SALMO 𝟝𝟟

Compadece-te de mim, ó Deus, compadece-te de mim, pois em ti se refugia a minha alma;

à sombra das tuas asas me refugiarei, até que passem as calamidades.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 57


§ 57:1  Ƈ Compadece-te de mim, ó Deus, compadece-te de mim, pois em ti se refugia a minha alma; à sombra das tuas asas me refugiarei, até que passem as calamidades.

§ 57:2  Ƈ Clamarei ao Deus altíssimo, ao Deus que por mim tudo executa.

§ 57:3  Ele do céu enviará seu auxílio , e me salvará, quando me ultrajar aquele que quer calçar-me aos pés. Deus enviará a sua misericórdia e a sua verdade.

§ 57:4  Estou deitado no meio de leões; tenho que deitar-me no meio daqueles que respiram chamas, filhos dos homens, cujos dentes são lanças e flechas, e cuja língua é espada afiada.

§ 57:5  Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; seja a tua glória sobre toda a terra.

§ 57:6  Armaram um laço para os meus passos, a minha alma ficou abatida; cavaram uma cova diante de mim, mas foram eles que nela caíram.

§ 57:7  Resoluto está o meu coração, ó Deus, resoluto está o meu coração; cantarei, sim, cantarei louvores.

§ 57:8  Ɗ Desperta, minha alma; despertai, alaúde e harpa; eu mesmo despertarei a aurora.

§ 57:9  Ł Louvar-te-ei, Senhor, entre os povos; cantar-te-ei louvores entre as nações.

§ 57:10  Pois a tua benignidade é grande até os céus, e a tua verdade até as nuvens.

§ 57:11  Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e seja a tua glória sobre a terra.


O SALMO 57


SERMÃO AO POVO (Pronunciado em Cartago na basílica Restituída)



§ 1
2 A palavra que cantamos é mais para ser ouvida do que para ser usada como aclamação. A verdade clama a todos, como se fosse uma assembléia de todo o gênero humano:

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Para algum iníquo será difícil falar segundo a justiça? Ou existe quem, interrogado sobre o que é justo, se ele mesmo não estiver em causa, não responda com toda facilidade? Com efeito, a verdade, pela mão de nosso criador, inscreveu em nossos corações:

Não faças a ninguém o que não queres que te façam(Tb 4,16; Mt 7,12).

Este preceito mesmo antes que a Lei fosse promulgada a ninguém era permitido ignorar; era o fundamento do juízo, mesmo para aqueles que não tinham a Lei. Mas a fim de que os homens não se queixassem de ter-lhes faltado algo, foi escrito em tábuas o que eles não liam em seus corações. Não é que não o tinham por escrito, e sim que não queriam lê-lo. Foi posto diante de seus olhos o que eram obrigados a ver em sua consciência. A voz de Deus, vinda de fora, impeliu o homem a entrar em seu íntimo, conforme a palavra da Escritura:

Indagar-se-á sobre os planos do ímpio(Sb 1,9).

Nesta indagação vê-se a lei. Mas como os homens cobiçassem os bens exteriores, e assim desertaram de si mesmos, foi-lhes dada também a Lei escrita. Não digo que não estivesse escrita nos corações, mas tu eras um fugitivo de teu próprio coração. Serás apanhado por aquele que está em toda parte, e reconduzido a teu interior. Então, como clama a Lei escrita àqueles que abandonaram a lei inscrita em seus corações? “Voltai, prevaricadores, aos vossos corações(cf Rm 2,15; Is 46,8).

Quem te ensinou a não querer que outro se aproxime de tua esposa? Quem te ensinou a não querer que te roubem? Quem te ensinou a não querer suportar uma injúria, e tudo mais que se pode dizer em geral e em particular? Existem muitos males que, se forem os homens interrogados a respeito deles, eles não querem suportar. Está bem. Se não queres suportar essas coisas, porventura somente tu és homem? Não vives na sociedade do gênero humano? Aquele que é criatura, como tu, é teu companheiro. E todos os homens foram feitos à imagem de Deus. A não ser que esmaguem, com as cobiças terrenas, o que Deus criou.

Não faças, portanto, a ninguém o que não queres que te façam”.

Pensas que é um mal aquilo que não queres suportar. Isso te força a reconhecer a lei íntima, inscrita em teu coração. Praticavas essa maldade e o outro gritava sob o peso de tuas mãos. Como não terás de voltar a teu coração, ao padeceres o mesmo de mãos alheias? O furto é bom? Não. Interrogo: O adultério é bom? Todos clamam: Não. O homicídio é bom? Todos gritam que é detestável. Desejar as coisas alheias é bom? Não, é voz de todos. Ou se não queres confessá-lo, aparece algum que deseja o que é teu. Que isto te agrade, e responde como querer. Todos, portanto, se forem interrogados a propósito dessas coisas, clamam que não são boas. De outro lado, vejamos os atos benéficos. Não só quando se trata de não prejudicar, mas ainda de prestar e conceder benefícios. Interroguem-se os famintos. Tens fome? Alguém tem pães mais do que o suficiente, sabe que te faltam e não dá. Isso te desagrada, quando tens fome; que te desagrade também quando estás saciado, mas sabes que outro passa fome. Vem um peregrino sem teto a tua terra. Não é acolhido. Ele então clama que aquela cidade é desumana, e que facilmente encontraria refúgio junto de bárbaros. Sente a maldade, porque a sofre; tu talvez não a sentes; mas importa que penses que também és peregrino e cogites em como te desagradaria se não te fosse prestado o socorro que não queres em tua pátria dar ao peregrino. Pergunto a todos: Tudo isso é verdade? Sim. E justo? Sim.



§ 2
Mas ouvi o salmo:

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

A justiça não esteja nos lábios, mas nos atos. Se ages de maneira diferente daquela que usas ao falar, falas bem e julgas mal. E se agires conforme julgas? Se fores interrogado sobre o que é melhor: o ouro, ou a fidelidade, não és tão perverso e desviado de toda verdade que respondas que o ouro é melhor. Ao seres interrogado, colocas a fidelidade acima do ouro. Falaste segundo a justiça. Ouviste o salmo? “Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Como provarei que não julgas como falas? Já tenho tua resposta de que a fidelidade vale mais do que o ouro. Vamos supor que, não sei de onde, vem um amigo teu, e sem testemunhas confia-te certa quantidade de ouro. Somente ele e tu, dentre os homens, tendes conhecimento disso. Existe, porém, ali outra testemunha que é invisível, mas vê. O amigo te entregou o ouro secretamente, em teu quarto, talvez sem a presença de qualquer árbitro. A testemunha presente, não está dentro das paredes do quarto, mas no recinto de vossas consciências. O amigo entregou e partiu. Não o contou a nenhum dos seus, esperando voltar, e receber de volta o que entregara. Como são as coisas humanas, ele morre. Tem um herdeiro, o filho que deixou. O filho ignora o que o pai possuía e a quem o confiou. Vamos. Volta, volta, prevaricador, ao teu coração, onde está escrita a norma:

Não faças a ninguém o que não queres que te façam”.

Imagina que foste tu quem confiou o ouro, que não disseste a nenhum dos teus, que morreste e deixaste um filho. Que querias que teu amigo fizesse? Responde, julga a questão, o tribunal do juiz está em tua mente. Ali Deus está sentado, tua consciência é o acusador, e o medo o carrasco. Vives em meio às vicissitudes humanas, na sociedade dos homens. Pensa no que querias que teu amigo prestasse a teu filho. Sei o que te respondem teus pensamentos. Julga, então, conforme ouves. Julga. Haverá uma voz. A voz da verdade não se cala. Não clama com os lábios, mas vocifera no coração. Presta ouvidos. Fica ali com o filho de teu amigo. Tu o vês, provavelmente, a vagar como um indigente, sem saber o que seu pai possuía, onde o colocou, a quem o confiou. Pensa também em teu filho. Pondera que está vivo aquele que desprezas como morto, e pensa nele para viveres. Uma coisa é o que a avareza ordena, ordena contra Deus e outra o que Deus manda. A avareza é diferente. No paraíso, o criador deu uma ordem, e disse o contrário a serpente sedutora. Lembra-te de tua primeira queda. Por causa dela, és mortal, trabalhador, comes o pão com o suor de teu rosto, e a terra produz para ti espinhos (cf Gn 3,17.18).

Aprende com a experiência o que não quiseste aprender com o preceito. Mas a ambição vence. Por que não há de vencer antes a verdade? Onde está o que falavas? Eis que pensas negar que o ouro está contigo, pensas escondê-lo do herdeiro de teu amigo. Antes eu te perguntara o que é mais precioso, melhor: o ouro ou a fidelidade. Por que dizes uma coisa e fazes outra? Não temes diante desta palavra:

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Tu me disseste que a fidelidade é melhor, e em teu julgamento consideraste que o ouro é melhor. Não julgaste conforme disseste; falaste a verdade, e julgaste falsamente. Portanto, ao falares conforme a justiça, não o falavas verdadeiramente. Pois, “falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Quando me respondias acerca do que é justo, falavas com vergonha e não confessavas com retidão.



§ 3
1 Mas, se vos agrada, tratemos agora do presente salmo. É suave e bem conhecida para os ouvidos da Igreja aquela voz, a voz de nosso Senhor Jesus Cristo e também voz de seu corpo, voz da Igreja em trabalhos, peregrina na terra, a viver entre os perigos dos maldizentes e aduladores. Não temerás aquele que ameaça, se não amas quem te adula. Aquele de quem é esta voz observa e verifica que todos falam segundo a justiça. Quem ousaria falar contra ela, de medo de ser denominado injusto? Ouvindo as palavras de todos, e atento a seus lábios, clamava-lhes:

Falarás verdadeiramente segundo a justiça?” Se não falais falsamente segundo a justiça, se não falais em altas vozes uma coisa e escondeis outra no coração, “julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Ouve do evangelho a voz do Senhor, a mesma que se encontra neste salmo. Disse ele aos fariseus:

Hipócritas, como podeis falar coisas boas, se sois maus? Ou declarais que a árvore é boa e o seu fruto é bom, ou declarais que a árvore é má e o seu fruto é mau(Mt 12,34.33).

Por que desejas ser caidada, parede de barro? Conheço o teu interior, não me engano com teu aspecto exterior. Sei o que pretendes, o que encobres. Diz o evangelista:

Não necessitava de que o informassem sobre homem algum, porque conhecia o que havia no homem(Jo 2,25).

Conhecia o que havia no homem” quem o fizera, e se tornara homem para procurar o homem. Vede, portanto, se não são concordes estas vozes:

Hipócritas, como podeis falar coisas boas, se sois maus?” E:

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Por acaso não foi segundo a justiça que falastes:

Mestre, sabemos que és justo e não dás preferência a ninguém(Mt 22,16).

Por que ocultáveis o dolo no coração? Por que mostráveis a imagem de César a vosso criador e apagáveis a sua de vossos corações? Não se ouviu o que faláveis e não se experimentou como julgáveis? Não crucificastes aquele que dizíeis ser justo? “Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Como posso ouvir vossa expressão:

Sabemos que és justo”, se prevejo vosso juízo:

Crucifica-o, crucifica-o? Falais verdadei-ramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Que fizestes, enfurecendo-vos contra Deus que era também homem, e matando vosso rei? Por isso não deixaria de vir a ser rei, porque foi morto por vós para ressuscitar. A respeito do título:

Rei dos judeus”, colocado na cruz do Senhor, em três línguas: hebraica, grega e latina, soubera responder o juiz, que era simples homem:

O que escrevi, está escrito(Jo 19,6.19.20.22) e Deus não saberia dizer: O que escrevi, está escrito? Em verdade, é vosso rei: vivo, é vosso rei; morto, é vosso rei. Eis que ele ressuscitou, e no céu é vosso rei. Eis que há de vir! Ai de vós! É vosso rei. Ide agora, e falai segundo a justiça, e não quereis julgar com retidão, ó filhos dos homens. Não quereis julgar com retidão; com retidão sereis julgados. Vive o vosso rei, e já não há de morrer; a morte não tem mais domínio sobre ele (cf Rm 6,9).

Eis que vem; “voltai, prevaricadores, ao coração(Is 46,8).

Eis que ele virá. Corrigi-vos antes que venha, ide ao seu encontro com a confissão (cf Sl 94,2).

Eis que virá; é vosso rei. Lembrai-vos do título na cruz. Mesmo que não o vejais escrito, ele contudo permanece; não se lê na terra, mas é conservado no céu. Julgais que aquela inscrição foi destruída? E como se acha no título do presente salmo? “Para o fim. Não destruas. De Davi. Inscrição do título”.

Não se perde, portanto, a inscrição do título. Vosso rei é Cristo, porque é o rei de todos os povos:

Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos(Sl 21,29).

Se, de fato, é rei, antes de vir, ele vos diz: Ainda falo, ainda não julgo; clamo assim com ameaças porque não quero ferir ao julgar.

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.



§ 4
3 Agora, porém, o que fazeis? Por que razão vos digo tais coisas? “Mas no coração operais iniqüidades na terra”.

Talvez somente no coração? Ouve como continua o salmo. As mãos seguem o coração. As mãos servem o coração. Pensa-se e executa-se. Ou talvez, não o fazemos porque não podemos, não porque não queremos. Tudo o que queres e não podes fazer, Deus conta como feito.

Mas no coração operais iniqüidades na terra”.

Qual a seqüência? “Vossas mãos concatenam injustiças”.

Que significa:

concatenam?” Vão de pecado em pecado, do pecado ao pecado, por causa do pecado. Como se dá isto? Cometeu um furto, um pecado. Foi visto; então procura matar quem o viu; um pecado puxou o outro. Deus permite, por um juízo oculto, que ele mate aquele que desejou matar; percebe que o fato foi conhecido e procura matar mais outro: concatenou o terceiro. Enquanto se empenha em não ser descoberto, ou em não ser condenado pelo mal que fez, consulta um astrólogo; acrescentou o quarto pecado. O astrólogo provavelmente responde anunciando eventos duros e maus; corre para o agoureiro para obter remissão. O agoureiro replica que não pode aplacar e ele vai procurar o feiticeiro. E quem pode enumerar esses pecados que se concatenam entre si? “Vossas mãos concatenam injustiças”.

Quando concatenas, ligas pecado a pecado. Livra-te deles. Mas não posso, retrucas. Clama ao Senhor:

Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de morte”? (Rm 7,24).

Virá a graça de Deus, para que te deleite a justiça como te deleitava a iniqüidade. E como um homem que ficou livre de seus vínculos, exclamarás a Deus:

Rompeste as minhas cadeias(Sl 115,16).

Que quer dizer:

Rompeste as minhas cadeias”, a não ser, perdoaste os meus pecados? Ouve como são cadeias; diz a Escritura:

Cada um é apanhado pelos laços de seus pecados(Pr 5,22).

São não somente cadeias, mas também cordões. Os cordões se fazem com fios torcidos; assim também concatenavas os pecados.

Ai dos que arrastam os pecados como cordas compridas(Is 5,18, sg. LXX), exclama Isaías.

Ai dos que arrastam os pecados como cordas compridas”, que significa senão ai daqueles cujas mãos concatenam iniqüidades? E como cada um fica amarrado por seus pecados, como também é ferido por eles, o Senhor expulsou os que procediam mal no templo com um flagelo feito de cordas (cf Jo 2,15).

Mas não queres agora romper tuas cadeias, porque não as sentes. Ao contrário, elas te deleitam, te causam prazer. Mas, sentirás no fim, quando te for dito:

Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores. Ali haverá choro e ranger de dentes(Mt 22,13).

Sentes pavor, temes, bates no peito. Declaras que os pecados são males e que a justiça é um bem.

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Em vossa vida estão vossas palavras; mas é pelos fatos que se conhecem vossos lábios. Não concateneis iniqüidades, porque se transformarão em ligaduras os pecados que concatenardes. Existem alguns que não ouvem, mas não são todos. Os que não ouvem revelam-se de antemão.



§ 5
4 “Transviaram-se os pecadores desde o berço, desgarraram-se desde o seio materno; disseram falsidade”.

Ao falarem iniqüidades, falam falsidades, porque a iniqüidade é falaz; e ao falarem segundo a justiça, também falam falsamente, porque dizem uma coisa com a boca, e escondem outra no coração.

Transviaram-se os pecadores desde o berço”.

O que significa isto? Procuremos com mais afinco. Talvez seja que Deus conheceu de antemão os pecadores, já no seio materno. Pois, qual o motivo de se dizer quando Rebeca estava grávida de dois gêmeos:

Amei a Jacó e aborreci a Esaú?” Foi dito:

O maior servirá o menor(Gn 25,23; Ml 1,2.3; Rm 9,13).

Oculto juízo de Deus! No entanto, “desde o berço”, isto é, desde a origem,“transviaram-se os pecadores”.

De onde se afastaram? Da verdade. De onde? Da pátria feliz, da vida bem-aventurada. Acaso se afastaram desde o útero? E que pecadores se afastaram do útero materno? Quem nasceria se lá não tivesse sido retido? Quem viveria hoje, de sorte que ouvisse sem motivo essas coisas, a não ser que tivesse nascido? Então, talvez os pecadores se tenham afastado de certo útero, onde a caridade sofria dores, segundo a palavra do Apóstolos:

Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós(Gl 4,19).

Por conseguinte, espera, para seres formado. Não te atribuas um juízo daquilo que talvez não conheças. Ainda és carnal, foste concebido. Por teres recebido o nome de Cristo, nasceste por certo sacramento nas vísceras da mãe. O homem nasce não somente das vísceras, mas ainda nas vísceras. Primeiro nas vísceras, para poder nascer delas. Por este motivo foi dito a Maria:

O que nela foi gerado vem do Espírito Santo(Mt 1,20).

Ainda não nascera dela, mas nela já fora concebido. Por isso, algumas crianças nascem nas vísceras da Igreja; e é bom que saiam de lá já formadas, para não abortarem. Tua mãe te gere; não aborte. Se fores paciente, as vísceras maternas devem te conter até seres formado, até que estejas seguro da doutrina da verdade. Se, porém, por impaciência, ferires o ventre materno, ele te expelirá com dor, para teu prejuízo, não dele.



§ 6
Transviaram-se os pecadores desde o berço, desgarraram-se desde o berço materno; disseram falsidades. Então, desgarraram-se desde o seio materno porque disseram falsidades? Ou antes disseram falsidades por terem errado desde o seio materno? Efetivamente, no seio da Igreja, permanece a verdade. Quem se separar do seio da Igreja, necessariamente falará falsidades; necessariamente, digo, falará falsidades, quem não quis ser concebido, ou quem a mãe expeliu, depois de o conceber. Daí que alguns hereges clamem contra o evangelho; referindo-nos de preferência àqueles que foram expelidos, para nossa dor. Repetimos-lhes: Eis o que Cristo disse:

O Messias devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia”.

Reconheço aí nossa Cabeça, reconheço aí nosso esposo; reconhece tu também comigo a esposa. Vê a continuação:

Que, em seu nome, fosse proclamada a conversão para remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém(Lc 24,46.47).

Vem para cá, vem para cá 1. Eis a Igreja, através de “todas as nações, a começar por Jerusalém”; não digo: Vem para cá; é ela quem vem a ti. Eles, porém, surdos para o evangelho (e não nos permitindo ler as palavras de Deus que eles se gabam de ter preservado da fogueira, mas procuram apagar com a língua), falam palavras suas, palavras vãs: Este entregou, aquele entregou (os livros sagrados).

Está bem; também eu digo: Este entregou, aquele entregou. E falo a verdade. Mas que me importa? Nem tu lês do evangelho os nomes dos que acusas, nem eu, os que nomeio, encontro escritos no evangelho. Tirem-se de nossa frente nossas folhas, e apresente-se o códice de Deus. Ouve como Cristo fala, ouve o que profere a verdade:

que em seu nome, fosse proclamada a conversão para remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém”.

Respondem: Não; mas ouvi o que dizemos; não queremos ouvir o que diz o evangelho.

Transviaram-se os pecadores desde o berço, desgarraram-se desde o seio materno; disseram falsidades”.

Nós falamos a verdade, porque ouvimos verdades, aquilo que o Senhor diz, e não o que diz o homem. Pode acontecer que um homem minta; impossível que minta a verdade. Pela boca da verdade conheço a Cristo, a própria verdade. Ninguém que haja se apartado desde o berço das vísceras da Igreja diga-me falsidades. Cuidarei primeiro de verificar o que me quer ensinar. Se vejo que se apartou desde o berço, que errou desde o seio materno, o que poderei ouvir dele senão falsidades? “Desgarraram-se desde o seio materno; disseram falsidades”.



§ 7
5.6 “A fúria deles assemelha-se à da serpente”.

Ides ouvir uma coisa importante.

A fúria deles assemelha-se à da serpente”.

Parece que perguntamos: O que foi que disseste? Continua o salmo:

à da víbora surda”.

Por que é surda? E “que tapa os ouvidos”.

Surda, porque tapa os ouvidos.

E que tapa os ouvidos, para não ouvir a voz do encantador e a do medicamento preparado pelo sábio”.

Assim ouvimos dizer, e também dizem-no os homens que adquiriram este conhecimento do modo que puderam; contudo, o Espírito de Deus o conhece muito melhor do que todos os homens. Não é inutilmente que o afirmei; pode ser verdade mesmo aquilo que ouvimos dizer acerca da víbora. Escutai o que faz a víbora, ao começar a sentir a influência do marso encantador2, que a chama com determinados cantos, além de existirem outras mágicas. Mas, por enquanto, dai atenção ao seguinte, irmãos; primeiro, é preciso falar disso, para que ninguém tenha dúvidas. Nem sempre que a Escritura emprega uma comparação, louva o termo de comparação, mas apenas o usa como semelhança. Por exemplo, não louva o juiz iníquo, que não queria ouvir aquela viúva, e não temia a Deus nem os homens (cf Lc 18,2); e no entanto o Senhor empregou esta semelhança. Também não elogiu aquele preguiçoso que não deu os três pães ao amigo que o pedia, por amizade, mas vencido pelo aborrecimento (cf Lc 11,8); e apesar disso, apresentou-o como termo de comparação. E de coisas pouco recomendáveis tiram-se por vezes algumas comparações. Se julgardes que se devem procurar os adivinhos porque ouvistes referência a eles na Escritura divina, também se deve ir ao teatro, porque diz o Apóstolo:

É assim que pratico o pugilato, mas não como quem fere o ar”.

O pugilato consiste numa luta com socos. Uma vez que ele emprega esta comparação, este espetáculo deve nos aprazer? Ou porque ele disse:

Os atletas se abstêm de tudo(1 Cor 9,26.28), devem importar ao cristão esses jogos e lutas vãos? Pondera o que te é dito como comparação e o que o Apóstolo admoesta a evitar como proibido. Assim, portanto, aqui se apresenta certa comparação com um marso, que encanta para tirar a víbora de tenebrosa caverna. De fato quer tirá-la para fora, para a luz, mas ela prefere as trevas onde se oculta enrolada, diz-se que como não quer sair e recusa ouvir aqueles sons que a atraem aperta uma orelha contra o chão e com a cauda tapa a outra; assim, evitando enquanto pode ouvir aqueles sons, não sai para junto do encantador. Semelhante a ela, diz o Espírito de Deus, são alguns que não ouvem a palavra de Deus. Não somente não a praticam, mas absolutamente não querem ouvir para não terem de praticar.



§ 8
Isto sucedeu também nos primórdios da fé cristã. O mártir santo Estêvão pregava a verdade, e como que encantava a mentes tenebrosas para levá-las à luz. Quando chegou a fazer memória de Cristo, de quem eles absolutamente não queriam ouvir falar, o que conta sobre eles a Escritura? Que narra? “Eles taparam os ouvidos(cf At 7,56.57).

A narração da paixão de Estêvão mostra o que eles depois fizeram. Não eram surdos, mas se fizeram de surdos. Como não tinham no coração ouvidos atentos, a violência da palavra entrando pelos ouvidos carnais, atingia com força também os ouvidos do coração; taparam igualmente os ouvidos do corpo e foram buscar as pedras. Eis as víboras surdas, mais duras do que as pedras com as quais apedrejaram o encantador. Não ouviram a voz do encantador, e “a do medicamento preparado pelo sábio”.

Qual é o medicamento preparado pelo sábio? Talvez um medicamento que ele fizera. Mas perguntamos se já era um medicamento, como era aplicado? Havia medicamentos nos profetas, medicamentos na lei. Os próprios preceitos eram medicamentos. E este medicamento ainda não fora aplicado. Com a vinda do Senhor foi aplicado o medicamento. Isto, os judeus não suportaram. Como não eram curados pelo medicamento, este foi aplicado por ocasião da vinda do Senhor. O medicamento aplicado por Estêvão já encantava, mas eles não quiseram ouvir. Como era aplicado o medicamento, eles contra isso taparam os ouvidos. Fizeram-no logo que Cristo foi mencionado. A sua fúria assemelhava-se à da serpente. Por que razão tapais os ouvidos? Esperai, ouvi; e se puderdes, enfurecei-vos. Mas como não queriam senão encarniçar-se, não quiseram ouvir. Se ouvissem, talvez se acalmassem. A sua fúria assemelha-se à da serpente.



§ 9
São assim também os que suportamos3. Primeiro, pareciam estar com a verdade. Deus, porém, não cessou de falar, não parou. Em sua Igreja a verdade foi pregada. Nas vísceras maternas revelaram-se suas mentiras. Manifestou-se o que brilha. Mostrou-se a cidade estabelecida sobre o monte, que não pôde ficar escondida e a lâmpada foi colocada no candelabro para iluminar a todos os que estão em casa (cf Mt 5,14.15).

Pois, onde não se mostra a Igreja de Cristo? Onde se esconde a verdade de Cristo? Não é ela a montanha que se originou de uma pedra pequenina e encheu toda a face da terra? (cf Dn 2,35).

Isto os convence. Não têm o que dizer contra a Igreja. Que lhes restou? Por que nos procurais, que quereis de nós? dizem eles. Afastai-vos de nós. Além disso, dizem aos seus: Ninguém fale com eles, ninguém se una a eles, ninguém os ouça. A fúria deles assemelha-se à da serpente:

à da víbora surda e que tapa os ouvidos, para não ouvir a voz do encantador e a do medicamento(isto é, a voz do medicamento)preparado pelo sábio”.

Logo não se entende a que medicamento se refere quando fala em voz? Acaso o medicamento tem voz? Existe certa espécie de medicamento que tem voz. Temos conosco o medicamento. Ouvi a sua voz, mas não como a víbora surda.

Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

É a voz “do medicamento” e este é “preparado pelo sábio”.

Já veio Cristo a fim de cumprir a Lei e os profetas e para firmar a própria verdade. Dos dois preceitos sobre a caridade depende toda a Lei e os profetas (cf Mt 5,17; 22,40).



§ 10
Talvez poderíamos pesquisar se acaso significa mais alguma coisa o que foi dito da víbora, que tapa os ouvidos, apertando um contra o chão e cobrindo o outro com a cauda? Que significa isto? A cauda representa as coisas passadas. As coisas do passado devem ser deixadas para trás, a fim de visarmos ao que nos é prometido. Por conseguinte, não devemos deleitar-nos nem em nossa vida passada, nem na presente. A isto nos admoesta o Apóstolo, com as seguintes palavras:

E que fruto colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais”? (Rm 6,21).

Proíbe a recordação com deleite do passado e com certo desejo de gozo, para não voltarmos de coração ao Egito. E quanto às coisas presentes? Como ordena a desprezá-las? “Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno(2 Cor 4,18).

E sobre a vida atual declara:

Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens (1 Cor 15,19).

Esquece o passado, quando viveste mal; despreza o presente, em que vives temporariamente, a fim de que não te deixando prender, as coisas presentes não te impeçam de alcançar as futuras. Se a vida presente te deleita, puseste o ouvido contra o chão; se te deleitam as coisas passadas, que caíram para trás, tapaste o ouvido com a cauda. Deves, portanto, ir para a luz, sair das trevas, ouvindo a voz do medicamento empregado pelo sábio, de sorte que já andando na luz e exultante, digas:

Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante(Fl 3,13).

Não disse: Esquecendo-me do que fica para trás e alegrando-me com as coisas presentes. Quando declara:

Esquecendo-me do que fica para trás”, não tapa o ouvido com a cauda. E quando fala:

Avançando para o que está diante”, não ensurdece com os bens presentes. Com razão ouve, com razão prega, exulta com a língua, anunciando a verdade sob nova luz, depois de tirar a velha túnica. E para isso vale a astúcia da serpente, que o Senhor nos exorta a imitar.

Sede prudentes como as serpentes(Mt 10,16).

Que significa:

prudentes como as serpentes?” Apresenta teus membros todos a quem te fere, contanto que conserves a cabeça íntegra.

A Cabeça de todo homem é Cristo(1 Cor 11,3).

Mas ele sente o peso de certa pele, a vetustez do velho homem. Ouve como se exprime o Apóstolo:

Despindo-vos do velho homem, e revestindo-vos do novo(cf Cl 3,9.10).

Perguntas: Como posso despir o velho homem? Imita a astúcia da serpente. Como faz a serpente para tirar a velha pele? Entra por um buraco apertado. E onde vou encontrar esse buraco apertado? Ouve:

Estreito e apertado é o caminho que conduz à vida. E poucos são os que o encontram(Mt 7,14).

Tens medo dele e não queres andar, porque são poucos a caminhar por ele? Ali se deve despir a velha túnica; em outra parte não se pode tirá-la. Mas se queres ser impedido, sentir peso, ser oprimido por causa da antiga vida, não ingresses no caminho estreito. Se estás onerado por teus antigos hábitos maus e por tua vida passada, não podes passar. Uma vez que o corpo corruptível pesa sobre a alma (cf Sb 9,15), ou não oprimam os desejos do corpo, ou sejam tiradas as concupiscências carnais. Como podem ser repelidas, se não fores pelo caminho estreito, se não te tornares prudente como a serpente?



§ 11
7 “Deus lhes quebrou os dentes na própria boca”.

De quem? Daqueles cuja fúria é semelhante à da serpente e à da víbora que tapa os ouvidos, para não ouvir a voz do encantador, e a do medicamento ministrado pelo sábio. Que lhes fez o Senhor? “Quebrou-lhes os dentes na própria boca”.

Assim sucedeu; assim se fez antes, e faz-se agora. Mas bastaria, meus irmãos, dizer:

Deus lhes quebrou os dentes”.

Por que ainda:

na própria boca?” Eles não queriam ouvir a Lei, não queriam ouvir os preceitos da verdade dados por Cristo. Eles, os fariseus, assemelhavam-se àquela serpente e à víbora. Compraziam-se nos pecados passados, e não queriam deixar a vida presente, isto é, as alegrias terrenas, pelas alegrias eternas. Tapavam um dos ouvidos com o deleite das coisas passadas e o outro com o prazer dos bens presentes. Por isso, não queriam ouvir. Pois, de onde provinha a objeção:

Se o deixarmos assim, os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação”? (Jo 11,48).

Efetivamente não queriam perder seu lugar; colaram ao chão o seu ouvido e por isso não quiseram ouvir as palavras empregadas pelo sábio. Foi dito a propósito deles que eram avaros e amantes do dinheiro. Toda a sua vida, inclusive a passada, foi descrita pelo Senhor no evangelho. Quem ler atentamente o evangelho, descobrirá onde eles taparam ambos os ouvidos. Preste atenção V. Caridade. Que fez o Senhor? “Quebrou-lhes os dentes na própria boca”.

Que quer dizer:

na própria boca?” Que eles proferiram sentença contra si mesmos, com sua própria boca. O Senhor forçou-os a pronunciar a sua própria sentença. Eles queriam caluniá-lo por causa do tributo. Ele não respondeu: É lícito pagar o tributo. Ou: Não é lícito pagar. E queria quebrar-lhes os dentes, com os quais estavam ávidos de morder; mas quis fazê-lo em sua própria boca. Se ele dissesse: Pague-se o tributo a César, os fariseus o caluniariam de ter amaldiçoado o povo judaico, fazendo-o tributário. Devido a seu pecado, pagavam humilhados o tributo, conforme lhes fora predito na Lei. Diziam: Nós o apanharemos, como maldizente em relação a nosso povo, se nos mandar pagar o tributo. Se, porém, disser: Não deveis pagar, nós o prenderemos porque nos impediu sermos dedicados a César. Armaram este duplo laço para o Senhor, querendo apanhá-lo. Mas a quem atacavam? Àquele que sabia quebrar-lhes os dentes na própria boca. Disse-lhes:

Mostrai-me a moeda do imposto. Hipócritas! Por que me pondes à prova”? (Mt 22,17-21).

Estais cogitando de pagar o tributo? Quereis agir segundo a justiça? Procurais um conselho justo? “Falais verdadeiramente segundo a justiça? Julgai com retidão, ó filhos dos homens”.

Agora, porém, que dizeis uma coisa e julgais outra, sois hipócritas.

Por que me pondes à prova?” Agora quebrar-vos-ei os dentes na própria boca:

Mostrai-me a moeda do imposto”.

E eles lhe apresentaram. Ele não lhes disse: É de César; mas interroga-os:

De quem” é, para quebrar-lhes os dentes na própria boca. Com efeito, tendo ele perguntado de quem era a imagem e a inscrição, eles responderam que era de César. Agora o Senhor já lhes quebra os dentes na própria boca. Já respondestes, já estão quebrados os dentes em vossa boca.

Devolvei o que é de César a César, e o que é de Deus a Deus”.

César reclama a sua imagem; devolvei-a! Deus reclama a sua; devolvei-a! por vossa culpa não perca César a sua moeda; em vós não perca Deus a sua. E eles não encontraram o que responder. Haviam sido enviados para caluniá-lo; e voltaram declarando que ninguém tinha resposta a lhe dar. Por quê? Porque seus dentes foram quebrados na própria boca.



§ 12
Daí também procede a outra palavra:

Com que autoridade fazes estas coisas? E eu vou propor-vos uma só questão. Respondei-me”.

A questão era relativa a João: De onde vinha o batismo de João, se do céu, ou dos homens. Qualquer resposta que dessem, seria contra eles. Não quiseram responder: Dos homens, receando serem apedrejados, porque todos consideravam João como profeta. Tinham maior medo de declarar: Do céu, para não confessarem que ele era o Cristo, porque João o anunciara. Sob pressão de ambos os lados, cercados daqui e dali, os que estavam dispostos a acusá-lo de um crime, responderam que ignoravam:

Não sabemos”.

Estavam prontos a caluniar, quando perguntaram:

Com que autoridade fazes estas coisas?” Se ele respondesse: Sou o Messias, eles o atacariam como sendo arrogante, soberbo, sacrílego. Não quis dizer: Sou o Messias, mas fez perguntas sobre João, que afirmara ser ele o Cristo. Os fariseus não ousaram censurar a João, com receio de serem mortos pelo povo. Não ousaram asseverar: João falou a verdade, para não ouvirem a objeção: Acreditai, então, nele. Calaram. Disseram que não sabiam. Já não podiam morder. Porque não podiam? Já vos ocorre a resposta: Seus dentes foram quebrados na própria boca (cf Mc 11,28-33).



§ 13
O fariseu que convidara o Senhor para almoçar com ele, ficou aborrecido porque ele permitiu à mulher pecadora aproximar-se de seus pés. E murmurou contra ele:

Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca”.

Ó tu que não és profeta, como sabes que ele ignora qual a mulher que está a seus pés? Ele suspeitou isso acerca do Senhor porque ele não observava a lei de pureza dos judeus. Eles a observavam exteriormente na carne, mas a apartavam do coração. O Senhor, contudo, que conhecia os pecados da mulher, e também auscultava os pensamentos de seu hospedeiro, respondeu como sabeis. E para não me deter nisto, ele quis quebrar os dentes dele na própria boca. Propôs-lhe então a parábola:

Um credor tinha dois devedores; um lhe devia duzentos denários e o outro cinqüenta. Como não tivessem com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?” O Senhor pergunta para que o fariseu responda; ele responderá de sorte que seus dentes sejam quebrados na própria boca. Ele respondeu, cheio de confusão, e foi excluído. Mas foi admitida aquela que irrompera na casa alheia a receber a misericórdia. Não lhe era alheio o Deus do qual se aproximara:

O Senhor quebrou-lhe os dentes na própria boca(cf Lc 7,39-50).



§ 14
O Senhor despedaçou os maxilares dos leões”.

Não somente os das víboras. Como agem as víboras? Elas procuram insidiosamente instilar o veneno, espalhá-lo pelo corpo e sibilar. Os povos enfureceram-se abertamente e encarniçaram-se como leões.

Por que as nações se agitaram e os povos tramaram em vão?(Sl 2,1).

Quando armavam insídias ao Senhor, dizendo:

É lícito pagar imposto a César, ou não?” eram víboras, eram serpentes; os dentes deles foram quebrados na própria boca. Depois gritaram:

Crucifica-o, crucifica-o”! (Mt 27,23; Jo 19,6).

Já não se trata de língua de víbora, mas de frêmito de leão. Mas também o “Senhor despedaçou os maxilares dos leões”.

Talvez não caibam aqui as palavras que não acrescentou: na própria boca. Os que agiam insidiosamente, com perguntas capciosas, foram coagidos a responder, e assim serem vencidos; estes, porém, que abertamente se encarniçavam, precisariam ser convencidos por perguntas? No entanto, também os seus maxilares foram quebrados: Cristo crucificado ressuscitou, subiu ao céu, foi glorificado, é adorado por todos os povos, adorado por todos os reis. Agora se enfureçam os judeus, se possível. Mas não se encarniçam.

O Senhor despedaçou os maxilares dos leões”.



§ 15
Também relativamente aos hereges, temos dessas provas e experiências. Decobrimos que são serpentes surdas de raiva, recusando ouvir o medicamento ministrado pelo sábio; também na própria boca o Senhor quebrou os dentes deles. Como não se enfureciam contra nós, criticando por que nos consideravam perseguidores, uma vez que os excluíamos das basílicas. Agora, interroga-os: Os hereges devem ser expulsos das basílicas, ou não devem? Respondam agora. Dizem que não devem. Então os maximianistas reclamam as suas sedes. Para que os maximianistas não recuperem suas sedes, dizem que devem ser expulsos. Mas, que foi que dissestes contra nós? Não foram quebrados vossos dentes na boca? Eles dizem: Que nos importam os reis? Que nos importam os imperadores? Mas vós presumis do apoio dos imperadores. Igualmente eu vos pergunto: Que tendes a ver com os procônsules, enviados pelos imperadores? Que vos importam as leis promulgadas pelos imperadores contra vós? Os imperadores de nossa comunhão promulgaram leis contra todos os hereges; eles denominam hereges todos os que não estão em comunhão com eles. Vós estais neste número, de fato. Se as leis são autênticas, valham também contra vós, que sois hereges. Se são falsas, por que hão de valer contra vossos hereges? Irmãos, um pouco de atenção, e notai o que dissemos. Quando os donatistas levantaram uma questão contra os maximianistas, a fim de expulsá-los de suas sedes, como condenados e cismáticos (e no entanto, eles ocupavam há muito tempo aquelas sedes, onde haviam sucedido a seus bispos), querendo expulsá-los dali, precisavam de leis públicas. Recorreram a juízes, dizendo-se católicos para poderem expulsar os hereges. Por que te dizes católico, com a finalidade de expulsar os hereges? Por que não és de preferência católico para não seres expulso como herege? Agora és católico a fim de conseguires excluir um herege. Pois, um juiz não poderia julgar senão segundo as leis. Declararam-se católicos e foi admitido o pleito. Acusaram os maximianistas de hereges. Devendo prová-lo, apresentaram as Atas do Concílio de Bagai, onde os maximianistas foram condenados. Foram inseridos nas Atas Proconsulares, e ficou provado que os condenados não deviam conservar suas sedes. O procônsul proferiu a sentença segundo a lei. Qual lei? A promulgada contra os hereges. Se é contra os hereges, é também contra ti. Responde o donatista: Por que contra mim? Não sou herege. Se não és herege, aquelas leis são falsas. Foram promulgadas por imperadores que não estão em comunhão contigo; todos os que não estão em comunhão com eles, suas leis chamam de hereges. Não quero saber se são verdadeiras ou falsas. A questão foi posta de lado, se ainda existe. Agora pergunto, conforme teu parecer: As leis são genuínas, ou são falsas? Se são verdadeiras, sejam aceitas; se falsas, por que as empregas? Disseste ao procônsul: Sou católico, expulsa o herege. Ele pediu provas de que fosse herege. Aludiste a teu concílio e mostraste porque o tinhas condenado. Ele, conivente, ou sem entender bem, aplicou a lei, como juiz. Fizeste do juiz o que não queres que te seja feito. Pois, se o juiz empregou a lei do imperador segundo sugeriste, porque não a usas para tua correção? Aí está. Expulsou o herege, de acordo com a lei de seu imperador. Por que não queres que te expulse pela mesma lei? Repetimos o que fizestes. As sedes pertenciam aos maximianistas, agora estais de posse delas; foram expulsos delas os maximianistas. Constam as ordens dos procônsoles, as memórias das Atas. Tomam-se guardas, as cidades se abalam, e eles são expulsos de suas sedes. Por quê? Porque são hereges? Em virtude de que lei são expulsos? Responde. Vejamos se ainda não foram quebrados vossos dentes na própria boca. A lei é falsa? Não seja válida contra teu herege. É autêntica? Seja válida também contra ti. Os donatistas não têm o que responder.

Deus lhes quebrou os dentes na própria boca”.

Por esta razão, onde não podem serpear com a lúbrica falácia, como as víboras, enfurecem-se com violência manifesta como os leões. As turbas armadas dos circunceliões irrompem e encarniçam-se; devastam quanto podem, o mais possível. Mas também “o Senhor despedaçou os maxilares dos leões”.

1 Assim diziam os donatistas 2 Marsos eram habitantes do Lácio dados à adivinhação. 3 Isto é, os donatitas.



§ 16
8 “Dissipar-se-ão como a água que se escoa”.

Não vos atemorizem, irmãos, certos rios chamados torrentes; enchem-se com as águas do inverno. Não temais. Logo passam. A água se escoa, tumultua um pouco. Logo cessará. Não podem durar muito. Muitas heresias já desapareceram. Escoaram-se em rios quanto puderam, decorreram. Os rios secaram. Mal se encontra lembrança deles, ou mesmo que existiram.

Dissipar-se-ão como a água que se escoa”.

Mas, não somente eles. O mundo todo faz ruído por algum tempo, buscando a quem atrair. Todos os ímpios, todos os soberbos fazem muito ruído, batendo contra os rochedos de sua soberba, quais águas que fluem e refluem. Não vos atemorizem. São águas hibernais, que não podem manar continuamente. Forçosamente correram para seu lugar, sua meta. E no entanto o Senhor bebeu desta torrente do mundo. Sofreu aqui, bebeu da própria torrente; mas bebeu no caminho, de passagem, porque não se deteve no caminho dos pecadores (cf Sl 1,1).

Mas, o que fala a seu respeito a Escritura? “Beberá da torrente no caminho; por isso levantará a cabeça(Sl 109,7), isto é, foi glorificado porque morreu; ressuscitou porque sofreu. Se não tivesse querido beber da torrente no caminho, não morreria; se não morresse, não ressurgiria; se não ressurgisse, não seria glorificado. Portanto, “beberá da torrente no caminho; por isso levantará a cabeça”.

Nossa Cabeça já foi exaltada; os membros a seguirão.

Dissipar-se-ão como a água que se escoa. Entesou o arco até caírem suas forças”.

As ameças de Deus não cessam. Arco de Deus são suas ameaças. Entesou o arco; ainda não feriu.

Entesou o arco até caírem suas forças”.

Muitos perderam as forças, atemorizados com o arco entesado. Foi por isso que perdeu as forças o Apóstolo, que disse:

Que devo fazer, Senhor?” E ele respondeu:

Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem persegues(At 22,10.8).

Jesus, que clamava do céu, entesava o arco. Muitos foram os inimigos, mas perderam as forças, e convertidos não levantaram mais a cabeça contra o arco que permanecia entesado. Pois, assim perdeu as forças aquele que disse que não devemos ter medo de as perdermos:

Quando sou fraco, então é que sou forte”.

Que resposta teve quando pediu que lhe fosse retirado o aguilhão na carne?” É na fraqueza que a força se perfaz” (2 Cor 12,10.9).

Entesou o arco até caírem suas forças”.



§ 17
9 “Desaparecerão como a cera derretida”.

Ías dizendo:

Nem todos perdem as forças, como eu, a fim de acreditarem; muitos perseveram em seu pecado e sua malícia. Nada receies da parte deles:

Desaparecerão como cera derretida”.

Não se porão de pé contra ti, não perdurarão. Hão de perecer devido ao fogo de suas concupiscências. Aqui na terra existe uma pena oculta; dela falará o salmo daqui até o fim. São poucos versículos. Sede atentos. Existe uma pena futura, o fogo da geena, o fogo eterno. Há duas espécies de penas no futuro. Uma é a dos infernos, onde ardia aquele rico, que pedia fosse-lhe molhada a língua com uma gota d’água no dedo do pobre, que antes desprezara, quando se achava diante de sua porta. Disse:

Pois estou torturado nesta chama(Lc 16,24).

Outra é a final, a propósito da qual ouvirão os que serão colocados à esquerda:

Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos(Mt 25,41).

As duas penas se manifestarão, uma quando alguém deixar esta vida, e a outra no fim do mundo, quando vier a ressurreição dos mortos. Agora, então, não há castigo algum, e Deus deixa os pecados impunes até aquele dia? Existe também aqui na terra um castigo oculto; dele agora vamos tratar. O Espírito de Deus a relembra. Devemos entendê-la, precavermo-nos dela, evitá-la, para não cairmos nas outras penas, muito terríveis. Talvez alguém me diga: aqui também há castigos: cárceres, exílios, tormentos, mortes, diversas espécies de dores e tribulações. Existem, sim, estas penas, e são distribuídas por juízo de Deus; mas muitas servem para prova, muitas para condenação. Vemos, com efeito, muitas vezes, os justos serem afligidos por estas penas, e os injustos delas estarem isentos; por isso, vacilaram os pés daquele que depois se alegrava:

Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração! Os meus pés quase escorregaram, ao ter inveja dos maus e ao observar a paz dos pecadores(Sl 72,1.2.3).

Vira a felicidade dos maus e o mau se deleitava de ser dos maus, vendo que eles reinavam, que tudo lhes corria bem, terem fartura de bens temporais, assim como ele, sendo ainda pequenino, desejava obter do Senhor; e seus pés vacilaram, até que visse o que se podia esperar ou temer para o fim. Disse ele, no mesmo salmo:

Refleti para compreender esse problema. Pareceu-me penosa tarefa. Até que entrei no santuário de Deus e percebi qual a sua sorte(Sl 72.16.17).

Por conseguinte, não sei bem que penas da vida presente quer relembrar o Espírito de Deus, e não falar das penas do inferno, nem das penas do fogo eterno depois da ressurreição, nem dos castigos que ainda neste mundo sofrem indistintamente justos e injustos e mais pesadas às vezes os justos do que os injustos. Notai, ouvi o que vou dizer e que já sabeis. Mas é mais agradável quando se mostra no salmo, o qual anteriormente parecia obscuro. Eis que vou falar o que já sabeis; mas porque eu o retiro de onde não o vias, mesmo o que é conhecido agrada como se fosse novidade. Ouvi qual a pena dos ímpios:

Desaparecerão como a cera derretida”.

Declarei que isto se dá devido a suas concupiscências. A concupiscência é como o ardor do fogo. O fogo consome as vestes; o desejo de adultério não consome a alma? De um adultério planejado, diz a Escritura:

Pode alguém carregar fogo consigo sem queimar a própria roupa”? (Pr 6,27-29).

Carregas brasas contigo no manto e a túnica é perfurada; trazes o adultério no pensamento, e a alma continua íntegra?



§ 18
Mas são poucos os que vêem estas penas; por isso é que, de modo especial, o Espírito de Deus as relembra. Ouve como fala o Apóstolo:

Por isso Deus os entregou aos desejos dos seus corações”.

Aí está o fogo, diante do qual como cera derretem-se. Eles deixam a constância da castidade; por isso os que seguem seus maus desejos são chamados dissolutos e frouxos. Por que frouxos? Por que dissolutos? Devido ao fogo das concupiscências.

Por isso Deus os entregou aos desejos de seus corações, para praticarem ações aviltantes”.

E enumera muitos pecados, dizendo que são castigo dos pecados. Declara que o primeiro castigo é a soberba; ou antes, não é castigo, mas o principal pecado. A soberba é o pecado primordial; o último castigo é o fogo eterno, ou fogo do inferno: pois é próprio dos condenados. Entre o pecado primordial e a última pena, no meio existem pecados que são também castigo. O Apóstolo nomeia pecados detestáveis; contudo, denomina-os penas.

Deus os entregou aos desejos de seus corações, à impureza, para praticarem ações aviltantes”.

Para que alguém não pensasse que só o aflige, qual castigo, aquilo com que agora se deleita, e não receasse que há de vir no fim, o Apóstolo se refere ao último castigo:

Apesar de conhecerem a sentença de Deus que declara dignos de morte os que praticam semelhantes ações, eles não só as fazem, mas ainda aplaudem os que as praticam. Dignos de morte os que praticam”; o quê? O que foi enumerado acima entre os castigos.

Pois, Deus os entregou aos desejos de seus corações, para praticarem ações aviltantes”.

Ser adúltero já é um castigo; ser mentiroso, avaro, fraudulento, homicida já são castigos. Castigos de que pecado? Da primeira apostasia, a soberba.

O princípio do pecado do homem é o afastar-se de Deus; e a soberba é o princípio de todo pecado(Eclo 10,14.15).

Por isso referiu-se antes ao próprio pecado:

Tendo conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem lhe renderam graças; pelo contrário, eles se perderam em vãos arrazoados e seu coração insensato ficou nas trevas”.

O obscurecimento do coração já é uma pena. Mas de onde veio? “Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos”.

Diziam originar-se de si mesmos o que haviam recebido de Deus; ou se sabiam de quem haviam recebido, não lhe deram glória, embora soubessem de quem tinham recebido; isto é o que significa:

Jactando-se de possuir a sabedoria”.

E logo receberam o castigo:

Tornaram-se tolos e seu coração insensato ficou nas trevas. Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos(cf Rm 1,21-29).

Tal pena é insignificante? Para falarmos somente desta, o obscurecimento do coração, a mente obcecada seria pena insignificante? Se alguém que praticasse um furto, logo perdesse os olhos, todos diriam que Deus presente o havia castigado. O pecador perdeu os olhos do coração, e julgar-se-ia que Deus o poupou! “Desaparecerão como a cera derretida”.



§ 19
Do alto caiu fogo sobre eles e não viram mais o sol”.

Vede como se refere a certa pena de escuridão.

Do alto caiu fogo”, fogo da soberba, fogo fumegante, fogo da concupiscência, fogo da cólera. De que tamanho? Aquele sobre o qual caiu não verá mais o sol. Por isso, foi dito:

Não se ponha o sol sobre a vossa ira(Ef 4,26).

Por conseguinte, irmãos, temei o fogo da concupiscência, se não quereis derreter como cera, e perecer longe da face de Deus. Pois, este fogo cai do alto e não vereis mais o sol. Qual? Não este sol visível aos animais, às moscas, aos bons e aos maus, porque Deus faz seu sol nascer para bons e maus (cf Mt 5,45).

Mas trata-se de outro sol, a propósito do qual dirão os pecadores:

Para nós não nasceu o sol. Tudo isso passou como uma sombra. Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol(Sb 5,6.9).

Por que isso, senão visto que “do alto caiu fogo sobre eles e não viram mais o sol?” Venceu-os a concupiscência da carne. E donde se originou esta concupiscência? Atenção. Por tua origem, nasceste com aquilo que deves vencer. Não aumentes teus inimigos. Vence aquele com o qual nasceste. Vieste ao estádio desta vida com ele; luta com aquele que avançou contigo. Se ele não está vencido, por que provocas a caterva das concupiscências? O deleite carnal, irmãos, nasce com o homem. Mas o que é bem educado, logo vê o inimigo, ataca-o, luta e logo vence; ele é capaz disso, enquanto os inimigos não crescerem. Aquele, porém que descuida de vencer a concupiscência, com a qual devido ao pecado original nasceu, e excita e suscita além disso muitas paixões, dificilmente as supera, e dividido contra si mesmo, queima-se no próprio fogo. Por isso, não esperes as penas futuras, como se fossem as únicas. Vê as presentes.

Do alto caiu fogo sobre eles e não viram mais o sol”.



§ 20
10 “Antes que as sarças produzam espinhos, como a seres vivos”, ele os devorará em sua ira. Que é sarça? É uma espécie de espinheiro, carregado de espinhos. Primeiro é uma erva, e enquanto é tal é macia e bela; no entanto depois brotam dali os espinhos. No momento, portanto, os pecados deleitam e quase não espetam. A sarça é uma erva, mas depois vêm os espinhos.

Antes que as sarças produzam espinhos”, antes que manifestos tormentos derivem dos infelizes prazeres e volúpias. Interroguem-se os que amam alguma coisa, sem poder alcançá-la. Vejam se não são torturados pelo desejo; e quando obtiveram o que desejam ilicitamente, observem se não se atormentam com o temor. Notem, portanto, suas penas, antes que venha a ressurreição, quando não serão mudados em seu corpo ressuscitado.

Todos morreremos, mas nem todos seremos transformados(1 Cor 15,51).

Efetivamente, os condenados terão um corpo corruptível que lhes cause dor, mas não a morte; de outra forma também aquelas dores terminariam. Então os espinhos daquela sarça, isto é, todas as dores e pontadas dos tormentos brotarão. Que espinhos não sentirão aqueles que haverão de dizer:

São aqueles de quem outrora nos ríamos”? (Cf Sb 5,3).

Os espinhos da compunção e penitência, mas tardios e inúteis, como os estéreis espinhos. A penitência atual é a dor medicinal; o arrependimento de então será dor do castigo. Não queres sofrer daqueles espinhos? Arrependete agora com os espinhos da penitência, de sorte a fazeres o que foi dito em outro salmo:

Revolvia-me em minha dor, enquanto o espinho era pungente. Reconheci o meu delito e não dissimulei minha injustiça. Disse: Confessarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustiça, e perdoas-te a impiedade de meu coração(Sl 31,4-6).

Age assim agora, arrepende-te; não te suceda o que foi afirmado de alguns homens detestáveis:

Dispersaram-se, mas não com arrependimento(Sl 34,16).

Vedes alguns dispersos, mas não contritos. Estão fora da Igreja e não se arrependem. Riem por estarem separados. A sarça poste-riormente há de produzir espinhos. Agora não querem ter a compunção medicinal; terão depois a penal. Mas mesmo agora, antes que as sarças produzam espinhos, do alto caiu fogo sobre eles e não viram mais o sol. Como a seres vivos, Deus os devorará em sua ira. O fogo das concupiscências, das honras vãs, da soberba, de sua avareza; e em que os oprimem? Para que não conheçam a verdade, não pareçam vencidos, e nem mesmo a verdade os submeta. Que existe de mais glorioso, irmãos, do que estar submisso, ser vencido pela verdade? Deixa-te de bom grado ser superado pela verdade; pois mesmo contra tua vontade ela te há de superar. De fato, aquele fogo das concupiscências, que cai do alto para que não vejam mais o sol, devora a sarça antes que produza espinhos, isto é, oculta a má vida deles antes que a mesma vida dê à luz os tormentos que se revelarão no fim do mundo; mas, devido a ira de Deus, a sarça fica escondida neste fogo. Não é pequeno castigo para os pecadores não verem o sol agora, nem acreditarem que esta vida má produzirá depois para eles os espinhos das penas. Vós, diz o salmista, sois sarças; estas, quer dizer, vós mesmos que estais vivos, isto é, ainda estais na vida presente, antes que as sarças produzam os espinhos de vossos castigos no futuro juízo, de modo manifesto, agora sois devorados na ira, isto é, ela de certa maneira vos absorve e não vos deixa aparecer. Aqui, portanto, a meu ver, a ordem mais clara das palavras é a seguinte:

Caiu fogo sobre eles e não viram mais o sol; este fogo, como que em sua ira, como a seres vivos, vos devorará a vós, sarças, antes que produzais espinhos”.

Quer dizer, a vós, sarças, ele encontrou, devorou antes da morte, antes que as mesmas sarças após a morte produzam vossos espinhos, naquela ressurrei- ção, para vosso castigo. Porque o salmista não diz: seres vivos, mas:

como a seres vivos”, senão porque é falsa esta vida dos ímpios? Efetivamente, eles não vivem, mas pensam que vivem. E por que não diz: em sua ira, mas:

como que em sua ira”, senão porque Deus assim age com tranqüilidade? Pois, também está escrito:

Mas tu, Senhor das virtudes, julgas com tranqüilidade(Sb 12,18).

Ele, portanto, não se irrita, mesmo quando ameaça. Efetivamente, não se perturba, mas parece irar-se, porque pune e vinga. E os que não querem se corrigir, parecem viver, mas não vivem. A retribuição do primeiro pecado e daqueles que se acrescentaram, cairá sobre eles. Ela se denomina ira de Deus, porque provém de seu julgamento. Daí dizer o Senhor sobre o infiel:

A ira de Deus permanece sobre ele(Jo 3,36).

Nós, mortais, nascemos sob a ira de Deus. Daí declarar o Apóstolo:

Éramos por natureza como os demais, filhos da ira(Ef 2,3).

Que significa:

por natureza filhos da ira”, a não ser que trazemos conosco a pena do primeiro pecado? Mas, se nos convertemos, a ira se retira, e apresenta-se a graça. Se não queres te converter, aumentas aquele mal com que nasceste; como que pela ira de Deus serás devorado no presente.



§ 21
11 Reconhecei, portanto, qual é esta pena e alegrai-vos, por não serdes sujeitos a ela, todos vós que progredis, todos vós que entendeis e amais a verdade, todos que preferis a vitória da verdade à vossa, que não tapais os ouvidos diante da verdade, e nem com deleite atual, nem com a recordação dos prazeres passados vos torneis como o cão que volta a seu vômito (cf Pd 2,22).

Todos vós que sois desses tais, vede o castigo dos que não o são, e alegrai-vos. As penas do inferno ainda não chegaram, ainda não veio o fogo eterno. Compare-se o que progrediu agora no caminho de Deus com o ímpio, o coração cego com o coração que foi iluminado. Comparai os dois: o vidente e o cego carnal. E que importância tem a visão da carne? Acaso Tobias tinha olhos carnais? Seu filho os tinha e ele não; e no entanto, o cego mostrava ao vidente o caminho da vida (cf Tb 4,1).

Por conseguinte, ao virdes este castigo, alegrai-vos por não terdes de sofrê-lo. É por isso que diz a Escritura:

Alegrar-se-á o justo ao ver o castigo dos ímpios”.

Não se trata do castigo futuro, pois assim continua:

Lavará as mãos no sangue dos malvados”.

Que significa isto? V. Caridade preste atenção. Acaso quando se ferem os homicidas, devem os inocentes ir no seu sangue lavar as mãos? Mas que quer dizer:

Lavará as mãos no sangue dos malvados?” O justo aperfeiçoa-se ao ver o castigo dos pecadores; a morte de um aproveita à vida do outro. Se espiritualmente corre o sangue daqueles que morrem interiormente, tu, ao vires tal castigo, lava ali as tuas mãos. De resto, vive mais puramente. E como lavará suas mãos, se é justo? Que impureza tem nas mãos para lavar, se é justo? Mas o justo vive da fé (cf Rm 1,17).

Denomina, portanto, justos, os fiéis. Se começaste a acreditar, já és chamado justo. Pois, realizou-se a remissão dos pecados. Embora no restante da vida existam pecados que não podem deixar de refluir como a água do mar para o esgoto do navio, por assim dizer, no entanto, como tens fé, ao vires alguém inteiramente afastado de Deus morrer naquela cegueira, e assim do alto cair fogo sobre ele, de sorte que não vê mais o sol, tu, que já pela fé contemplas a Cristo, a fim de vê-lo um dia face a face (porque o justo vive pela fé), observa como morre o ímpio, e purifica-te de teus pecados. Assim, de certo modo lavarás as mãos no sangue do pecador. Por conseguinte, “lavará as mãos no sangue dos malvados”.



§ 22
12 “E dir-se-á: Há recompensa para o justo”.

Eis que antes de vir o que é prometido, antes que se dê a vida eterna, antes que os ímpios sejam lançados no fogo eterno, aqui nesta vida há recompensa para o justo. Que recompensa? “Alegrando-nos na esperança, perseverando na tribulação(Rm 12,12).

Qual a recompensa do justo? “Nós nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,3-5).

O ébrio se alegra, e não se alegrará o justo? Na caridade está a recompensa do justo. Aquele é infeliz, mesmo quando se inebria; este é feliz, até quando passa fome e sede. Aquele se embriaga com o vinho; este se alimenta de esperança. Veja, pois, o justo o castigo daquele, sua alegria, e pense em Deus. Este que agora concedeu tal alegria pela fé, a esperança, a caridade, a verdade das suas Escrituras, que alegria não prepara para o fim! Se assim alimenta no caminho, como não saciará na pátria! “E dir-se-á: há recompensa para o justo”.

Sim, acreditem os que vêem, e vejam para entender.

Alegrar-se-á o justo ao ver o castigo dos ímpios”.

Se, porém, não tiver olhos para ver a recompensa, constristar-se-á e não se corrigirá por causa dela. Se, ao contrário a considerar, compreenderá a diferença entre um olho turvo do coração e um olho iluminado do coração; entre o refrigério da caridade e a chama da luxúria; entre a segurança que trás a esperança e o temor proveniente do crime. Ponderando estas coisas, distinguirá o que é seu e lavará as mãos no sangue do malvado. Aproveite muito com a comparação, e diga:

Há recompensa para o justo. Sim, existe um Deus que faz justiça sobre a terra”.

Ainda não na outra vida, ainda não no fogo eterno, ainda não no inferno, mas aqui na terra. Eis que aquele rico ainda se veste de púrpura e linho fino, e ainda se banqueteia lautamente cada dia. A sarça ainda não produziu espinhos. Ele ainda não diz:

Estou torturado nesta chama (Lc 16,19.24).

Mas já existe a cegueira de espírito, e o olho da mente já se extinguiu. Se chamarias de infeliz o cego quanto aos olhos corporais, que estivesse a sua mesa, por mais lauta que fosse, será feliz o que é cego no seu interior e não vê o pão de Cristo? Não o diria senão que fosse igualmente cego. Portanto, “há recompensa para o justo. Sim, existe um Deus que faz justiça sobre a terra”.



§ 23
Perdoai se fomos um tanto prolixos. Em nome de Cristo, exortamo-vos a que, tendo ouvido tudo isto, cuideis da retribuição. Pregar a verdade nada é se o coração discorda da língua; e nada aproveita ouvir a verdade, se não se edificar sobre a pedra (cf Mt 7,24-26).

Edifica sobre a pedra quem ouve e pratica; quem ouve e não pratica edifica sobre areia; quem não ouve nem pratica, nada constrói. Mas como aquele que edifica sobre areia prepara a ruína para si mesmo, assim quem não constrói sobre pedra, quando vem a enchente, é carregado para fora de casa. Não há outra coisa a fazer senão edificar, e edificar sobre pedra; isto é, ouvir e fazer. Que não se diga: Para que ir à igreja? Os que vão todos os dias à igreja, não fazem o que ouvem. Cuidam, no entanto, de ouvir; assim pode acontecer que ouçam e pratiquem. Tu, porém, quão distante estás da prática, uma vez que tanto foges para não ouvir? Mas, responde ele, eu não edifico sobre areia. A enchente te encontrará desprevenido. E então, não te carregará? E a chuva não pode matar? E o vento, por isso, não arrebatará? Portanto, virei para ouvir, virei para ouvir. Mas ao ouvires, pratica. Pois se ouvires e não fizeres, de fato construíste, mas sobre areia. Se nós, sem casa, estamos desprotegidos, dentro de um edifício construído sobre areia estamos ameaçados de ruína. Só nos resta o recurso de edificar sobre pedra: fazer o que ouvimos.