SALMO 𝟝𝟞

Em Deus, cuja palavra eu lovo, em Deus ponho a minha confiança e não terei medo;

Todos os dias torcem as minhas palavras; todos os seus pensamentos são contra mim para o mal.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 56


§ 56:1  Ƈ Compadece-te de mim, ó Deus, pois homens me calcam aos pés e, pelejando, me aflingem o dia todo.

§ 56:2  Os meus inimigos me calcam aos pés o dia todo, pois são muitos os que insolentemente pelejam contra mim.

§ 56:3  Ɲ No dia em que eu temer, hei de confiar em ti.

§ 56:4  Em Deus, cuja palavra eu lovo, em Deus ponho a minha confiança e não terei medo;

§ 56:5  Ŧ Todos os dias torcem as minhas palavras; todos os seus pensamentos são contra mim para o mal.

§ 56:6  Ajuntam-se, escondem-se, espiam os meus passos, como que aguardando a minha morte.

§ 56:7  Escaparão eles por meio da sua iniqüidade? Ó Deus, derruba os povos na tua ira!

§ 56:8  Ŧ Tu contaste as minhas aflições; põe as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas no teu livro?

§ 56:9  Ɲ No dia em que eu te invocar retrocederão os meus inimigos; isto eu sei, que Deus está comigo.

§ 56:10  Em Deus, cuja palavra eu louvo, no Senhor, cuja palavra eu louvo,

§ 56:11  Em Deus ponho a minha confiança, e não terei medo; que me pode fazer o homem?

§ 56:12  Sobre mim estão os votos que te fiz, ó Deus; eu te oferecerei ações de graças;

§ 56:13  pois tu livraste a minha alma da morte. Não livraste também os meus pés de tropeçarem, para que eu ande diante de Deus na luz da vida?


O SALMO 56



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Acabamos de ouvir no evangelho, irmãos, quanto nos ama nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Deus junto do Pai, homem entre nós, um dos nossos, já à direita do Pai. Ouvistes quanto nos ama. Pois ele mesmo declarou e nos indicou a medida de sua caridade, dizendo ser seu mandamento que nos amemos uns aos outros. E no intuito de que não procurássemos na dúvida e angústia quanto devemos nos amar mutuamente, qual a medida perfeita da caridade que a Deus apraz, ensinou e demonstrou em si mesmo ser perfeita, e não ter outra maior, a seguinte:

Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos(cf Jo 13,34; 15,12).

Ele praticou o que ensinou, os apóstolos fizeram conforme dele aprenderam, e façamos nós o que eles ensinaram que se devia fazer. Façamo-lo também nós; porque embora não sejamos como ele é, enquanto criador, somos como ele, de acordo com o que ele se fez por nossa causa. E se apenas ele o fizesse, talvez nenhum de nós ousasse imitá-lo, pois era homem Deus; mas, enquanto é homem, os servos imitaram o Senhor, os discípulos imitaram o Mestre, e assim fizeram os que nos precederam de sua família, aqueles que foram de fato nossos pais, e contudo servos como nós. Deus não nos ordenaria que assim agíssemos se julgasse ser impossível ao homem praticá-lo. Mas se consideras tua fraqueza, desanimas diante do preceito? Que o exemplo te conforte. Mas, mesmo com o exemplo é demais para ti? Está junto de ti aquele que deu o exemplo, oferecendo simultaneamente auxílio. Ouçamos, portanto, os dizeres do salmo. Ocorre oportunamente, por providência do Senhor, fazendo com que concordasse com a leitura do evangelho, a qual nos recomenda o amor de Criso que deu sua vida por nós a fim de que também demos nós a vida pelos irmãos (cf 1Jo 3,16).

Concordou e soou em uníssono com este salmo, para que verifiquemos como o próprio Senhor deu a vida por nós; pois este salmo canta a sua paixão. E o Cristo total é Cabeça e corpo, o que não duvido que bem o sabeis, sendo Cabeça o nosso Salvador que sofreu sob Pôncio Pilatos e depois que ressuscitou dos mortos está agora sentado à direita do Pai; e é seu corpo a Igreja, não esta ou aquela, mas a que está difundida por todo o orbe; nem a ela pertencem apenas os homens que estão na vida presente, mas igualmente os que existiram antes de nós e os que virão após, até o fim dos séculos. A Igreja consta de todos os fiéis, e eles são membros de Cristo. A Cabeça que está nos céus governa seu corpo; apesar de separada dele, no que toca à visão, acha-se unida pela caridade. Uma vez que o Cristo total é cabeça e corpo, ouçamos em todos os salmos as vozes da Cabeça, de tal modo que ouçamos igualmente as vozes do corpo. Pois, não quis o Senhor falar separadamente, porque não quis estar separado. Por isso, diz:

Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos(Mt 28,20).

Se está conosco, fala em nós, fala de nós, fala por nós, porque também nós falamos nele; falamos a verdade porque nele é que falamos. Pois se quisermos falar em nós e por nós mesmos, permaneceremos na mentira.



§ 2
1 Visto que o presente salmo canta a paixão do Senhor, eis seu título:

Para o fim”.

O fim é o Cristo (cf Rm 10,4).

Por que se denomina fim? Não quer dizer o que consome, mas o que dá acabamento. Consumir é perder; consumar é dar perfeição. Se falamos em coisa finita, o termo deriva de fim. Difere dizer: O pão acabou, de: A túnica está acabada. Acabou-se o pão que foi comido, está terminada a túnica que se tecia. O pão acabou-se sendo consumido, e a túnica foi acabada para ficar pronta. O fim de nosso propósito, no entanto, é Cristo. Por mais que nos esforcemos, nele é que somos acabados, por ele chegamos à perfeição. Nossa perfeição consiste em chegarmos até ele. Ao te acercares dele, não procures mais. Ele é o teu fim. Como o fim de teu caminho é o lugar para onde tendes, e tendo ali chegado ali permanecerás, assim o fim de teus esforços, de teu propósito, de teu empenho, de tua intenção é aquele para o qual te diriges. Tendo-o alcançado, nada mais desejarás, porque nada de melhor poderás ter. Ele, portanto, deu-nos o exemplo de como viver nesta vida, e nos dará a recompensa de nossa vida na vida futura.



§ 3
Para o fim. Não destruas. De Davi. Inscrição do título. Quando ele, perseguido por Saul, refugiou-se numa caverna”.

Referindo-nos às Sagradas Escrituras, encontramos de fato o santo rei de Israel, Davi, que deu o nome de davídico ao saltério, sofrendo a perseguição de Saul, rei daquele povo (cf 1Rs 24,1-4).

Muitos de vós que tomaram nas mãos as Escrituras ou as ouviram conhecem o fato. O rei Davi, portanto, teve por perseguidor a Saul. Davi era muito manso, e Saul muito feroz; o primeiro era suave, e o segundo invejoso; aquele era paciente, e este cruel; um benéfico e o outro ingrato. Davi o suportou com tanta mansidão que, tendo-o ao alcance da mão, não o tocou, não o feriu. Do Senhor recebera Davi a possibilidade de matar a Saul, se o quisesse. Preferiu poupá-lo a matá-lo. Saul, no entanto, não se deixou vencer nem por tal benefício, desistindo da perseguição. Verificamos que na ocasião em que Saul perseguia a Davi, em que o rei já reprovado buscava o futuro rei, por Deus predestinado, Davi fugiu da presença de Saul, escondendo-se numa caverna. Que relação tem isso com Cristo? Se todas as coisas que então aconteciam eram figuras de eventos futuros, ali encotramos a Cristo e com Cristo mais razão. Pois, as expressões:

Não destruas. Inscrição do título”, não vejo como possam se referir a Davi. Não existia título inscrito com o nome de Davi, que Saul queria perder. Vemos, porém, que na paixão do Senhor houve a inscrição de um título:

Rei dos judeus”.

Este título exprobava a ousadia daqueles que não se abstiveram de lançar as mãos em seu rei. Eles eram representados por Saul, e Cristo por Davi. Pois Cristo, conforme diz o anúncio apostólico, que conhecemos e confessamos, era “nascido da estirpe de Davi segundo a carne(Rm 1,3; Mt 1,1), porque segundo a divindade estava acima de Davi, acima de todos os homens, acima do céu e da terra, acima dos anjos, acima de todos os seres visíveis e invisíveis. Pois, tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito (cf Jo 1,3).

Dignou-se, contudo, fazer-se homem da estirpe de Davi, veio até nós, pois nasceu da tribo de Davi, de onde se origina a virgem Maria, que deu à luz o Cristo (cf Lc 1,27; 2,4).

Por conseguinte, é a seguinte a inscrição do título: Rei dos judeus. Conforme dissemos, Saul representa o povo dos judeus, e Davi a Cristo. Na cruz havia o título :

Rei dos judeus”.

Os judeus se indignaram por estar inscrito no título:

Rei dos judeus”.

Envergonharam-se de ter por rei aquele que eles crucificaram. Não previram que a mesma cruz em que o pregaram, haveria de estar na fronte dos reis. Tendo se indignado por causa do título, apresentaram-se ao juiz Pilatos, a quem haviam levado Cristo para que o matasse, e lhe disseram: Não escrevas:

O rei dos judeus”, mas: Este homem disse: Eu sou o rei dos judeus. Já fora cantado pelo Espírito Santo:

Para o fim. Não destruas. Inscrição do título”.

Respondeu-lhes Pilatos:

O que escrevi, está escrito(cf. Jo 19,19-22).

Por que me sugeris uma falsidade? Eu não destruo a verdade.



§ 4
Ouvimos, portanto, o sentido da expressão:

Não destruas. Inscrição do título”.

Que significa:

Quando ele, perseguido por Saul, refugiou-se numa caverna?” Isso, de fato, Davi fez; mas como não encontramos uma inscrição de título referente a ele, vejamos a fuga para uma caverna. Aquela caverna figurava alguma coisa. Nela se escondera Davi. Por que, então se escondeu? Para ficar oculto, e não ser encontrado. Que quer dizer esconder-se na caverna? Estar encoberto na terra. Quem foge a uma caverna, fica encoberto pela terra para não ser visto. Jesus carregava terra, a carne que assumira da terra, e sob esta se ocultava, para que os judeus não o encontrassem como Deus. Pois se o tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8).

Por que motivo não encontraram o Senhor da glória? Porque se escondera na caverna, a saber, na fraqueza da carne que apresentava aos olhares, todavia encobria a majestade da divindade sob o véu do corpo, como se fosse um esconderijo sob a terra. Eles, portanto, não conhecendo a Deus, crucificaram o homem. Não poderia morrer senão enquanto homem, nem ser crucificado a não ser como homem, nem mesmo ser preso senão enquanto homem. Mostrou terra aos que o procuravam com mau desígnio, e reservou vida para os que o buscavam com reta intenção. Por conseguinte, segundo a carne, fugiu da perseguição de Saul para uma caverna. Se esta explicação for aceita, o Senhor fugiu para a caverna diante da perseguição de Saul, porque sofreu a paixão; ocultou-se dos judeus, mas também morreu. Por mais que os judeus se encarniçassem contra ele, até a ocasião da morte, havia a opinião de que poderia se libertar, e mostrar por algum milagre que era o Filho de Deus. Isso fora predito no livro da Sabedoria:

Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem o visite. Pois se é filho de Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários(Sb 2,20.18).

Uma vez que foi crucificado e não foi libertado, acreditaram que não era Filho de Deus. Por isso, insultando ao que estava pendente do lenho e meneando a cabeça, diziam os judeus:

Se és Filho de Deus, desce da cruz. A outros salvou, a si mesmo não pode salvar(Mt 27,40.42).

Diziam isto, conforme consta do mesmo livro da Sabedoria:

Assim raciocinam, mas se enganam porque sua maldade os cega(Sb 2,21).

Que importância havia em descer da cruz para aquele que facilmente ressuscitou do sepulcro? Mas por que preferiu sofrer a morte? Para refugiar-se numa caverna, quando perseguido por Saul. Efetivamente, caverna pode ser a parte inferior da terra. Sem dúvida, tornou-se fato manifesto, certo para todos, que seu corpo foi depositado no sepulcro, cavado na pedra. Este sepulcro, portanto, era uma caverna; para lá fugiu de Saul. Pois, os judeus o perseguiram até que fosse colocado na caverna. Como podemos provar que o perseguiram até que fosse lá depositado? Mesmo depois de morto na cruz foi atravessado pela lança (cf Jo 19,34).

Mas, uma vez envolto em lençóis, e terminadas as exéquias, colocado na caverna, nada mais podiam fazer a seu corpo. Por conseguinte, o Senhor ressuscitou ileso, incorrupto daquela caverna, onde se refugiara fugindo de Saul; ocultava-se dos ímpios, prefigurados por Saul e mostrava-se a seus membros. Pois os membros do ressuscitado foram apalpados por seus membros. Os seus membros, os apóstolos, tocaram o ressuscitado e acreditaram (cf Lc 24,39).

De nada serviu a perseguição de Saul. Ouçamos agora o salmo, porque já falamos bastante de seu título, conforme o Senhor se dignou conceder-nos.



§ 5
2 “Piedade de mim, ó Deus, piedade, porque em ti confia a minha alma”.

Cristo diz na paixão:

Piedade de mim, ó Deus”.

Deus diz a Deus: Piedade de mim. Efetivamente, é tua a natureza que clama nele:

Piedade. Foi de ti que a recebeu; revestiu-se de carne para te libertar. Clama a própria carne:

Piedade de mim, ó Deus, piedade”.

É o próprio homem, alma e corpo. O Verbo assumiu o homem todo, fez-se homem totalmente. Por isso, não se pensa que não tinha alma, pelo fato de dizer o evangelista:

O Verbo se fez carne e habitou entre nós(Jo 1,14).

Com efeito, o homem é denominado carne, conforme se lê em outra passagem da Escritura:

E toda a carne verá a salvação de Deus(Is 40,5; Lc 3,6).

Então só a carne verá, e a alma não terá parte na visão? Ainda afirma o próprio Senhor acerca dos homens:

Pelo poder que lhe deste sobre toda carne(Jo 17,2).

Porventura recebera poder sobre a carne apenas, e não especialmente sobre as almas, a parte principal a ser libertada? Portanto, ali estava a alma, ali estava a carne, ali se achava o homem todo; e o homem todo com o Verbo, e o Verbo com o homem. O homem e o Verbo são um só homem, e o Verbo com o homem um só Deus. Diga, portanto:

Piedade de mim, ó Deus, piedade”.

Não nos assustem as vozes de quem pede misericórdia; ele também a concede. Pede, porque dá; fez-se homem por ser misericordioso. Seu nascimento não foi condição necessária; libertou-nos da coação de nossa condição.

Piedade de mim, ó Deus, piedade, porque em ti confia a minha alma”.

Ouves como reza o mestre; aprende a orar. Ele orou a fim de ensinar como rezar, assim como sofreu para ensinar a sofrer e ressuscitou para ensinar a esperar a ressurreição.



§ 6
À sombra de tuas asas me abrigarei até que passe a iniqüidade”.

Já o Cristo total começa a falar; aqui se encontra também a nossa voz. A iniqüidade ainda não passou, ainda está fervendo. O próprio Senhor afirmou que no fim a iniqüidade seria superabundante:

E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo(Mt 24,12).

Quem, porém, há de perseverar até o fim, até que passe a iniqüidade? Quem estiver no corpo de Cristo, quem for membro de Cristo e aprender da Cabeça a paciência de perseverar. Tu passas, e passaram tuas tentações, e vais para a outra vida, para a qual foram os santos, se fores santo. Para a outra vida foram os mártires; se fores mártir, irás também tu para a outra vida. Porventura porque tu passaste, já passou a iniqüidade da terra? Nascem outros iníquos, como morrem alguns iníquos. Da mesma forma que morrem alguns iníquos e outros nascem, assim alguns justos se vão e outros nascem. Até o fim do mundo não faltará a iniqüidade que oprime, nem a justiça que padece.

À sombra de tuas asas me abrigarei até que passe a iniqüidade”, isto é, tu me proteges, e para não secar com o ardor da iniqüidade, ofereces-me uma sombra.



§ 7
3 “Ao Deus Altíssimo subirá o meu clamor”.

Se ele é altíssimo, como ouvirá teu clamor? A confiança nasceu da experiência. Dizes:

Ao Deus que me cumulou de benefícios”.

Se me cumulou de benefícios antes que o procurasse, não me há de ouvir quando eu clamar? O Senhor Deus nos cumulou de benefícios, enviando-nos o nosso Salvador, Jesus Cristo, a fim de morrer por nossos pecados, e ressuscitar para nossa jsutificação (cf Rm 4,25).

Para que espécie de homens quis Deus que morresse seu Filho? Pelos ímpios. Estes não procuravam a Deus, mas foram procurados por ele. Ele é Altíssimo, mas de tal modo que não está longe de nossa miséria e de nossos gemidos, porque o Senhor está perto dos corações contritos (cf Sl 33,19).

Ao Deus Altíssimo subirá o meu clamor, ao Deus que me cumulou de benefícios”.



§ 8
4 “Mandou do céu, e me salvou”.

Já está claro que foi salvo o próprio homem, a própria carne, o Filho de Deus, segundo a nossa natureza. O Pai mandou auxílio do céu que o salvou. Enviou auxílio do céu e o ressuscitou. Mas a fim de que se saiba que o próprio Senhor ressuscitou a si mesmo, ambos os modos de se exprimir encontram-se na Escritura: o Pai o ressuscitou, e ele se ressuscitou. Ouvi que o pai o ressuscitou segundo a palavra do Apóstolo até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o sobre- exaltou grandemente e o agraciou com o nome que é sobre todo nome” (Fl 2,8.9).

Ouvistes que o Pai ressuscita e exalta o Filho. Escutai agora como o Filho ressuscitou a sua carne. Fala aos judeus, empregando a figura do templo:

Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei”.

Explica-nos o evangelista o sentido da frase:

Ele, porém, falava do templo do seu corpo(Jo 2,19.21).

E agora fala, suplicante, enquanto homem, carne:

Mandou do céu, e me salvou”.



§ 9
Encheu de confusão os que me conculcavam”.

Confundiu aqueles que o conculcaram, insultando-o até depois de morto. Crucificaram-no enquanto homem, sem entenderem, que ele era Deus. Observai se isto não se realizou. Não é num evento futuro em que acreditamos. Reconhecemos que já se realizou. Os judeus, encarniçados contra Cristo, ensoberbeceram-se. Onde? Na cidade de Jerusalém. Ali reinaram, orgulharam-se, endureceram a cerviz. Após a ressurreição do Senhor dali foram arrancados e perderam o reino, no qual não quiseram reconhecer a Cristo por Rei. Vede a que opróbrio foram entregues: dispersos por todos os povos, nunca encontraram estabilidade, domicílio certo. De fato, os judeus, para sua própria confusão, são os portadores de nossos Livros. Pois, se queremos mostrar uma profecia sobre Cristo, são estas Sagradas Letras que apresentamos aos pagãos. Querendo evitar que aqueles que resistem à fé afirmem termos nós, cristãos, composto as Escrituras, acrescentando ao evangelho profetas fictícios que pareçam ter predito o que pregamos, nós os convencemos de que todas essas Escrituras que profetizaram a respeito de Cristo estão nas mãos dos judeus; eles têm todas as Escrituras. Apresentamos códices provenientes de nossos inimigos, para confundir a outros inimigos. Qual o opróbrio dos judeus? O de serem portadores dos códices, em que os cristãos baseiam a sua fé. São os portadores dos Livros, à guisa dos escravos que costumam carregar os códices, indo atrás de seus senhores. Eles ficam cansados de os carregar, enquanto os seus senhores aproveitam a leitura dos mesmos. Tal o opróbrio dos judeus. Cumpriu-se a profecia, tanto tempo antes proferida.

Encheu de confusão os que me conculcavam. Que opróbrio para os judeus, meus irmãos, lerem este versículo como se fossem cegos diante de um espelho! Os judeus em relação à Sagrada Escritura que carregam assemelham-se à face de um cego refletida num espelho. Outros a vêem; ele mesmo, não.

Encheu de confusão os que me conculcavam”.



§ 10
4 Talvez perguntes qual o sentido da expressão:

Mandou do céu, e me salvou”.

O que foi que mandou do céu? A quem? Mandou um anjo para salvar a Cristo? E o Senhor foi salvo por meio de um escravo? Todos os anjos são criaturas que servem a Cristo. Os anjos podiam ser enviados para obséquio, ser enviados para serviço, e não para auxílio. Conforme está escrito que os anjos serviam a Cristo (cf Mt 4,11), não se tratava de um ser misericordioso a servir a um indigente, mas de um subordinado ao onipotente. O que, então, “enviou do céu e me salvou?” Logo ouvimos de outro versículo o que enviou do céu.

Enviou do céu sua misericórdia e sua verdade”.

Com que finalidade? “E arrancou a minha alma do meio dos leõezinhos. Enviou do céu sua misericórdia e sua verdade”.

O próprio Cristo disse:

Eu sou a verdade(Jo 14,6).

Por conseguinte, a verdade foi enviada para livrar a minha alma do meio dos leõezinhos; foi enviada a misericórdia. Encontramos a Cristo, a misericórdia e a verdade; misericórdia que de nós se compadece, verdade que nos recompensa. Foi isto que afirmei mais acima: que ele ressuscitou a si mesmo. Se, pois, a verdade ressuscitou a Cristo, e se a verdade tirou a alma de Cristo do meio dos leõezinhos, assim como ele foi misericordioso ao morrer por nós, foi verdadeiro ao ressurgir para nos justificar. Assegurara que haveria de ressuscitar e a verdade não pôde mentir. Como Cristo é a verdade e é veraz, mostrou suas verdadeiras cicatrizes, porque verdadeiras foram suas feridas. Os discípulos tocaram essas chagas, apalparam. Foram-lhes manifestadas. O apóstolo que pôs os dedos no lado aberto exclamou:

Meu Senhor e meu Deus”! (Jo 20,28).

Cristo morrera por misericórdia para com ele, e ressuscitara pela verdade em seu favor.

Enviou do céu sua misericórdia e sua verdade. E arrancou a minha alma do meio dos leõezinhos”.

Quais são esses leõezinhos? O povo miúdo, seduzido e enganado pelos príncipes dos judeus. Esses eram os leões, e os do povo, os leõezinhos. Todos se encarniçaram, todos mataram. Vamos ouvir aqui como mataram, agora, nos versículos seguintes deste salmo.



§ 11
5 “E arrancou a minha alma do meio dos leõezinhos”.

Por que motivo dizes:

E arrancou a minha alma?” O que sofrias para que tua alma fosse arrancada? “Dormi inquieto”.

Cristo se refere a sua morte. Certamente lemos que Davi fugiu para a caverna, mas não lemos que lá tenha dormido. Um é o Davi que está na caverna, e outro o que diz:

Dormi inquieto”.

Vejamos qual a sua perturbação. Não que ele se tenha perturbado, mas os judeus o importunavam. Disse que estava inquieto, conforme a opinião dos iracundos inimigos, e não segundo a consciência do que era atingido. Eles pensavam que Cristo se perturbara, pensavam que tinham vencido. Ele, porém, dormiu inquieto. Estava tão tranqüilo este atribulado que dormia quando queria. Ninguém dorme quando está inquieto. Todos os que se perturbam, ou acordam, ou não podem dormir. Ele, contudo, estava perturbado e dormiu. Grande a humildade daquele que se perturbava, grande o poder do que dormia. De que poder vinha que conseguia dormir? Daquele a que ele mesmo se referiu:

Tenho o poder de dar a minha vida e poder de retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente. Tenho poder de entregá-la e poder de retomá-la(Jo 10,17.18).

Os judeus o perturbaram, e ele dormiu. Tipo desta realidade foi Adão, quando Deus fez cair um sopor sobre ele, para de sua costela plasmar a mulher (cf Gn 2,21).

Deus não poderia criar a esposa do primeiro homem, tirando-lhe a costela quando acordado? Ou quis que dormisse para não sentir quando a costela foi extraída? Enfim, quem dorme de tal modo que não acorde se lhe for tirado um osso? Aquele que pôde extrair a costela do homem adormecido, de maneira indolor, poderia tirá-la também estando ele acordado. Mas porque preferiu tirar do homem adormecido? Porque do lado de Cristo na cruz adormecido foi tirada a sua esposa. Foi-lhe transpassado o lado com a lança, enquanto pendia da cruz, e manaram os sacramentos da Igreja (cf Jo 19,34).

Dormi inquieto”.

Ele manifesta tal fato em outro salmo, dizendo:

Eu adormeci, caí em sono profundo”.

Nesta passagem exprimiu seu poder. Poderia dizer também ali:

Dormi”, conforme se encontra aqui. Que significa:

Eu adormeci?” Dormi porque quis. Não foram eles que, contra minha vontade, obrigaram-me a dormir, mas adormeci conforme minha vontade, segundo a palavra: Tenho o poder de dar a minha vida e poder de retomá-la. Por isso, ali o salmista prossegue:

Eu adormeci, caí em sono profundo. Despertei, porque o Senhor me acolherá(Sl 3,6).



§ 12
Dormi inquieto”.

Por quê? Quem é que perturba? Vejamos como a consciência pesada cauteriza os judeus, que queriam se escusar da morte do Senhor. Pois, conforme narra o evangelho, eles o entregaram, ao juiz para não parecer que eles o mataram. Como lhes dissesse o juiz de então, Pilatos:

Tomai-o vós mesmos, e julgai-o conforme a vossa Lei”, responderam:

Não nos é permitido matar ninguém(Jo 18,31).

Não é permitido matar; será lícito entregar para ser morto? Quem, então, matou? Quem cedeu diante dos clamores, ou quem extorquiu a sentença de morte com seus clamores? O próprio Senhor ateste quem o matou. Teria sido Pilatos que o matou contra a vontade e que, por isso, mandou flagelá-lo e apresentou-o aos judeus depois de flagelado, vestido de uma veste ignominiosa, a fim de que, ao menos saciados com a pena dos flagelos, não quisessem extorquir dele a morte? Por isso, vendo que eles insistiam, conforme lemos, lavou as mãos e disse:

Estou inocente do sangue deste justo(Mt 27,24).

Vede se é inocente quem cedeu diante dos gritos. No entanto, muito mais culpados os que com seus gritos quiseram matá-lo. Mas, nós interroguemos e ouçamos o Senhor. A quem atribui a sua morte, uma vez que disse:

Dormi inquieto?” Interroguemo-lo, dizendo: Se dormiste inquieto, quais foram teus perseguidores? Os que te mataram? Acaso Pilatos, que deu soldados para suspender-te na cruz e traspassar com os cravos? Ouve quem foi:

Os filhos dos homens”, aqueles que te perseguiram. Mas como mataram aqueles que não tinham ferros? Os que não empunharam o gládio, os que não investiram contra ele para matá-lo, como o mataram? “Armas e flechas são os dentes dos filhos dos homens. Espada afiada a sua língua”.

Não dês atenção às mãos inermes, mas à boca armada; daí saiu o gládio para matar a Cristo, como também da boca de Cristo sai a espada que há de matar os judeus. Ele tem a espada de dois gumes (cf Ap 1,16), e ao ressuscitar feriu-os, separando deles os que transformariam em fiéis. O gládio dos judeus é mau, e o de Cristo é bom; os primeiros têm setas más e Cristo, boas. Pois, Cristo possui flechas boas, boas palavras, que atingem o coração fiel, para que ame. Por conseguinte, diferem as setas e os gládios.

Armas e flechas são os dentes dos filhos dos homens. Espada afiada a sua língua”.

A língua dos filhos dos homens é uma espada afiada, e seus dentes são armas e flechas. Quando foi, portanto, que os judeus feriram, senão quando clamaram: Crucifica-o, crucifica-o? (Mt 27,4; Jo 19,6).



§ 13
6 E o que te fizeram, Senhor? Aqui exulte o profeta. Mais acima, em todos os versículos, era o Senhor quem falava. De fato, era o profeta, mas em lugar do Senhor, porque falava o Senhor, através do profeta. E quando o profeta fala por si mesmo, o próprio Senhor fala através dele e dita-lhe a verdade a proferir. Agora, portanto, meus irmãos, ouvi o profeta falar em seu próprio nome. Ele viu em espírito o Senhor humilhado, ferido, flagelado, esbofeteado, batido, cuspido, coroado de espinhos, suspenso do madeiro. Viu os judeus enfurecidos e o Senhor paciente; mas viu em espírito os primeiros exultantes, o segundo como um vencido. E após toda aquela humilhação e furor dos judeus, ele ressuscitou; e tornou-se inútil tudo o que os inimigos irados fizeram. O profeta enche-se de alegria, como se visse com os próprios olhos tudo isso realizar-se e diz:

Sejas exaltado, ó Deus, acima dos céus”.

Enquanto homem, pregado à cruz, mas Deus acima dos céus. Na terra fiquem os furiosos; tu, ao invés, estejas no céu, a julgar. Onde estão os inimigos enfurecidos? Onde “os dentes deles, armas e flechas?” Acaso não são “as feridas que eles infligem como as das flechas de crianças(Sl 63,8)? Esta passagem é de outro salmo e visa a mostrar terem eles inutilmente se enfurecido, em vão terem se enchido de cólera. Nada puderam contra Cristo, crucificado por algumas horas, mas que logo ressuscitou e sentou-se nos céus.

As feridas que eles infligiram são como as das flechas de crianças”.

Como é que as crianças fabricam setas? De caniços. Como são? Qual a sua força? Qual o arco? Qual o impulso? Qual a ferida? “Sejas exaltado, ó Deus, acima dos céus, e a tua glória se espalhe por toda a terra”.

Como és exaltado acima dos céus, ó Deus? Irmãos, não vemos, porém acreditamos que Deus é exaltado acima dos céus; que sua glória se estende por toda a terra, não apenas vemos, mas igualmente cremos. Peço-vos atenção para com a loucura dos hereges. Separados da sociedade da Igreja de Cristo, e mantendo um partido, enquanto perdem o todo, não querem estar em comunhão com a terra inteira, pela qual se difundiu a glória de Cristo. Nós, católicos, porém, estamos em toda a terra, porque em comunhão com todo o orbe, pelo qual se propagou a glória de Cristo. Vemos, pois, agora realizado o que então cantamos. Nosso Deus está exaltado acima dos céus, e a sua glória se espalhou por toda a terra. Ó loucura herética! Acreditas comigo naquilo que não vês, e negas o que vês. Crês comigo que Cristo está exaltado acima dos céus, apesar de não o vermos, e negas que a sua glória se espalhou sobre toda a terra, conforme vemos.

Sejas exaltado, ó Deus, acima dos céus e a tua glória se espalhe por toda a terra”.



§ 14
7 O salmista volta às palavras do Senhor. O próprio Senhor começa a narrar-nos, como se nos falasse, depois que o profeta exulta e diz:

Sejas exaltado, ó Deus, acima dos céus e a tua glória se espalhe por toda a terra”.

O Senhor nos confirma, de certo modo nos dizendo: Que puderam fazer-me aqueles que me perseguiram? Mas, por que nos fala? Porque eles o fazem igualmente a nós. Mas nada conseguem os que nos perseguiram de maneira semelhante. Veja, pois, V. Caridade o Senhor a falar-nos e exortar-nos com seu exemplo.

Eles armaram um laço a meus pés e mantinham curvada a minha alma”.

Quiseram baixá-la do céu e empurrá-la para baixo:

Mantinham curvada a minha alma. Cavaram diante de mim uma fossa. E aí caíram eles”.

Prejudicaram a mim ou a si mesmos? Eis que Deus está exaltado acima dos céus, e espalhou-se sobre toda a terra a sua glória. Vemos o reino de Cristo. Onde está o reino dos judeus? Fizeram o que não deviam fazer, e sucedeu-lhes aquilo que mereciam sofrer.

Cavaram uma fossa. E aí caíram eles”.

Não causou dano a Cristo a sua perseguição; ao contrário, prejudicou-os. E não imagineis, irmãos, que isso aconteceu somente a eles. Todo aquele que cava uma fossa para seu irmão, necessariamente cairá ele mesmo nessa fossa. Atenção, irmãos. Deveis ter olhos de cristãos e não vos deixardes enganar pelas coisas visíveis. Talvez porque afirmei isto, ocorre a alguém dentre vós que ele quis defraudar a seu irmão, planejou insídias contra ele, tramou e realizou, e o irmão caiu em suas ciladas, foi espoliado, ou oprimido, seja num cárcere, ou por um falso testemunho, ou apanhado por maldosa incriminação. Parece-lhe que o irmão foi oprimido e que ele oprimiu; que ele foi vencido, e o primeiro venceu. Então pensa que é falsa nossa afirmação de que todo aquele que cava uma fossa para seu irmão, ele mesmo cai nela. Interrogo-vos como a cristãos, para que tomeis exemplo daquelas coisas que já sabemos. Os pagãos perseguiram os mártires e estes foram presos, algemados, lançados num cárcere, jogados às feras, feridos à espada, queimados na fogueira. Os perseguidores venceram, e os mártires foram vencidos? Longe disso. Procura a glória dos mártires junto de Deus, procura a fossa dos pagãos em sua consciência onerada. A consciência pesada é a fossa onde cai o ímpio. Pensas que não caiu na fossa o que perdeu a luz de Cristo e foi ferido de cegueira? Se não caísse na fossa, veria o que está diante de si. Ele não sabe por onde ir; como aquele que caiu numa fossa enquanto caminhava, perdeu a direção. Por isso, vedes que todos os malfeitores perdem o caminho, implicados no crime. Mas talvez um malfeitor já te entregou às mãos de um ladrão, ou às mãos de um juiz injusto ou comprado por ele; tu estás em angústia, e ele se alegra, exulta. Como já disse, não tenhas olhos de pagão, e sim olhos de cristão. Tu o vês exultante; essa alegria é a sua fossa. É melhor a tristeza de quem sofre a injustiça do que a alegria de quem pratica o mal. A própria alegria de quem pratica o mal é a sua fossa; quem nela cair, perde a visão. Lastimas-te porque perdeste a veste; e não o lastimas por ter perdido a fé? Qual dos dois sofreu maior dano? Ele mata, tu és morto; é ele quem vive e tu quem está morto? Longe disso. Onde está a fé dos cristãos? Onde está aquele que morre só por algum tempo. Ouça o que diz o seu Senhor:

Quem crê em mim, ainda que morra, viverá(Jo 11,25).

Por conseqüência, quem não crê, embora viva, está morto.

Cavaram diante de mim uma fossa. E aí caíram eles”.

Forçosamente isso sucederá a todos os malvados.



§ 15
8 A paciência dos bons, contudo, pela preparação do coração acolhe a vontade de Deus e se gloria nas tribulações, dizendo o seguinte:

Meu coração está preparado, ó Deus, está preparado o meu coração. Cantarei e salmo-diarei”.

O que foi que ele me fez? Preparou a fossa, mas meu coração está preparado. Ele preparou a fossa para me enganar, e eu não prepararei o coração para sofrer? Ele preparou a fossa para oprimir e eu não preparei o coração para suportar? Por esta razão, ele cairá na fossa, mas eu cantarei e salmodiarei. Ouve como o coração do Apóstolo está preparado. Ele imitou o seu Senhor:

Nós nos gloriamos também nas atribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança a virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,3-5).

O Apóstolo estava no meio de tribulações, em cadeias, nos cárceres, ferido, com fome e sede, passando frio e despojamento, gasto de trabalhos e dores, mas dizia:

Nós nos gloriamos nas tribulações(cf 2Cor 11,27).

Donde vinha isso, senão porque o seu coração estava preparado? Por esta razão cantava e salmo-diava:

Meu coração está preparado, ó Deus, está preparado o meu coração. Cantarei e salmodiarei”.



§ 16
9 “Ergue-te, glória minha”.

Aquele que fugira de Saul, refugiando-se numa caverna, diz:

Ergue-te, glória minha”, ou seja, depois da paixão, Jesus seja glorificado.

Ergue-te, saltério e cítara”.

O que é que o salmista chama para levantar-se? Vejo dois instrumentos, e ao contrário o corpo de Cristo é um só: uma só carne ressuscitou, e dois instrumentos se levantaram. Um é o saltério e outra a cítara. Denominam-se “órgãos” todos os instrumentos musicais. Não se denomina órgão somente aquele instrumento grande, com foles que se enchem; mas tudo o que acompanha o canto e é material, todo instrumento usado pelo cantor, chama-se “órgão”.

São distintos entre si esses órgãos; e quero, se Deus quiser, explicar-vos como são distintos, por que motivo são distintos, e por que se diz a ambos:

Levanta-te”.

Já dissemos que uma só foi a carne do Senhor que ressuscitou; e no entanto se diz:

Levanta-te, saltério e cítara”.

O saltério é um instrumento sustentado pelas mãos de quem o toca, e que tem cordas esticadas. Mas o saltério tem na parte superior o lugar onde as cordas vibram, aquela cavidade de madeira pendente, caixa de ressonância, onde devido ao ar ressoam as cordas que foram tangidas. A cítara, porém, possui essa parte côncava de madeira que ressoa, do lado de baixo. Por conseguinte, no saltério as cordas emitem som no alto; na cítara, contudo, as cordas ressoam na parte inferior. Essa a diferença entre saltério e cítara. Que significam, então, as figuras destes dois instrumentos? Pois, Cristo, o Senhor nosso Deus, excita seu saltério e sua cítara, dizendo:

Eu me levantarei desde a aurora”.

Penso que já reconheceis nessa passagem o Senhor ressuscitado. Lemos o evangelho; notai a hora da ressurreição. Clareou e foi reconhecido; ressuscitou na aurora (cf Mc 16,2).

Mas, que é o saltério? Que é a cítara? Através de sua carne, o Senhor realizou duas espécies de feitos: os milagres e os sofrimentos. Os milagres vinham do alto, os sofrimentos de baixo. Os milagres que operou eram divinos; mas operou-os através de seu corpo, de sua carne. Por isso, a carne a operar obras divinas é o saltério; a carne humana a sofrer é a cítara. Ressoe o saltério: os cegos vejam, os surdos ouçam, os paralíticos se movam, os coxos andem, os doentes se levantem, os mortos ressurjam. Tal é o som do saltério. Soe também a cítara: o Senhor tenha fome, sede, durma, seja preso, flagelado, escarnecido, crucificado, sepultado. Vês que aquela carne fez ressoar certo canto da parte superior e outro da parte inferior. Foi uma só carne que ressuscitou e nesta única carne reconhecemos o saltério e a cítara. E estas duas espécies de feitos encheram o evangelho, que é anunciado aos povos; pois são pregados os milagres e a paixão do Senhor.



§ 17
10.12 Por conseguinte levantaram-se saltério e cítara desde a aurora e confessam o Senhor. Como é que se exprime o salmista? “Confessar-te-ei no meio do povo, Senhor, entre as gentes entoarei salmos. Porque a tua misericórdia se elevou até os céus, e até as nuvens a tua verdade”.

Os céus estão acima das nuvens e estas abaixo dos céus. E no entanto as nuvens pertencem a este céu mais próximo. Mas algumas vezes as nuvens pousam nos montes, e se acumulam no ar mais próximo. O céu, porém, está no alto, e constitui a habitação dos Anjos, dos Tronos, das Dominações, dos Principados, das Potestades. Parece que por isso se deva dizer:

Porque a tua verdade se elevou até os céus e até as nuvens, a tua misericórdia”.

De fato, nos céus louvam a Deus os anjos, que vêem a própria beleza da verdade, numa visão sem sombras, sem interpolação de falsidade alguma. Eles vêem, amam, louvam, sem se fatigar. Ali se acha a verdade; aqui, porém, em meio a nossa miséria, efetivamente, a misericórdia. Ao mísero deve-se oferecer a misericórdia. Lá no alto a misericórdia é desnecessária, porque lá não existem seres infelizes. Declarei estas coisas porque poderia parecer mais adequado dizer:

A tua verdade se elevou até os céus e até as nuvens a tua misericórdia”.

Entendemos por nuvens os pregadores da verdade, homens portadores desta carne, de certo modo nebulosa, de onde Deus lança os raios de seus milagres e os trovões de seus preceitos. São as nuvens a que se refere Isaías, falando em nome do Senhor e censurando aquela vinha má, estéril, espinhosa:

Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela(Is 5,6).

Quer dizer, mandarei a meus apóstolos que deixem os judeus e não os evangelizem, mas preguem a boa nova na terra boa dos gentios, onde não deverão nascer espinhos e sim uvas. Sabemos que as nuvens de Deus são os pregadores da verdade, os profetas, os apóstolos, todos os que retamente proferem a palavra da verdade e conservam em si oculta a luz, como as nuvens podem produzir relâmpagos. Portanto, os homens são nuvens. Que significa, pois, Senhor:

A tua misericórdia se elevou até os céus e até as nuvens, a tua verdade?” A verdade se destaca nos anjos; mas a concedeste também aos homens e a elevaste até as nuvens. Quanto à misericórdia, parece que os anjos dela não precisam; mas como te compadeces dos homens infelizes, e oferecendo-lhes a misericórdia, pela participação na ressurreição os transformas em anjos, vai até os céus a tua misericórdia. Glória a nosso Senhor e a sua misericórdia, e a sua verdade, porque nem a misericórdia deixou de nos fazer felizes por meio da graça de Deus, nem nos faltou a verdade. Primeiro a verdade encarnada veio até nós e curou por esta carne os olhos interiores de nosso coração, a fim de que depois pudéssemos vê-la face a face (cf 1Cor 13,12).

Demos, portanto, graças a Deus, e repitamos com o salmo os últimos versículos que já expliquei:

Eleva-te, Senhor, acima dos céus, e em toda a terra resplandeça a tua glória”.

Proferiu o profeta estas palavras há muitos anos. Vemo-las realizadas, e por isso repitamo-las também nós.