SALMO 𝟝𝟠

O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio.

Então dirão os homens: Deveras há uma recompensa para o justo; deveras há um Deus que julga na terra.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 58


§ 58:1  Ƒ Falais deveras o que é reto, vós os poderosos? Julgais retamente, ó filhos dos homens?

§ 58:2  Ɲ Não, antes no coração forjais iniqüidade; sobre a terra fazeis pesar a violência das vossas mãos.

§ 58:3  Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que nasceram, proferindo mentiras.

§ 58:4  Ŧ Têm veneno semelhante ao veneno da serpente; são como a víbora surda, que tapa os seus ouvidos,

§ 58:5  ɖ de sorte que não ouve a voz dos encantadores, nem mesmo do encantador perito em encantamento.

§ 58:6  Ơ Ó Deus, quebra-lhes os dentes na sua boca; arranca, Senhor, os caninos aos filhos dos leões.

§ 58:7  Sumam-se como águas que se escoam; sejam pisados e murcham como a relva macia.

§ 58:8  Sejam como a lesma que se derrete e se vai; como o aborto de mulher, que nunca viu o sol.

§ 58:9  Que ele arrebate os espinheiros antes que cheguem a aquecer as vossas panelas, assim os verdes, como os que estão ardendo.

§ 58:10  O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio.

§ 58:11  Então dirão os homens: Deveras há uma recompensa para o justo; deveras há um Deus que julga na terra.


O SALMO 58



I SERMÃO 💬

§ 1
Costuma a Escritura aludir nos títulos dos salmos aos mistérios neles contidos e ornar seu frontispício com sublimes sacramentos, para penetrarmos no seu significado como se lêssemos no título afixado a uma casa o que se encerra lá dentro, ou de quem é a casa, qual o dono da propriedade. Assim este salmo tem no título o sentido de um título:

Para o fim. Não destruas. De Davi. Inscrição do título”.

Como disse, o título trata de uma inscrição. Qual é a inscrição do título que o salmo ordena não destruir? Indica-nos o evangelho. Pois, ao ser o Senhor crucificado, Pilatos mandou colocar na cruz um título, escrito em três línguas: hebraico, grego e latim:

Rei dos judeus(Lc 23,38).

São as línguas principais, no mundo todo. Por conseguinte, se o rei dos judeus foi crucificado, se os judeus crucificaram seu rei, com isto, mais do que matá-lo, fizeram dele também o rei dos gentios. Efetivamente, enquanto dependia deles, perderam o Cristo para si, não para nós. Ele morreu por nós, e nos remiu com seu sangue. Agora o título não foi destruído, porque ele é rei, não só dos gentios, mas ainda dos próprios judeus. Que aconteceu? Com a sua contradição puderam eliminar o domínio de seu rei? Ele é rei também deles. Pois, aquele rei tem um cetro de ferro para reger e quebrar. Diz o salmo segundo:

Eu, porém, fui por ele constituído rei em Sião, sua montanha santa para pregar o mandamento do Senhor. Disse-me o Senhor: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. Pede-me e dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra. Hás de governá-las com cetro de ferro e esmigalhá-las qual vaso de argila(Sl 2,6-9).

A quem ele rege? Quais ele esmaga? Rege os obedientes, esmigalha os que resistem. Portanto:

Não destruas. Ótimo e profético! Com efeito, aqueles judeus então sugeriram a Pilatos: Não escrevas: O rei dos judeus, mas: Este homem disse: Eu sou o rei dos judeus”; pois, este título, diriam eles, confirma que é nosso rei. Pilatos respondeu:

O que escrevi, está escrito(Jo 19,21-22).

E cumpriu-se a palavra:

Não destruas”.



§ 2
Não é somente este salmo que tem esta inscrição a exigir que o título não seja destruído. Alguns salmos trazem no começo esta anotação (cf Sl 56-58); em todos eles a paixão do Senhor é profetizada. Por conseguinte, também aqui entendamos que se trata da paixão do Senhor, e falem-nos Cristo Cabeça e corpo. Assim sempre, ou quase sempre ouçamos as vozes de Cristo nos salmos. Neles contemplamos não somente a Cabeça, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que, segundo a divindade, no princípio era o Verbo, e Deus junto de Deus, Verbo que se fez carne, e habitou entre nós, carne da descendência de Abraão, da descendência de Davi nascido da virgem Maria (cf 1 Tm 2,5; Jo 1,1.14; Mt 1,1).

Não pensemos, portanto, somente naquele que é nossa Cabeça ao ouvirmos falar o nome de Cristo, mas cogitemos em Cristo Cabeça e corpo, homem total. Declarou-nos o Apóstolo Paulo:

Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros(1 Cor 12,27).

Igualmente o mesmo Apóstolo afirma dele que é a Cabeça da Igreja (cf Ef 1,22; Cl 1,18).

Se ele é, portanto, a Cabeça, e nós somos o corpo, o Cristo total é Cabeça e corpo. Por vezes, encontras palavras que não convêm à Cabeça, e teu intelecto ficará em dúvida se não as aplicares ao corpo; de outro lado, encontras palavras que não são adequadas ao corpo, e contudo Cristo as profere. Então, não é de se recear um erro; logo adiante-se a referir à Cabeça o que vê não convir ao corpo. Enfim, Cristo na cruz, falou em lugar do corpo:

Meu Deus, meu Deus, olha-me. Porque me desamparaste”? (Cl 21,2; Mt 27,46).

Pois, não abandonara a Cristo aquele que não fora abandonado. Teria Cristo vindo até nós, abandonando-o, ou o Pai o teria enviado, afastando-se dele? Mas o homem fora abandonado por Deus, aquele Adão que ao pecar (enquanto anteriormente costumava alegrar-se com a face de Deus), atemorizado com a consciência de seu pecado, fugiu daquele que era a sua alegria; verdadeiramente deixou-o Deus, porque ele de Deus se afastou. Cristo, tendo assumido a carne da descendência de Adão, fala em lugar da mesma carne, porque então o velho homem, que somos nós, foi simultaneamente com ele crucificado (cf Gn 3,8; Rm 6,6).



§ 3
Ouçamos como continua o salmista:

Quando Saul mandou cercar sua casa para o matar”.

Isto não se realizou quando o Senhor foi crucificado, contudo pertence à paixão do Senhor. Pois, Cristo foi crucificado, morto e sepultado. Aquela sepultura era uma espécie de casa; e para guardá-la os chefes dos judeus mandaram colocar guardas no sepulcro de Cristo (cf Mt 27,66).

Há de fato uma história no livro dos Reis de quando Saul mandou cercar a casa para matar Davi (cf 1Rs 19,11).

Mas em que medida hauriu dali quem escreveu o salmo é o que devemos discutir enquanto tratamos do título do salmo. Ele quis dizer apenas que Saul enviou guardas para cercar a casa e matá-lo? Se Davi figurava a Cristo, como então a casa foi cercada para matar a Cristo? Cristo só foi depositado no sepulcro depois de morrer na cruz. Isto, portanto, se refere ao corpo de Cristo. Matar a Cristo seria apagar o nome de Cristo, para que não se acreditasse nele. Isto aconteceria se prevalecesse a mentira dos guardas, que foram corrompidos a fim de dizerem que enquanto dormiam, os discípulos vieram e roubaram o corpo (cf Mt 28,13).

Isto é, de fato, querer matar a Cristo: extinguir a lembrança de sua ressurreição, de sorte que a mentira prevalecesse sobre o evangelho. Mas como não se realizou o desejo de Saul de matar a Davi, também não puderam os chefes dos judeus fazer com que mais valesse o testemunho dos guardas adormecidos do que a dos apóstolos despertos. O que eles recomendaram aos guardas que dissessem? Eles prometeram: Nós vos daremos a quantia de dinheiro que quiserdes, para declarardes que enquanto dormíeis vieram os discípulos e roubaram o corpo. Eis que espécie de testemunhas de mentira contra a verdade e a ressurreição de Cristo seus inimigos, figurados por Saul, apresentaram. Interroga, ó infidelidade, a testemunhas que dormem; elas te respondam o que aconteceu no sepulcro. Se elas dormiam, como podiam saber? Se estavam acordadas, por que não prenderam os ladrões? Diga, pois, o salmista o que segue.



§ 4
2 “Salva-me de meus inimigos, meu Deus, livra-me dos que se insurgem contra mim”.

Isto se realizou na carne de Cristo. Faça-se também em nós. Nossos inimigos, o diabo e seus anjos, não cessam cotidianamente de se insurgir contra nós, e de querer enganar a nossa fraqueza e fragilidade, por meio de decepções, sugestões, tentações, e de armar toda espécie de ciladas, enquanto vivemos na terra. Mas, com nossa voz estejamos vigilantes junto de Deus, e clame pelos membros de Cristo, unidos à sua Cabeça, no céu:

Salva-me de meus inimigos, meu Deus, livra-me dos que se insurgem contra mim”.



§ 5
3 “Protege-me dos obreiros de iniqüidade, dos homens sanguinários defende-me”.

Eram, em verdade, homens san-guinários os que mataram o justo, no qual não encontraram culpa alguma; eram homens sanguinários aqueles que, querendo um pagão que lavara as mãos soltar a Cristo, clamaram:

Crucifica-o, crucifica-o”! Eram homens sanguinários aqueles que, ao lhes ser imputado o crime de derramar o sangue de Cristo, responderam, dando-o de beber a seus descendentes:

O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos(cf Mt 27,23-25).

Mas nem contra seu corpo deixaram de se levantar esses homens sanguinários, pois ainda depois da ressurreição e ascensão de Cristo a Igreja sofreu perseguições; e isto quanto àquela que primeiro brotou do meio da nação judaica, da qual sairam também os apóstolos. Ali, em primeiro lugar Estêvão foi apedrejado (At 7,58), e recebeu a coroa que tinha no nome. Pois Estêvão significa coroa. Humildemente apedrejado, mas de modo sublime coroado. Em seguida contra os gentios levantaram-se os reinos pagãos, antes de neles se cumprir a predição:

Adorá-lo-ão todos os reis da terra, todas as nações o servirão(Sl 71,11).

Lançou-se com ímpeto e ira aquele reino contra as tetemunhas de Cristo. Foi derramado em grande quantidade o sangue de muitos mártires. Deste sangue derramado, como uma grande semeadura surgiu abundante messe para a Igreja, e ocupou, como agora verificamos, todo o mundo. Foi libertado desses homens sanguinários Cristo; não só a Cabeça, mas também o corpo. Cristo é libertado destes homens sanguinários, que já existiram, que existem no presente e existirão no futuro. É libertado Cristo, que nos precedeu, que existe hoje e que há de vir. Pois Cristo é todo o corpo de Cristo. E todos os bons cristãos do presente, os que existiram antes de nós e que depois de nós hão de vir constituem o Cristo que se livra dos homens sanguinários. Nunca é inútil a palavra:

Dos homens sanguinários defende-me”.



§ 6
4 “Urdiram insídias contra minha vida”.

Puderam prender, puderam matar.

Urdiram insídias contra minha vida”.

Mas onde está a realização da palavra:

Rompeste as minhas cadeias”? (Sl 115,16).

Onde:

Quebrou-se” o laço e fomos libertados? Como é que bendizemos a Deus “que não nos entregou como presa aos seus dentes”? (Sl 123,7.6).

Eles urdiram insídias; mas não nos entregou como presa aos caçadores aquele que guarda Israel.

Urdiram insídias contra minha vida. Fortes precipitaram-se sobre mim”.

Não devemos passar por alto dessa expressão: fortes; com cuidado examinemos quais são estes fortes que se insurgem. Fortes contra quem, senão contra os fracos, inválidos, não fortes? E no entanto, louvam-se os fracos e condenam-se os fortes. Entenda-se quais são os fortes. Em primeiro lugar o Senhor chama de forte o próprio diabo:

Como pode alguém entrar na casa de um forte e roubar os seus pertences, se primeiro não o amarrar”? (Mt 12,29).

O Senhor amarrou, portanto, o forte com os vínculos de seu domínio; tirou-lhe os instrumentos e fê-los seus. Todos os malvados eram instrumentos do diabo; começaram a crer e se tornaram instrumentos de Cristo. A eles diz o Apóstolo:

Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor, a fim de que fossem conhecidas as suas riquezas para com os vasos de misericórdia(Ef 5,8; Rm 9,23).

Destes, portanto, podem ser dos fortes. Mas entre os homens existem alguns fortes, de uma fortaleza repreensível e condenável, que de fato presumem da felicidade temporal. Não vos parece que foi desses fortes o rico, há pouco citado no evangelho, cujas terras lhe deram superabundância de frutos? Preocupado, encontrou um plano para armazená-los. Destruiria os velhos celeiros e construiria outros novos maiores, e quando os terminasse diria a sua alma:

Tens uma quantidade de bens, ó minha alma, banqueteia-te, alegra-te, sacia-te(cf Lc 12,16-19).

Como é este forte? “Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas depositou confiança na fluência de suas riquezas”.

Vê como é forte:

E prevaleceu-se de sua vaidade(Sl 51,9).



§ 7
Há outra espécie de fortes, mas não devido às riquezas, nem às forças corporais, nem ao poder de alta dignidade temporal, mas que presumem de sua justiça. Acautelemo-nos desta espécie de fortes. São temíveis, detestáveis. Não os imitemos. Refiro-me aos que presumem de sua justiça, e não de sua força corporal, de suas riquezas, de sua estirpe, de suas honras. Quem não vê que tudo isto é temporal, fluxo, caduco, transitório? Mas que presumem de sua justiça. Tal fortaleza impediu que os judeus entrassem pelo buraco da agulha (cf Mt 19,21).

Presumindo serem justos, e julgando-se sadios, recusaram o tratamento e mataram o próprio médico. O Senhor não viera para chamar tais fortes, firmes, conforme ele mesmo disse:

Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores à penitência”.

Eram fortes os que atacavam os discípulos de Cristo, porque seu Mestre visitava os enfermos, e convivia com os fracos. Diziam:

Por que o vosso Mestre come com os publicanos e os pecadores”? (Mt 9,11-13).

Ó fortes, que não necessitais de médico! Esta fortaleza não é saúde, mas loucura. Pois, nada é mais forte do que os frenéticos. Mais fortes do que os sãos. Mas quanto maiores são as suas forças, tanto mais perto está a morte. Deus nos livre de imitarmos estes fortes. Pois é de recear que alguém queira imitá-los. Mas, o Doutor da humildade, participante de nossa fraqueza e que nos deu participar de sua divindade, desceu para isto: ensinar-nos o caminho e fez-se ele mesmo o nosso caminho. Dignou-se recomendar-nos especialmente a sua humildade. Por isso, não menosprezou ser batizado pelo servo (cf Jo 14,6; Mt 3,13), a fim de nos ensinar a confessarmos nossos pecados, a nos fazermos fracos para sermos fortes, usando de preferência a palavra do Apóstolo:

Quando sou fraco, então é que sou forte(2 Cor 12,10).

Do mesmo modo, portanto, que ele não quis ser forte. Aqueles, porém, que quiseram ser fortes, isto é, presumir de sua virtude como se fossem justos, tropeçaram na pedra (cf Rm 9,32).

O Cordeiro pareceu-lhes um cabrito, e como tal o mataram, não merecendo assim ser redimidos pelo Cordeiro. Por conseguinte, eles são fortes, os que se lançaram contra Cristo, exibindo sua justiça. Ouvi como falam esses fortes. Perguntaram alguns hierosolomitanos àqueles que eles haviam enviado para prender a Cristo, e não ousaram fazê-lo (pois aquele que era na verdade forte foi preso quando quis):

Por que não o trouxestes? Responderam os guardas: Jamais um homem falou assim!” Responderam os fortes:

Algum dos chefes ou dos fariseus por acaso acreditou nele? Mas este povo, que não conhece a lei…(Jo 7,43-41).

Propuseram-se à sua turba de homens enfermos que procuravam o médico. De que modo, senão por que eram fortes e com sua força, o que é mais grave, arrastaram toda a turba atrás de si, e mataram o médico de todos. Mas aquele que foi morto fez de seu sangue o remédio dos doentes.

Homens fortes precipitaram-se sobre mim”.

Notai os que são os mais fortes deles. E vede se de alguma coisa pode presumir o homem, quando nem mesmo da justiça se deve presumir. Podeis concluir onde jazem os que presumem das riquezas, das forças corporais, da nobreza da estirpe, da dignidade no século, se cai até quem presumir da própria justiça, como se fosse sua.

Homens fortes precipitaram-se sobre mim”.

Dentre estes fortes foi aquele fariseu que se gabava de suas forças, da seguinte forma:

Eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, injustos, ladrões, adúlteros, e nem como este publicano; jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos”.

Considera o forte que se gaba de suas forças; atende ao fraco, que, ao invés, está de pé ao longe, mas acha-se perto pela humildade. O publicano, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim, pecador! Eu vos digo que este último desceu para casa justificado, mais do que o outro”.

Vê o que é a justiça:

Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado(Lc 18,11-14).

Irromperam estes fortes, isto é, os soberbos, que desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus (Rm 10,3).



§ 8
5 Quem vem depois? “Não há em mim, Senhor, crime nem pecado”.

Precipitaram-se sobre mim os fortes, presumindo de sua justiça, precipitaram-se, mas em mim não encontraram pecado. Pois, de fato, aqueles fortes, isto é, que pareciam justos, como poderiam perseguir a Cristo, a não ser como se fosse pecador? No entanto, eles hão de verificar que são fortes pela intensidade da febre e não pela firmeza da saúde. Sentir-se-ão fortes e como se fossem justos encarniçam-se contra um pecador. Mas, ao contrário, “não há em mim, Senhor, crime nem pecado. Sem ter cometido injustiça corri e encaminhei-me”.

Aqueles fortes não conseguiram acompanhar minha corrida. Consideraram-me pecador, porque não perceberam minhas pegadas.



§ 9
6 Sem ter cometido injustiça corri e encaminhei-me. Ergue-te, vem ao meu encontro e vê. Ele diz a Deus:

Sem ter cometido injustiça corri e encaminhei-me. Ergue-te, vem ao meu encontro e vê”.

Como é isto? Se não vir ao encontro, não pode ver? Seria como se andasses por um caminho, e não podendo de longe ser reconhecido por alguém, lhe gritasses: Vem cá e vê como estou andando; pois quando me observas de longe, não podes ver meus passos. Seria assim também que Deus, se não viesse ao encontro do salmista, não veria como ele se encaminhava, sem cometer injustiça, e que corria sem ter pecado? Poderíamos, com efeito, também entender:

Ergue-te, vem ao meu encontro”, como sendo: Ajuda-me. O acréscimo:

e vê” pode-se entender do seguinte modo: Faze com que se veja que corro, faze com que se veja que me encaminho, conforme a expressão figurada, usada para com Abraão:

Agora sei que temes a Deus(Gn 22,12).

Deus lhe diz:

Agora sei”, por que razão senão porque agora te fiz saber? Um desconhecido para si mesmo é cada um até que seja interrogado pela prova, como Pedro, presumindo de si, não se conhecia, e negando aprendeu a qualidade de suas forças. Na sua vacilação entendeu que havia presumido falsamente de si mesmo. Chorou e ao chorar, mereceu utilmente conhecer o que era, e vir a ser o que não tinha sido. Por conseguinte, Abraão foi provado, e conheceu-se a si mesmo. Deus lhe disse:

Agora sei”, isto é, agora te fiz saber. Como se diz que é alegre o dia que faz os homens felizes, e triste o amargor que aborrece quem o prova, assim se diz que Deus vê, quando faz ver.

Ergue-te”, portanto, “vem ao meu encontro, e vê”.

Que significa:

E vê?” E ajuda-me, isto é, relativamente a eles, para que vejam meu curso, e me sigam. Não lhes pareça mau o que é reto, não lhes pareça torto o que segue a regra da verdade, porque “sem ter cometido injustiça, corri e encaminhei-me. Ergue-te, vem ao meu encontro e vê”.



§ 10
A sublimidade de nossa Cabeça leva-me a dizer aqui outra coisa. Ele enfraqueceu-se até a morte, e assumiu a fraqueza da carne, para reunir sob suas asas os pintinhos de Jerusalém, como a galinha que se mostra adoentada quando está com seus pintinhos. Não vemos isto em outras aves, mesmo naquelas que fazem seus ninhos diante de nossos olhos, como os pássaros de nossos muros, como as andorinhas, nossas hóspedes anuais, como as cegonhas, como tantas outras aves que fazem os ninhos diante de nossos olhos, chocam os ovos, alimentam os filhotes, conforme as pombas que vemos todos os dias. Não conhecemos, não observamos, não vemos outra ave ficar choca. Como se comporta a galinha? Certamente estou dizendo coisa bem conhecida, que vemos cada dia diante de nós. Fica rouca, e o corpo todo arrepiado. Caem as asas, as penas, e em relação aos filhotes tem um quê de enfermidade, e uma afeição materna feita de fraqueza. Foi por isso que o Senhor, na Escritura, se compara à galinha, dizendo:

Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas, e não o quiseste”! (Mt 23,37).

Congregou, porém, todos os povos, como a galinha recolhe os pintinhos, aquele que se fez fraco por nossa causa, assumindo nossa carne, isto é, a do gênero humano; foi crucificado, desprezado, batido, flagelado, suspenso no madeiro, atravessado pela lança. Por conseguinte, foi fraqueza de mãe e não perda da majestade. Assim foi Cristo, e por isso foi desprezado; tornou-se pedra de tropeço e pedra de escândalo, e muitos com ela se escandalizaram (cf Rm 9,32; 1Pd 2,8).

Tendo sido, pois, assim, e no entanto, tendo assumido uma carne sem pecado, fez-se partícipe de nossa fraqueza, mas não de nossa iniqüidade, de sorte que, por ter-se unido à nossa fraqueza, apagou a nossa iniqüidade. Por isso.

Sem ter cometido injustiça, corri e encaminhei-me”.

Como, então? Não há de ser reconhecido segundo a natureza divina, e só se deve considerar aquilo que ele se fez por nós, e não a natureza segundo a qual nos fez? Sem dúvida, devemos considerar a natureza humana, porque é grande e piedoso juízo reconhecer quem e o que suportou por ti. Não foi algum homem insignificante que sofreu por ti, em sua grandeza, mas foi o ser supremo que sofreu por ti, em tua fraqueza. Como foi isso? Fez-se pequenino:

Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte. Quem? Ouve o que está mais acima: Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus. Por conseguinte, igual a Deus, aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens e sendo exteriormente reconhecido como homem(Fl 2,6-8).

De tal forma se aniquilou que assumiu o que não era, mas não perdeu o que era. Como, pois, se aniquilou? Porque assim mostrou-se a ti; porque não demonstrou a dignidade que tem junto do Pai. Apresentou- te agora em estado de fraqueza; reservou para depois de tua purificação mostrar-te o estado glorioso. Ele, portanto, igual ao Pai, fez-se de tal fraqueza; e no entanto, deve ser reconhecido nesta mesma fraqueza, não por visão, mas pela fé. Ao menos acreditemos o que ainda não podemos ver, e crendo o que não vemos, mereçamos também ver. Com razão, após ter ressuscitado, o Senhor disse a Maria Madalena, à qual se dignou aparecer primeiro:

Não me retenhas, pois ainda não subi ao Pai(Jo 20,17).

Que significa isto? Pouco depois as mulheres o tocaram. Pois ao voltar do sepulcro, Jesus veio ao seu encontro e elas o adoraram e abraçaram-lhe os pés; os discípulos apalparam-lhe as cicatrizes (cf Mt 28,9; Lc 24,39).

Que significa, portanto:

Não me retenhas, pois ainda não subi ao Pai”, senão: não penses que sou apenas o que vês, de modo que a tua visão se limite ao que podes tocar? Apareço-te de forma humilde, “pois ainda não subi ao Pai”, de junto do qual sai e desci até vós, sem me afastar dele. Ainda não subi, quando não vos deixei. Ele veio sem se apartar, e subiu sem abandonar. Mas, que quer dizer: subir ao Pai? Que ele se nos manifesta como igual ao Pai. Pois nós subimos progredindo, de sorte que possamos de certo modo ver, entender, aprender. Por conseguinte, difere o ato de tocar. Não tira, não repele, não nega.

Pois ainda não subi ao Pai”.

Diz outro salmo:

Nasce numa extremidade do céu e seu percurso vai até outra extremidade(Sl 18,7).

Extremidade do céu”, a saber, supremo entre todos os seres espirituais é o Pai: dele procede e seu percurso vai até outra extremidade. Percorrer até outra extremidade, convém somente a um igual. Enfim, quando comparamos coisas desiguais, e colocamos um objeto pequeno ao lado de outro grande, para verificar a diferença de tamanho, se descobrirmos que são desiguais, costumamos dizer: Não faz o mesmo percurso, não correm juntos. E se forem iguais: Fazem o mesmo percurso. Portanto, “seu percurso vai até outra extremidade”, porque é igual ao Pai. Como tal, o Senhor queria dar-se a conhecer aos fiéis, tendo dito:

Não me retenhas”.

Como tal queria que o Pai o apresentasse aos fiéis, a ele que dizia:

Ergue-te, vem ao meu encontro e vê” revela que sou igual a ti.

E vê”.

Que significa:

E vê?” Faze com que se veja que sou igual a ti. Por quanto tempo Filipe me dirá:

Mostra-nos o Pai e isto nos basta?” Por quanto tempo, em conseqüência responderei:

Há tanto tempo estou convosco, e tu não conheces o Pai? Filipe, quem me viu, viu o Pai; não credes que eu estou no Pai e o Pai em mim”? (Jo 14,8-11).

Talvez ainda não acredite que ele é igual ao Pai.

Ergue-te, vem ao meu encontro e vê”.

Faze com que eu seja conhecido, revela-te, faz notória aos homens a nossa igualdade. Não julguem os judeus que crucificaram um homem. Embora somente tenha sido crucificado enquanto homem, eles contudo não conheceram aquele que crucificaram. Se tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8).

No intuito de que os fiéis me conheçam, como Senhor da glória, “ergue-te, vem ao meu encontro e vê”.



§ 11
E tu, Senhor Deus dos exércitos, Deus de Israel”.

Tu, Deus de Israel, que és tido por Deus apenas de Israel, Deus de um só povo que te adora, enquanto as nações todas adoram ídolos, tu, Deus de Israel, “cuida de visitar todos os povos”.

Cumpra-se a profecia, que Isaías em teu nome dirige a tua igreja, a tua santa cidade, àquela estéril, “cujos filhos são mais numerosos do que os filhos de uma esposa”.

Foi-lhe dito, efetivamente:

Entoa alegre canto, ó estéril, que não deste à luz; ergue gritos de alegria, exulta, tu que não sentiste as dores de parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa”, mais numerosos do que os do povo judaico que foi desposado, que recebeu a lei; mais do que os daquele povo que teve um rei visível. Pois, teu rei está oculto, e mais numerosos são teus filhos, gerados de um esposo escondido. Por isso foi-lhe dito:

Mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos de uma esposa”.

Em seguida, acrescenta o profeta:

Alarga o espaço de tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas — nada de sovinice: alonga as cordas, reforça as estacas, pois hás de transbordar para a direita e para a esquerda(cf Is 54,2-5).

À direita põe os bons, à esquerda os maus (cf Mt 25,35), até que venha a ventilação (cf Mt 3,12); possui, no entanto, todos os povos. Bons e maus sejam convidados às núpcias, encham-se as salas de convidados: aos servos compete convidar e ao Senhor, separar (cf Mt 22,9.10).

Hás de transbordar para a direita e para a esquerda, a tua descendência se apoderará de outras terras e repovoará cidades abandonadas”, abandonadas por Deus, abandonadas pelos profetas, abandonadas pelos apóstolos, abandonadas pelo evangelho, cheias de demônios.

Repovoarás cidades abandonadas. Não temas, porque prevalecerás; não te envergonhes porque foste detestável”.

Portanto, não te envergonhes porque “homens fortes se precipitaram contra mim”.

Quando se promulgavam leis contra o nome dos cristãos, quando era considerado ignomínia e infâmia ser cristão, “não te envergonhes porque foste destestável”.

Com efeito, hás de esquecer a condição vergonhosa para sempre; “não tornarás a lembrar o opróbrio de tua viuvez, porque eu sou o Senhor que te criou. Seu nome é o Senhor. O Santo de Israel é teu redentor. Ele se chama o Deus de toda a terra (Is 54,1-5).

E tu, Senhor Deus dos exércitos, Deus de Israel, cuida de visitar todos os povos. Digo, cuida de visitar todos os povos”.



§ 12
Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”.

O salmista aqui atemoriza. Quem não teria medo? Quem não sentirá tremor, ao examinar a consciência? Mesmo que alguém esteja cônscio de sua piedade, seria de admirar que não estivesse igualmente cônscio de alguma impiedade.

Todo o que comete pecado, comete também a iniqüidade(cf 1Jo 3,4).

Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?(cf Sl 129,3).

Todavia, é bem verdade, e não foi dito em vão, nem pode ou poderá absolutamente falhar a palavra:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”.

No entanto, compadeceu-se de Paulo que, anteriormente chamado Saulo, praticava a iniqüidade. Que ato bom praticou para ter merecimento diante de Deus? Não arrastava à morte os seus santos? Não trazia cartas dos príncipes dos sacerdotes para arrebatar, a fim de castigá-los, os cristãos que encontrasse? Enquanto assim agia, com tais intenções, respirando ameaças e morticínios, como a Escritura atesta sobre ele, não foi chamado por uma voz sublime vinda do céu, não foi derrubado, erguido, não perdeu a vista e a recuperou, não foi morto e vivificado, não foi perdido e recuperado? (At 9).

Que mérito teve para isso? Não vamos dizer coisa alguma por nós mesmos. Mas antes, vamos ouvi-lo. Assim se exprime:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia(1 Tm 1,13).

Certamente:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”, pode-se entender de dois modos: ou que de modo algum Deus deixa impune um pecado; ou que Deus não se compadece de modo algum dos que praticam certo tipo de maldade. Vamos falar brevemente a V. Caridade, quanto o tempo permitir, destas duas maneiras.



§ 13
Toda iniqüidade, seja pequena ou grande, necessaria-mente é punida, ou pelo próprio penitente, ou por castigo de Deus. Pois também quem se penitencia castiga-se a si mesmo. Por isso, irmãos, castiguemos nossos pecados, se procuramos obter a misericórdia de Deus. Deus não pode se compadecer dos obreiros de iniqüidade que fomentam seus pecados, ou não os arrancam. De fato, ou tu mesmo castigas, ou ele castiga. Queres que ele não castigue? Castiga, tu mesmo. Pois fizeste alguma coisa que não pode ficar impune; mas de preferência, castiga-te a ti mesmo, fazendo o que aconselha outro salmo:

Com a confissão saiamos ao seu encontro(Sl 94,2).

Que quer dizer:

saiamos ao seu encontro?” Antes que ele observe para punir, vá ao seu encontro e castiga-te. Que ele não encontre o que punir. Ao punires a iniqüidade, praticas a eqüidade. Então Deus se compadecerá, porque já te encontra obrando a eqüidade. Que quer dizer: fazer a eqüidade? Odiar em ti o que ele odeia, para começares a agradar a Deus, punindo o que lhe desagrada. Pois, não é possível que ele deixe o pecado impune, uma vez que é verdade:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”.



§ 14
Mas passemos agora a outra maneira, segundo a qual se pode entender esta sentença. Existe certa espécie de iniqüidade que não pode obter a compaixão de Deus quem a pratica. Perguntais talvez qual é? É escusar-se dos pecados. Quando alguém defende seus pecados, pratica grande iniqüidade; está defendendo aquilo que Deus odeia. E vê com que perversidade, com que iniqüidade. Se fizer algum bem, quer que se lhe impute; se faz o mal, quer imputar a Deus. Pois defendem os homens os seus pecados, lançando a culpa sobre Deus, o que é pior. Como é isto? Ninguém ousa dizer: O adultério é bom, bom é o homicídio, é boa a fraude, bom o perjúrio. Nenhum homem, absolutamente; pois mesmo os que os praticam, gritam quando outros lhos infligem. De forma alguma se encontra alma tão perversa, tão alheia à sociedade do gênero humano e à participação comum do sangue de Adão, que opine ser bom o adultério, a fraude, a rapina, o perjúrio, como disse acima. Mas como defendem estes pecados? Se Deus não houvesse querido, eu não o teria cometido. Que queres que eu faça, se é minha sorte? Já queres saber o que é o destino; recorres às estrelas. Perguntas quem fez e pôs em ordem as estrelas. Foi Deus. Portanto, defendes teu pecado, acusando a Deus. Por conseguinte, desculpa-se o réu e acusa-se o juiz. Com efeito, Deus não se compadece dos que praticam tal iniqüidade.

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”.

Diz o salmista: Persegue, castiga seus pecados, incita-os ao arrependimento, faze com que olhem para a frente os que se deixam ficar para trás, envergonhem-se de si mesmos para que possam alegrar-se em ti.

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”.



§ 15
7 “Eles se converterão à tarde”.

Não sei quais são esses obreiros de iniqüidade, essas trevas, que alguma vez hão de se converter à tarde. Que quer dizer:

à tarde?” Depois. Que quer dizer:

à tarde?” Mais tarde. Pois, deviam ter-se convertido antes, antes de crucificar a Cristo, deviam ter conhecido o médico. No entanto, depois que Cristo foi crucificado, ressurgiu, subiu ao céu, enviou seu Espírito Santo, e depois que este encheu os que estavam numa só casa, os quais começaram a falar as línguas de todos os povos, os judeus que o haviam crucificado se apavoraram, sentiram remorsos na consciência, e pediram aos apóstolos um conselho salutar. Foi-lhes respondido:

Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, para a remissão dos pecados(At 2,38).

Cristo foi morto, seu sangue foi derramado. Vossos pecados são perdoados. Ele quis morrer de tal modo que seu sangue redimisse também aqueles que o derramaram. Derramastes com ira, bebei com confissão. Com razão, pois, “eles se converterão à tarde, famintos como cães”.

Os judeus chamavam os gentios de cães, porque imundos. Por isso, o próprio Senhor, como certa mulher cananéia, não judia, gritasse atrás dele, querendo atrair sua misericórdia para curar sua filha, ele prevendo tudo, sabendo tudo, mas querendo mostrar a fé da cananéia, adiou a concessão do benefício e deixou-a em suspenso. Como adiou? Respondendo-lhe:

Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”.

Israel consta de ovelhas; e os gentios? “Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”.

Aos gentios chamou de cães, por causa da impureza. O que fez, porém, aquela mulher faminta? Não protestou; aceitou humildemente a injúria e mereceu receber o benefício. Mas não se pode chamar de injúria a palavra do Senhor. Se um escravo diz coisa semelhante ao senhor é um ultraje; se o senhor diz ao escravo uma coisa dessas, pode-se dizer que é condescendência. Ela disse:

Isso é verdade, Senhor”.

Que quer ela dizer? É verdade o que dizes, inteiramente verdade; sou um cão.

Mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos”.

Imediatamente disse o Senhor:

Mulher, grande é a tua fé(cf Mt 15,24-28).

Há pouco antes era cão, e agora é mulher. Como se tornou mulher se há pouco era cão? Confessando humildemente, sem repelir o que o Senhor dissera. Portanto, os gentios são cães e por isso famintos. Seria bom também para os judeus reconhecerem-se pecadores, apesar de que “se converterão à tarde, famintos como cães”.

Pois estava saturado, em mau sentido, aquele que dizia:

Jejuo duas vezes por semana”.

Aquele publicano, porém, era um cão faminto; e daí vinha que tinha fome de benefícios do Senhor, conforme dizia:

Tem piedade de mim, pecador(Lc 18,12.13).

Também esses, portanto, “se converterão à tarde, famintos como cães”.

Desejem a graça de Deus, entendam que são pecadores; aqueles fortes se tornem fracos, aqueles ricos façam-se pobres, aqueles justos se reconheçam por pecadores, aqueles leões se transformem em cães.

Eles se converterão à tarde, famintos como cães, rondando pela cidade inteira”.

Que cidade é esta? O mundo, que certas passagens da Escritura denominam cidade circunvizinha (cf Sl 30,22; 59,11; 107,11, seg. LXX).

Isto significa que o mundo espalhara entre os povos todos uma nação, a dos judeus, onde essas coisas eram ditas, e que se denominava cidade circunvizinha. Em torno dessa cidade eles, os convertidos, rondavam, já sendo cães famintos. Como rondavam? Evangelizando. Saulo, que de lobo se transformou em cão à tarde, isto é, tardiamente convertido, alimentado com as migalhas da mesa de seu Senhor, correu por sua graça, e rondou a cidade.



§ 16
8 “Eis que falará a sua boca e em seus lábios estará uma espada”.

Aí está a espada de dois gumes a que se refere o Apóstolo:

A espada do Espírito, que é a palavra de Deus(Ef 6,17).

Por que de dois gumes? Por que motivo, senão porque os dois Testamentos ferem? Com tal espada eram mortos aqueles dos quais se dizia a Pedro:

Imola e come (At 10,13).

Em seus lábios estará uma espada. Quem ouvirá?” A sua boca falará:

Quem ouvirá?” Isto é, encolerizavam-se contra os preguiçosos em acreditar. Mesmo aqueles que um pouco antes não queriam crer, aborrecem-se por causa dos que não crêem. E, de fato, irmãos, isso acontece. Vês, por exemplo, um homem preguiçoso antes de se tornar cristão; diariamente gritas com ele, mas não se converte; apenas se converta, e já deseja que todos se tornem cristãos e admira-se de que não o sejam. Esquece-se de que se converteu bem tarde; mas como se tornou como um cão faminto, tem também nos lábios uma espada; diz:

Quem ouvirá?” Que significa:

Quem ouvirá?” “Quem creu naquilo que ouvimos, e a quem se revelou o braço do Senhor?(Is 53,1).

Quem ouvirá?” Os judeus não acreditam; os gentios se converteram e começaram a pregar. Os judeus não acreditavam; e no entanto os judeus que acreditaram faziam o evangelho rondar a cidade, e diziam:

Quem ouvirá?



§ 17
9 “Mas tu, Senhor, deles te rirás. Quem ouvirá?” Todos os povos hão de se tornar cristãos e vós dizeis:

Quem ouvirá?” Que quer dizer:

Deles te rirás? Terás na conta de nada todas as nações”.

Nada serão diante de ti, porque será facílimo que em ti acreditem todas as nações.



§ 18
10 “Guardarei em ti a minha força”.

Os fortes que mencionei caíram porque não guardaram em ti a sua força, isto é, aqueles que se insurgiram se precipitaram sobre mim, presumiram de si mesmos. Eu, porém, “guardarei em ti a minha força”, porque se me afasto de ti caio, e se me aproximo torno- me forte. Vede, irmãos, o que acontece na alma humana. Não tira luz de si mesma, não encontra em si mesma forças. Mas tudo o que há de belo na alma é a virtude e é a sabedoria; contudo a alma não sabe para si mesma, não tem forças para si, não é luz para si mesma, nem é virtude para si mesma. Existe certa origem e fonte da virtude, existe certa raiz da sabedoria, existe, por assim dizer, se é que se deve dizer, uma região da verdade imutável. Se a alma dela se afasta, entenebrece, e se ao contrário aproxima-se, ilumina-se. Acercai-vos dele e sereis iluminados (Sl 33,6), porque se vos afastais, entenebreceis. Por isso “guardarei em ti a minha força”.

Não me afastarei de ti, não presumirei de mim mesmo.

Guardarei em ti a minha força, porque és tu, ó Deus, o meu defensor”.

Pois, onde estava e onde estou? De onde me acolheste? Quais os meus pecados que perdoaste? Onde jazia? Para onde me levantei? Por esta razão devo recordar-me do que se encontra em outro salmo:

Meu pai e minha mãe me abandonaram. O Senhor, porém, me acolheu(Sl 26,10).

Guardarei em ti a minha força, porque és, ó Deus, o meu defensor”.



§ 19
11 “Meu Deus! A tua misericórdia antecipa-se a mim”.

É isto que quer dizer:

Guardarei em ti a minha força”.

Nada presumirei acerca de mim mesmo. Que bem pude apresentar para te compadeceres de mim e me justificares? Que encontraste em mim a não ser somente pecados? De ti tenha a natureza que criaste; o restante é constituído por meus pecados que apagaste. Não fui eu que me levantei para ir ao teu encontro, mas foste tu que vieste para me acordar; pois, “a tua misericórdia antecipa-se a mim”.

Antes que faça algum bem, “a tua misericórdia antecipa-se a mim”.

Que pode responder a isto o infeliz Pelágio?



§ 20
12 “Meu Deus revela-me a mim mesmo, no proceder de meus inimigos”.

Que está dizendo o salmo? Ele me demonstrou em meus inimigos como foi grande a sua misericórdia para comigo. Aquele que foi tomado compare-se aos que foram deixados e o eleito aos rejeitados; compare-se o vaso de misericórdia com os vasos de ira, e veja que de uma só massa Deus formou um “utensílio para uso nobre, outro para uso vil”.

Qual o sentido da frase:

Revela-se a mim mesmo, no proceder para com meus inimigos? Ora, se Deus, querendo manifestar sua ira e tornar conhecido seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, prontos para a perdição”, por que razão agiu assim? “A fim de que fossem conhecidas as suas riquezas para com os vasos de misericórdia(Rm 9,21-23).

Se, portanto, suportou os vasos de ira, e por meio deles fez conhecida a riqueza de sua glória para com os vasos de misericórdia, com justa razão foi dito:

A tua misericórdia antecipa-se a mim. Meu Deus, revelou-me a mim mesmo, no proceder para com meus inimigos”.

A saber, demonstrou quão grande foi sua misericórdia para comigo, através daqueles com os quais não usou de misericórdia. Se o devedor fica em suspenso, dará menos graças ao que lhe perdoa a dívida.

Meu Deus revelou-me a mim mesmo, no proceder para com meus inimigos”.



§ 21
E o que sucede aos próprios inimigos? “Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”.

O salmista cumpre o preceito, rezando pelos inimigos. Como se concilia:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”; e:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei?” Como não há de se compadecer dos que praticam a iniqüidade e não matá-los para que não se esqueçam da tua lei? Mas aqui ele se refere a seus inimigos. E então? Seus inimigos praticam a eqüidade? Se seus adversários operam a eqüidade, então ele mesmo pratica a eqüidade. Mas, uma vez que ele mesmo pratica a eqüidade, enquanto a pratica, de fato sofre da parte dos inimigos uma iniqüidade; conclui-se que os que se opõem ao justo, fazem a iniqüidade. Donde vem, portanto, dizer o salmista um pouco mais acima:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade”, e agora, a respeito de seus próprios inimigos:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei?” Por conseguinte, não te compadeces deles a fim de matares seus pecados; não mates aqueles cujos pecados matas. Que significa ser morto? Esquecer a lei do Senhor. Esta é a verdadeira morte; ir às profundezas do pecado. Isto pode-se aplicar também aos judeus. Como se aplica a eles:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei?” Não mates estes meus inimigos, estes mesmos que se mataram. Subsista o povo judaico. Certamente foi vencido pelos romanos, certamente sua cidade foi destruída; os judeus não são admitidos em sua própria cidade, e contudo são judeus. Ora, todas estas províncias foram subjugadas pelos romanos. Quem ainda reconhece os povos tais quais eram, agora no império romano, se todos se tornaram romanos, todos se dizem romanos? Os judeus, porém, permanecem assinalados; foram vencidos, mas não absorvidos pelos vencedores. Não foi sem motivo que Caim, havendo matado o irmão recebeu de Deus um sinal para que ninguém o matasse. É o sinal que têm os judeus: mantêm absolutamente o remanescente de sua lei; são circuncidados, observam o sábado, imolam a páscoa, comem pães ázimos. São, portanto, judeus; não foram mortos, pois são necessários aos gentios que abraçaram a fé. Por que razão? Para que Deus nos revele, em nossos inimigos, a sua misericórda.

Meu Deus revelou-me a mim mesmo, no proceder para com meus inimigos”.

Revelou a sua misericórdia para com a oliveira silvestre, enxertada com os ramos cortados pela soberba. Eis onde jazem os que eram soberbos, eis onde estás enxertado tu que jazias. Mas não te ensoberbeças para não mereceres ser cortado. Meu Deus, “não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”.



§ 22
12.14 “Dispersa-os com o teu poder”.

Já se realizou: os judeus estão dispersos no meio de todos os povos, testemunhas de sua maldade e de nossa verdade. Eles têm os livros, onde Cristo é profetizado, e nós temos o Cristo. E se acaso algum pagão duvidar, ao lhe citarmos as profecias sobre Cristo, cuja evidência o deixa espantado, e em sua admiração pensa que nós as escrevemos, provamos com os códices dos judeus que elas foram preditas tanto tempo antes. Vede; com os nossos inimigos confundimos a outros inimigos.

Dispersa-os com o teu poder”.

Tira-lhes a virtude, tira-lhes a força.

Conduze-os, Senhor, meu protetor. Delito de sua boca, as palavras de seus lábios. Sejam colhidos pela sua própria arrogância, pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações, na ira consumidora e não subsistirão”.

São palavras obscuras e receio não explicá-las bem. Já estais cansados de ouvir; por isso, se apraz a V. Caridade, adiemos para amanhã o que falta. O Senhor nos ajudará a pagar-vos o débito, porque nossa promessa vem mais dele do que de nós



II SERMÃO 💬

§ 1
10 O sermão prolongado de ontem deixou-me devedor para hoje; como Deus quis, chegou o momento de pagar. Como somos devotados em solver, deveis ser ávidos em exigir o pagamento; isto é, o que ele dá e nós entregamos (pois ele é o Senhor e nós, seus servos), recebeu de tal modo que o fruto do que ouvirdes seja vossa vida. O campo cultivado que não produz frutos e é ingrato para o agricutor, dando-lhe espinhos em vez de colheita, não está procurando o celeiro, mas o fogo. O Senhor nosso Deus, porém, como vedes, visita esta terra com as chuvas habituais. De igual modo se digna visitar seu campo, nosso coração, com a sua palavra e procura o fruto de nosso coração, porque sabe o que semeou e quanta chuva mandou. De fato, nada somos sem ele, porque antes de existirmos nada éramos, e todo homem que existe se quiser existir sem ele, nada mais será do que pecador. É verdadeira a palavra:

Guardarei em ti a minha força”, porque tudo aquilo que podemos, se não guardarmos junto dele e para ele, perdemos por causa de nosso afastamento. Nossa mente deve sempre estar vigilante para dele não se apartar, mas se estava longe, cuidar de aproximar-se e achegar-se cada vez mais, não pelos passos de seus pés, nem transportado por um veículo, nem com a velocidade de alguns animais, nem pelo vôo de asas, mas pela pureza dos afetos, e pela probidade dos hábitos santos.



§ 2
12.14 Vejamos agora o restante do salmo. Interrom-pemo-lo no trecho em que começa a falar de seus inimigos, dizendo a Deus:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”.

Embora os declare seus inimigos, pediu a Deus que não fossem mortos e não se esquecessem de sua lei. Manter a lei, isto é, não se esquecer da lei, ainda não é perfeição e certa garantia de obter o prêmio, tirando qualquer receio de suplício. Há alguns que mantêm a lei na memória, mas não a cumprem na vida, ao invés, os que a cumprem na vida, não podem retê-la na memória. Por conseguinte, aquele que cumpre em seus costumes os preceitos de Deus, e de certa maneira, vivendo, sempre pratica em seu coração o que retém para que não se apague da memória, e pela vida se relembra do que está escrito da lei de Deus no coração, este retém com fruto a lembrança da lei de Deus. Ele não será tido na conta de inimigo. Mas, eis que os judeus são os inimigos, aos quais parece aludir este salmo; eles mantêm a lei de Deus e por isto foi dito a respeito deles:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”.

Deste modo, o povo judeu permanece, e mesmo com sua permanência cresce a multidão dos cristãos. Certamente subsistem por todas as nações, são judeus, e não deixam de ser o que eram; isto é, este povo não aceitou o domínio dos romanos, deixando a condição de judeus; mas de tal forma estão sujeitos a eles que mantêm suas leis, as leis de Deus. Mas, o que lhes sucedeu? “Pagais o dízimo da hortelã e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a misericórdia e a justiça. Coais o mosquito e tragais o camelo!(Mt 23,23.24).

São palavras que o Senhor lhes dirige. E em verdade, eles são assim. Mantêm a lei, mantêm os profetas; lêem tudo, cantam tudo, mas não vêem aí a luz dos profetas, que é o Cristo Jesus. Não somente eles não o vêem agora, quando está sentado nos céus, mas nem então o viram, quando andava humildemente no meio deles, e se tornaram réus derramando seu sangue; mas não são todos. Hoje relembramos este fato a V. Caridade. Não foram todos, porque muitos deles se converteram àquele que eles mataram, e acreditando nele, mereceram o perdão por terem derramado seu sangue. Deram aos homens um exemplo de que não devem perder a esperança de lhes serem perdoados quaisquer pecados, se até a morte de Cristo foi perdoada aos que, contritos, confessaram.

Porque és, ó Deus, o meu defensor. Meu Deus! A tua misericórdia antecipa-se a mim”, a saber, sua misericórdia antecipou-se a todos os meus méritos. Mesmo que nada de bom encontrar em mim, ele me faz bom, ele próprio justifica o convertido, e admoesta ao que se mostra avesso a se converter.

Meu Deus”, diz de novo, “revelou-me a mim mesmo, no proceder de meus inimigos”, isto é, mostrou-me quanto me ama, quanto me concede de sua bondade, em comparação com os meus inimigos. Sendo de uma só massa que provêm os vasos de ira e os vasos de misericórdia, por meio dos vasos de ira percebem os vasos de misericórdia quantos bens Deus lhes outorgou (cf Rm 9,21).

Daí:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”.

Refere-se aos judeus. Mas, que lhes farás? “Dispersa-os com o teu poder”.

Mostra-lhes que és forte e não eles, que presumindo de sua fortaleza, não conheceram tua verdade. Mas não como são fortes aqueles dos quais foi dito:

Homens fortes se precipitaram sobre mim”, e sim como tu és forte para dispersá-los.

Conduze-os, Senhor, meu protetor”, isto é, dispersa-os, mas não os abandones, “a fim de que não se esqueçam de tua lei”, e com isso me protegerás, de tal modo que sua dispersão servir-me-á de testemunho acerca de tua misericórdia.



§ 3
E continua o salmo:

Delito de sua boca, as palavras de seus lábios”.

Onde se une, como se encaixa esta sentença? “Delito de sua boca, as palavras de seus lábios. Sejam colhidos pela sua própria arrogância. Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações na ira consumidora e não subsistirão”.

Ontem dizíamos que este trecho é obscuro, e por isso adiamos sua explicação para dá-la a espíritos menos sobrecarregados. Agora então, uma vez que ainda não estais cansados de ouvir, erguei os corações e ajudai-me com vossa atenção, para não acontecer que por sua relativa obscuridade e vossa perplexidade, nossa palavra não seja suficiente para satisfazer a vossa atenção; deveis também dar vossa contribuição para que supra a vossa inteligência o que não dissermos até o fim. Com efeito, acha-se no meio esta sentença, a respeito da qual não vemos facilmente a conexão:

Delito de sua boca, as palavras de seus lábios”.

Recorramos, pois, aos versículos mais acima. Após ter dito:

Não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”, e no entanto, os chamara de inimigos, acrescentou dois versículos:

Dispersa-os com o teu poder. Conduze-os, Senhor, meu protetor”: e imediatamente incluiu:

Delito de sua boca, as palavras de seus lábios”, isto é, a este deves matar, não a eles. Portanto, “não os mates, a fim de que não se esqueçam de tua lei”; existe, contudo, alguma coisa que deves matar neles, para que cumpras o que foi dito acima:

Não te compadeças dos que praticam a iniqüidade. Dispersa-os, pois, conduze-os”, a saber, não os abandones ao dispersá-los, porque sem abandoná-los, tens o que fazer, porquanto não os matas. O que matas, então? “Delito de sua boca, as palavras de seus lábios”.

O que matas? Os seus gritos:

Crucifica-o, crucifica-o(Jo 19,6), mas não aqueles que gritaram. Eles quiseram suprimir, matar, perder a Cristo; tu, porém, ressuscitando o Cristo que eles quiseram perder, matas o “delito de sua boca, as palavras de seus lábios”.

Efetivamente, eles tiveram pavor de que vivesse aquele que quiseram matar com seus gritos. Admiram-se de que seja adorado no céu por todos os povos aquele que eles desprezaram na terra. Assim estão mortos os delitos de sua boca, as palavras de seus lábios.



§ 4
Sejam colhidos pela sua própria arrogância”.

Qual o sentido da frase:

Sejam colhidos pela sua própria arrogância?” Que foi em vão que os fortes se precipitaram sobre Cristo, que pareceu ceder diante deles. Eles pensaram que lhe haviam infligido algo, e prevaleceram contra o Senhor. Eles puderam crucificá-lo enquanto homem. A fraqueza pode prevalecer e a virtude ser morta. E eles pensaram que conseguiram alguma coisa, como sendo fortes, poderosos, prevalentes, leões de emboscada, touros cevados como aqueles citados em outra passagem:

Rodearam-me de touros cevados(Sl 21,13).

Que fizeram a Cristo? Não foi a vida que mataram, e sim a morte. Com efeito, extinta a morte naquele que morria, e ressuscitada a vida através da morte naquele que vivia (de fato, ele ressuscitou a si mesmo, porque a vida estava nele e não pôde morrer), que fizeram eles? Ouve o que fizeram: destruíram o templo, e ele, o que fez? No terceiro dia o reergueu (cf Jo 2,19).

Assim foram mortos os delitos de sua boca, e as palavras de seus lábios. E o que aconteceu aos que se converteram? “Sejam colhidos pela sua própria arrogância”.

Foi-lhe anunciado que ressuscitara aqueles que eles haviam matado. Acreditaram que ele ressuscitou, porque o viram colocado no céu, e de lá enviou o Espírito Santo que encheu aqueles que nele acreditaram (cf Mt 1,9; 2,4) e descobriram que eles em nada o prejudicaram e nada conseguiram. O seu feito deu em nada; mas ficou o pecado. Uma vez que sua ação foi perdida, mas o pecado permaneceu naqueles que o cometeram, eles foram colhidos em sua arrogância, e viram-se sob o peso de sua iniqüidade. Só lhes restava confessar o pecado e que os perdoasse aquele que cedera aos pecadores e oferecera sua morte, sendo morto pelos mortos para vivificar os mortos. Portanto, foram colhidos pela sua própria arrogância.



§ 5
Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações, na ira consumidora e não subsistirão”.

É difícil de entender o acréscimo:

e não subsistirão”.

Que quer dizer:

e não subsistirão?” Vejamos o texto anterior; tendo sido colhidos pela sua arrogância, “pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações”.

Que são consumações? Perfeições. Consumar é terminar. Uma coisa é ser consumado, e outra ser consumido. Consuma-se o que é bem acabado; consome-se o que se acaba para deixar de ser. A soberba não permite que o homem seja perfeito; nada impede tanto a perfeição. V. Caridade dê um pouco de atenção ao que digo, e vede este mal em extremo molesto, temível demais. Que mal pensais que seja? Por quanto tempo hei de acentuar que mal é a soberba? Só por ele o diabo teve de ser punido. Certamente ele é o príncipe de todos os pecadores, certamente é o sedutor para o pecado. Não lhe é imputado adultério, nem embriaguez, nem fornicação, nem rapina do bem alheio; caiu apenas pela soberba. E como a inveja é sócia da soberba, não é possível que soberbo como ele é, não inveje. Levado por este vício, que necessariamente acompanha a soberba, tendo caído invejou o homem que estava de pé, e empenhou-se em seduzi-lo, para que não fosse elevado ao lugar de onde ele próprio havia caído. E por isso esforçou-se por persuadir a cometer pecados verdadeiros, porque temos tal juiz que não se pode apresentar-lhe falsas acusações. Pois, se nossa causa fosse julgada por um homem, que pode ser enganado por falsas incriminações, o diabo não se empenharia muito para que pecássemos. Poderia oprimir os inocentes, enganando o juiz; arrastar os acusados a seu lado e fazer com que fossem condenados com ele. Agora, porém, como sabe que é impossível enganar a tal juiz e que ele sendo justo não pode fazer accepção de pessoas, procura apresentar-lhe tais réus que ele seja forçado a condenar, uma vez que é justo. Esforça-se por fazer-nos pecar, só por inveja, porque forçosamente a inveja acompanha a soberba. Tal é o mal da soberba, que impede a perfeição. Gabe-se, pois, alguém das riquezas, gabe-se da beleza e das forças corporais. Tudo isto é perecível. É irrisório gabar-se de coisas perecíveis. Tais bens abandonam muitas vezes os vivos; ou então os homens ao morrerem, é necessário que as deixem. Quando alguém faz progressos, é tentado pelo vício capital da soberba, de sorte que perca tudo aquilo em que progrediu. Enfim, todos os vícios são de se recear nos atos maus; a soberba, porém, é mais de se temer nos atos bons. Por isso, não é de admirar que o Apóstolo seja humilde a ponto de dizer:

Quando sou fraco, então é que sou forte”.

Pois, qual o medicamento que ele diz ter-lhe sido aplicado contra o tumor pelo médico que sabia o que havia de curar, a fim de que ele não fosse tentado deste vício? Diz ele:

Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás para me espancar. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém:

Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder(2 Cor 12,7-10).

Vede as consumações. O Apóstolo, doutor das gentes, pai dos fiéis pelo evangelho, recebeu um aguilhão da carne para o espancar. Quem de nós ousaria dizer isto, se ele se corasse de o confessar? Se, pois, dissermos que Paulo não sofreu isto, como se o quisessemos honrar, nós o faríamos mentiroso. Mas como é verdadeiro, disse a verdade. Temos de crer que foi-lhe dado um anjo de Satanás, para que não se enchesse de soberba, devido à grandeza das suas revelações. Eis como é temível a serpente da soberba! Que aconteceu, efetivamente, aos judeus? Foram colhidos em seu pecado de ter matado a Cristo, e com a gravidade de seu pecado mais se humilharam, e por uma humildade maior mereceram ser elevados. É isto que significa:

Sejam colhidos em sua própria arrogância. Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações”, isto é, aperfeiçoar-se-ão ainda mais, porque foram apanhados em maldições e mentiras. Com efeito, a soberba não os deixava aperfeiçoar-se; o crime tirou-lhes a soberba, devido a sua confissão. O perdão apagou o crime por comiseração de Deus, e pelas maldições e mentiras que proferiram foram anunciadas as consumações; isto é, foi dito ao homem: Viste o que és, sentiste o que és, erraste, cegaste, pecaste e caíste, reconheceste a tua fraqueza. Suplica ao médico, não te consideres sadio. Onde está teu frenesi? Mataste o médico, mas apesar de matá-lo, não o pudeste arruinar; no entanto, quanto dependeu de ti, tu o mataste.

Pelas mentiras e maldições que proferem serão anunciadas as consumações”.

Fizestes o que constituía uma maldição, ó judeus:

O que for suspenso é um maldito de Deus(Dt 21,23; Gl 3,13).

Crucificastes a Cristo; como um maldito vós o considerastes. Acrescenta-se a mentira à maldição: colocastes guardas junto do sepulcro e lhes oferecestes dinheiro para mentirem (cf Mt 28,12).

Mas, Cristo ressuscitou. Onde está a maldição da cruz que lançastes? Onde se acha a mentira dos guardas que corrompestes?



§ 6
Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações, na ira consumidora e não subsistirão”.

Qual o sentido da expressão:

na ira consumidora, serão anunciadas as consumações”.

Existe ira que consuma e ira que consome. Pois, toda vingança de Deus denomina-se ira; mas algumas vezes Deus se vinga aperfeiçoando; por outras vezes vinga-se condenando. Como se vinga aperfeiçoando? “Castiga todo filho que acolhe(Hb 12,6).

Como se vinga condenando? Quando colocar os ímpios à esquerda e lhes disser:

Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

É ira que consome, não consuma.

Serão anunciadas as consumações, na ira consumidora”, isto é, os apóstolos pregarão que “onde avultou o pecado, a graça supera-bundou(Rm 5,20), e à fraqueza do homem corresponde a medicina da humilhação. Enquanto eles assim pensam, descobrem e confessam suas iniqüidades, “não subsistirão”.

Como “não subsistirão?” Em sua soberba.

Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações, na ira consumidora e não subsistirão”, a saber, na soberba, na qual foram colhidos.



§ 7
E hão de saber que Deus dominará Jacó e até as extremidades da terra”.

Antes consideravam-se justos, porque o povo judaico recebera a lei, e guardara os preceitos de Deus. Foi-lhes demonstrado que, de fato, não os observaram, porque entre os preceitos de Deus não descobriram o Cristo, uma vez que a cegueira atingiu uma parte de Israel (cf Rm 11,25).

Vêem os próprios judeus que não devem desprezar os gentios, que tinham na conta de cães e pecadores. Pois, assim como igualmente se acharam em iniqüidade, de igual modo obterão a salvação. Diz o Apóstolo:

Não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios”, Deus os chamou (Rm 9,24).

Pois “a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular(Sl 117,22), reunindo os dois povos em si; de fato, o ângulo reúne duas paredes. Os judeus se julgavam importantes e grandes e consideravam os gentios fracos, pecadores, escravos dos demônios, adoradores dos ídolos; contudo, em ambos os povos havia iniqüidade. Demonstrou-se que os judeus também são pecadores, porque “não há quem faça o bem, não há um sequer(Rm 3,12).

Desistiram da soberba e não invejaram a salvação dos gentios, porque reconheceram que sua fraqueza era igual a deles; e reunidos na pedra angular, simultaneamente adoraram o Senhor.

E hão de saber que o Senhor dominará Jacó e até as extremidades da terra”.

Não domi-nará somente os judeus, mas também as extremidades da terra. Eles não o saberiam se ainda perseverassem em sua soberba. Estariam ainda em sua soberba se ainda se considerassem justos. No intuito de que não se julgassem justos, foram-lhes anunciadas pelas maldições e mentiras que proferem as consumações, na ira consumidora. Foram colhidos em sua arrogância, praticando uma ação maldita quando mataram a Cristo. Eis o que fez nosso Senhor Jesus Cristo. Morreu às mãos dos judeus, e remiu uma muldição de povos. Deste modo o sangue foi derramado, sendo útil desta maneira, mas aproveitou a todos os que se converteram, porque também os que o mataram o conheceram, e mereceram receber dele o perdão de sua morte e deste grande delito.



§ 8
15 O que diz o salmista, então, a respeito deles? O que foi citado acima? “Eles se converterão à tarde”, isto é, embora tardiamente, depois da morte de nosso Senhor Jesus Cristo.

Eles se converterão à tarde, famintos como cães”.

Mas como cães”, não como ovelhas ou novilhos.

Como gentios, pecadores, porque conheceram seu pecado os que se consideravam justos. Deles fala outro salmo:

Depois, precipitaram-se”, enquanto aqui se diz:

à tarde”.

Naquele salmo acha-se o seguinte:

As fraquezas deles se multiplicaram; depois, precipitaram-se(Sl 15,4).

Por que “depois, se precipitaram?” Porque “as fraquezas deles se multiplicaram”; pois, se ainda se considerassem sadios, nunca se precipitariam. Lá se encontra a expressão:

As fraquezas deles se multiplicaram”, e aqui se diz o mesmo:

Sejam colhidos pela própria arrogância. Pelas maldições e mentiras que proferem serão anunciadas as consumações, na ira consumidora”.

E à frase que lá se encontra:

Depois, precipitaram-se” corresponde aqui:

E não subsistirão, em sua soberba. E hão de saber que Deus dominará Jacó e até as extremidades da terra. Eles se converterão à tarde”.

Por conseguinte, é bom para o pecador ser humilhado; e ninguém é tão incurável quanto aquele que se julga sadio.

Rondando pela cidade inteira”.

Ontem já explicamos que a expressão cidade, isto é, cidade circunvizinha representa todos os povos.



§ 9
16 “Hão de vaguear à busca de alimento”, isto é, para ganhar os outros, para que os fiéis se transformem em seu corpo.

E enquanto não se fartarem murmurarão”.

Mais acima o salmista mencionara sua murmuração. Eles diziam:

Quem ouvirá? Mas tu, Senhor, deles te rirás”, porque perguntam:

Quem ouvirá?” Por que razão? Porque “terás na conta de nada todas as nações”.

Assim também aqui:

E enquanto não se fartarem murmurarão”.



§ 10
17 Terminemos o salmo. Vede como o ângulo exulta, já se alegra por causa de ambos os muros (cf Ef 2).

Os judeus se orgulhavam e foram humilhados. Os gentios estavam desanimados e se reergueram. Venham todos ao ângulo. Aí se reúnam, para cá todos corram, e se dêem o ósculo de paz. Venham de diversos pontos, mas não para se oporem. Uns da circuncisão, outros dos gentios. Os muros estavam distantes um do outro, antes de chegarem ao ângulo. Mantenham-se unidos ao ângulo. E a Igreja inteira, formada de ambos os muros, que dirá? “Mas eu cantarei a tua fortaleza, e exultarei de manhã por tua misericórdia. De manhã terão passado as tentações. De manhã, quando terminar a noite deste século, de manhã quando já não temermos as insídias dos ladrões, e do diabo e de seus anjos, de manhã quando não andarmos mais à luz da profecia, mas contemplarmos, como um sol, o próprio Verbo de Deus.

E exultarei de manhã por tua misericórdia”.

Com razão se diz em outro salmo:

Desde a manhã estarei de pé diante de ti e verei(Sl 5,5).

Com efeito, a ressurreição do Senhor se deu de manhã, para se realizar a palavra de outro salmo:

Pela tarde se prolongará o pranto, de manhã, a alegria(Sl 29,6).

À tarde, de fato, os discípulos choraram a morte de nosso Senhor Jesus Cristo; de manhã exultaram com a sua ressurreição.

Exultarei de manhã por tua misericórdia”.



§ 11
17.18 “Porque te tornaste meu protetor e meu refúgio no dia da tribulação. Meu defensor, eu te glorificarei, porque és o Deus que me protege”.

Que seria de mim se não me socorresses? Como não estaria desesperado se não me curasses? Onde jazeria se não viesses? Certamente estava em perigo de vida devido a minha grave ferida, mas o médico onipotente tratava daquele meu ferimento. Nada é incurável para o médico onipotente; não abandona a ninguém. Só é preciso que queiras ser curado e não recuses o tratamento de suas mãos. Mas, embora não queiras ser tratado, tua ferida te avisa que deves ser tratado; insiste com o renitente, obriga a voltar a si o que de certo modo fugia, e atrai. Em tudo se cumpre a palavra:

A tua misericórdia antecipa-se a mim”.

Pensa que foi dito:

antecipa-se a mim”.

Se foste tu que primeiro trouxeste algo, se mereceste a misericórdia de Deus praticando antes algum bem, não foi ela que se antecipou. Quando hás de ao menos entender que a graça foi preveniente, se não aprenderes o que diz o Apóstolo:

Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?(1 Cor 4,7).

É o mesmo que o seguinte:

A tua misericórdia antecipa-se a mim”.

Finalmente, o salmista atendendo a todos os bens que podemos ter, sejam naturais, sejam adquiridos, ou na própria vida, na fé, na esperança, na caridade, nos bons costumes, na justiça, no temor de Deus, todos somente podem provir de seu dom, assim conclui:

Meu Deus, minha misericórdia”.

Sentindo-se repleto dos bens de Deus, não encontra outro nome a dar a seu Deus senão: misericórdia sua. Oh! nome, que não deixa ninguém desesperar! “Meu Deus, minha misericórdia”.

Qual o significado de:

minha misericórdia?” Se falas: minha salvação, entendo que ele dá a salvação; se dizes: meu refúgio, entendo que te refugias nele; se dizes: minha força, entendo que te dá força; e: minha misericórda, que será? Tudo o que sou provém de tua misericórdia. Mas te mereci, invocando-te! Para existir, o que fiz? Para existir quem te invocasse, que fiz eu? Se, pois, fiz alguma coisa para existir, já era antes de existir. Ao invés, se nada absolutamente era antes de existir, nada mereci para ser. Fizeste com que eu existisse, e não foste tu que fizeste que fosse bom? Deste-me o ser, e foi possível que outro me desse a capacidade de ser bom? Se tu me deste o ser, e outro me deu a faculdade de ser bom, é melhor aquele que me fez do que aquele que me deu o ser. Uma vez que ninguém é melhor do que tu, ninguém mais potente, ninguém mais pródigo em misericórdia, aquele de quem recebi o ser é o mesmo de quem recebi a faculdade de ser bom.

Meu Deus, minha misericórdia”.