ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 54 | ||
§ 54:1 | ᶊ Salva-me, ó Deus, pelo teu nome, e faze-me justiça pelo teu poder. | |
§ 54:2 | Ơ Ó Deus, ouve a minha oração, dá ouvidos às palavras da minha boca. | |
§ 54:3 | Ꝓ Porque homens insolentes se levantam contra mim, e violentos procuram a minha vida; eles não põem a Deus diante de si. | |
§ 54:4 | ⱻ Eis que Deus é o meu ajudador; o Senhor é quem sustenta a minha vida. | |
§ 54:5 | Ƒ Faze recair o mal sobre os meus inimigos; destrói-os por tua verdade. | |
§ 54:6 | Ɗ De livre vontade te oferecerei sacrifícios; louvarei o teu nome, ó Senhor, porque é bom. | |
§ 54:7 | Ꝓ Porque tu me livraste de toda a angústia; e os meus olhos viram a ruína dos meus inimigos. | |
O SALMO 54 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 O título do presente salmo é o seguinte: “Para o fim. Entre hinos. Inteligência. De Davi”. Relembramos brevemente o que significa fim, porque já o sabeis. “O fim da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Dirija-se nossa intenção para o fim, para Cristo. Por que se lhe dá o nome de fim? Porque referimos a ele tudo o que fazemos; e ao chegarmos a ele, já não teremos o que procurar além. Há um fim de consumo e outro que é aperfeiçoamento. Entendemos a palavra no primeiro sentido, quando se nos diz: Acabou-se o alimento que se comia; e no sentido diverso, quando ouvimos: Está terminada a veste que se tecia. Em ambos os casos se fala de um termo, mas a comida acabou para não existir mais, e a veste para estar pronta. Nosso fim, por conseguinte, deve ser nossa perfeição e nossa perfeição é Cristo. Nele encontramos a perfeição, porque somos membros daquela Cabeça. E foi denominado fim da Lei, porque sem ele ninguém cumpre a Lei. Ao ouvirdes, portanto, num salmo: “Para o fim”, e muitos salmos têm esta inscrição, não cogiteis de consumo, mas de consumação. | |
§ 2 | “Entre hinos”, com louvores. Quer estejamos aflitos e angustiados, quer alegres e exultantes, devemos louvar aquele que nas tribulações instrui, e na alegria consola. Não se afaste do coração e da boca do cristão o louvor de Deus. Não louve só na prosperidade, e maldiga na adversidade, mas faça conforme prescreve aquele salmo: “bendirei o Senhor em todo tempo; seu louvor estará sempre em minha boca”. Estás alegre: reconhece as carícias de um pai; estás aflito: vê nisso o castigo de um pai que emenda. Quer acaricie, quer corrija, instrui ao futuro herdeiro. | |
§ 3 | Qual o significado destas expressões: “Inteligência. De Davi?” Com efeito, Davi era, como sabemos, santo profeta, rei de Israel, filho de Jessé (1Rs 16,18); mas como de sua descendência segundo a carne nos veio, para nossa salvação, nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 1,3), freqüentemente este é representado pelo nome de Davi. Davi serve de figura de Cristo, por causa de sua estirpe carnal. Pois, segundo uma natureza é filho de Davi e segundo outra é Senhor de Davi. Filho de Davi segundo a carne, Senhor de Davi segunda a divindade. Se, pois, por ele tudo foi feito (Jo 1,3), por ele também o próprio Davi, de cuja descendência ele veio para os homens, foi feito. Em conseqüência disso, quando o Senhor interrogou os judeus, de quem eles diziam que o Cristo seria filho, eles “responderam: de Davi”. Viu que eles pararam na carne, e não perceberam a divindade; corrige-os, propondo-lhes uma questão: “Como então Davi lhe chama Senhor, falando sob inspiração, ao dizer: O Senhor disse ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés? Ora, se Davi em espírito lhe chama Senhor, como pode ser seu filho?” (Mt 22,42-45). Propôs a questão, mas não negou a filiação. Ouvistes que é Senhor; dizei como é filho. Ouvistes que é filho; explicai como é Senhor. A fé católica solucionou este problema. Como é Senhor? É Senhor, porque “no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Como é filho? Porque “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,1.14). Por conseguinte, Davi é figura de Cristo. Cristo, porém, como freqüentes vezes relembramos a V. Caridade, é Cabeça e corpo. Não devemos dizer-nos alheios a Cristo, cujos membros somos, nem nos contarmos entre estranhos, porque “serão dois numa só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja” (Ef 5,31.32), na expressão do Apóstolo. Uma vez que o Cristo total é Cabeça e corpo, ao ouvirmos os termos: “Inteligência. De Davi”, entendamos que também nós estamos representados em Davi. Entendam os membros de Cristo, e em seus membros vejam a Cristo e em Cristo vejam seus membros, porque Cabeça e corpo formam um só Cristo. A Cabeça estava no céu e dizia: “Por que me persegues?” (At 9,4). Nós estamos com ele no céu pela esperança, e ele está conosco na terra pela caridade. Por isso: “Inteligência. De Davi”. Trata-se de uma admoestação para ouvirmos e entenda a Igreja. Compete-nos empregar o maior cuidado para entendermos como estamos mergulhados no mal e do qual desejamos ser libertados, lembrando-nos da oração do Senhor, em cujo final rezamos: “Livra-nos do mal” (Mt 3,13). Em vista disso, no meio de muitas tribulações neste mundo, deplora algo este salmo de inteligência. Não se lamenta com ele somente quem não tem entendimento. Aliás, caríssimos, devemos nos recordar de que fomos feitos à imagem de Deus, imagem que se encontra no intelecto. Pois, os animais nos superam em muitos pontos; mas como o homem sabe que foi criado à imagem de Deus, vê que ali existe algo mais que não foi dado aos animais. Se considerarmos todas as coisas que o homem possui, veremos que propriamente se distingue do animal por ter intelecto. Daí repreender o Criador a alguns que desprezam em si o que lhes é peculiar e o principal dom do Criador, dizendo: “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência” (Sl 31,9). E em outra passagem diz o salmista: “O homem entre honrarias”. A que honras se refere, senão a de ter sido feito à imagem de Deus? Portanto, “o homem entre honrarias, não entendeu. Foi comparado aos jumentos irracionais e se lhes fez semelhante” (Sl 48,13). Reconheçamos, portanto, e entendamos a nossa honra. Se entendermos, veremos que não estamos num lugar de alegrias, e sim de gemidos; ainda não de exultação, mas de choro. Embora em nosso coração habite certa espécie de alegria, ainda não é na realidade, mas em esperança. Alegramo-nos com a promessa, porque sabemos que não falha aquele que prometeu. Quanto ao tempo presente, ouvi no meio de que males, em angústias nos achamos; e se vos mantiverdes neste caminho, reconhecei em vós aquilo que ouvis. Quem ainda não trilha o caminho da piedade, admira-se de que assim gemam os membros de Davi; não vê tais coisas em si. Enquanto não vê em si tais coisas ainda não se encontra no caminho; não sente o que sente o corpo, porque se acha fora dele; incorpore-se e há de sentir. Diga, portanto, o corpo e ouçamos, e ouçamos e digamos também: | |
§ 4 | 2.3 “Ouve, Senhor, a minha súplica e não desprezes a minha prece. Atende-me e escuta-me”. São palavras peculiares a quem está preocupado, solícito, atribulado. Reza porque está sofrendo muito, e desejoso de se libertar de seus males. Resta que ouçamos qual o seu mal. E ao começar a descrevê-lo, verifiquemos que também dele sofremos, de sorte que participando da aflição, reunamo-nos na oração. “Invadiu-me a tristeza em minha prova e fiquei conturbado”. Porque entristecido? Por que razão conturbado? “Em minha prova”. Vai se referir aos maus que suporta, e chama de prova a este sofrimento que lhe advém da parte dos maus. Não penseis que é inutilmente que existem homens malvados neste mundo, e que Deus não retire disso bem algum. Cada malvado vive para se corrigir, ou vive para exercitar a paciência dos bons. Oxalá os que agora nos exercitam a paciência se convertam e conosco sejam provados; no entanto, enquanto continuam a ser tais que nos servem de provação, não os odiemos, porque apesar de serem maus, não sabemos se assim hão de perseverar até o fim e muitas vezes, enquanto pensamos odiar um inimigo, odiamos sem o saber a um irmão. As Sagradas Escrituras nos revelam que o diabo e seus anjos são destinados ao fogo eterno. Só não devemos esperar a correção daqueles contra os quais temos luta oculta, e para cuja luta nos previne o Apóstolo, ao dizer: “O nosso combate não é contra o sangue e a carne”, isto é, contra os homens que vemos, “mas contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6,12). No intuito de evitar que se entenda com tal expressão mundo do qual os demônios são os dominadores do céu e da terra, chama “as trevas de mundo”, chama de “mundo” os que amam o mundo, denomina “mundo” os ímpios e iníquos, “mundo” aquilo que é mencionado no evangelho: “O mundo não o conheceu” (Jo 1,10). Se o mundo não conheceu a luz, porque esta brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam, e as próprias trevas que não compreenderam a luz presente recebem o nome de mundo, os demônios são os dominadores destas trevas. Temos determinada sentença da Escritura a respeito destes dominadores, a saber, que deles absolutamente não se pode esperar conversão alguma. Quanto, porém, às trevas de que são eles os dominadores, não temos certeza de que não seja possível que as trevas se transformem em luz. Afirma o Apóstolo aos fiéis convertidos: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8): trevas em vós mesmos, luz no Senhor. Portanto, irmãos, todos os maus, enquanto são maus servem para exercitar os bons. Em resumo, ouvi e entendei. Se és bom, terás por inimigos apenas os maus. No entanto, tens aquela regra predeterminada de bondade, isto é, que imites a bondade de teu Pai que “faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). Não quer dizer que tu tens inimigos, e Deus não. Tens por inimigo alguém que como tu foi criado; ele, porém, tem por inimigo uma criatura sua. Lemos freqüentemente nas Escrituras que os maus e iníquos são inimigos de Deus. Contudo, poupa-os aquele a quem o inimigo nada pode imputar. Todo inimigo seu é um ingrato, pois recebeu dele tudo de bom que tem. Tudo que dele recebe é misericórdia, mesmo aquilo que aflige. É afligido para não se ensoberbecer; é atribulado para que humildemente reconheça que Deus é excelso. Tu, porém, que não toleras teu inimigo, o que lhe deste? Se Deus tem por inimigo aquele a quem tanto beneficiou e “faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e cair a chuva sobre justos e injustos”, tu que não podes fazer o sol nascer, nem cair a chuva sobre a terra, não podes reservar para teu inimigo, apenas que haja paz na terra aos homens de boa vontade (cf Lc 2,14)? Por conseguinte, tal regra de amor te é dada, a fim de que imitando o Pai ames o inimigo: “Amai os vossos inimigos” (Lc 6,27.35). Como praticarás este preceito se não suportares inimigo algum? Vês, portanto, que te é útil de algum modo. O fato de Deus poupar os maus, seja-te proveitoso para exerceres a misericórdia, porque também tu, se és bom, eras mau e te tornaste bom. Se Deus não poupasse os maus, nem tu te apresentarias, com ações de graças. Perdoe também aos outros, portanto, aquele que te perdoou a ti. Se passaste, não interceptes o caminho da piedade. | |
§ 5 | 4 Como então é a oração do salmista, que se encontra no meio de homens maus, cujas inimizades exercitam sua paciência? Como se exprime? “Invadiu-me a tristeza em minha prova e fiquei conturbado”. Tendo estendido seu amor até o ponto de amar os inimigos, foi atingido de tédio por causa das inimizades de muitos, da raiva dos que ladravam a seu redor, e sucumbiu devido a certa franqueza humana. Verifica que começa a penetrar em si a sugestão do diabo de que odeie os inimigos. Relutando entre o ódio e a prática do amor perturba-se nessa luta. Faz sua a palavra de outro salmo: “Tenho os olhos turvados de ira”. E como prossegue? “Envelheci em meio de todos os meus inimigos” (Sl 6,8). Dentro da tempestade, começara a submergir como Pedro (Mt 14,30). Quem ama os inimigos calca as ondas deste mundo. Cristo caminhava intrépido pelas águas do mar, pois de seu coração de forma alguma podia ausentar-se o amor aos inimigos. Pendente da cruz, dizia: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Pedro também quis andar sobre as ondas. Cristo, enquanto Cabeça, Pedro enquanto corpo, pois “sobre esta pedra”, diz o Senhor, “edificarei minha Igreja” (Mt 16,18). Pedro recebeu ordem de andar, e caminhava sobre as ondas pela graça de quem lhe deu esta ordem, não por suas próprias forças. Mas quando sentiu a força do vento, teve medo; e já começava a submergir, perturbado em sua prova. Que vento forte era esse? “A voz do inimigo e a perseguição do pecador.” Por isso, como ele clamou entre as ondas: Senhor, estou perecendo, salva-me (Mt 14,3-30), assim também o salmista emite primeiro as palavras: “Ouve, Senhor, a minha súplica e não desprezes a minha prece”. Qual o motivo? Qual o teu sofrimento? Por que gemes? “Invadiu-me a tristeza em minha prova”. Submeteste-me à prova da parte dos maus, e esta sobreveio acima de minhas forças. Tranqüiliza, Senhor, aquele que está perturbado, estende a mão ao que está afundando. “Invadiu-me a tristeza em minha prova e fiquei conturbado pelos gritos do inimigo e a perseguição do pecador. Porque lançaram males contra mim e furiosos me cercaram de sombras”. Ouvistes a referência a ondas e ventos. Atacavam o que fora humilhado, mas ele orava; de toda parte furiosos gritos e insultos, enquanto ele interiormente invocava aquele que os inimigos não viam. | |
§ 6 | Ao padecer um cristão coisa semelhante, não deve facilmente enfrentar com ódio aquele que o faz sofrer, nem se deixar vencer pelo vento, mas deve voltar-se para a oração a fim de não perder a caridade. Nem fique receoso de que o inimigo lhe arme alguma cilada. Que pode ele fazer? Falar muito mal, lançar injúrias, enfurecer-se com ultrajes. Mas, que te importas? “Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12). Na terra o inimigo redobra de injúrias, mas tu lucras no céu. Mas pode enfurecer-se ainda mais, pode fazer mais. Que segurança maior pode haver que a tua, se te foi dito: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma?” (Mt 10,28). Que há de temível quando o inimigo te ataca? Não se perturbe o amor com o qual amas o inimigo. Efetivamente, aquele homem inimigo, de carne e sangue, ambiciona o que vê em ti. Mas, existe outro inimigo oculto, o dominador das trevas do qual suportas dores na carne e no sangue; ele ambiciona outro bem teu que é oculto. Empenha-se em depredar e devastar teus tesouros interiores. Coloca, por conseguinte, dois tipos de inimigos diante de teus olhos: um às claras e outro às escondidas; às claras um homem; às ocultas o diabo. Este homem é igual a ti segundo a natureza humana, mas segundo a fé e a caridade ainda não é, mas poderá vir a ser. Sendo dois, vê a um e entende quem é o outro; ama o primeiro e precavém-te do segundo. O inimigo visível quer diminuir-te naquilo em que o superas. Por exemplo, se o superas nas riquezas, quer fazer-te pobre; se em honra, quer humilhar-te; se em forças, quer enfraquecer-te; tenciona derrubar ou tirar aquilo em que o vences. Também aquele inimigo oculto quer te roubar aquilo em que o vences. Sendo homem, vences a outrem pela felicidade humana, o diabo, porém, vences pelo amor ao inimigo. Como o homem ambiciona tirar-te, detruncar ou derrubar a felicidade em que o superas, assim também o diabo quer vencer roubando aquilo que o vence. Então, cuida de conservar no coração o amor ao inimigo, que vence o diabo. O homem se enfurece quanto puder, tire o que puder; se for amado o furioso às claras, quem se enfurece às ocultas está vencido. | |
§ 7 | 5 Mas o salmista orava conturbado e contristado, como se tivesse os olhos turvos pela cólera. Se a ira contra um irmão for inveterada já se transformou em ódio. A ira turva os olhos, o ódio os extingue; a ira é um argueiro e o ódio uma trave no olho. Por vezes tens ódio e corriges um irmão irado; em ti há ódio e naquele a quem corriges existe ira; com razão se te dirá: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Mt 7,5). Para perceberes a diferença entre ira e ódio, pensa que todos os dias se vêem pais irados contra os filhos; apresenta-me quem odeie seu filho. O salmista orava conturbado e constristado, em luta contra as ofensas de seus injuriadores. Não o fazia para vencê-los, retribuindo-lhes as injúrias, mas para a nenhum deles odiar. Daí provém que ora e suplica diante “dos gritos do inimigo e a perseguição do pecador. Porque lançaram males contra mim e furiosos me cercaram de sombras. O coração se me agitou no peito”. É idêntico ao que foi dito noutro lugar: Tenho os olhos turvados de ira (Sl 6,8). E se os olhos se turvaram, qual foi a conseqüência? “Invadiu-me pavor de morte”. Nossa vida é a caridade; se a caridade é vida, o ódio é morte. O homem, ao começar a ter medo de odiar aquele a quem amava, teme a morte; e morte mais cruel, morte interior, que mata a alma, não o corpo. Percebias que alguém estava furioso contra ti; que poderia fazer aquele contra o qual o Senhor te dera segurança, ao dizer: “Não temais os que matam o corpo” (Mt 10,28). Se ele se encarniça, mata o corpo; tu, porém, com o ódio matas tua alma; ele mata o corpo de outro, mas tu a tua própria alma. “Invadiu-me pavor de morte”. | |
§ 8 | 6.7 “Temor e tremor se aponderaram de mim e trevas me envolveram. E eu disse”: Quem odeia seu irmão, está nas trevas até agora (cf 1Jo 2,9-11). Se o amor é luz, o ódio é treva. E como fala a si mesmo aquele que se sente tão fraco e perturbado nesta provação? “Quem me dará asas como as da pomba, para voar e repousar?” Desejava a morte ou a solidão. Diz ele: Enquanto isso se passa em mim, recebo o preceito de amar os inimigos; e as injúrias deles aumentam e me cercam de sombras, turvam meus olhos, diminuem minha luz, atacam meu coração, matam-me a alma. Queria fugir, mas sou fraco. Que não aumentem meus pecados, se eu permanecer aqui. Ou então, separar-me-ei do gênero humano, para não reabrir freqüentemente minhas feridas, e curado voltar a enfrentar a prova. Isso acontece, meus irmãos. Surge muitas vezes no ânimo do servo de Deus o desejo da solidão, por nenhum outro motivo senão porque atacam-no muitas atribulações e escândalos; e ele diz: “Quem me dará asas?” Ele se vê sem asas, ou melhor, as asas estão amarradas? Se não tem, que lhe dêem; se estão presas, que se soltem. Quem solta as asas de uma ave, dá-lhe ou devolve-lhe as asas. Não as tinha como suas, porque não podia usá-las para voar. Asas amarradas são um peso. “Quem me dará penas como as da pomba para voar e descansar?” Descançar, mas onde? A expressão pode ter dois sentidos. O primeiro seria conforme se exprime o Apóstolo: “Partir, ir e estar com Cristo, isso me é muito melhor” (Fl 1,23). Com efeito, embora ele fosse forte, grande, firme de coração, soldado de Cristo invicto, perturbou-se em sua provação, conforme lemos, e disse: “Doravante ninguém mais me moleste” (Gl 6,17). Parece repetir a palavra de outro salmo: “Senti tédio por causa dos pecadores que abandonam a tua lei” (Sl 118,53). Esforça-se alguém muitas vezes por corrigir os homens no erro, que são maus, e lhe estão confiados; mas revelam-se inúteis todos os esforços e vigilância. Não pode corrigir e tem de suportar. E este incorrigível é dos teus, seja por pertencer ao gênero humano, ou não raro por estar em comunhão com a Igreja. É de dentro. Que farás? Para onde fugires? Para onde te isolar, a fim de não suportares tudo isso? Ao contrário. Apresenta-te, fala, exorta, atrai, ameaça, repreende. Mas, fiz tudo isso. Gastei todas as minhas forças, falei e em nada adiantou. Esgotaram-se os esforços e ficou o pesar. Como há de descansar meu coração de tudo isso, a não ser que diga: “Quem me dará asas? Como as da pomba”, porém; não do corvo. A pomba procura voar para longe das aflições, mas não perde a caridade. A pomba é usada como sinal de amor. Ela gosta de gemer. Ninguém tão amigo de gemidos como a pomba; geme dia e noite, como quem se acha num lugar de gemidos. Que diz então este homem que ama? Não agüento as injúrias dos homens, que gritam, se irritam, inflamam-se de cólera, cercam-me de ira. Não posso ajudá-los. Oxalá possa descansar em algum lugar longe deles corporalmente, não pelo amor, a fim de que não se perturbe o próprio amor. Não posso ser útil com palavras e conversas; talvez o possa com minhas orações. Os homens assim falam, mas muitas vezes de tal modo se amarram que não podem voar. Talvez não fiquem presos no visgo, mas se prendem pelo ofício. Se estão presos pelos ofícios e deveres, e não podem abandonar suas obrigações, digam: “Preferia partir e ir com Cristo, isso me é muito melhor. Mas o permanecer na carne é-me necessário por vossa causa” (Fl 1,23.24). A pomba, presa pelo afeto, não pela ambição, não podia voar por causa do cumprimento do dever e não por mesquinho interesse. No entanto, é necessário que o coração conserve este desejo. Este desejo atormenta somente aquele que já começou a andar pelo caminho estreito (Mt 7,14) para que saiba não faltarem perseguições à Igreja, mesmo nesta época em que a Igreja goza tranqüilidade, relativamente às perseguições sofridas por nossos mártires. Não faltam as perseguições, porque é bem verdadeira a palavra: “Todos os que quiserem viver com piedade em Cristo serão perseguidos” (Tm 3,12). Se não queres sofrer perseguição, também não queres viver com piedade em Cristo. Queres experimentar como é verdadeira esta palavra? Começa a viver piedosamente em Cristo. Que significa: viver piedosamente em Cristo? Que sintas em tuas entranhas o que disse o Apóstolo: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem se escandaliza, sem que eu também me abrase”? (2 Cor 11,29). As fraquezas dos outros, os escândalos que sofreram foram perseguições para ele. Por acaso, isto falta agora? São mais freqüentes para os que com elas se preocupam. Muitas vezes se olha um homem de longe e se diz: Ele está muito bem. Quem assim se exprime experimenta os próprios sofrimentos, mas não pode saber como são os dos outros. Ou então, não tem o que experimentar e não sabe por isso se compadecer daquele que os sofrimentos provam ou devoram. Comece a viver piamente em Cristo, e experimentará o que digo; comece a desejar ter asas, afastar-se, fugir e permanecer no deserto. | |
§ 9 | 8 Qual é, irmãos, em vossa opinião, o motivo de estarem cheios os desertos de servos de Deus? Se eles se sentissem bem no meio dos homens, teriam se afastado deles? E no entanto, como vivem eles? Fugiram para longe, permanecem no deserto; mas estão sozinhos? A caridade os obriga a permanecerem na companhia de muitos; e entre estes existem os que exercitam sua paciência. Pois, em toda multidão aglomerada forçoso é que se encontrem alguns malvados. Deus que sabe necessitarmos de exercícios, coloca ao nosso lado alguns que não haverão de perseverar, ou até alguns tão fingidos que nem começam a viver da maneira em que deviam perseverar. Deus sabe ser-nos necessário suportar os maus, para progredirmos no bem. Amemos aos inimigos, corrijamos, castiguemos, excomunguemos, sejam separados de nós, mas por amor. Vede os termos do Apóstolo: “Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, notai-o e não tenhais nenhuma comunicação com ele”. Mas, por isso não se introduza insidiosamente em ti a raiva, de sorte a turvar teu olhar. “Não o considereis, todavia, como um inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão” (2 Ts 3,14.15), para que fique envergonhado. Com isso, prescreveu uma separação, mas não cortou o amor. Vive aquele olhar de caridade, vive por tua vida. Porque a perda da caridade é tua morte. Foi essa caridade que receou perder aquele que disse: “Invadiu-me pavor de morte”. Por conseguinte, no intuito de não perder a vida da caridade, “quem dará asas como as da pomba para voar sem repousar?” Para onde queres ir? Para onde voar? Onde repousar? “Ir-me-ia bem longe para morar no deserto”. Em que deserto? Para onde quer que fores, outros se unirão a ti, procurarão o deserto contigo, adotarão tua vida. Não podes repelir a companhia de um irmão; mas juntamente virão também alguns maus; ainda precisas de exercício. “Ir-me-ia bem longe para morar no deserto”. Em que deserto? Talvez no da consciência, onde nenhum homem possa penetrar, onde ninguém se acha contigo, onde estarás tu com Deus somente. Pois se falas de um deserto local, que farás dos que aí se unem a ti? Não poderás viver isolado do gênero humano, enquanto viveres entre os homens. Prefere dar atenção àquele consolador, Senhor e rei, imperador e criador nosso e ainda criado no meio de nós; observa que colocou entre os doze um a quem ele teria de suportar. | |
§ 10 | 9 “Ir-me-ia bem longe para morar no deserto”. Provalvemente o salmista, conforme disse, refugia-se em sua consciência, em que de certo modo encontra o deserto onde descansar. Mas aquela caridade o perturba. Estava sozinho com sua consciência, mas não sozinho na caridade. Interiormente a consciência o consolava, mas externamente as tribulações não o deixavam. Portanto, em si mesmo tranqüilo, mas dependendo de outros, como ainda se conturba, o que acrescenta? “Aguardaria aquele que me abrigasse contra o abatimento do espiríto e a tempestade”. Existe mar e existe tempestade. Nada te resta senão exclamar: “Senhor, estou perecendo” (Mt 14,30). Estenda a mão aquele que, intrépido, calcava as ondas, retire a tua hesitação, firme-se nele a tua segurança, fale-te ele interiormente, e te diga: Pondera o que suportei; talvez suportes um mau irmão, externamente sofras da parte de um inimigo. E eu não sofri isso? Os judeus se encarniçavam exteriormente, e no interior um discípulo traía. Seja embora impetuosa a tempestade, Cristo liberta do “abatimento do espírito e da tempestade”. É provável que tua barca oscile, porque ele dorme dentro de ti. O mar estava enfurecido, e era sacudida a barca em que estavam os discípulos, Cristo, porém, dormia; finalmente perceberam que dormia no meio deles aquele que dominava os ventos por ele criados. Aproximaram-se e acordaram o Cristo. Este ordenou aos ventos e fez-se grande bonança (cf Mt 8,23-26). Talvez seja com razão que se perturbe teu coração, porque te esqueceste daquele em que havias acreditado; sofres com impaciência, porque não te ocorre o que por ti Cristo suportou. Se Cristo não te vem à mente, em ti ele dorme; acorda-o, lembra-te de tua fé. Cristo dorme em ti se esqueceste a sua paixão; estará desperto, se te lembrares de seus padecimentos. Se o olhares, aderires de coração ao que ele padeceu, não tolerarás igualmente de bom grado e até com alegria por teres adquirido alguma semelhança com a paixão de teu rei? Ao começares a te consolar, a te alegrar com estes pensamentos, então ele se levanta, dá ordem aos ventos e faz-se a bonança. “Aguardaria aquele que me abrigasse contra o abatimento do espírito e a tempestade”. | |
§ 11 | 10 “Precipita-os nas águas, Senhor, divide-lhes as línguas”. Deu atenção aos que o afligiam e o cercavam de sombras e desejou isto, irmãos, mas não encolerizado. Àqueles que se orgulham é bom que afundem; convém-lhes a divisão das línguas entre si, porque conspiraram. Consintam no bem e suas línguas serão concordes. Se, porém, “todos os meus inimigos juntos murmuravam contra mim” (Sl 40,8), percam-se juntos; dividam-se as suas línguas, não entrem em acordo. “Precipita-os nas águas, Senhor, divide-lhes as línguas”. Por que motivo: “precipita-os”? Porque se orgulharam. “Divide”, por que razão? Porque conspiraram para fazer o mal. Lembra-te daquela torre erguida pelos soberbos depois do dilúvio; o que disseram os soberbos? Para não perecermos num dilúvio, façamos uma alta torre. Pensavam que estariam defendidos pela soberba e construiram uma torre alta, mas o Senhor dividiu as suas línguas (cf Gn 11,4). Então começaram a não se entender mutuamente, aí está a origem das muitas línguas. Anteriormente havia uma só língua; mas uma só língua era de utilidade para homens que viviam em concórdia, uma só língua era de proveito para homens humildes. Todavia, logo que aquele grupo se precipitou numa conspiração orgulhosa, Deus os poupou dividindo as línguas, a fim de que se desentendendo não criassem uma unidade perniciosa. Por meio de homens soberbos as línguas se distinguiram, através de humildes apóstolos as línguas se uniram. Um espírito orgulhoso dispersou as línguas, o Espírito Santo reuniu as línguas (At 2,4). Quando o Espírito Santo desceu sobre os discípulos, eles falaram as línguas de todos, e foram entendidos por todos; as línguas dispersas se congregaram numa só. Por isso, se ainda estão encarniçados e são pagãos, é conveniente que tenham línguas diferentes. Se querem ter uma só língua, venham à Igreja; porque se carnalmente há diversidade de línguas, uma só é a língua, segundo a fé do coração. “Precipita-os nas águas, Senhor, divide-lhes as línguas”. | |
§ 12 | “Porque vejo apenas iniqüidade e contradição na cidade”. Não é sem razão que o salmista procurava o deserto, porque viu “iniqüidade e contradição na cidade”. Existe uma cidade turbulenta, a saber, a que edificara a torre, que foi confudida e se chamou Babilônia, dispersando-se entre inúmeros povos (cf Gn 11,9). Saindo dela, a Igreja se congrega no deserto de uma boa consciência. Ela viu a contradição na cidade. Veio Cristo. E contradizes: Quem é Cristo? É o Filho de Deus. Contradizes: Deus tem Filho? Nasceu da virgem, padeceu e ressuscitou. E como pode ser isto? Contradizes. Atende ao menos à glória da cruz. Já se encontra na fronte dos reis aquela cruz que os inimigos insultaram. O resultado demonstrou o poder. Ele dominou o orbe, não com as armas, mas com o madeiro. O madeiro da cruz pareceu aos inimigos merecer insultos e eles meneavam a cabeça ao pé da cruz e diziam: “Se é Filho de Deus desça da cruz” (cf Mt 27,40). Ele estendia as mãos para um povo infiel e contraditor. Pois, se é justo quem vive da fé (cf Rm 1,17), é iníquio quem não a possui. A “iniqüidade”, a que se refere o salmo, significa, a meu ver, a perfídia. O Senhor via, portanto, na cidade iniqüidade e contradição e estendia as mãos para um povo infiel e contraditor; contudo, dizia também esperando por eles: “Pai, perdoa-lhes não sabem o que fazem” (Lc 23,34). De fato, ainda o povo restante daquela cidade se enfurece, ainda contradiz. Estando nas frontes de todos os outros, agora estende as mãos para os restantes que não acreditam e contradizem. “Porque vejo apenas contradição e iniqüidade na cidade”. | |
§ 13 | 11 “Noite e dia ronda em torno das muralhas da cidade a iniqüidade e só labuta. Em torno das muralhas”, suas fortificações, isto é, os que lhe servem de chefes, os nobres. Se aquele nobre fosse cristão, ninguém continuaria pagão. Muitas vezes dizem os homens: Nenhum pagão restaria se aquele homem fosse cristão. Não raro se diz: Se ele se torna-se cristão, quem continuaria pagão? Por conseguinte, os que ainda não se tornam cristãos são como as muralhas daquela cidade que não crê e contradiz. Porquanto tempo estas muralhas ficarão de pé? Não ficarão para sempre. A arca da aliança fez a volta junto das muralhas de Jericó (cf Js 6,5). Virá o tempo da sétima volta da arca, quando todas as muralhas da cidade que não crê e contradiz hão de cair. Até que isto não se realize, o salmista se perturba em sua provação; e suportando o restante dos contraditores, anela por asas para voar e descansar no deserto. Ao invés disso, perdure no meio dos contraditores, suporte as ameaças, beba os opróbrios, espere aquele que o há de salvar do abatimento e da tempestade; fite a Cabeça, exemplo de vida, e tranqüilize-se na esperança, embora na realidade se perturbe. “Noite e dia ronda em torno das muralhas da cidade a iniqüidade e só labuta e injustiça se encontram dentro dela”. Há labuta ali porque ali se encontra a iniqüidade; como há injustiça, há labor. Mas que ouça aquele que estende as mãos: “Vinde a mim todos os que estais cansados”. Clamais, contradizeis, injuriais; ele, ao contrário chama: “Vinde a mim todos os que estais cansados”, em vossa soberba, e descansareis em minha humildade. “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mt 11,28.29). Por que estão cansados, senão porque não são mansos e humildes de coração? Deus se fez humilde; envergonhe-se o homem de ser soberbo. | |
§ 14 | 12 “Usura e dolo não deixam suas praças”. A usura e o dolo não se escondem ao menos, como males que são, mas publicamente se encarniçam. De fato, quem pratica algum mal em casa, ao menos se envergonha do mal feito. “Usura e dolo não deixam suas praças”. A usura se organiza numa profissão, e até é denominada arte. É uma agremiação, que parece necessária à cidade, e retira desta profissão seus juros. Acha-se nas praças o que ao menos devia se esconder. Existe uma usura ainda pior, a de não perdoares o que te é devido; os olhos se turvam naquele versículo da oração: “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Que vais fazer, quando, ao orares, chegares a este versículo? Ouviste uma palavra injuriosa; queres exigir o suplício da condenação. Pelo menos existe só quanto deste, usurário de injúrias. Levaste um soco e queres matar. Má usura. Como rezarás a oração do Senhor? Se omitires a oração, como te aproximarás do Senhor? Assim rezarás: “Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome. Venha o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. Dirás: “O pão nosso de cada dia, dá-nos hoje”. Chegarás à petição: “E perdoa-nos as nossas dívidas, como também nós perdoamos aos nossos devedores” (cf Mt 6,9-12). Mesmo que naquela cidade malvada sejam abundantes estas usuras, que elas não penetrem nestas paredes, dentro das quais se bate no peito. Que farás, uma vez que tu e ele se acham diante do outro? O celeste legislador compôs esta prece; sabia o que haveria de acontecer e te diz: De outro modo não impetrarás o que pedes. Em verdade vos digo, “se perdoardes aos homens os seus delitos, também sereis perdoados; mas, se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos delitos” (Mt 6,14.15). Quem é que assim fala? Quem sabe o que acontece quando tu estás de pé ali a pedir. Vê que ele quis ser teu advogado; ele o teu perito na lei, o assessor do Pai, o teu próprio juiz te declara: De outra forma não receberás. Que farás? Não receberás, se não o disseres; não receberás, se proferires mentira. Por conseguinte, hás de fazer e dizer, ou não merecerás o que suplicas, pois os que não agem assim, têm aquela má usura. Sejam desses os que adoram os ídolos, ou os procuram. Não tu, povo de Deus, povo de Cristo, corpo daquela Cabeça. Dá atenção ao vínculo de tua paz, à promessa de tua vida. O que te adianta retribuir as injúrias? A injúria te conforta? Alegra-te o mal alheio? Sofreste o mal. Perdoa, para que não sejam dois maus. “Usura e dolo não deixam suas praças.” | |
§ 15 | 13.15 Procuravas a solidão, querias ter asas e por conseguinte murmuras, não suportas a contradição e a iniqüidade desta cidade. Fica em paz com aqueles que estão contigo dentro e não procures a solidão. Mas, ouve o que é dito a respeito deles: “Pois se me exprobasse um inimigo”. Aliás, mais acima dizia-se perturbado em sua provação, devido à perseguição do pecador, talvez habitando naquela cidade soberba, que levantou a torre, cuja construção fracassou com a divisão das línguas (cf Gn 11,4). Vê, porém, como geme interiormente, por causa dos perigos provenientes dos falsos irmãos. “Pois se me exprobasse um inimigo decerto o suportaria. E se o que me odiava proferisse insolências”, isto é, se em sua soberba me insultasse, se ele se exaltasse acima de mim, me ameaçasse quanto pudesse, “dele me esconderia”. Como te esconderias daquele que está do lado de fora? No meio daqueles que estão dentro. Agora, contudo, vê se não resta outro recurso senão procurar a solidão. Prossegue o salmista: “Mas és tu, meu companheiro, meu conselheiro e amigo”. Talvez tenhas dado alguma vez um bom conselho, talvez em algo me precedeste e me advertiste sobre o que me seria salutar; juntos estivemos na Igreja de Deus. “Mas és tu, meu companheiro, meu conselheiro e amigo, tu que comigo tomavas suaves alimentos”. Que alimentos suaves são estes? Nem todos os presentes sabem; mas os que sabem não os amargurem, a fim de poderem dizer aos que ainda ignoram: “Provai e vede como é suave o Senhor” (Sl 33,9). “Tu que comigo tomavas suaves alimentos. Juntos íamos à casa do Senhor”. De onde, pois, a dissensão? Porquanto ele estava de dentro, e foi para fora. Ia comigo à casa do Senhor, em perfeito acordo. Mas, ele ergueu outra casa, defronte à casa de Deus. Por que razão abandonou aquela aonde íamos juntos? Por que deixou a casa onde juntos tomávamos suaves alimentos? | |
§ 16 | 16 “Que a morte os colha e desçam vivos à morada dos mortos”. A saber, dos donatistas. O salmista de certo modo desperta nossa lembrança e faz-nos remontar àquele primeiro esforço de cisma nos primórdios do povo judaico, quando alguns soberbos se separaram e quiseram oferecer sacrifícios por si, sem os sacerdotes. Sofreram nova espécie de morte; a terra se fendeu, e engoliu-os vivos. “Que a morte os colha e desçam vivos à morada dos mortos” (cf Nm 16,1-33). Por que motivo se diz: “vivos”? Eles sabem que estão indo à ruína, e no entanto querem perecer. Ouve como há vivos que se perdem e são engolidos pela terra que se abre, isto é, devorados pelas ambições terrenas. Se dizes a alguém: Por que estás sofrendo, irmão? Somos irmãos, invocamos o mesmo Deus, acreditamos em um só Cristo, ouvimos um só evangelho, cantamos os mesmos salmos, respondemos todos Amém, cantamos um só Aleluia, celebramos igualmente a Páscoa. Por que ficas de fora e eu de dentro? Muitas vezes vê-se em apuros e considerando como é verdade o que diz, responde: Que Deus peça contas a nossos maiores. Por conseguinte, ele, vivo, se perde. Em seguida, acrescentas a admoestação: Baste ao menos o mal da separação. Por que acrescentas ainda o de rebatizar? Reconhece em mim o mesmo que tens; e se me odeias, poupa a Cristo em mim. Também a eles muitas vezes é o que mais desagrada. Respondem: É verdade, é um mal. Antes não acontecesse! Mas o que faremos do que ficou estabelecido por nossos maiores? “Desçam vivos à morada dos mortos”. Se descesses já morto, não saberias o que fazias; mas como, de fato, sabes ser um mal o que praticas e no entanto assim ages, não é vivo que desces ao inferno? E por que motivo foi principalmente aos chefes que a terra abriu a boca e engoliu-os vivos, enquanto o povo que estava de acordo com eles foi consumido por um fogo que caiu do céu? (Cf Nm 16,47). O presente salmo, comemorando este castigo, começou pelo fogo e concluiu com os chefes. “Que a morte os colha”, é referência àqueles sobre os quais desceu o fogo do céu; e logo completa-se: “Desçam vivos à morada dos mortos”, os chefes que a terra se abriu e engoliu. Pois, como desceriam à morada dos mortos ainda vivos, se deles se dissera: “A morte os colha”. Se a morte já os colhera, como podiam descer vivos à morada dos mortos? Portanto, começou pelos menores e concluiu com os chefes. “Que a morte os colha” os que consentiram e seguiram. Que sucedeu aos chefes e principais? “Deçam vivos à morada dos mortos”, porque eles tratam das Escrituras, e sabem muito bem, lendo-as cada dia, como a Igreja católica se difundiu por todo o orbe da terra, de sorte que absolutamente não têm pretexto para contradição, nem podem encontrar algum testemunho a favor de seu cisma. Sabem-no muito bem. Por isso, descem vivos à morada dos mortos, uma vez que estão bem conscientes do mal que fazem. O fogo da ira divina os consumiu. Inflamaram-se no ardor da disputa, e não quiseram se apartar de seus chefes perversos; caiu o fogo sobre eles, e além do ardor da disputa suportaram o fogo que os consumiu. “Que a morte os colha e desçam vivos à morada dos mortos, porque a perversidade se acha em suas habitações, no meio deles”. “Nas habitações”, onde moram de maneira transitória e passam. Pois, não ficarão aqui para sempre; e no entanto assim lutam por causa de uma animosidade que não dura. “Em suas habitações” existe iniqüidade, “no meio deles” há iniqüidade; nada está mais dentro deles do que seu coração. | |
§ 17 | 17 “Eu, porém, clamei ao Senhor”. O corpo de Cristo, a unidade de Cristo em angústia, tédio, incômodos, perturbação de sua provação, aquele homem único na unidade de um só corpo, sentindo a alma entediada, clama dos confins da terra: “Dos confins da terra clamei a ti, quando o meu coração se angustiava” (Sl 60,3). Ele é um, mas na unidade; e este único, um só, mas não em um só lugar, clama unido dos confins da terra. Como ele unido clamaria dos confins da terra, se em muitos ele não fosse um só? “Eu, porém, clamei ao Senhor”. Está certo. Tu clamas ao Senhor. Não clames a Donato. Não seja teu senhor em lugar do Senhor aquele que não quis ser nosso companheiro de serviço para o Senhor. “Eu, porém, clamei ao Senhor e o Senhor me ouviu”. | |
§ 18 | 18 “À tarde, pela manhã, ao meio dia contarei e anunciarei e ele escutará a minha voz”. Prega a boa nova, não cales o que recebeste, “à tarde” relativamente ao passado; “de manhã”, sobre o futuro; “ao meio dia” acerca das coisas eternas. Efetivamente, a palavra: “à tarde”, pertence a sua narração; o termo: “de manhã” refere-se ao anúncio; “ao meio dia” é atinente ao atendimento do que se pede. O fim está ao meio dia, mas isto porque não declina, não tem ocaso. Ao meio dia a luz está no auge; é o esplendor da sabedoria, o ardor do amor. “À tarde, pela manhã, ao meio dia”. À tarde, o Senhor na cruz, pela manhã a ressurreição, ao meio dia a ascensão. Discorro à tarde sobre a paciência do moribundo, anuncio de manhã a vida do ressuscitado, pedirei que me atenda ao meio dia aquele que está sentado à direita do Pai. Ouvirá a minha voz nosso intercessor (cf Rm 8,34). Como é grande esta segurança, quanta consolação, como refaz diante do abatimento e da tempestade, contra os maus, contra os iníquios de fora e de dentro, e contra aqueles que são de fora, mas se acham dentro! | |
§ 19 | 19 Por conseguinte, meus irmãos, são palha na eira do Senhor (Mt 3,12) todos os que vedes na assembléia, reunida dentro dessas paredes, e que são turbulentos, soberbos, que buscam os próprios interesses, altivos, desprovidos do zelo de Deus, casto, sadio, quieto e que atribuem a si mesmos grandes coisas; prontos para disputar, apesar de não terem desculpa para isso. O vento da soberba arrastou daqui uns poucos deles: toda palha não será carregada, a não ser na última ventilação. Mas nós o que faremos, a não ser cantar com o salmista, orar, deplorar e repetir com segurança: “Restituirá a paz a minha alma?” Contra aqueles que não amam a paz: “Restituirá a paz a minha alma”, porque era pacífico com aqueles que odeiam a paz (cf Sl 1,119,7). “Restituirá a paz a minha alma, livrando-me dos que me atacam”. Pois a questão é fácil, em relação aos que estão longe de mim. Não se engana tão logo aquele que me convida: Vem, adora um ídolo. Acha-se muito distante de mim. Mas: és cristão? Sim, diz ele, sou cristão. É um adversário próximo; está bem perto. “Restituirá a paz a minha alma livrando-me dos que se aproximam de mim, porque muitos estavam comigo”. Por que ele disse: “aproxima-se de mim”. Porque “muitos estavam comigo”. Este versículo pode ter duas explicações. A primeira: “em muitas coisas estavam comigo”. Em verdade, tínhamos ambos o batismo. Nisto estavam comigo. Ambos líamos o evangelho. Nisto estavam comigo. Celebrávamos a festa dos mártires. Estavam comigo. Celebrávamos a Páscoa em grande número. Estavam comigo ali. Mas não inteiramente comigo, porque não estava comigo o cisma, nem a heresia. Em muitas coisas estavam comigo, em poucas não estavam comigo. Devido, porém, a estas poucas coisas em que não estavam comigo, não lhes adiantam as muitas que possuem comigo. Com efeito, irmãos, vede quantas coisas enumerou o apóstolo Paulo, mas se faltar uma, as outras se tornam inúteis. “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e falasse as línguas dos anjos, se eu tivesse o dom da profecia e de toda a fé, e toda a ciência, se transportasse montes, ainda que distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas” (1 Cor 1,13). Quantas coisas enumerou! Com tudo isso, se faltar apenas a caridade, as outras são em maior número, mas a caridade tem maior peso. Portanto, estão comigo em todos os sacramentos, apenas na caridade não estão comigo: “Em muitas coisas estavam comigo”. Outro sentido: “Porque muitos estavam comigo”. Os que se separam de mim, estavam antes comigo, não em pequeno número, mas eram muitos. De fato, por todo o orbe da terra existem poucos grãos e muitas palhas. Como se exprime o salmista? Quanto às palhas estavam comigo, quanto ao trigo não estavam comigo. A palha se aproxima do trigo. Sai de uma só semente, radica-se no mesmo terreno, é nutrida pela mesma chuva, é colhida junto, suporta a mesma trituração, espera a mesma ventilação, mas não entra no mesmo celeiro. “Porque muitos estavam comigo”. | |
§ 20 | 20.21 “Deus há de me escutar e humilhá-los, ele que existe antes dos séculos”. Eles presumem de não sei qual chefe seu que apareceu ontem: “Há de humilhá-los ele que existe antes dos séculos”. Porque, apesar de ter Cristo nascido no tempo de Maria Virgem, antes dos séculos, no princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus (cf Jo 1,1). “Há de humilhá-los, ele que existe antes dos séculos. Porquanto eles não se emendam”. Refiro-me aos que não se emendam. O Senhor sabia que alguns haveriam de se manter no erro, e morrer na persistência em sua maldade. Pois, vemos que eles não se emendam, e assim morrem na mesma pervesidade, no mesmo cisma, sem haver emenda. Deus há de humilhá-los, humilhá-los na condenação, porque se orgulharam na dissensão. Não se emendam, porque não mudam para melhor, mas para pior, nem enquanto estão na terra, nem na ressurreição. “Pois todos ressucitaremos, mas nem todos seremos transformados” (1 Cor 1,15.51). “Porque eles não se emendam, nem temem a Deus”. Meus irmãos, há somente um remédio: que temam a Deus, e abandonem a Donato. Se lhe dizes: Tu te perdes na heresia, no cisma; forçosamente Deus castigará estes males; procuras a condenação, não te enganes com tuas próprias palavras, não sigas um chefe cego. Um cego que conduz outro cego, caem ambos no buraco (cf Mt 15,14). Que me importa? responde. Vivo hoje como vivi ontem. Sou o que meus pais foram. Então, não temes a Deus. Tenha ele temor de Deus. Então, pensará que é verdade o que se lê, por se tratar da fé em Cristo, que não falha. Como permanecerá na heresia diante de tanta evidência sobre a fé da santa Igreja católica, que Deus difundiu por toda a terra? Prometeu-a antes de sua difusão, anunciou-a previamente e a realidade corresponde à promessa. Por isso, tenham cautela e vigilância aqueles que não temem a Deus. “Estendeu a mão para lhes dar o que merecem.” | |
§ 21 | 21.22 “Profanaram sua aliança”. Lê a aliança que profanaram: “Por tua prosperidade serão abençoadas todas as nações (Gn 12,3;26,4). Profanaram sua aliança”. Que dizes contra estas palavras do testador? Somente a África mereceu a graça de possuir este santo Donato; nele se encontra a Igreja de Cristo. Dize antes: Igreja de Donato. Como queres acrescentar: de Cristo do qual foi dito: “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações”. Queres ir atrás de Donato? Deixa Cristo e afasta-te. Vede, portanto, como continua: “Profanaram sua aliança”. Qual aliança? “As promessas foram asseguradas a Abraão e a sua descendência”. Diz o Apóstolo: “Irmãos, mesmo um testamento humano, legitimamente feito, ninguém o pode invalidar nem modificar. Ora as promessas foram asseguradas a Abraão e a sua decendência. Não se diz: e aos descendentes, como referindo-se a muitos, mas como a um só: e a tua descendência, que é Cristo” (Gl 3,15.16). Qual testamento foi prometido a Cristo? “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações”. Tu que deixaste a unidade de todas as gentes, e entraste num partido, profanaste a aliança. Vem, portanto, da ira de Deus o que te aconteceu: seres exterminado e privado da herança. Atende à continuação: “Profanaram sua aliança. Serão dispersados pela ira de sua face”. Que esperais ainda? Que incriminação maior para os hereges? “Serão dispersados pela ira de sua face”. | |
§ 22 | 22 “E o seu coração se aproximou”. De quem? Entendemos ser o daqueles que foram dispersados pela ira. “Como se aproximou o seu coração?” Entendamos que se trata de sua vontade. De fato, por causa dos hereges a Igreja católica se reafirmou e os que pensam corretamente foram comprovados em confronto com os que pensam erradamente. Muita coisa estava oculta nas Escrituras. Ao se separarem os hereges, as questões começaram a ser ventiladas na Igreja de Deus. Tornaram-se claras as que eram obscuras, e foi entendido qual a vontade de Deus. Daí os dizeres de outro salmo: “Bando de touros entre os rebanhos dos povos, para serem excluídos aqueles que foram experimentados como a prata (Sl 67,31). “Serem excluídos”, se destaquem, apareçam. Também em ourivesaria chama-se exclusores os que dão forma à massa informe. Efetivamente, muitos que poderiam de modo eminente conhecer e explicar as Escrituras, achavam-se ocultos no meio do povo de Deus; não davam a solução de questões dificílimas enquanto nenhum caluniador as atacava. Acaso foi tratada de modo tão perfeito a questão da Santíssima Trindade antes que ladrassem os arianos? Acaso se falou sobre a penitência exatamente, antes de se oporem os novacianos? Assim também não se retratou perfeitamente do batismo, antes de contradizerem os que do lado de fora rebatizavam. Também não se falara tão explicitamente da unidade de Cristo, a não ser depois que aquela separação começou a pressionar os irmãos fracos, de sorte que os que eram capazes de tratar e resolver estas questões trouxessem à luz as obscuridades da lei por meio de seus sermões e discursos, a fim de não perecerem os fracos cercados das perguntas dos ímpios. Portanto, eles foram dispersados pela ira de sua face, e para que nós entendêssemos, o seu coração se aproximou. Agora quero que entendais a passagem de outro salmo que citei: “Bando de touros”, isto é, de orgulhosos cornípetos, “entre os rebanhos dos povos”. O que é que o salmista denomina “rebanhos”? As almas que se deixam seduzir. Para que isto? A fim de “serem excluídos”, isto é, para que apareçam os que estavam escondidos, “aqueles que foram experimentados como a prata. O que representa a prata?” A palavra de Deus. “Palavras do Senhor, palavras puras. Prata pelo fogo acrisolada de terra, sete vezes depurada” (Sl 11,7). Vede como o Apóstolo pôs às claras o sentido obscuro desta passagem: ”É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos aqueles que são comprovados” (1 Cor 1,11.19). Que quer dizer: “comprovados? Comprovados como a prata”, comprovados com a palavra. Que significa: “se tornem manifestos? São excluídos”. Qual a razão disso? Por causa dos hereges. Que significa: por causa dos hereges? Por causa do “bando de touros entre os rebanhos dos povos”. Assim, portanto, também estes foram “dispersados pela ira de sua face e o seu coração se aproximou.” | |
§ 23 | “Suas palavras parecem untuosas como o óleo, mas são dardos”. Certas passagens da Escritura pareciam duras, enquanto eram obscuras; depois de explicadas amoleceram. Também a primeira separação entre os discípulos de Cristo se realizou devido à aparência de dureza de sua palavra. Tendo dito o Senhor: “Se não comerdes a minha carne e não beberdes o meu sangue, não tereis a vida em vós”, eles não entenderam e disseram entre si: “Esta palavra é dura! Quem pode escultá-la?” Dizendo ser dura esta palavra, separaram-se dele, ele ficou com os outros doze. Como estes lhe sugerissem que os outros se haviam escandalizado com sua palavra, respondeu-lhes: “Não quereis também vós partir? Replicou Pedro: A quem iremos? Tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 52-59). Peço-vos atenção. Sendo pequenos, aprendei a piedade. Porventura já entendia Pedro o segredo daquela palavra do Senhor? Ainda não; mas compreendia que eram palavras boas, e acreditava piamente. Por conseguinte, se uma palavra é dura, e não é entendida, seja dura para o ímpio, mas para ti amoleça-se com piedade. Quando se resolver a questão, se tornar para ti como óleo, penetrará até os ossos. | |
§ 24 | 23 Por isso, com Pedro, depois que os outros se haviam escandalizado, conforme lhes parecia, pela dureza da palavra do Senhor, respondeu: “A quem iremos? Tens palavras de vida eterna”, assim igualmente o salmista aqui prossegue: “Lança sobre o Senhor os teus cuidados, e ele agirá”. És pequeno e ainda não entendes os segredos das palavras. Talvez não conheces o pão e ainda precisas ser nutrido de leite (cf 1Cor 3,2). Não recuses o peito, que fará capaz de ir à mesa, para a qual ainda não és idôneo. Eis que pela divisão dos hereges muitas coisas duras amoleceram. Suas palavras duras parecem untuosas como óleo, mas são dardos. Os evangelizadores se armaram. As palavras se dirigiam ao coração de alguns ouvintes, instando oportunamente e a contratempo. Os corações dos homens eram vulnerados no amor da paz por aquelas palavras, que eram como setas. Os ouvintes eram duros e amoleceram. Amolecidos não perderam a força, mas se converteram em dardos. “Suas palavras parecem untuosas como óleo, mas são dardos”, mesmo as palavras já suaves. Mas tu, talvez, ainda és capaz de te munir destes dardos, e ainda se esclareceu para ti o que talvez seja obscuro e duro nas palavras. “Lança sobre o Senhor os teus cuidados, e ele agirá”. Lança-te nas mãos do Senhor. Eis que queres lançar-te nas mãos do Senhor. Ninguém o substitua. “Lança sobre o Senhor os teus cuidados”. Vê como aquele soldado de Cristo não quis que os pequeninos lançassem sobre ele os seus cuidados: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo?” (1 Cor 1,13). Que queria dizer senão: “Lança sobre o Senhor os teus cuidados e ele agirá”. Agora, porém, procura um pequenino qualquer lançar sobre o Senhor os seus cuidados, e não sei quem vem ao seu encontro e lhe diz: Deixa que eu o tomo. Vem ao seu encontro como uma nave flutuante e diz: Eu o tomo a meu cuidado. Responde também tu: Desejo encontrar o porto e não um rochedo. “Lança sobre o Senhor os teus cuidados e ele agirá”. Vê como o porto te recebe: “Não permitirá jamais que o justo vacile”. Pareces flutuar neste mar, mas o porto te acolhe. Tu apenas faze o seguinte: antes de entrares no porto não largues a âncora. Flutua a nave se lançadas as âncoras, mas não é levada para longe da terra; não flutuará para sempre, apesar de vacilar por algum tempo. Pois, a esta oscilação se referem as palavras acima mencionadas. “Invadiu-me a tristeza em minha nova prova e fiquei conturbado. Aguardaria aquele que me abrigasse contra o abatimento do espírito e a tempestade”. Fala alguém que está flutuando, mas não flutuará eternamente; pois a âncora foi lançada. A âncora é sua esperança. “Não permitirá jamais que o justo vacile”. | |
§ 25 | 24 Mas, a eles, o que sucederá? “Tu, porém, ó Deus, precipitá-los-ás no poço da perdição”. Poço da perdição equivale a trevas da submersão. “Tu, porém, ó Senhor, precipitá-los-ás no poço da perdição”, porque um cego que conduz outro cego, caem no buraco (cf Mt 15,14). O Senhor os precipita no poço da perdição, mas não é ele o autor da culpa, mas é juiz das iniqüidades deles. Deus os entregou à concupiscência de seu coração (cf Rm 1,24). Eles amaram mais as trevas do que a luz; amaram a cegueira, e não a visão. Pois, o Senhor Jesus brilhou para todo o mundo; cantem eles na unidade, com todo o mundo: “Ninguém se subtrai ao seu calor” (Sl 18,7). Que haverão de sofrer os que passam do todo à parte, do corpo à ferida, da vida à amputação? Não cairão no poço da perdição? | |
§ 26 | “Os homens sanguinários e enganadores”. Recebem a denominção de homens sanguinários por causa de seus morticínios; e oxalá fossem corporais e não espirituais! Vê-se com horror o sangue a correr do corpo; mas quem pode olhar o sangue do coração daquele que é rebatizado? São precisos outros olhos para aquelas mortes. Embora nem mesmo destas mortes visíveis se abstenham os circunceliões armados, por toda a parte. Se ponderarmos estas mortes visíveis, eles são “homens sanguinários”. Vê se um homem armado é pacífico e não sanguinário. Se ao menos carregassem apenas o açoite. Mas carregam a funda, o machado, as pedras, as lanças. E carregados de tudo isso, andam por toda a parte que podem, sedentos de sangue inocente. Por conseguinte, mesmo relativamente à morte visível eles são “sanguinários”. Mas digamos igualmente a respeito deles: Oxalá fossem somente essas mortes corporais, e não matassem as almas. Estes “homens sanguinários e enganosos” não pensem que erramos em interpretar como homens sanguinários os que matam as almas. Eles também assim entenderam acerca de seus maximianistas. Pois, ao condená-los, na sentença de seu concílio1 constam estas palavras: “Têm os pés velozes para derramar o sangue dos mensageiros. Acham-se esmagamento e infelicidade em seus caminhos e não conhecem o caminho da paz” (Sl 13,3). Foi o que disseram dos maxi-mianistas. Pergunto-lhes quando foi que os maximia-nistas derramaram sangue corporal, embora não diga que eles não derramariam se fossem em multidão tal que poderiam derramá-lo; mas por medo, devido a seu pequeno número, mais suportaram alguma coisa do que infligiram algo de semelhante. Por este motivo, interrogo ao donatista: Em teu concílio declaraste acerca dos maxi-mianistas: “Têm os pés velozes para derramar sangue”. Aponta-me um somente a quem os maximianistas atingiram? Há de me responder coisa diferente desta que digo? Os que se separam da unidade, seduzindo as almas, matam-nas espiritualmente, sem derramar o sangue do corpo. Falaste muito bem. Mas em tua exposição reconhece teus atos. “Homens sanguinários e mentirosos”. Mentira na fraude, na simulação, na sedução. Que são, portanto, os que foram “dispersados pela ira de sua face?” São “homens sanguinários e enganadores”. | |
§ 27 | Mas o que diz a respeito deles? “Não alcançarão a metade de seus dias”. Que quer dizer : “Não alcançarão a metade de seus dias?” Não progredirão quanto esperam; perecerão no espaço de tempo de sua espera. Um homem desses será como aquela perdiz, sobre a qual se disse: “No meio de seus dias, a riqueza injusta o abandonará, e, no fim, ele é um idiota” (Jr 17,11). Prosperam, mas temporariamente. Como se exprime o Apóstolo? “Quanto aos homens maus e impostores, eles progredirão no mal, enganando e sendo enganados” (Tm 11,3.13). Um cego que guia um cego, ambos caem no buraco (cf Mt 15,14). Com razão caem “no poço da perdição”. Que disse o Apóstolo? “Progredirão no mal”; contudo, não por muito tempo. Pois ele afirmara pouco antes: “Mas eles não irão muito adiante”, eqüivale a: “Não alcançarão a metade de seus dias”. O Apóstolo continua, dizendo por que é assim: “Pois a sua loucura será manifesta a todos, como o foi a daqueles” (Tm 11,3,9). “Os homens sanguinários e enganadores não alcançarão a metade de seus dias. Mas eu esperarei em ti, Senhor”. Merecem não alcançar a metade de seus dias, porque esperaram num homem. Eu, porém, dos dias temporais fui até o dia eterno. Por quê? Porque esperei em ti, Senhor. 1 De bagai, no ano de 394. | |