condição vergonhosa para sempre, não te lembrarás do opróbrio da tua viuvez(Is 54,4).

Outrora havia para a Igreja condição vergonhosa que agora ela já esqueceu; não se lembra mais da confusão e ignomínia de sua viuvez. Quando havia este opróbrio entre os homens acumulou-se o acervo do testemunho. Agora já ninguém se lembra desta vergonha, de quando era ignomínia ser cristão; já ninguém se lembra, todos já se esqueceram, já “é meu Manassés. Efraim é a força de minha cabeça”.

Efraim significa frutificação. É minha a fruti-ficação, e esta frutificação é a força de minha cabeça. Minha Cabeça, efetivamente, é Cristo. E donde vem que a frutificação é sua força? Se o grão não caísse na terra, não se multiplicaria, ficaria só. Na paixão, portanto, Cristo caiu na terra, e seguiu-se a frutificação na ressurreição.

Efraim é a força de minha cabeça”.

Pendia Cristo da cruz e era desprezado. O grão estava escondido e tinha força para atrair tudo a si (Jr 12,24.32).

No grão se oculta a força de germinação; apresenta-se aos olhos como coisa vil, mas encerra a força de transformar a matéria e produzir fruto. Assim em Cristo crucificado ocultava-se a força e manifestava-se a fraqueza. Oh, grande grão! Certamente é fraco na cruz, de fato diante dele o povo meneava a cabeça, e em verdade disseram:

Se é Filho de Deus, desça da cruz(cf Mt 27,40).

Ouve qual é sua fortaleza:

O que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens(1 Cor 1,25).

Com razão obteve tão grande frutifi-cação; ela é minha, diz a Igreja.



§ 10
10 “Judá é meu rei, Moab é a ola de minha esperança. Judá é meu rei”.

Quem é Judá? O chefe da tribo de Judá. Quem é Judá senão aquele a quem o próprio Jacó disse:

Judá, teus irmãos te louvarão”? (Gn 49,8).

Judá é meu rei”.

Que temerei, se Judá, meu rei, disse:

Não temais os que matam o corpo”? (Mt 10,28).

Judá é meu rei, Moab é a ola de minha esperança”.

Por que:

ola?” Por causa da tribulação. Por que:

de minha esperança?” Porque precedeu Judá, o meu rei. Por que temes segui-lo pelo caminho por onde te precedeu? Por onde precedeu? Através das tribulações, angústias, opróbrios. O caminho estava impedido, mas antes que ele passasse; depois que ele atravessou, segue-o; o caminho está aberto devido a sua passagem.

Estou só, até que passe”, diz um salmo (Sl 140,10).

O grão fica sozinho, até que passe; quando tiver passado, virá a frutificação.

Judá é meu rei”.

Portanto, se “Judá é meu rei, Moab é a ola de minha esperança”.

Moab representa as nações. Esta nação nasceu de um pecado, nasceu das filhas de Ló, que dormiram com o pai embriagado, abusando do pai (Gn 19,31.38).

Era melhor que permanecessem estéreis do que serem mães deste modo. O fato constitui uma figura dos que abusam da lei. Não deis importância a que lei em latim é do gênero feminino; em grego é palavra masculina. Mas seja o gênero feminino na expressão, seja do masculino, a locução não anula a verdade. Pois, a lei tem mais o caráter masculino, porque rege e não é regida. Mas, como se exprime o apóstolo Paulo? “A lei é boa, conquanto seja usada segundo as regras(1 Tm 1,8).

As filhas de Ló, porém, não aproveitaram do pai legitimamente. Como se originam obras boas quando alguém emprega bem a lei, assim se produzem obras más, quando alguém emprega mal a lei. Por isso, elas empregando mal o pai, isto é, utilizando a lei, geraram moabitas, que representam obras más. Daí a tribulação da Igreja, daí a ola que ferve. Desta ola se diz em certa passagem profética:

Vejo uma panela fervendo, cuja boca está voltada para o norte(Jr 1,13).

De onde vem senão das partes do diabo que disse:

Estabelecer-me-ei nos confins do norte(cf Is 14,13).

Por conseguinte as máximas tribulações que advêm à Igreja são as originadas daqueles que usam mal as leis. E então? A Igreja, por isso, há de desfalecer, e por causa da ola, isto é, da abundância dos escândalos, não há de perseverar até o fim? (Mt 24,12).

Acaso Judá, seu rei, lhe terá predito essas coisas? Não lhe disse:

E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará”? (Mt 24,12).

A panela ferve, e a caridade se esfria. Por que, então, ó caridade, tu não ferves antes contra a panela? Ignoras que te foi dito, quando teu rei falava da abundância dos escândalos:

Aquele que perseverar até o fim, esse será salvo”? (Mt 24,13).

Persevere, portanto, até o fim, contra a ola dos escândalos. A ola da iniqüidade arde; mais intensa é a chama da caridade. Não te deixes vencer; persevera até o fim. Por que receias os moabitas, as obras más daqueles que aplicam mal a lei? Não os suportou teu rei, Judá, que te precedeu? Não sabes que os judeus, aplicando erradamente a lei, mataram a Cristo? Por conseguinte, espera e prossegue pelo caminho para onde teu rei te precedeu. Dize:

Judá é meu rei”.

E uma vez que “Judá é meu rei”, que será “Moab? Ola de minha esperança”, não de minha eliminação. Observa a ola da esperança no meio das tribulações, escutando o Apóstolo:

Nós nos gloriamos também nas tribulações”.

Já temos a ola; mas vê se a continuação do trecho explica a ola da esperança.

Sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança”.

Se a tribulação produz a perseverança, a perseverança a virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança, enquanto a ola é a tribulação que produz a esperança, com razão “Moab é a ola de minha esperança”.

E a “esperança não decepciona”.

E por que motivo? Ferves contra a panela? Sim, “porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,3-5).



§ 11
Sobre a Iduméia atirarei as sandálias”.

Fala a Igreja: Chegarei até “a Iduméia”.

Enfureçam-se as tribulações, fervam os escândalos do mundo, “atirarei as sandálias sobre a Iduméia”, sobre aqules mesmos que levam uma vida terrena (porque Iduméia significa terrena); sobre eles, “sobre a Iduméia atirarei as sandálias”.

Quais sandálias, a não ser as dos evangelhos? “Quão maravilhosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam boas notícias”! (cf Is 52,7; Rm 10,15).

E:

Calçados os pés com a preparação do evangelho da paz(Ef 6,15).

Finalmente, como “a tribulação produz a perseverança, a perseverança um virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança (que a panela não me consuma), o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo espírito Santo que nos foi dado”, não desistamos de pregar o evangelho, não desistamos de anunciar o Senhor.

Sobre a Iduméia atirarei as sandálias”.

Não o servem os próprios homens terrenos? Apesar de presos às ambições terrenas, adoram a Cristo. Hoje vemos, irmãos, quantos homens terrenos cometem fraudes tendo em vista o lucro, e por causa das fraudes proferem juramentos falsos; levados pelo medo, consultam os agoureiros, os astrólogos. Todos esses são idumeus, são terrenos; contudo, adoram todos eles a Cristo, estão debaixo de seus pés. Ele já atirou suas sandálias sobre a Iduméia.

Os alófilos me estão sujeitos”.

Quem são esses “alófilos?” São os estrangeiros, que não pertencem a minha raça.

Estão sujeitos”, porque muitos adoram a Cristo, mas não reinarão com ele.

Os alófilos me estão sujeitos.



§ 12
11 Quem me introduzirá na cidade circunvizinha?” Que é cidade circunvizinha? Se vos recordais, já a mencionei em outro salmo, onde foi dito:

Rondando pela cidade inteira(Sl 58,7.15).1 Cidade circunvizinha, porque os povos estavam ao redor. Os povos cercavam um povo que estava no meio, o povo judaico, que adorava um só Deus. Os demais povos, ao redor, suplicavam aos ídolos, serviam os demônios. Misticamente é denominado cidade circunvizinha, porque os povos por todas as partes ao redor se espalharam e cercavam aquele povo que adorava um só Deus.

Quem me introduzirá na cidade circunvi-zinha?” Quem, a não ser Deus? O Senhor quer dizer como conduzirá o povo através daquelas nuvens, das quais foi dito:

O teu trovão rolou(Sl 76,19).

Esta roda é a cidade circunvizinha, que é denominada roda, isto é, o orbe da terra.

Quem me introduzirá na cidade circuvizinha? E me levará até a Iduméia?” isto é, para que reine mesmo no meio dos homens terrenos, a fim de que me venerem até os que não são meus, que não querem aperfeiçoar-se com meu auxílio.



§ 13
12 “Quem me levará até a Iduméia? Não serias tu que nos repeliste, ó Deus? E não sairás mais, ó Deus, a frente de nossos exércitos”.

Não nos conduzirás tu que nos repeliste? Mas por que nos repeliste? Porque “nos destruíste”.

Por que nos destruíste? Porque “tu te iraste e te compadeceste de nós”.

Tu, portanto, que nos rejeitaste, que não sairás mais à frente de nossos exércitos, tu nos conduzirás. Que significa:

Não sairás mais à frente de nossos exércitos?” Que o mundio há de se enfurecer, o mundo há de nos calcar aos pés, acumular-se-á o acervo do testemunho, com o sangue derramado dos mártires, e os pagãos encarniçados dirão:

Onde está o seu Deus”? (Sl 78,10).

Então, “não sairás à frente de nossos exércitos”, não te mostrarás contra eles, não se revelará teu poder, qual mostraste em Davi, em Moisés, em Jesus de Nave, quando os povos foram vencidos por sua força, e depois dos morticínios, de grande devastação, conduziste teu povo à terra prometida. Isto não fazes mais agora, “não sairás à frente de nossos exércitos”, mas agirás interiormente. Que quer dizer:

não sairás?” Não aparecerás. Efetivamente, quando os mártires eram conduzidos em cadeias, quando eram fechados no cárcere, quando eram apresentados para serem ludibriados, quando eram lançados às feras, quando feridos com a lança, quando eram queimados na fogueira, não eram desprezados como se estivessem abandonados, sem auxílio? Como Deus agia no seu íntimo? Como os consolava interiormente? Como lhes tornava suave a esperança da vida eterna? Como não abandonava seus corações, onde cada um podia encontrar morada em silêncio, sentindo-se bem se era bom, e mal, se era mau? Porventura porque não saía à frente de seus exércitos, os abandonava? Ou melhor, se não saía com seus exércitos, não conduziu a Igreja até a Iduméia, não levou a Igreja até à cidade circunvizinha? Se a Igreja quisesse usar da espada e combater, pareceria lutar pela vida presente; mas como desprezava a vida presente, acumulou um acervo de testemunhos acerca da vida futura.



§ 14
13 Tu, pois, ó Deus, que não sais à frnete de nossos exércitos, “dá-nos auxílio na tribulação, pois nada vale o socorro humano”.

Avancem agora os que não têm sal (cf Mc 9,49) e desejem a salvação temporal para os seus, essa vã beleza.

Dá-nos auxílio”.

Ele nos venha de onde parecias abandonar; daí socorre-nos. Dá-nos auxílio na tribulação. Nada vale o socorro humano”.



§ 15
14 “Com Deus faremos proezas e ele reduzirá a nada os nossos inimigos”.

Não faremos proezas com a espada, com os cavalos, as armaduras, os escudos, a força do exército, exteriormente. Mas, onde então? Interiormente, onde temos achado esconderijo. Como interiormente? “Com Deus faremos proezas”; estaremos como seres abjetos, conculcados, homens insignificantes, mas “ele reduzirá a nada os nossos inimigos”.

Enfim, isto sucedeu a nossos inimigos. Os mártires foram conculcados: sofrendo, suportando, perseverando até o fim, com Deus fizeram proezas. E Deus fez o seguinte: reduziu a nada seus inimigos. Onde estão agora os inimigos dos mártires? Talvez agora, embriagados, ofereçam cálices (nos sepulcros) àqueles que outrora, furiosos, perseguiam com pedras. 1 Cf Com. ao sl. 58, nº 15.