SALMO 𝟭

Deus ouvirá; e lhes responderá aquele que está entronizado desde a antigüidade; porque não há neles nenhuma mudança, e tampouco temem a Deus.

Aquele meu companheiro estendeu a sua mão contra os que tinham paz com ele; violou o seu pacto.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 55


§ 55:1  Ɗ Dá ouvidos, ó Deus, à minha oração, e não te escondas da minha súplica.

§ 55:2  Atende-me, e ouve-me; agitado estou, e ando perplexo,

§ 55:3  por causa do clamor do inimigo e da opressão do ímpio; pois lançam sobre mim iniqüidade, e com furor me perseguem.

§ 55:4  O meu coração confrange-se dentro de mim, e terrores de morte sobre mim caíram.

§ 55:5  Ŧ Temor e tremor me sobrevêm, e o horror me envolveu.

§ 55:6  Pelo que eu disse: Ah! quem me dera asas como de pomba! então voaria, e encontraria descanso.

§ 55:7  Eis que eu fugiria para longe, e pernoitaria no deserto.

§ 55:8  Apressar-me-ia a abrigar-me da fúria do vento e da tempestade.

§ 55:9  Ɗ Destrói, Senhor, confunde as suas línguas, pois vejo violência e contenda na cidade.

§ 55:10  Ɗ Dia e noite andam ao redor dela, sobre os seus muros; também iniqüidade e malícia estão no meio dela.

§ 55:11  Há destruição lá dentro; opressão e fraude não se apartam das suas ruas.

§ 55:12  Pois não é um inimigo que me afronta, então eu poderia suportá-lo; nem é um adversário que se exalta contra mim, porque dele poderia esconder-me;

§ 55:13  mas és tu, homem meu igual, meu companheiro e meu amigo íntimo.

§ 55:14  Ƈ Conservávamos juntos tranqüilamente, e em companhia andávamos na casa de Deus.

§ 55:15  A morte os assalte, e vivos desçam ao Seol; porque há maldade na sua morada, no seu próprio íntimo.

§ 55:16  ɱ Mas eu invocarei a Deus, e o Senhor me salvará.

§ 55:17  Ɗ De tarde, de manhã e ao meio-dia me queixarei e me lamentarei; e ele ouvirá a minha voz.

§ 55:18  Ł Livrará em paz a minha vida, de modo que ninguém se aproxime de mim; pois há muitos que contendem contra mim.

§ 55:19  Ɗ Deus ouvirá; e lhes responderá aquele que está entronizado desde a antigüidade; porque não há neles nenhuma mudança, e tampouco temem a Deus.

§ 55:20  Aquele meu companheiro estendeu a sua mão contra os que tinham paz com ele; violou o seu pacto.

§ 55:21  A sua fala era macia como manteiga, mas no seu coração havia guerra; as suas palavras eram mais brandas do que o azeite, todavia eram espadas desembainhadas.

§ 55:22  Ł Lança o teu fardo sobre o Senhor, e ele te susterá; nunca permitirá que o justo seja abalado.

§ 55:23  ɱ Mas tu, ó Deus, os farás descer ao poço da perdição; homens de sangue e de traição não viverão metade dos seus dias; mas eu em ti confiarei.


O SALMO 55

Sermão em Cartago, na basílica Restituída



§ 1
1 Quando queremos entrar numa casa, olhamos no título de quem é, a quem pertence, para não ingressarmos inoportunamente onde não nos convém, nem, ao invés, recusamos por timidez de onde devemos entrar, lendo, ali: Esta propriedade é de fulano ou sicrano. Assim no título deste salmo temos inscritos:

Para o fim, pelo povo que se afastou das coisas santas. De Davi segundo a inscrição do título. Quando estrangeiros o prenderam em Gat”.

Reconheçamos o “povo que se afastou das coisas santas, segundo a inscrição do título”.

Refere-se a Davi, cujo significado espiritual já conheceis. É relembrado aquele do qual nos foi dito:

O fim da Lei de Cristo para a justificação de todo o que crê(Rm 10,4).

Por conseguinte: ao ouvires a expressão:

Para o fim”, pensa em Cristo, para não te deteres no caminho e assim não alcançares o fim. Seja qual for o lugar inferior em que paras, antes de chegar a Cristo, a palavra de Deus te dirá apenas isto: Avança, ainda não estás em lugar seguro. Há um lugar onde se pode pôr os pés com toda segurança; há uma pedra sobre a qual uma casa se levanta bem firme, desafiando chuvas tempestuosas. Os rios deram contra esta casa e ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha:

e essa rocha era Cristo(cf Mt 7,25; 1Cor 10,4).

Cristo é figurado pelo nome de Davi. Dele foi dito:

nascido da estirpe de Davi segundo a carne(Rm 1,3).



§ 2
Qual, então, “o povo que se afastou das coisas santas, segundo a inscrição do título?” O próprio título nô-lo mostre. Havia um título na paixão do Senhor, ao ser ele crucificado. O título estava escrito em hebraico, grego e latim:

Rei dos judeus”.

Fora exarado em três línguas, quais três testemunhas, uma vez que uma causa deve ser introduzida segundo o depoimento de duas ou três testemunhas (Dt 19,15).

Os judeus, tendo lido este título se mostraram indignados e disseram a Pilatos:

Não escrevas: rei dos judeus, mas: Este homem disse: Eu sou o rei dos judeus”.

Pediram que escrevesse ter ele dito isso, mas que não era verdade. Como, porém, era verdade, acha-se em outro salmo:

Inscrição do título. Não destruas(Sl 56,1).

E Pilatos respondeu:

O que escrevi, está escrito”, como se dissesse: Não destruo a verdade, apesar de vós amardes a falsidade. Mas, como os judeus se indignaram com esta palavra dura dizendo:

Não temos outro rei a não ser César(cf Jo 19,15-22), ofendidos com o título se afastaram dos santos os que reconhecem e querem ter Cristo por seu rei. Afastem-se dos santos os que, contradizendo ao título, rejeitaram a Deus, seu rei e escolheram por rei um homem. Por isso, todo o povo que pôs suas delícias em ter um homem como rei, rejeitando o reinado do Senhor, todo ele se afastou dos santos. Quem se sujeita ao reinado do Senhor, reina igualmente sobre sua cupidez. Não deveis irmãos, notar isto somente nos judeus. Eles são de certo modo o modelo original, esclarecendo-se assim qual o perigo que todos devem evitar. Claramente recusaram ter Cristo por rei e a ele preferiram César. Este, em verdade, é um homem, estabelecido como rei de outros homens, em vista das coisas humanas. Mas existe outro rei para as coisas divinas. Um é rei para a vida temporal e outro para a eterna. O rei terreno é subordinado ao rei celeste. Este reina sobre todos. Efetivamente, os judeus que disseram ter César por rei, por isso não pecaram, pecaram, sim, por terem recusado a Cristo por rei. Também agora, muitos não querem ter a Cristo por rei, a ele que está sentado no céu, e reina por toda parte. São estes os que nos afligem. Contra esses tais, o salmo nos fortalece. Forçoso é suportarmos a esses até o fim. Não sofreríamos da parte deles, se não nos fosse de utilidade. Pois, toda tentação é uma provação, e toda provação produz fruto. O homem freqüentemente é um desconhecido para si mesmo e não sabe o que pode suportar e o que não pode. Por vezes presume que é capaz de suportar o que não pode, e por outras perde o ânimo de suportar o que lhe é possível agüentar. Acrescenta-se a prova como uma interrogação, e o homem se encontra a si mesmo. Era uma incógnita para si, mas não para o criador. Foi assim que Pedro presumiu não sei bem como o que ainda não possuía, a saber, a perseverança até a morte ao lado do Senhor Jesus Cristo. Pedro ignorava a extensão de suas forças, mas o Senhor conhecia muito bem. O criador replicou-lhe que não era capaz. Ele daria forças suficientes a sua criatura, mas sabia que ainda não as dera. Pedro, que ainda não as recebera, não o sabia. Aproximou-se a tentação. Ele negou, chorou, aceitou (cf Lc 22,33-62).

Como desconhecemos o que devemos pedir por não termos, nem sabemos dar graças se recebemos, precisamos sempre das instruções por meio das tentações e tribulações neste mundo; mas não podemos ser afligidos senão por aqueles que se afastam dos santos. Esta distância, irmãos, é relativa ao coração, não ao corpo. Acontece muitas vezes que alguém está de viagem muito longe de ti corporalmente, e no entanto te está unido, porque ama o mesmo que tu; e outras vezes sucede que está perto de ti, e te está unido por ter amor idêntico ao teu; mas também sucede que está perto de ti, pelo fato de amar o mundo, enquanto tu amas a Deus, está distante de ti.



§ 3
Qual o significado das palavras que ainda pertencem a este título:

quando estrangeiros o prenderam em Gat?” Gat era certa cidade dos filisteus, isto é, de estrangeiros, de um povo afastado dos santos. Pelo fato mesmo de serem estrangeiros, não se aproximam dos santos, ficam longe. Todos os que recusam a Cristo rei tornam-se estrangeiros. Por que se tornam estrangeiros? Porque mesmo aquela vinha, que apesar de plantada por ele se tornou amarga, o que ouviu? “Como te transformaste em ramos degenerados de uma vinha bastarda?(Jr 2,21).

Não disse: Minha vinha, porque se fosse minha, seria de uvas doces: se são amargas, não são de minha vinha, são de uma vinha bastarda. Por conseguinte, “estrangeiros o prenderam em Gat”.

Lemos, na verdade, irmãos, que Davi, o filho de Jessé, rei de Israel, esteve no meio de estrangeiros, quando era perseguido por Saul. E foi nesta cidade e junto do rei desta cidade que esteve; mas não lemos que lá tenha estado preso (cf 1Rs 21,10).

Mas nosso Davi, o Senhor Jesus Cristo, nascido da estirpe de Davi, não só foi retido, mas ainda o retêm os estrangeiros de Gat. Dissemos que Gat é uma cidade. Procurando saber a tradução deste nome, foi-nos indicado que é: lagar. Cristo enquanto Salvador e Cabeça de seu corpo, nasceu da virgem, foi crucificado, e já nos mostrou na ressurreição de seu corpo o exemplo de nossa ressurreição. Ele está sentado à direita do Pai e intercede em nosso favor. Ele está também aqui na terra, mas em seu corpo que é a Igreja. O corpo unido à cabeça e a cabeça clama em lugar do corpo:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4).

E o corpo está com sua Cabeça, segundo os termos do Apóstolo:

Com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus(Ef 2,6).

Nós estamos sentados lá e ele sofre aqui; nós lá estamos sentados em esperança, e ele está aqui conosco segundo a caridade. Esta união como se fosse um só homem faz dois numa só carne, o esposo e a esposa. Daí vem que o próprio Senhor diz:

De modo que já não são dois, mas uma só carne(Mt 19,6).

Como então ele está preso em Gat? Está preso no lagar seu corpo, isto é, sua Igreja (cf Ef 1,22-23).

O que quer dizer: no lagar? Nas angústias. Mas ser espremido no lagar é útil. A uva na vide não é espremida, parece inteira, mas dela nada sai. É colocada no lagar, calcada, espremida. Parece que se faz uma injúria à uva, mas esta injúria não é estéril; ao contrário, se não sofresse injúria alguma permaneceria estéril.



§ 4
2 Todos os santos, portanto, sofrem a pressão daqueles que se tornaram distantes dos santos. Atendam a este salmo, reconheçam-se nele, repitam o que nele se diz, pois padecem o que nele se descreve. De fato, quem não sofre, não diga: Não estou obrigado a repetir esta palavra, porque me vejo fora deste sofrimento. Mas cuide de que, desejando estar longe deste padecimento, não fique longe dos santos. Por conseguinte, pense cada um no inimigo que tem; se é cristão, o mundo é seu inimigo. Não cogite de inimizades particulares quem ouvir as palavras deste salmo; saibamos que a nossa luta não é contra a carne nem contra o sangue, mas contra os Principados e as Potestades e os espíritos do mal, isto é, contra o diabo e seus anjos (cf Ef 6,12).

Mesmo quando são os homens que nos importunam, é o diabo quem instiga, quem atiça, quem os move como a seus instrumentos. Prestemos atenção, por conseguinte, a dois inimigos: ao visível e ao invisível. Vemos o homem, o diabo, não vemos; amemos o homem, acautelemo-nos do diabo; rezemos pelo homem, e oremos contra o diabo, dizendo a Deus:

Piedade de mim, porque aos pés o homem me calcou”.

Não temas, porque o homem te calcou. Assim, hás de produzir vinho. Tu te tornaste uva para seres espremido.

Piedade de mim, ó Deus, porque aos pés o homem me calcou; combatendo-me sem cessar, afligiu- me” todo aquele que se afastou dos santos. Mas por que não entender aqui o próprio diabo? Será ele não porque denominado homem? Então está errado o evangelho que disse:

O homem inimigo é que fez isto”? (Mt 13,28).

Mas ele figuradamente pode ser chamado homem, mas de fato não é homem. É possível que o salmista encare aqui o diabo, ou o povo (e qualquer deste povo) que se apartou dos santos. Por eles o diabo atormenta o povo de Deus que adere aos santos, adere ao santo, adere ao rei. Por este título de rei, os judeus se jul-garam atingidos, se indignaram, se apartaram. Por tudo isso, diga o salmista:

Piedade de mim, ó Deus, porque aos pés o homem me calcou”, a fim de não desfalecer por causa desta pressão, sabendo a quem invocar, e que exemplo o fortificará. Cristo foi o primeiro cacho de uvas espremido no lagar. Tendo sido espremido na paixão aquele cacho, dele saiu o vinho que encheu o “cálice inebriante. Como é excelente!(Sl 22,5).

Reze, pois, também o seu corpo, olhando para a Cabeça:

Piedade de mim, ó Deus, porque aos pés o homem me calcou; combatendo-me sem cessar, afligiu-me. Sem cessar”, em todas as épocas. Ninguém diga: Houve tribulações no tempo de nossos pais, no nosso não. Se julgas que não tens tribulações, ainda não começaste a ser cristão. Como se justificaria a palavra do Apóstolo:

Aliás, todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos”? (2 Tm 3,12).

Se, portanto, não sofres perseguição alguma por causa de Cristo, vê que ainda não começaste a viver com piedade em Cristo. Ao começares a viver com piedade em Cristo, entras no lagar; prepara-te para angústias, mas não sejas fruto seco, do qual nada saia quando se espreme.



§ 5
3.4 “Espezinharam-me os inimigos sem cessar”.

Meus inimigos, aqueles que se afastaram dos santos.

Sem cessar”, já foi explicado.

Da altura do dia”.

Qual o sentido desta fórmula:

Da altura do dia?” Talvez seja difícil de entender. Não é de admirar, pois se trata da altura do dia. Provavelmente aqueles se afastaram dos santos porque não puderam compreender a altura do dia, do qual os apóstolos são as doze horas brilhantes. Efetivamente, aqueles que crucificaram a Cristo, como se fosse apenas um homem, erraram relativamente ao dia. Por que motivo ficaram nas trevas, de sorte a se afastarem dos santos? Porque o dia brilhava nas alturas, e escondido ali eles não o conheceram; pois se o tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8).

Atingidos, pois, pela altura do dia, e apartando-se dos santos, tornaram-se inimigos, atormentaram e calcaram as uvas no largar. Há outro sentido ainda para a frase:

Da altura do dia, espezinharam-me os inimigos sem cessar”, isto é, durante todo o tempo.

Da altura do dia”, isto é, da soberba temporal. Os orgulhosos espezinham; os humildes são calcados aos pés, e os de cima são os que conculcam. Mas não temais a altura dos que espezinham; a altura do dia é temporal, não é eterna.



§ 6
Pois muitos dos que pelejam contra mim, temerão”.

Quando? Quando passar o dia em que estão nas alturas. Pois estão nas alturas temporariamente; terminado o tempo de sua elevação, hão de temer.

Eu, porém, em ti esperarei, Senhor”.

Não disse: Eu não terei medo mas, “Muitos dos que pelejam contra mim temerão”.

Quando vier as tribos da terra, ao aparecer no céu o sinal do Filho do homem, o dia do juízo, então se lamentarão (cf Mt 25,31), então estarão em segurança todos os santos. Virá aquilo que esperavam, que desejavam, em cuja intenção rezavam, para que chegasse; não restará então possibilidade alguma de penitência para que aqueles que, enquanto podiam se arrepender com fruto, endurecerem o coração diante do Senhor que os prevenia. Acaso poderão erguer um muro de proteção diante do Senhor que vem julgar? Reconhece, em verdade, a sua compaixão agora, e se estás em seu corpo, imita-o. O salmo tendo dito:

Muitos dos que pelejam contra mim temerão”, não acrescenta: Mas eu não temerei, a fim de que não atribuísse alguém às suas próprias forças o fato de não ter receio, e se colocasse assim também ele nas alturas temporais, e por causa da soberba temporal não merecesse chegar ao repouso eterno; ao invés, dá a entender o motivo por que não teme:

Eu, porém, em ti esperarei, Senhor”.

Não demonstra presunção, mas declara o motivo de sua confiança. Pois, se não tenho medo, pode ser que isto derive de dureza de coração. Muitos não têm medo por excesso de orgulho. V. Caridade, preste atenção. Uma coisa é a saúde corporal, outra a insensibilidade do corpo, outra a imortalidade deste mesmo corpo. A saúde perfeita consiste na imortalidade; mas de certo modo chama-se saúde aquela de que gozamos nesta vida. Quando alguém não está doente, diz-se que está são; se o médico examina, declara que é sadio. Ao começar a adoecer, a saúde se altera; e quando se cura, volta à saúde. Notai e examinai, portanto, três estados do corpo: a saúde, a insensibilidade, a imortalidade. A saúde está isenta de doenças; mas quando é atingida, o doente sente dor. A letargia é indolor; tira a sensação da dor e quanto mais se tornar insensível, tanto pior. Igualmente a imortalidade é indolor; absorvida toda a corrupção, o corpo corruptível reveste-se da incorrupção, e o que é imortal reveste-se da imortalidade (cf 1Cor 15,53-54).

Não sente, portanto, dor alguma o corpo imortal, nem o corpo em letargia. Não se julgue a letargia equivalente à imortalidade. Assemelha-se mais à imortalidade a saúde com dores do que o letargo insensível. Suponha-se, por exemplo, um homem soberbo, cheio de arrogância, que se convence de que nada teme; tu o consideras mais forte do que o Apóstolo que disse:

Por fora, lutas, por dentro, temores”? (2 Cor 7,5).

Mais forte do que a nossa própria Cabeça, o Senhor nosso Deus, que disse:

A minha alma está triste até a morte”? (Mt 26,38).

Ele não é mais forte; não te agrade a sua insensibilidade. Não está revestido da imortalidade e sim desprovido de sensibilidade. Tu, porém, não deves ter a alma desprovida de afetos. São repreensíveis os que não o possuem. Repete, portanto, o senso sadio:

Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem se escandaliza sem que eu me abrase”? (2 Cor 11,29).

Se ele não se importasse com o escândalo, com a perdição dos fracos, seria melhor enquanto rígido e insensível? De forma alguma! Seria insensibilidade, não tranqüilidade. Verdadeiramente, irmãos, quando alcançarmos aquele lugar, aquela sede, aquela bem-aventurança, a celeste pátria, onde nossa alma se encherá de segurança, se encherá de tranqüilidade e eterna felicidade, não existirá mais dor alguma; pois, não haverá motivo algum de dor.

Muitos dos que pelejam contra mim, tremerão”.

E mesmo os insensíveis, que agora nada temem, temerão um dia. Surgirá tamanho terror que há de quebrar e esmagar toda dureza.

Muitos dos que pelejam contra mim, temerão. Eu porém, em ti esperarei.



§ 7
5 “Em Deus louvarei as minhas palavras. Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.

Por quê? Porque em Deus esperarei. Porque em Deus louvarei as minhas palavras. Se louvas por ti mesmo tuas palavras, não te digo que não tenhas medo; será impossível que não o tenhas. Pois, tuas palavras, ou serão mentirosas e portanto serão tuas porque mentirosas; ou se forem verdadeiras, e não consideras que recebeste de Deus, mas que falas por ti mesmo, serão verdadeiras, mas tu serás mentiroso. Se, porém, reconheceres que não é possível dizer a verdade, com a sabedoria de Deus, com a fidelidade à verdade, senão quanto recebeste daquele de quem se diz:

Que é que possuis que não tenhas recebido”? (1 Cor 4,7).

Louvas as tuas palavras em Deus, a fim de em Deus seres louvado pelas palavras de Deus. Com efeito se honras o que há em ti da parte de Deus, tu também, que foste criado por Deus, serás honrado por Deus. Se, porém, honrares como se fosse teu e não de Deus o que há em ti da parte de Deus, como aquele povo se afastou do santo, tu estás longe do santo. Por conseguinte:

Em Deus louvarei as minhas palavras”.

Se é “em Deus”, como “são minhas”? São “em Deus” e “minhas”.

Em Deus”, porque provêm dele; “minhas”, porque as recebi. Ele quis que fossem minhas, ele o doador, mas para que eu o amasse; porque vieram dele e são minhas, tornaram-se minhas. Daí também a palavra:

O pão nosso de cada dia dá-nos hoje(cf Mt 6,11).

Como é “nosso”? E como: Pedindo-o a ele não ficarás desprovido, confessando que é teu, não serás ingrato. Pois, se não dizes que é teu, não recebeste, mas se dizes que é teu como se viesse de ti mesmo o que chamas teu, perdes o que receberas, porque és ingrato para com ele que te deu.

Em Deus”, portanto, “louvarei as minhas palavras”, porque ele é a fonte das palavras verdadeiras; “minhas”, pois acerquei-me sedento e bebi.

Em Deus louvarei as minhas palavras. Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.

Não eras tu mesmo que pouco antes dizias:

Piedade de mim, ó Deus, porque aos pés o homem me calcou. Combatendo-me sem cessar afligiu-me?” Como é então que diz aqui:

Não temerei o que me poderá fazer um mortal?” Que poderá te fazer? Tu mesmo disseste acima:

Espezinhou-me, afligiu-me”.

E isso não é nada? Considera o vinho que mana do lagar e responde: De fato espezinhou-me, de fato afligiu; mas que me importa? Era uva, serei vinho:

Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.



§ 8
6 “Todos os dias minhas palavras eram detestadas”.

Assim é; vós o sabeis. Dizei a verdade, pregai a verdade, anunciai o Cristo aos pagãos, anunciai a Igreja aos hereges, anunciai a todos a salvação. Eles contradizem, “minhas palavras são detestadas”.

Mas ao serem detestadas minhas palavras, quem é detestado senão aquele no qual “louvarei minhas palavras? Todos os dias minhas palavras eram detestadas”.

Baste isso: minhas palavras sejam detestadas. Não avancem mais, repreendam, rejeitem. Longe disso! Por que falar assim? Quando as palavras são rejeitadas, quando detestadas, palavras emanadas da fonte da verdade, o que farão àquele que as profere? O que, senão o seguinte:

Contra mim só planejaram o mal?” Se o próprio pão é rejeitado, como será poupado o prato em que é apresentado? “Contra mim só planejaram o mal”.

Se assim eles agiram contra o próprio Senhor, não é indigno do corpo o que aconteceu primeiro à Cabeça, de sorte que a ela adira o corpo. Teu Senhor foi desprezado e tu queres ser honrado por aqueles que se afastaram dos santos? Não arrogues para ti o que não lhes sucedeu antes. O discípulo não é maior do que o mestre, nem o servo superior ao seu senhor. Se chamaram Beelzebu ao chefe da casa, quanto mais chamarão assim aos seus familiares? (cf Mt 24,10.25).

Contra mim só planejaram o mal”.



§ 9
7 “Hospedem-se e se escondam”.

Hospedar-se é próprio dos peregrinos. Chamam-se peregrinos os que habitam numa pátria que não é sua. Todo homem é peregrino nesta vida; nela vedes que estamos velados pela carne, que não deixa o coração ser visível. Por isso, ordena o Apóstolo:

Não julgueis prematuramente, antes que venha o Senhor. Ele porá às claras o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido(1 Cor 4,5).

Antes que isto aconteça, na separação, na peregrinação desta vida cada um carrega o próprio coração, e cada coração está fechado para outro. Por isso, estes que planejam o mal contra o salmista “hospedam-se e se escondem”, porque acham-se em peregrinação, carregam a carne, ocultam o dolo no coração, escondem todo o mal de que cogitam. Por que razão? Porque a presente vida ainda é de peregrinos. Escondam; aparecerá aquilo que eles escondem, e eles mesmos não se ocultam. Existe outra maneira de entender este escondimento, que talvez agrade mais. De fato, daqueles que se apartam dos santos, introduzem-se alguns fingidos, que trazem piores tribulações ao corpo de Cristo, porque não são evitados como inteiramente estranhos. O Apóstolo refere-se a estes perigos mais graves, ao enumerar seus múltiplos padecimentos:

Sofri perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões, perigos por parte dos meus irmãos de estirpe, perigos por parte dos gentios, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos”! (2 Cor 11,26).

Estes últimos são os mais perigosos. Deles se fala em outro salmo:

Vinham visitar-me para ver(Sl 40,7).

Entravam no intuito de observar, e ninguém dizia: Não entres para olhar. Pois, entram como se fossem dos teus, e não se tomam precauções, como para com um estranho. Estes, portanto, “hospedam-se e se escondem”.

Entram na grande casa, mas não para perseverar ali; por isso, “hospedam-se”.

A tais pecadores, o Senhor considera servos, segundo aquela interpretação do evangelho:

Quem comete o pecado é escravo do pecado. Ora, o escravo não permanece sempre na casa, mas o filho aí permanece para sempre(Jo 8,34-35).

O filho não entra como hóspede, porque perseverará até o fim (cf Mt 10,22; 24,13).

O escravo entra sorrateiro, pecador, para espiar; procura o que roubar, como acusar, ou censurar e quer habitar como hóspede, e não para permanecer e perseverar. Contudo, não tenhamos medo nem destes, irmãos:

Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.

Apesar de hóspedes que entram, fingem, se escondem, são de carne; tu, porém, espera no Senhor e nada te poderá fazer a carne mortal. Mas produz tribulação, conculca. Aparece o vinho porque a uva é espremida. Tua tribulação não será inútil. Outros hão de ver e imitar, pois tu também para aprenderes a suportar essas coisas, contemplaste tua Cabeça, aquele primeiro cacho de uvas, para junto do qual se insinuou o traidor Judas querendo ver, habitar como hóspede, esconder-se. Não tenhas medo, portanto, dos que entram com ânimo fingido, que se hospedam e se escondem. O pai destes foi Judas, que esteve ao lado do teu Senhor, que bem o conhecia. Apesar de ser hóspede, de se esconder o traidor Judas seu coração era bem visível ao Senhor de todas as coisas; bem ciente escolheu um homem que te serviria de consolo quando não soubesses a quem devias evitar. O Senhor poderia não escolher a Judas, pois o conhecia. Ele declarou aos discípulos:

Não vos escolhi, eu, aos Doze? No entanto, um de vós é um demônio(Jo 6,71).

Então o diabo foi escolhido? Ou se ele não foi escolhido, como o Senhor escolheu doze e não onze? Ele também foi escolhido, mas com outra finalidade. Onze foram escolhidos para serem provados, e um para servi-lhes de prova. Daí poder ele apresentar-te um exemplo. Não sabes como evitar os maus, e precaver-te dos falsos e fingidos, que se hospedam e se escondem, a não ser o que ele mesmo te diz: Vê que eu também tive em minha companhia um deles. A tua frente está o exemplo. Suportei, quis sofrer o que sabia, para oferecer a ti, que o desconheces, um alívio. O que me fez o inimigo, fará também a ti; poderá fazer muitas coisas, enfurecer-se muito, acusar, proferir falso testemunho. Se as falsidades prevalecem, acaso prevalecerá só contra ti, sem terem prevalecido contra mim? Contra mim evidentemente prevaleceram, mas não me tiraram o céu. O corpo de Cristo já estava na sepultura, e ainda o atacaram falsas testemunhas; não lhes bastou o que perpetraram no juízo, mas ainda o perpetraram no sepulcro. Os guardas do sepulcro aceitaram dinheiro para mentir, dizendo: Seus discípulos vieram de noite, enquanto dormíamos, e o roubaram (cf Mt 28,13).

A tal ponto os judeus estavam cegos que acreditaram numa palavra absolutamente inacreditável. Acreditaram em testemunhas que dormiam! Ou era falso que eles dormiam, e os judeus não deveriam acreditar em mentirosos; ou era verdade que dormiam, e não sabiam o que acontecera.

Hospedam-se e se escondem”.

Hospedem-se e escondam. O que conseguirão? “Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.



§ 10
Eles espreitarão o meu calcanhar”.

Efetivamente, eles se hopedam e se escondem para observar como o homem há de cair. Ficam atentos ao calcanhar, quando ocorrerá a queda para segurarem os pés que levem a ruína, ou estendem o pé para tropeço; certamente a fim de encontrarem o que acusar. E quem caminha de tal modo que nunca escorregue? Certamente é o que acontece logo também à língua, conforme está escrito:

Aquele que não peca no falar é realmente homem perfeito(Tg 3,2).

Enfim quem ousa dizer-se ou julgar-se a si mesmo perfeito? É, pois, necessário que se caia pela língua. Aqueles que se hospedam e se escondem captam todas as palavras, buscando armar laços e levantar calúnias capciosas, nas quais se envolvem primeiro aqueles que querem envolver os outros, de tal sorte que primeiro sejam apanhados e se percam os que querem apanhar os outros e perdê-los. Por isso, o homem volta-se para seu coração, e de lá recorre a Deus, dizendo:

Em Deus louvarei as minhas palavras”.

Seja o que for que proferi de bom, qualquer coisa verdadeira que falei, veio de Deus e foi a respeito dele. E tudo que talvez tenha dito e não devia, foi o homem que proferiu, mas com permissão de Deus. É ele quem corrobora o homem que anda, ameaça ao que erra, perdoa a quem perdoa, retifica a língua, chama de novo aquele que caiu. Pois, o justo cai sete vezes e se levanta, mas o ímpio se enfraquece nos males (cf Pr 24,10).

Por isso, não receemos os perseguidores astutos, caçadores de palavras, os que medem cada sílaba e são prevaricadores dos preceitos. Atende ao que censurar em ti, mas não cuida de acreditar em Cristo por teu intermédio. Atende às palavras daquele a quem repreendes, pois pode acontecer que ensinem algo de salutar. Mas o que me poderá ensinar de maneira salutar, dizes, quem de tal forma erra em palavra? Talvez te ensinará de modo salutar a não seres caçador de palavras, mas coletor de preceitos.

Eles espreitarão meu calcanhar”.



§ 11
Como suportou a minha alma”.

Digo o que suportei. Falava aquele que experimentara:

Como suportou a minha alma. Hospedem-se e se escondam”.

Suporte minha alma a todos: os que ladram de fora, os que se ocultam do lado de dentro. A tentação que vem de fora, vem como um rio; encontre a rocha contra a qual invista, mas não a derrube. A casa está construída sobre a rocha (cf Mt 7,25).

Está de dentro; hospede-se e se esconda. Como palha se acerque de ti. Entrem os bois para triturar, a tentação que triture; tu serás purificado, e ela esmagada.



§ 12
8 “Como suportou a minha alma. Por nada os salvarás”.

Ensinou também a orar por eles. Isto é, “hospedem-se e se escondam”, os dolosos, os fingidos e traiçoeiros. Ora por eles, e digas: Acaso Deus há de corrigir tal homem, tão mau, tão perverso? Não desesperes; olha para aquele a quem hás de rogar e não para aquele para quem rezas. Vias a gravidade da doença. Não vês a capacidade do médico? “Hospedem-se e se escondam. Como suportou minha alma”.

Suporta, reza: e o que há de acontecer? “Por nada os salvarás”.

Tu os salvarás, como se nada fosse, nada te custasse. Os homens perderam a esperança, mas tua palavra cura. Não é um esforço para ti esta cura, embora nós fiquemos estupefactos ao contemplá-la. O versículo pode ter outro sentido:

Por nada os salvarás”.

Salvá-los-ás sem méritos precedentes de sua parte. Conforme diz o Apóstolo:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente(1 Tm 1,13).

Recebera cartas dos sacedotes para prender os cristãos onde os encontrasse e os levasse presos (cf At 9,2).

Por conseguinte, mérito algum precedera; ao invés, os atos precedentes só mereciam condenação. Nada trouxe de bom, e no entanto foi salvo.

Por nada os salvarás”.

Não te trarão bodes, carneiros, touros, nem oferecerão dons e aromas em teu templo. Nada de bom derrama sua consciência. Tudo neles é áspero, tudo tétrico, tudo detestável. E enquanto eles nada oferecem que os possa salvar, “por nada os salvarás”, por tua graça inteiramente gratuita. O que trouxera o bom ladrão à cruz? Foi do desfiladeiro ao juízo, do julgamento ao madeiro, do madeiro ao paraíso (cf Lc 23,43).

Eu acreditei e por isso falei (cf Sl 115,1).

Mas quem foi que concedeu a própria fé senão aquele que estava crucificado no meio? “Por nada os salvarás”.



§ 13
Em tua indignação guiarás os povos”.

Tu te enco-lerizas e guias, enfureces e salvas, ameaças e chamas. O que significa:

Em tua indignação guiarás os povos?” Enches a todos de tribulações, a fim de que os homens aflitos a ti recorram, sem se deixarem seduzir pelos deleites e pela segurança perversa. Parece-te que o Senhor está cheio de ira, mas é de ira paterna. O pai se encoleriza contra o filho que despreza seus preceitos; irado o esbofeteia, bate, puxa a orelha, arrasta pela mão e o leva à escola. Em tua indignação guiarás os povos. Quantos entraram, quantos encheram a casa do Senhor, guiados pela ira, isto é, aterrorizados pelas tribulações, encheram-se de fé! A tribulação sacode para isto: que o vaso cheio de maldade se esvazie, a fim de que a graça o encha.

Em tua indignação guiarás os povos”.



§ 14
9 “Ó Deus, narrei-te minha vida”.

Fizeste com que eu vivesse, e é por isso que te narro minha vida. Então Deus ignora o que havia dado? Que é que lhe contas? Queres ensinar a Deus? De forma alguma. Então, por que é que diz:

narrei-te”? Ou talvez: Que te importa se te narro minha vida? E que é que importa a Deus? Adianta enquanto é riqueza de Deus. Narrei-te minha vida, ó Deus, porque me fizeste viver. Da mesma maneira que narrou o apóstolo Paulo, dizendo:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente”! Narre sua vida:

Mas obtive misericórdia(1 Tm 1,13).

Narrou sua vida, não para si mesmo, mas para Deus, porque a narrou para confiá-la a Deus; não para seu lucro, mas para o de Deus. Ora, Cristo morreu e ressuscitou, “a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressucitou por todos(2 Cor 5,15).

Se, pois, vives, mas não tens a vida por ti mesmo, porque tua vida é dom de Cristo, narras tua vida, não por ti, mas por ele. Não procures teus interesses, não vivas para ti mesmo, mas por aquele que morreu por todos. Em verdade, como se exprime o mesmo Apóstolo sobre alguns réprobos? “Procuram atender os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo(Fl 2,21).

Se, portanto, narras tua vida em teu proveito, e não no de outros, narra por tua própria causa e não por Deus. Se, contudo, narras tua vida a fim de convidares os outros a abraçarem a vida que recebeste, narras tua vida àquele do qual a recebeste, e terás maior recompensa, porque não foste ingrato ao dom recebido.

Ó Deus, narrei-te minha vida. Puseste em tua presença as minhas lágrimas”.

Ouviste-me quando te supliquei.

Segundo prometeste”.

Agiste de acordo com tua promessa. Disseste que haverias de ouvir as lágrimas. Acreditei, chorei, fui ouvido. Encontrei-te cheio de misericórdia ao prometer, veraz, ao cumprir.

Segundo prometeste”.



§ 15
10 “Voltem-se para trás meus inimigos”.

Isto é bom para eles. Não lhes desejas o mal; queriam ir à frente, portanto, não querem se corrigir. Admoestas teu inimigo, para que viva corretamente e se corrija. Ele despreza, rejeita tua palavra: Eis aí quem me admoesta, eis aí de quem devo ouvir as ordens para viver! Quer te preceder, e precedendo não se corrige. Não percebe que tuas palavras não são tuas. Não percebe que narras tua vida, não por causa de ti mesmo, mas por Deus. Indo à frente, portanto, não se corrige. Seria bom para ele voltar atrás, e seguir aquele que ele queria preceder. Quando o Senhor falava de sua futura paixão aos discípulos, Pedro horrorizado disse:

Deus não o permita, Senhor! Isso jamais acontecerá”.

Pouco antes, ele declara:

Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

Confessou que ele era Deus e teve medo de que morresse, como homem. O Senhor, todavia, que viera para sofrer (nem seriam salvos de outro modo senão redimidos por seu sangue), pouco antes louvara a confissão de Pedro, dizendo:

Não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus”.

Vede como realizou uma confissão verdadeira, piedosa, cheia de confiança:

Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

Logo em seguida o Senhor começou a falar de sua paixão. Teve receio de que ele perecesse morrendo, e no entanto nós é que pereceríamos se ele não morresse. Então, disse:

Deus não o permita, Senhor. Isso jamais acontecerá”.

E o Senhor que acabara de lhe dizer:

Bem- aventurado és, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”, replicou-lhe:

Arreda-te de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço”.

Mas, por que motivo chama de Satanás aquele que anteriormente denominara bem-aventurado e pedra? “Porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens(Mt 16,16-23).

Acima se tratava das coisas de Deus:

porque não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus”.

Quando louvava em Deus suas palavras, não era Satanás, mas Pedro, derivado de pedra; quando, porém, falava de acordo com a fraqueza humana, por amor carnal, pondo um impedimento a sua salvação e a de outro, foi denominado Satanás. Por que razão? Porque queria preceder o Senhor, e dar um conselho terreno ao celeste guia.

Deus não o permita, Senhor. Isso jamais acontecerá”.

Dizes:

Deus não o permita”, e acrescentas:

Senhor”.

Em verdade, se é senhor, tem poder. Se é mestre, sabe o que faz, o que ensina. Tu, porém, queres conduzir o guia, ensinar ao mestre, ordenar ao Senhor, escolher para Deus. Precedes demais.

Arreda-te”.

Acaso não conviria… a estes inimigos ir para trás? “Voltem-se para trás meus inimigos”, mas não fiquem atrás. Voltem para trás para não precederem. Mas para seguirem e não para ficarem atrás.

Voltem-se para trás meus inimigos”.



§ 16
Em qualquer dia em que eu te invocar, bem sei que és o meu Deus”.

Grande ciência! Não afirmou: Sei que és Deus, mas:

que és o meu Deus”.

É teu, pois te socorre; é teu, pois não és alheio a ele. Daí vem a palavra:

Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus(Sl 143,15).

Por que:

tem o Senhor por seu Deus?” De quem ele não o é? De fato, Deus é de todos; mas propriamente diz-se que é Deus dos que o amam, dos que o possuem, dos que o têm, dos que o adoram. São estes de sua casa, de sua grande família, redimidos pelo precioso sangue do Filho único. Quanto Deus nos deu, ao querer que fôssemos dele e ele fosse nosso! Ao contrário, os estrangeiros que se afastaram dos santos, são filhos dos estranhos. Vede o que outro salmo afirma a respeito deles:

Livra-me, Senhor, da mão dos filhos dos estranhos, cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua”.

E vê em que altura estão, mas altura do dia, isto é, a soberba temporal.

Seus filhos são sarmentos novos. Sua filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo”.

O salmo descreve a felicidade do século presente, durante o qual os homens se enganam e a têm por grandiosa, enquanto descuram da felicidade verdadeira e eterna. Daí provêm, portanto, que estes são filhos estrangeiros, e não filhos de Deus:

Seus filhos são sarmentos novos”.

Suas filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transbordantes de toda espécie de frutos. Seus bois são cevados. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Não há brechas nas sebes, nem ruína ou clamor em suas praças”.

E como conclui? “Eles denominam feliz quem goza destes bens”.

Quem foi que disse isto? Os filhos dos estranhos, “cuja boca falou o que é vão”.

Tu, porém, que dizes? “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus(Sl 143,11-15).

O salmista põe de lado tudo o que Deus dá e apresenta o próprio Deus. Efetivamente, irmãos, tudo o que os filhos dos estranhos referiram é Deus quem dá; mas dá também aos estranhos, dá aos maus, dá aos blasfemos aquele que faz o seu sol se levantar sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (cf Mt 5,45).

Por vezes, Deus dá destes bens aos bons, e por vezes não dá; e aos maus às vezes dá, outras vezes não dá; mas ele reserva aos bons a si mesmo e aos maus, o fogo eterno. Existe, portanto, um mal que ele não envia aos bons, e existe um bem que não dá aos maus; e existem coisas boas e más, que são intermédias, as quais dá aos bons e aos maus.



§ 17
Amemos, portanto, a Deus, irmãos, pura e castamente. O coração não é casto se honra a Deus por causa da recompensa. E então? Não receberemos recompensa do culto que prestamos a Deus? Receberemos, certamente, mas trata-se do próprio Deus a quem cultuamos. Ele será a nossa recompensa, porque o veremos como ele é (cf 1Jo 3,2).

Nota que receberás uma recompensa. Que promete nosso Senhor Jesus Cristo àqueles que o amam? “Quem tem os meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei”.

E por isso, que lhe darás? “E a ele me manifestarei(Jo 14,23).

Se não amas, parece-te pouco. Se amas, se suspiras, se cultuas gratuitamente aquele por quem foste gratuitamente redimido, pois não o mereceste, se suspiras ao considerares seus benefícios em teu favor, e tens o coração inquieto a anelar por ele, não procures coisa alguma fora dele. Deus te basta. Por mais avaro que sejas, Deus te basta. Com efeito, a avareza queria possuir toda a terra e mais o céu. Maior é aquele que fez o céu e a terra. Direi mais, irmãos. Ponderai através do exemplo do que se passa nos casamentos humanos o que é ter um coração casto relativamente a Deus. Sem dúvida, existem casamentos humanos. Não ama a esposa quem a ama por causa do dote. Não ama castamente o marido aquela que o ama porque lhe fez um presente qualquer, ou porque deu-lhe muito. Tanto é marido o rico, como aquele que se tornou pobre. Quantos proscritos foram mais amados por suas castas esposas? Muitos casamentos provaram que são castos pelas calamidades que sobrevieram aos maridos. Para que não se pensasse que amavam alguma coisa mais do que o marido, não somente não o abandonaram, antes o seguiram melhor. Se, por conseguinte, o marido carnal é amado gratuitamente quando é amado castamente; e a esposa carnal grátis é amada quando é amada castamente, como não se deve amar a Deus verdadeiro e veraz esposo da alma, que a torna fecunda em filhos para a vida eterna, e não a deixa estéril? Por isso, amemo-lo de forma que não seja amada outra coisa fora dele; e se realizará em nós o que dissemos, o que cantamos, pois é nossa esta palavra:

Em qualquer dia em que eu te invocar bem sei que és o meu Deus”.

Invocar a Deus é chamá-lo gratuitamente. Por isto, que se disse de alguns? “Não invocaram o Senhor”.

Pareciam invocar o Senhor, e no entanto, pediam-lhe herança, mais dinheiro, vida prolongada, bens temporais; e que diz deles a Escritura? “Não invocaram o Senhor”.

Qual a conseqüência disso? “Tremeram de medo, quando não havia o que temer(Sl 13,5).

Que significa:

quando não havia o que temer?” Que eles temiam lhes fosse tirado o dinheiro, que diminuísse algo em sua casa; enfim que tivessem menos anos de vida do que esperavam. De fato, “tremeram de medo, quando não havia o que temer”.

Tais foram aqueles judeus que diziam:

Se o deixarmos assim, os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação (Jo 11,48).

Tremeram de medo, quando não havia o que temer. Bem sei que és o meu Deus”.

Grande riqueza do coração, intensa luz dos olhos interiores, grande confiança e segurança! “Bem sei que és o meu Deus”.



§ 18
11 “Em Deus louvarei as minhas palavras. Em Deus confio, não temerei o que me poderá fazer um mortal”.

Já expliquei o sentido deste versículo, repetição de outro mais acima.



§ 19
12 “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei”.

Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri-os (cf Sl 75,12).

Que votos deveis fazer? Como cumpri-los? Oferecendo aqueles animais, como se fazia outrora, nos altares? Nada disso; encontra-se em ti o que deves prometer e cumprir. Da arca do coração tira o incenso de louvor, do celeiro da boa consciência retira o sacrifício da fé. Seja o que for que ofereceres, queima-o com caridade. Em ti estejam os votos que cumprirás em louvor a Deus. Que louvor? Que te concedeu ele? “Porque da morte livraste a minha alma”.

Esta é a vida que o salmista narra a Deus:

Ó Deus, narrei-te minha vida”.

Como estava eu? Morto. Por mim mesmo estava morto; por tua ação, como estou? Vivo. Portanto, em mim, “ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei”.

Então, amo o meu Deus. Ninguém me tira. Ninguém me tira o que devo dar a ele, porque está encerrado no meu coração. Com razão, disse o salmista mais acima, com confiança:

O que me poderá fazer um mortal?” Que o homem se enfureça, seja-lhe permitido encarniçar-se, seja-lhe lícito fazer aquilo em que se empenha; que pode tirar? Ouro, prata, rebanho, escravos, escravas, propriedades, casas. Tire tudo! Acaso tirará os votos que estão em mim, que cumprirei em louvor a Deus? Foi permitido ao tentador tentar o santo varão Jó; num instante tirou-lhe tudo, arrebatou-lhe todas as riquezas, retirou-lhe a herança, matou os herdeiros; e isso não progressivamente ou separadamente, mas de um só golpe, um só ataque, de sorte que tudo lhe fosse anunciado de repente. Tendo perdido tudo, Jó ficou sozinho; mas nele estavam os votos de louvor a Deus que cumpriria; de fato nele estavam. O diabo ladrão não invadira a arca do peito sagrado, que estava cheio do que ele sacrificaria. Ouve o que tinha, ouve o que proferiu:

O Senhor deu, o Senhor tirou; como agradou ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor(cf Jó 1,12-21).

Oh ri-quezas interiores, às quais o ladrão não tem acesso! O próprio Deus dera aquilo que receberia. Ele enriquecera a Jó, e desse tesouro era-lhe oferecido aquilo que ele amava. Deus quer teu louvor, Deus procura a tua confissão. Mas, haverá de dar alguma coisa de teu campo? Foi ele quem fez chover para que a tivesses. Tirarás de teu tesouro? Ele mesmo forneceu o que darás. Que podes dar que não tenhas recebido dele? Pois, o que tens que não tenhas recebido? (cf 1Cor 4,7).

Darás de teu coração? Ele te deu a fé, a esperança e a caridade; é isto que podes obter de lá para sacrificar. Em verdade, o inimigo pode te arrebatar, contra tua vontade, tudo mais; essas três virtudes, porém, só pode tirar de quem o quiser. As primeiras coisas perde alguém mesmo contra a sua vontade: ele quer ter o ouro e o perde; quer ter a casa, e a perde. A fé, ao invés, ninguém a perde se não a tiver desprezado.



§ 20
13 “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei. Porque da morte livraste a minha alma, os meus olhos das lágrimas, da queda os meus pés, para que agrade a Deus na luz dos vivos”.

Com razão não lhe agradam os filhos estrangeiros que se afastaram dos santos, que não têm a luz dos vivos, de modo que vejam o que a Deus apraz. Luz dos vivos é a luz dos seres imortais, a luz dos santos. Quem não se acha nas trevas agrada na luz dos vivos. Observa-se o homem e o que possui, mas ninguém sabe como ele é; Deus vê de que espécie é. Às vezes, isto fica oculto até ao próprio diabo. Se ele não tentar não sabe como aconteceu em relação a este homem que há pouco citei. Deus o conhecia, e dava testemunho sobre ele; o diabo não o conhecia e por isso dissera:

É em vão que Jó teme a Deus”? (Jó 1,9).

Olhai como o inimigo provoca: ali se acha a perfeição. Vede que objeção levanta o inimigo. Via Jó servir a Deus, obediente em tudo, fazendo o bem; e como era rico e tinha uma família muito feliz, replica que ele adorava a Deus porque lhe dera tudo isso:

É em vão que Jó teme a Deus?” A verdadeira luz, a luz dos vivos estaria em cultuar a Deus gratuitamente. Deus via no coração de seu servo o culto gratuito. Aquele coração era aprazível na presença do Senhor, na luz dos vivos; ao diabo isso estava oculto, porque estava nas trevas. Deus admitiu o tentador, mas não para que conhecesse o que bem sabia, e sim para que nós ficássemos cientes e nos servisse de exemplo. Se o tentador não tivesse acesso, veríamos em Jó o que deveríamos e desejaríamos imitar? O tentador teve permissão. Tirou tudo. Ele ficou sozinho, sem as riquezas, sem a família, sem os filhos, mas repleto de Deus. De fato, a mulher lhe fora deixada. Pensais que foi misericórdia do diabo ter-lhe deixado a mulher? Ele sabia muito bem que por ela enganara Adão. Deixara, pois, a sua auxiliar, não a consoladora do marido. Este, portanto, estava repleto de Deus; nele estavam os votos de louvor que cumpriria, a fim de demonstrar que servia gratuitamente a Deus e não porque dele recebera tanto. Privado de tudo, permaneceu tal que não perdeu aquele que tudo lhe dera:

O Senhor deu, o Senhor tirou; como agradou ao Senhor, assim se fez; bendito o nome do Senhor”.

Ferido dos pés à cabeça, contudo íntegro, interiormente, respondeu à tentadora, iluminado pela luz dos vivos, a luz de seu coração:

Falas como uma insensata(Jó 2,10), isto é, como alguém que não possui a luz dos vivos. Pois, a luz dos vivos é a sabedoria, e as trevas dos insensatos são a estultície.

Falas como uma insensata”.

Vês minha carne, mas não vês a luz de meu coração. Ela poderia, então, ter maior amor ao esposo se conhecesse sua beleza interior e fitando o que o fazia belo aos olhos de Deus; pois nele estavam os votos de louvor do Senhor que ele cumpriria. O inimigo não invadira aquele patrimônio! Quão íntegro era o que possuía! E para possuí-lo cada vez mais, esperava ir de virtude em virtude. Por conseguinte, irmãos, aproveitemos todos esses ensinamentos: amemos a Deus gratuitamente, nele sempre confiemos, não temamos homem algum, nem o diabo. Nem aquele, nem este pode fazer-nos mal algum, se não lhes for permitido. E essa permissão só pode ser para nosso bem. Toleremos os maus, sejamos bons, porque também já fomos maus. Por nada Deus salvará a todos aqueles a respeito dos quais ousamos perder a esperança. Por isso, não desanimemos a respeito de ninguém. Rezemos por todos que nos fazem sofrer, nunca nos apartemos de Deus. Seja ele mesmo o nosso patrimônio, seja nossa esperança, seja nossa salvação. Aqui na terra ele é nosso consolador, lá no céu será o remunerador, em toda a parte é vivificador e doador de vida; não de qualquer vida, mas daquela à qual o Senhor se referiu:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida(Jo 14,6).

Aqui à luz da fé, lá à luz da visão, luz dos vivos, possamos ser agradáveis na presença do Senhor.