ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 53 | ||
§ 53:1 | Ɗ Diz o néscio no seu coração: Não há Deus. Corromperam-se e cometeram abominável iniqüidade; não há quem faça o bem. | |
§ 53:2 | Ɗ Deus olha lá dos céus para os filhos dos homens, para ver se há algum que tenha entendimento, que busque a Deus. | |
§ 53:3 | Ɗ Desviaram-se todos, e juntamente se fizeram imundos; não há quem faça o bem, não há sequer um. | |
§ 53:4 | Ɑ Acaso não têm conhecimento os que praticam a iniqüidade, os quais comem o meu povo como se comessem pão, e não invocam a Deus? | |
§ 53:5 | ⱻ Eis que eles se acham em grande pavor onde não há motivo de pavor, porque Deus espalhará os ossos daqueles que se acampam contra ti; tu os confundirás, porque Deus os rejeitou. | |
§ 53:6 | Ꝋ Oxalá que de Sião viesse a salvação de Israel! Quando Deus fizer voltar os cativos do seu povo, então se regozijará Jacó e se alegrará Israel. | |
O SALMO 53 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | Se entendermos bem, este salmo tem no título a compensação, porque é prolixo, enquanto o salmo é curto. Detenhamo-nos no título com vagar, porque não nos demoraremos no salmo. Dele depende cada versículo que é cantado. Se alguém lê o título no frontispício de uma casa, entrará com segurança, porque não entrará em casa errada. Este salmo anota na entrada como acertar sobre o seu sentido interno. O título se apresenta assim: “Para o fim. Entre os hinos inteligência. De Davi. Quando os zifeus vieram dizer a Saul: Não está Davi escondido entre nós?” (cf 1Rs 23,14.15.19). Sabemos muito bem que Saul perseguia o santo varão Davi. Lembramo-nos de ter mencionado a V. Caridade que Saul era figura do reinado temporal, que não se relaciona com a vida e sim com a morte1. Deveis conhecer e recordar o que já sabeis: Davi era figura de Cristo, ou do corpo de Cristo. E quem são os zifeus? Zif era uma aldeia, e seus habitantes se chamavam zifeus. Nesta região escondera-se Davi, quando Saul o procurava para o matar. Estes zifeus, sabendo disso, entregaram-no ao rei perseguidor, dizendo: “Não está Davi escondido entre nós?” De nada lhes serviu esta traição, e em nada prejudicaram a Davi. Pois, demonstrou-se que tinham uma disposição maligna. Quanto a Saul, nem após esta traição pode apanhar Davi: ao invés, em certa gruta desta região, Davi tendo em mãos a oportunidade de matar Saul, poupou-o, não utilizando esta possibilidade. Saul tentava fazer, mas não conseguiu (cf 1Rs 24,4-8). Vejam eles, portanto, quem foram os zifeus; vejamos nós o que o salmo nos dá a entender, por causa dos zifeus. | |
§ 2 | Se procurarmos, então, o sentido da palavra, zifeus significa: florescentes. Não sei bem quais florescentes eram inimigos do santo Davi, florescentes inimigos de quem estava escondido. Encontremo-los no gênero humano, se quisermos entender o salmo. Encontremos primeiro aqui Davi escondido, e depois encontraremos seus adversários florescentes. Ouve quem é Davi que se esconde: “Morrestes”, diz o Apóstolo aos membros de Cristo, “e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Estes escondidos, quando é que haverão de florescer? “Quando Cristo que é a vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória” (ib, 4). Quando estes florescerem, então os zifeus murcharão. Notai a que flor se compara a sua glória: “Toda carne é feno e toda a sua graça como a flor do feno”. Como termina? “Seca-se o feno e murcha a flor”. Onde estará então Davi? Vê como continua: “Mas a palavra do Senhor subsiste para sempre” (Is 40,6.8). Há, portanto, duas espécies de homens, que devemos distinguir e escolher uma delas. De que te adianta saber, se és preguiçoso para escolher? Com efeito, agora tens o poder de escolher; virá o tempo em que este poder te faltará, quando Deus não mais deferirá a sentença. Quem são estes florescentes zifeus, senão o corpo daquele Doeg, idumeu, de que falamos a V. Caridade há poucos dias2? Dele foi dito: “Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas depositou a confiança na afluência de suas riquezas e prevaleceu-se de sua vaidade” (Sl 51,9). São eles os florescentes filhos do século que, como acabastes de ouvir do evangelho são mais espertos com os de sua geração do que os filhos da luz. De fato, estes parecem visar a fatos futuros que não sabem se virão. Ouvistes o que fez a seu dono aquele administrador que lucrava para si com os bens de seu senhor, e que fazia larguezas a seus devedores, para que, ao ser removido da administração, ter quem o recebesse. E apesar de defraudar a seu senhor, este louva seus intentos, não atendendo ao prejuízo próprio, mas à esperteza daquele. Quanto mais devemos nós adquirir amigos com o mamon da iniqüidade, conforme a admoestação do próprio nosso Senhor Jesus Cristo? (cf Lc 16,8.9). Mamon significa riquezas. Nossas riquezas, porém, encontram-se em nossa casa eterna nos céus. Por conseguinte, chamam de riquezas os bens temporais, aqueles que podem florescer apenas temporariamente, e não querem adquirir amigos para sempre com elas, porque não conheceram as verdadeiras riquezas. Apenas a iniqüidade, que floresce por algum tempo como o feno, considera essas riquezas. Estes são os zifeus, inimigos de Davi e que prosperam no mundo. | |
§ 3 | Dão importância a eles também os filhos da luz que são fracos, de pés vacilantes, ao verificarem que os maus gozam de felicidade; e dizem consigo mesmos: A que me serve a inocência? Que vantagem tenho em servir a Deus, observar seus mandamentos, não oprimir os outros, de ninguém roubar, não prejudicar a ninguém, ajudar no que posso? Eis que faço tudo isso, e eles prosperam, enquanto eu estou atribulado. Como? Querias ser um zifeu? Prosperam agora, pois hão de murchar no juízo, e depois de secos serem lançados no fogo eterno. É isso que queres? Ignoras o que te prometeu aquele que vem e o que demonstrou em si mesmo aqui na terra? Se a flor dos zefeus fosse desejável, teu próprio Senhor não teria florescido neste mundo? Ou não lhe seria possível prosperar aqui? Mas ele preferiu aqui estar oculto no meio dos zifeus e responder à pergunta de Pôncio Pilatos, ele mesmo flor dos zifeus e suspeitoso acerca de seu reino: “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36). Estava oculto, portanto; e todos os bons aqui estão escondidos, porque suas riquezas são interiores e escondidas, e estão no coração, onde se encontram a fé, a caridade, a esperança, seu tesouro. Porventura esses bens se revelam no mundo? Eles estão ocultos, e a recompensa a eles devida também se esconde. Mas, como brilha a dignidade mundana? Brilha por algum tempo; mas brilhará para sempre? É erva do inverno, e é verdejante até que venha o verão. Não apareçam, portanto, no ânimo os sentimentos que encontramos em outro salmo. Alguém confessa que hesitou a ponto de quase cair, e resvalaram seus passos no caminho de Deus, ao considerar as flores e felicidades dos maus; mas depois conhecendo qual o fim reservado para eles por Deus, e o que prometera aos justos aflitos aquele que não pode enganar, deu graças por este conhecimento e exclamou: “Como é bom o Deus de israel para os retos de coração!” Por que motivo assim exclamas? “Os meus pés quase escorregaram”. Por que razão? “Ao ter inveja dos maus, e ao observar a paz dos pecadores”. Seus passos se firmaram depois que entendeu qual a sua sorte. Isto mesmo o salmista exprime pouco abaixo no salmo: “Pareceu-me penosa a tarefa”, isto é, grande questão surgiu-me no coração: Qual a razão por que homens que praticam o mal prosperam no mundo e muitos fazem o bem e passam trabalhos na terra. Como esta questão fosse difícil diante de meus olhos, e laboriosa para investigar, “pareceu-me penosa a tarefa. Até que entrei no santuário de Deus e percebi qual a sua sorte”. Qual é esta sorte final? Qual, senão a que sabemos já anunciada de antemão no evangelho? “Quando o Filho do homem vier, serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda” (Mt 25,31.33). Eis que aqueles zifeus serão separados. E depois da separação, o fogo. Onde está a flor daqueles que ficarão à esquerda? Não haverão de gemer então? Não serão atormentados por tardia penitência, e dirão: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza com arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,8.9). Oh! zifeus que estareis à es-querda, muito tarde vos arrependeis de ter tido a prosperidade que passou como sombra! Por que não reconhecestes a Davi, que traístes dizendo estar escondido entre vós? Se nesta ocasião vos corrigísseis, não sofreríeis esta dor inútil. Há uma dor frutuosa e outra inútil. Frutuosa é a dor presente, quando te acusas, quando te censuras por teus maus hábitos, persegues os costumes repreensíveis, expulsas esses perseguidos, e tendo-os expulsado tu te convertes, despindo o velho homem e revestindo-te do novo, e preferindo o opróbrio de Cristo à prosperidade dos zifeus. No entanto, se te acontecer teres ocultamente teus bens, e estares escondido no meio dos zifeus, mantém também escondida a promessa de tua recompensa e não te orgulhes por alguma dignidade que tiveres no mundo; pois se te orgulhares dela, recairás na felicidade dos zifeus. Tome por exemplo aquela santa mulher chamada Ester, do povo judaico, que sendo esposa de um rei pagão, submeteu-se ao perigo de seus concidadãos, suplicando ao rei por eles; começou por rezar, e na oração confessou que todas aquelas insígnias reais eram para ela como um pano imundo (Est 14,16). Se as mulheres podem agir assim, os homens não podem? E se pode fazê-lo uma judia, não o poderá a Igreja cristã? Por isso, digo a V. Caridade: “Se afluirem as riquezas, a elas não prendais o coração” (Sl 61,11). Apesar de serem abundantes, e de advir a ti a prosperidade mundana, não acredites no mar, mesmo se te sorrir. Se afluirem as riquezas, se superabundarem, pisa-as e fica suspenso em teu Deus. Se as deixares abaixo, e estiveres suspenso preso a ele, quando forem retiradas, não cairás. Não suceda a teu respeito, devido a um modo de pensar em nada cristão, o que foi dito em outro salmo, tendo em vista a flor destes zifeus: “Quão profundos os teus desígnios!” Repito: “Quão profundos os teus desígnios. O insensato não compreende estas coisas, nem as percebe o estulto”. O que é que não compreende? “Ainda que floresçam os pecadores como a relva e resplandeçam os obreiros do mal, são destinados ao extermínio pelos séculos dos séculos” (Sl 91,6-8). A flor dos malvados os deleitou; disseram a si mesmos: Eis que os maus prosperam. Penso que Deus os ama. E deleitando-se com a flor temporal dos iníquos, voltaram-se para o mal, para sua perda. E não uma perda temporal como a prosperidade deles, mas nos séculos dos séculos. Donde vem isto? A razão está em “o insensato não compreende estas coisas, nem as percebe o estulto”, porque não entrou no santuário de Deus e não percebeu qual a sua sorte. E como é um tanto difícil esta compreensão, o presente salmo começa referindo que Davi estava escondido no meio dos zifeus, sem se deleitar com sua flor, mas escolheu de preferência entre eles a humildade, para ter junto de Deus a glória escondida. Qual sua atribuição neste título? “Para o fim. Entre os hinos, isto é, entre louvores”. Quais? “O Senhor deu, o Senhor tirou; conforme agradou ao Senhor, assim se fez; seja bendito o nome do Senhor” (Jó 1,21). Parece que ele secou, tendo perdido toda a seiva? De forma alguma. As folhas caíram, mas a raiz vivia. Portanto: “Para o fim. Entre os hinos”. Qual o significado de: “Inteligência. De Davi? Inteligência” em paralelo com a palavra: “O insensato não compreende estas coisas, nem as percebe o estulto. Inteligência. De Davi. Quando os zifeus vieram dizer a Saul: Não está Davi escondido entre nós?” Esteja escondido entre vós contanto que não floresça como vós. Escuta, pois, a sua voz. | |
§ 4 | 3 “Salva-me, ó Deus, pela honra de teu nome; por teu poder, faze-me justiça”. Diga-o a Igreja, escondida no meio dos zifeus. Diga-o o corpo dos cristãos, que mantém ocultamente o bem de seus costumes, esperando ocultamente a recompensa de seus méritos. Diga o seguinte: “Salva-me, ó Deus, pela honra de teu nome; por teu poder, faze-me justiça”. Vieste, ó Cristo, apareceste em condição humilde, foste desprezado, flagelado, crucificado, morto; mas ao terceiro dia ressuscitaste, subiste ao céu no quadragésimo dia, estás sentado à direita do Pai, e ninguém o vê. De lá enviaste teu Espírito, que os dignos receberam. Cheios de teu amor, pregaram em louvor de tua humildade pelo mundo e entre as gentes. Vejo teu nome brilhar no gênero humano, apesar de nos seres anunciado em condição de fraqueza. Até o Doutor das gentes declarou nada saber entre nós, senão de Cristo Jesus, e este crucificado (cf 1Cor 2,2), a fim de que preferíssemos o opróbrio à glória dos zifeus, florescentes. No entanto, o que disse a respeito dele? “Por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus” (2 Cor 13,4). Veio, portanto, para morrer em fraqueza, há de vir para julgar, no poder de Deus; mas pela fraqueza da cruz seu nome foi glorificado. Quem não acreditar no nome glorificado em fraqueza, há de se apavorar diante do juiz, quando vier com poder. Aquele que se mostrou na fraqueza outrora, quando vier com poder, naquela ventilação, não nos coloque à esquerda. Salvar-nos-á em seu nome, e julgar-nos-á com seu poder. Quem desejará coisa tão temerária que diga a Deus: “Julga-me?” Não se costuma dizer aos homens, como maldição: Deus te julgue? De fato será maldição se te julgar com seu poder, se não te tiver salvado por seu nome. Se, porém, previamente te salvar em seu nome, julgará com poder em seguida para tua salvação. Fique tranqüilo: aquele juízo não te será punição, mas separação. Pois, em certo salmo se diz: “Julga-me, ó Deus, e distingue da causa de uma gente ímpia a minha causa” (Sl 42,1). O que significa: “Julga- me?” Distingue-me dos zifeus, entre os quais estou escondido: suportei a sua flor, venha agora a minha flor. Efetivamente, sua flor foi temporal, e o feno secando caiu; e a minha flor, qual será? “Plantados na casa do Senhor, florescerão nos átrios de nosso Deus” (Sl 91,14). Resta, portanto, também para nós uma flor, mas esta não cai, como a folhagem daquela árvore plantada à beira das águas correntes, da qual foi dito: “Sua folhagem não murchará” (Sl 1,3). “Salva-me, pois, ó Deus, pela honra de teu nome, por teu poder, faze-me justiça”. | |
§ 5 | 4 “Escuta, ó Deus, a minha oração, presta ouvidos às palavras de minha boca”. Cheguem as palavras de minha boca a teus ouvidos, porque não desejo obter de ti a flor dos zifeus. “Presta ouvidos às palavras de minha boca”. Tu as percebes; pois embora ressoe minha oração, os zifeus não a ouvem, porque não a entendem. Com efeito, gozam dos bens temporais, e não sabem anelar pelos eternos. Chegue a ti minha oração, produzida e emitida pelo desejo de teus benefícios eternos. Profiro-a a teus ouvidos. Sustenta-a para que alcance sua meta, sem desfalecer no meio do caminho, nem desvanecer e sumir. Mesmo que agora não me venham os bens que peço, tenho certeza, contudo, de que virão depois. Conta-se ter alguém rogado a Deus, consciente de seus delitos, e não ter sido atendido, para seu próprio bem. Fora incitado a orar, tendo em vista desejos mundanos; estando no meio de tribulações temporais, desejava que elas passassem e voltasse a flor do feno, e disse: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” É a voz de Cristo, mas em favor de seus membros. “As vozes de meus delitos. Clamei durante o dia e não me ouviste; e à noite, e não me será atribuída a loucura” (Sl 21,2.4), isto é, clamei à noite e não me ouviste, mas não para que ficasse louco, e sim para adquirir a sabedoria, para entender o que deveria te pedir. Pedia o que talvez recebesse para meu mal. Tu pedes riquezas, ó homem! Quantos foram derrubados por suas riquezas! Como podes saber se as riquezas te serão proveitosas? Acaso não viviam muitos pobres tranqüilos em seu escondimento? Tornaram-se ricos e mal começaram a se destacar, tornaram-se presa dos mais fortes. Como não seria melhor para eles continuarem ocultos, melhor seria não serem conhecidos, pois começaram a ser procurados, não por causa do que eram, e sim devido ao que tinham! Quanto a essas questões de bens temporais, irmãos, nós vos admoestamos e exortamos no Senhor a não pedir nada de determinado, e sim o que Deus sabe que vos é vantajoso. De modo nenhum sabeis o que vos é útil. Por vezes, o que vos é útil, em vossa opinião, de fato é prejudicial; e o que pensais vos prejudicar, realmente vos ajuda. Pois, sois doentes. Não deveis prescrever ao médico o remédio a vos receitar. Se o doutor das gentes, o apóstolo Paulo declara: “Não sabemos o que pedir como convém” (Rm 8,26), quanto mais nós? Efetivamente, quando lhe parecia prudente pedir que lhe fosse tirado o estímulo da carne, o anjo de satanás que o esbofeteava, para que não se orgulhasse com a grandeza das revelações, o que ouviu do Senhor? Porventura foi-lhe dado o que queria? Não; mas para receber o que lhe servia. O que ouviu, então, do Senhor? “Três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2 Cor 12,7-9). Fui eu quem aplicou o medicamento à ferida; sabia quando devia pôr e quando devia tirar. O doente não fuja das mãos do médico, não dê conselhos ao médico. Assim é relativamente a todas as coisas temporais. São tribulações; se teu culto a Deus é verdadeiro, estarás ciente de que ele sabe muito bem o que é útil a cada um. Vem a prosperidade. Cuida que ela não corrompa teu espírito, e não te afaste daquele que a deu. O salmista, portanto, ciente de tudo isso, como se exprime? “Escuta, ó Deus, a minha oração; presta ouvidos às palavras de meus lábios”. | |
§ 6 | 5 “Porque estranhos insurgiram-se contra mim”. Quais estranhos? O próprio Davi não era judeu da tribo de Judá? Até mesmo a região de Zif pertencia à tribo de Judá, era dos judeus. Como, então, se fala de estrangeiros? Não o são devido à cidade, à tribo, ao parentesco, mas por causa da flor. Queres conhecer esses estranhos? Outro salmo os denomina: filhos dos estranhos: “cuja boca falou o que é vão, sua direita é direita iníqua”. E enumera a flor dos zifeus: “Seus filhos são sarmentos novos, desde a sua juventude. Suas filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transdordantes de toda espécie de frutos. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Seus bois são cevados. Não há brechas nas sebes nem ruína nem clamor em suas praças”. Mas, vede os zifeus, vede-os florescentes por algum tempo. “Eles denominam feliz quem goza destes bens”. Com razão são chamados filhos estranhos. E tu, escondido no meio dos zifeus, o que dizes? “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus” (Sl 143,7-15). Com tais sentimentos é que esta oração alcança os ouvidos do Senhor, quando diz: “Presta ouvidos às palavras de minha boca, porque estranhos insurgiram-se contra mim”. | |
§ 7 | “E poderosos procuraram tirar-me a vida”. De nova maneira, meus irmãos, os que depositam sua esperança neste mundo querem arruinar a raça dos santos e dos que se abstêm destas expectativas. Certamente são aglomeradas, certamente vivem juntos. Opõem-se intensamente essas duas espécies de homens: uma a daqueles que depositam sua esperança em bens deste mundo e a outra a dos que confiam firmemente no Senhor seu Deus. E se estes zifeus estão de acordo entre si, não creias muito em sua concórdia. As tentações lhes faltam. Logo que surgir uma, para advertir a alguém a respeito da flor deste século, não digo que se aborrecerá com o bispo, mas nem mesmo quer vir à igreja, para não perder um pouco do feno. Porque disse isto, irmãos? Porque agora todos vós ouvis de boa vontade em nome de Cristo, e como entendestes bem, aplaudistes esta minha palavra; não aclamaríeis se não houvésseis entendido. Mas vossa compreensão deve ser frutuosa. A tentação demonstra se é, ou não, frutuosa. Não aconteça que de repente, enquanto sois chamados dos nossos, se veja através da prova que sois estranhos, e se diga a vosso respeito: “Estranhos insurgiram-se contra mim e poderosos buscaram tirar-me a vida” e se acrescente: “Não têm a Deus diante de seus olhos”. Quando haveria de ter a Deus diante de seus olhos quem não tem diante dos olhos senão o mundo? Que olha como terá moedas sobre moedas, como aumentará os rebanhos, como se encherão os depósitos, como dizer à própria alma: “Tens uma quantidade de bens; alegra-te, regala-te, sacia-te”. Acaso quem assim se gloria e brilha com as flores dos zifeus terá diante dos olhos aquele que lhe diz: “Insensato”, quer dizer, sem entendimento, homem imprudente, “nessa mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (Lc 12,20). “Não têm a Deus diante de seus olhos”. | |
§ 8 | 6 “Eis que Deus vem em meu auxílio”. E o desconhecem aqueles entre os quais me acho oculto. Se, porém, eles tivessem a Deus diante de seus olhos, descobririam como Deus me ajuda. Pois, todos os santos são auxiliados por Deus, mas isto acontece no seu íntimo, onde ninguém penetra. Assim como a consciência dos ímpios é seu maior castigo, a consciência dos homens piedosos lhes acarreta a maior alegria. “O nosso motivo de ufania”, diz o Apóstolo, “é este testemunho de nossa consciência” (2 Cor 1,12). Gloria-se nela interiormente, não nas flores dos zifeus por fora, aquele que agora declara: “Eis que Deus vem em meu auxílio”. Em verdade, apesar de ser a promessa de Deus para um futuro longínquo, hoje o auxílio me é suave e presente, hoje na alegria de meu coração descubro que erram os que dizem: “Quem nos dará a felicidade? Ao invés, está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face. Tu me deste alegria ao coração” (Sl 4,6.7). Deste-me alegria, mas não por causa de minha vinha, de meu rebanho, de minha taça, de minha mesa, e sim a deste “ao coração. Eis que Deus vem em meu auxílio”. Como é que ele te ajuda? “E o Senhor toma a defesa de minha alma”. | |
§ 9 | 7 “Faze recair os males sobre os meus inimigos”. Da maneira em que agora reverdecem, florescem, são reservados para o fogo. “Por teu poder extermina-os”. Supõe que agora floresçam, que brotem como a erva. Não sejas imprudente e estulto, de sorte que atendendo a isto pereças pelos séculos dos séculos (cf Sl 91,7.8). “Faze recair os males sobre os meus inimigos”. Se estiveres com Davi, o Senhor exterminá-los-á por seu poder. Eles prosperam com a felicidade deste mundo, mas perecem pelo poder de Deus. Mas não perecem do mesmo modo que florescem; florescem temporariamente, perecem eternamente; florescem com bens falsos, perecem em verdadeiros tormentos. “Por teu poder extermina-os”, aqueles que na tua condição de fraqueza toleraste. | |
§ 10 | 8 “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos”. Quem é capaz de compreender como é este bem do coração, através de explicação de outro, se não o tiver experimentado em si? O que significa: “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos?” Contudo, vou dizer; compreenda quem puder, como puder; acredite quem não puder entender, e reze para consegui-lo. Mas, deveríamos omitir este versículo, sem explicação? Declaro-o a V. Caridade. Sinto-me atraído a falar um pouco sobre ele, e agradeço a Deus porque ouvis atentamente. Se vos visse aborrecidos de ouvir, a contragosto me calaria aqui; mas em meu coração, quanto Deus se dignasse me conceder, não calaria. Profira, portanto, a língua o que o coração concebeu; pela voz ressoe o que a mente conserva. À medida do possível expliquemos o sentido da frase: “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos”. Qual o significado aqui da palavra sacrifício, irmãos? Qual a vítima digna do Senhor, por sua misericórdia? Hei de procurar vítimas na grei, um carneiro, um touro do rebanho, buscar incenso dos sabeus? Que fazer? Que oferecer senão o sacrifício mencionado em outro salmo: “O sacrifício de louvor me glorificará”? (Sl 49,23). Por que razão, então: “espontâneos?” Porque amo gratuitamente aquilo que louvo. A Deus eu louvo, e alegro- me neste louvor; regozijo-me com seu louvor, e não me acanho de louvá-lo. Meu louvor difere daquele que dão os torcedores das futilidades do teatro, ou do auriga, do caçador ou de qualquer pantomimo. Eles chamam outros para torcer e estimulam outros a também gritar. E depois que todos gritaram, muitas vezes se envergonham da derrota. Isto não acontece a nosso Deus. Seja louvado voluntariamente, e amado com verdadeira caridade. Seja amado e louvado gratuitamente. Por que gratuitamente? Seja ele mesmo louvado por si mesmo e não por causa de outra coisa. Se dás louvores a Deus para que te conceda algum dom, já não amas gratuitamente a Deus. Tu te envergonharias se tua esposa te amasse tendo em vista tuas riquezas; e talvez se caísses na pobreza, ela pensasse em adultério. Se queres ser amado pela cônjuge gratuitamente, queres amar a Deus por causa de outra coisa? Que prêmio receberás de Deus, ó avaro? Não te reserva a terra, mas reserva-se a si mesmo aquele que fez o céu e a terra. “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos”. Não o faças por necessidade. Se louvas a Deus por outra coisa, louvas por obrigação. Se estivesse em tuas mãos o que amas, não louvarias a Deus. Atenção ao que digo: a Deus louvas, por exemplo, para que te dê muito dinheiro; se recebesses muito dinheiro de outra parte, não de Deus, por acaso o louvarias? Se, portanto, é por dinheiro que louvas a Deus, não é voluntariamente que ofereces sacrifício a Deus, mas por necessidade, pois amas não sei o quê além dele. Por isso, diz o salmo: “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos”. Despreza a tudo, atende a ele. Seus dons são bens por causa do doador. Pois, ele dá certamente, dá bens temporais; a alguns para seu bem, a outros para sua infelicidade, conforme a altura e a profundidade de seus juízos. O Apóstolo sente pavor diante do abismo desses juízos e exclama: “Oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro”? (Rm 11,33.34). Ele sabe quando deve dar, a quem há de dar, quando tira e de quem. Quanto a ti, pede o que te aproveitará depois, pede o que ajudará eternamente. Ama-o, porém, gratuitamente; pois, não encontrarás coisa melhor para receberes em doação do que ele mesmo; ou se encontrares, apresenta-lhe teu pedido. “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos”. Por que razão “espontâneos?” Porque gratuitos. O que significa: gratuitamente? “Cantarei a glória de teu nome, Senhor, porque é bom”. Por nada mais, a não ser porque é bom. Por acaso disse: Cantarei a glória de teu nome, Senhor, porque me dás propriedades rendosas, porque me concedes ouro e prata, porque me doas grandes riquezas, muito dinheiro, excelente dignidade? Não. Mas, por quê? “Porque é bom”. Nada de melhor encontro do que teu nome; por isso, “cantarei a glória de teu nome, Senhor, porque é bom”. | |
§ 11 | 9 “Pois me livraste de todas as tribulações”. Por conseguinte, entendi que teu nome é bom. Se, efetivamente, tivesse podido reconhecê-lo antes de virem as tribulações, estas certamente não me teriam sido necessárias. Mas a tribulação foi empregada como um aviso; fui admoestado para te louvar. Não teria entendido onde me achava, se a minha fraqueza não me alertasse. Por conseguinte, livraste-me de todas as tribulações. “E meus olhos viram a confusão de meus inimigos”. Meus olhos se detiveram naqueles zifeus. Ultrapassei a sua flor, elevando meu coração. Cheguei a ti, e de lá os fitei, e verifiquei que “toda carne é feno e toda a sua graça como a flor do feno” (Is 40,6), conforme igualmente se acha em outra passagem: “Vi o ímpio sumamente elevado, tão alto como os cedros do Líbano. Passei, e já não existia” (Sl 36,35.36). Por que “já não existia?” Foi porque passaste? Qual o sentido destas palavras: porque passaste? Foi porque ouviste com razão: Coração ao alto, e não ficaste sobre a terra onde apodrecerias, porque elevaste tua alma a Deus, ultrapassate os cedros do Líbano, e olhaste daquela altura: “e já não existia” e o buscaste, mas não achaste seu lugar. Já não te parece penosa a tarefa, porquanto entraste no santuário de Deus e percebeste qual a sua sorte (Sl 72,16.17). Assim, o salmista conclui o presente salmo: “E meus olhos viram a confusão de meus inimigos”. Procedei desta maneira, meus irmãos, em relação a vossas almas: erguei vossos corações, aguçai o gume de vossa mente, aprendei a amar gratuitamente a Deus, a desprezar as coisas presentes, a sacrificar espontaneamente uma vítima de louvor, para que ultrapassando a flor do feno, vejais a confusão de vossos inimigos. 1 Cf Comentário ao Sl 51,1.2. 2 Comentário ao Sl 51,13. | |