ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 52 | ||
§ 52:1 | Ꝓ Por que te glorias na malícia, ó homem poderoso? pois a bondade de Deus subsiste em todo o tempo. | |
§ 52:2 | Ɑ A tua língua maquina planos de destruição, como uma navalha afiada, ó tu que usas de dolo. | |
§ 52:3 | Ŧ Tu amas antes o mal do que o bem, e o mentir do que o falar a verdade. | |
§ 52:4 | Ɑ Amas todas as palavras devoradoras, ó língua fraudulenta. | |
§ 52:5 | Ŧ Também Deus te esmagará para sempre; arrebatar-te-á e arrancar-te-á da tua habitação, e desarraigar-te-á da terra dos viventes. | |
§ 52:6 | Ꝋ Os justos o verão e temerão; e se rirão dele, dizendo: | |
§ 52:7 | ⱻ Eis aqui o homem que não tomou a Deus por sua fortaleza; antes confiava na abundância das suas riquezas, e se fortalecia na sua perversidade. | |
§ 52:8 | ɱ Mas eu sou qual oliveira verde na casa de Deus; confio na bondade de Deus para sempre e eternamente. | |
§ 52:9 | Ꝓ Para sempre te louvarei, porque tu isso fizeste, e proclamarei o teu nome, porque é bom diante de teus santos. | |
O SALMO 52 | ||
SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 1 Aceitamos tratar convosco sobre este salmo, quanto o Senhor nos inspirar. Um irmão nosso deu-nos esta ordem e reza para que possamos cumpri-la. Se por falta de tempo omitir alguma coisa, completará aquele que se digna dar-nos possibilidade de falar. O título é o seguinte: “Para o fim. Segundo Maelet. Inteligência. De Davi. Segundo Maelet”, conforme encontramos na tradução dos nomes hebraicos, parece significar: Segundo a parturiente ou a dolorosa. Os fiéis sabem quem é que neste mundo dá a luz com dores, porque assim nasceram. É Cristo quem aqui dá à luz, Cristo é quem sente dores; a Cabeça está no alto e os membros embaixo. Se não desse à luz com dores não diria: “Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4). Aquele que dava à luz o perseguidor, faria depois que ele, convertido, por sua vez desse à luz. Pois, Paulo mesmo depois foi batizado, e incorporado a seus perseguidos; impregnado da mesma caridade, dizia: “Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19). Canta-se, portanto, este salmo em favor dos membros de Cristo, de seu corpo que é a Igreja (cf Cl 1,24), por um só homem, isto é, pela unidade do corpo, cuja Cabeça se acha no alto. Geme, pois, e dá à luz em dores este homem. Por que razão, entre quais? Não foi senão por aquilo que recebeu e conheceu através da Cabeça, que dizia: “Pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará?” Mas, se crescer a iniqüidade e esfriar o amor de muitos, que parturiente restará? Continua o evangelista: “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,12.13). Como é importante perseverar, se não for no meio de incômodos, tentações, perturbações e escândalos? Não se manda a ninguém tolerar coisas boas. Mas vejamos o que é que se diz em prol deste corpo de Cristo, o que se canta em seu favor. Por causa deste corpo aqui se censuram os homens no meio dos quais ele geme, se lastima; e no fim do salmo se enuncia e exprime a consolação da paturiente em dores. Na companhia de quem damos à luz e gememos, se pertencemos ao corpo de Cristo, se vivemos tendo-o por Cabeça, se somos contados entre seus membros? Ouve quem são. | |
§ 2 | “Disse o insensato em seu coração: Não há Deus”. É no meio desta espécie de homens que o corpo de Cristo se lastima e geme. Não são muitos os que concebemos se como tais são os homens; quanto nos ocorre, são muito poucos. É difícil descobrirmos alguém que diga “em seu coração: Não há Deus”. São tão poucos que receosos de declarar isso na presença de muitos, dizem em seu coração o que não ousam proferir. Por conseguinte, não são muitos os que devemos suportar; mal se encontra um; são raros os que dizem “em seu coração: Não há Deus”. Ou talvez, segundo outra maneira de entender, encontra-se em maioria o que pensávamos achar-se em poucos, raríssimos e em quase ninguém? Apresentem-se os que vivem mal. Examinemos os atos dos malvados, criminosos, celerados, cuja turba é grande; dos que fomentam cotidianamente seus pecados, dos que transformaram seus atos em hábitos e até perderam a vergonha. Estes constituem tamanha multidão que o corpo de Cristo colocado entre eles, mal ousa criticar o que não admite, e considera grande coisa conservar a integridade da inocência, não fazendo o que já não ousa condenar por hábito; ou se ousar, mais fácil será a repreensão e reclamação dos que vivem mal do que livre a voz dos que vivem bem. E eles são tais que dizem “em seu coração: Não há Deus”. A esses tais é que eu convenço. Em quê? Eles pensam que seus atos agradam a Deus. O salmista não disse: Alguns assim falam, mas: “Disse o insensato em seu coração: Não há Deus”. Crêem que Deus existe, mas só enquanto julgam agradar a Deus o que eles fazem. Todavia, se prudentemente entenderes que “disse o insensato em seu coração: Não há Deus”, se notas, se percebes, se examinas, aquele que julga que os atos maus aprazem a Deus, não o tem por Deus. Se ele é Deus, é justo; se é justo desagrada-lhe a injustiça, desagrada-lhe a iniqüidade. Tu, porém, se julgas que a iniqüidade lhe agrada, negas a Deus. Se, pois, a Deus desagrada a iniqüidade, e a ti, ao contrário, não parece que ela não lhe apraz, e não é Deus senão aquele a quem todo mal desagrada, ao dizeres em teu coração: Deus favorecerá minha maldade, estás declarando: “Não há Deus”. | |
§ 3 | 2 Voltemos àquele sentido referido acima: Trata-se de nosso Senhor Jesus Cristo, de nossa própria Cabeça. A respeito dele, quando apareceu na terra na condição de servo, disseram os que o crucificaram: “Não há Deus”. Como era Filho de Deus, era verdadeiramente Deus. Mas aqueles que se corromperam e se fizeram abomináveis, o que disseram? “Não há Deus”. Matemo-lo, “não há Deus”. São palavras do livro da Sabedoria; mas antes vede-os tão corruptos que podem dizer “em seu coração: Não há Deus”. Vem primeiro o versículo: “Disse o insensato em seu coração: Não há Deus”, e como se alguém perguntasse qual a causa desta afirmação do insensato, o salmista acrescenta: “Corromperam-se e fizeram-se abomináveis em suas iniqüidades”. Escuta aqueles corruptos. Disseram a si mesmos, pensando de maneira errada. Começa a corrupção da má fé, continua pelos costumes torpes, e daí vai às crueis iniqüidades. Estes são os graus. Que dizem entre si, em seus falsos raciocínios? “Breve e triste é nossa vida” (Sb 2,12). Desta ma fé segue-se o que narra o Apóstolo: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1 Cor 15,32). No livro da Sabedoria, porém, a luxúria é descrita mais amplamente: “Coroemo-nos com rosas, antes que feneçam; deixemos em toda parte sinais de nossa alegria”. Descrita assim mais claramente a luxúria, como continua? “Matemos o justo pobre” (Sb 2,8.10). Equivale isto a dizer: “Não há Deus”. Pareciam falar de coisas delicadas: “Coroemo-nos com rosas, antes que feneçam”. Que há de mais delicado, de mais suave? Esperarias desta suavidade cruzes, gládios? Não te admires. São suaves as rosas e no entanto, têm espinhos. Se alguém as toca não espetam, mas aí nascem os espinhos que picam. Por conseguinte, eles “corromperam-se e fizeram-se abomináveis em suas iniqüidades. “Disse o insensato em seu coração: Não há Deus. Se é Filho de Deus, desça da cruz” (Mt 27,40). Eis o que é dizer abertamente: “Não há Deus”. | |
§ 4 | Mas como entre eles geme o corpo de Cristo? Gemeram no meio deles os apóstolos de então, e os discípulos de Cristo. Que representam eles para nós? Como no meio deles nós damos à luz? Ainda existem os que afirmam: Cristo não é Deus. Assim asseguram os pagãos que restaram; e também os judeus, que para testemunho de sua confusão acham-se dispersos por toda parte; isso igualmente afirmam muitos hereges. Pois também os arianos disseram: “Não há Deus”. Os eunomianos afirmaram: “Não há Deus”. Acrescente-se a isso, irmãos, aqueles a quem me referi pouco acima, que vivendo mal nada mais dizem senão: “Não há Deus”. Se lhes afirmamos que Cristo há de vir como juiz para julgar, conforme está nas Escrituras que não falham, eles preferem ouvir a sugestão da serpente: “Não, não morrereis” (Gn 3,4); no paraíso, ela assim falara em oposição à verdade do que Deus estabelecera: “Em verdade, morrereis” (Gn 2,77). Praticam o mal e dizem a si mesmos: Cristo virá e dará o perdão a todos. Então, seria mentiroso aquele que disse que haverá de separar os iníquos à esquerda dos justos à direita? Dirá aos justos: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo”; dirá aos iníquos: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,34.41). Como, então? Dará a todos o perdão? Não condenará a ninguém? Portanto, ele mentiu. Isso equivale a dizer: “Não há Deus”. Cuida, portanto, tu mesmo, de não mentir. Pois, tu és homem, e ele é Deus; Deus é verdadeiro e todo homem é mentiroso (cf Sl 115,11). Mas o que tens tu com eles, ó corpo de Cristo? Separa-te por enquanto pelo coração e a vida, não imites, não te acostumes, não concordes, não aproves; ao contrário, até censura. Por que dás atenção aos que assim falam? “Corromperam-se e fizeram-se abomináveis em suas iniqüidades. Não há um só que pratique o bem”. | |
§ 5 | 3.4 “Do céu o Senhor observa os filhos dos homens, para ver se existe entre eles quem entenda ou busque a Deus”. Qual o sentido da expressão: “Corromperam-se e fizeram-se abomináveis” estes todos que disseram: “Não há Deus?” Como? Deus não sabia que eles se fizeram assim? Ou, de fato, o íntimo do pensamento dêles se nos revelaria, se ele não o dissesse? Se sabia, se conhecia, por que se disse que “do céu Deus observa os filhos dos homens para ver se existe entre eles quem entenda ou busque a Deus?” São de quem procura e não sabe as palavras seguintes: “Do céu Deus observa os filhos dos homens para ver se existe entre eles quem entenda ou busque a Deus”. Como se encontrasse o que procurava observando e olhando do céu, profere seu parecer: “Todos se extraviaram e juntamente se tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, nem um sequer”. Originam-se daí duas questões um tanto difíceis. Se do céu Deus observa para ver se existe quem entenda ou busque a Deus, ao imprudente insinua-se o pensamento de que Deus não sabe todas as coisas. Esta é a primeira questão; qual a segunda? Se não existe quem faça o bem, nem um sequer, quem é aquele que está em parto no meio dos maus? Esta pergunta se resolve da maneira seguinte: muitas vezes a Escritura se refere ao bem que a criatura faz por dom de Deus, dizendo que é Deus quem faz. Por exemplo, se te compadeces do pobre, é Deus quem se compadece, porque o fazes por um dom de Deus. Se conheces o que és, como o conheces por uma iluminação de Deus e declaras: “Senhor, farás brilhar a minha lâmpada. Iluminarás, Senhor meu Deus, as minhas trevas” (Sl 17,29), o que conheces por sua dádiva e sua obra, é ele que conhece. Daí origina-se a afirmação: “É o Senhor vosso Deus que vos experimenta, para saber se de fato amais o Senhor vosso Deus” (Dt 13,4). Que significa: “para saber?” Para que vos faça saber, por seu dom. Assim também aqui: “Do céu Deus observa os filhos dos homens para ver se existe entre eles quem entenda ou busque a Deus”. Esteja ele aqui presente, e nos dê a graça de dar à luz aquilo que ele fez nosso coração conceber. O Apóstolo declara: “Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus” (1 Cor 2,12). Por meio deste Espírito, portanto, conhecemos os dons da graça de Deus, distinguimos a diferença entre nós e aqueles aos quais estes não foram concedidos, e por aquilo que há em nós os conhecemos. Pois, se entendemos que não pudemos possuir bem algum se não nos for concedido e outorgado por aquele do qual derivam todos os bens, simultaneamente verificamos que nada disso podem ter aqueles aos quais Deus não concedeu estes dons. Estas coisas discernimos por obra do Espírito de Deus; e o que vemos desta maneira é Deus quem vê, porque Deus faz com que vejamos. Daí a palavra: “O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus” (1 Cor 2,10); mas não quer dizer que sonda aquele que sabe todas as coisas, mas que o Espírito te foi dado, e te faz sondar; e o que fazes por seu dom, diz-se que é ele quem faz, porque tu não o farias sem ele. Por conseguinte, diz-se que Deus faz quando és tu que fazes. Devido ao dom do Espírito dos filhos, aos quais o Espírito foi concedido, eles observam “os filhos dos homens para verem se existe entre eles quem entenda ou busque a Deus”. Mas como eles atuam por dom de Deus e do Espírito de Deus, diz-se que é Deus quem atua, observando e vendo. Por que, então, “do céu”, se são os homens quem assim agem? Porque diz o Apóstolo: “A nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20). De onde procuras ver, de onde observas para entender? Não é do coração? Se o fazes com o coração, ó cristão, vê se tens o coração ao alto. Se tens o coração ao alto, “do céu” olhas para a terra. E como o fazes por um dom de Deus, “do céu Deus observa os filhos dos homens”. A questão, portanto, à medida de nossas forças, está solucionada. | |
§ 6 | Que é que conhecemos por esta observação? Que conhece Deus? Que conhece aquele que dá tal conhecimento? Escuta o que é: “Todos se extraviaram e juntamente se tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, nem um sequer”. Qual é, portanto, a segunda questão a que me referi pouco acima? “Se não há quem faça o bem, nem um sequer”, não resta homem algum para gemer no meio dos maus? Espera, diz o Senhor. Não vás logo pronunciando a sentença. Dei aos homens a capacidade de praticar o bem, mas proveniente de mim mesmo e não deles. Por si mesmos, eles são maus. São filhos dos homens quando fazem o mal; quando praticam o bem, são meus filhos. Deus faz o seguinte: dos filhos dos homens faz filhos de Deus, porque do Filho de Deus fez filho do homem. Vede qual a participação: Foi-nos prometida a participação na divindade. Mentiria aquele que prometeu, se antes ele não se tivesse feito partícipe da mortalidade. Pois, o Filho de Deus se tornou participante da mortalidade para que o homem mortal se tornasse partícipe da divindade. Quem te prometeu comunicar-te seu bem, primeiro entrou em comunicação com teu mal. Prometeu-te a divindade, mostrou-te a caridade. Por isso, se tiras dos homens a possibilidade de serem filhos de Deus, só resta que sejam filhos dos homens: “Não há quem faça o bem, nem um sequer”. | |
§ 7 | 5 “Não chegarão a entender esses obreiros do mal, que devoram o meu povo como um bocado de pão?” Não chegarão a entender? Não lhes será mostrado? Fala, ameaça, expressa-te como parturiente em dores. Pois, teu povo é devorado como um bocado de pão. Certamente aqui se trata do povo de Deus que é devorado. De fato, “não há quem faça o bem, nem um sequer”. Responde-se conforme aquela norma. Mas deste povo que é devorado, deste povo que suporta os maus, que geme e está em parto entre os maus, os componentes já se tornaram de filhos dos homens em filhos de Deus; por isso são devorados. “Cobris de confusão o pobre nos seus planos, mas a esperança dele é o Senhor” (Sl 13,6). Freqüentes vezes o povo de Deus é desprezado pelo fato mesmo de ser povo de Deus, a fim de ser devorado. Diz o malvado: Roubarei e expoliarei; se é cristão, que me pode fazer? Fala em seu favor aquele que fala em prol da parturiente e ameaça os que o devoram, nesses termos: “Não chegarão a entender esses obreiros do mal?” Pois, aquele que, se via um ladrão corria com ele e aos adúlteros se associava, que se assentava para falar contra seu irmão e punha tropeço ao filho de sua mãe, “disse em seu coração: Não há Deus”. Por isso, foi-lhe dito: “Fizeste isto e calei. Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti”; quer dizer, não seria Deus se fosse semelhante a ti. Mas como prossegue o salmo? “Censurar-te-ei e manifestarei a ti mesmo diante de teus olhos”. Assim também aqui: “Censurar-te-ei e manifestarei a ti mesmo diante de teus olhos” (Sl 49,18-21). Não queres agora te conhecer para não teres desprazer; conhecerás para que chores. Deus não deixará de mostrar aos iníquos a sua iniqüidade. Se não há de demonstrar, quem são os que haverão de declarar: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza com arrogância”? (Sb 5,8). Então haverão de reconhecer o que não querem conhecer agora. “Não chegarão a entender esses obreiros do mal que devoram o meu povo como um bocado de pão?” Por que acrescentou: “como um bocado de pão?” Devoram meu povo como se fosse pão. Comemos dos demais alimentos e podemos tomar ora este, ora aquele. Não tomamos sempre deste óleo, desta carne, desta batata; mas sempre comemos pão. Que significa então: “devoram meu povo como um bocado de pão?” É sem interrupção, sem cessar que devoram os “que devoram o meu povo como um pedaço de pão”. | |
§ 8 | 6 “Não invocaram a Deus”. É um consolo para aquele que geme, principalmente o que relembramos, a fim de que não imite os maus, os quais muitas vezes prosperam, e não se deleite em tornar-se malvado. Seja reservado para ti o que te foi prometido. A esperança deles é para as coisas presentes e a tua para as futuras; mas a deles é transitória, a tua é segura; a deles é falsa, a tua verdadeira. Pois eles “não invocaram a Deus”. Acaso esses tais rogam a Deus todos os dias? Não rogam a Deus. Prestai atenção e vede se posso dizer isto, com o auxílio de Deus. Deus quer ser cultuado gratuitamente, gratuitamente ser amado, isto é, ser castamente amado. Não quer ser amado por dar alguma coisa além de si mesmo, mas porque se dá a si mesmo. Quem, portanto, invoca a Deus para se tornar rico, não invoca a Deus. Invoca-o quem deseja que ele se aproxime. Que significa invocar se não chamar a si? Por conseguinte, chamar a si é invocar. Pois, ao pedires: Ó Deus, dá-me riquezas, não desejas que Deus venha a ti, mas queres que venham as riquezas. Invocas aquilo que queres que venha a ti. Se, porém, invocares a Deus, e ele a ti vier, ele próprio será a tua riqueza. Agora, ao invés, queres ter a arca cheia, e a consciência vazia. Deus não enche a caixa, mas o peito. De que te servem as riquezas exteriores se te angustia a pobreza interior? Portanto, os que invocam a Deus tendo em vista as comodidades deste mundo, os bens terrenos, a vida presente e a felicidade terrena, estes não invocam a Deus. | |
§ 9 | 6.7 Qual a conseqüência disso tudo? “Foram tomados de terror onde não havia o que temer”. Porventura é para temer a perda das riquezas? Não é, mas tem-se medo disso. A perda da sabedoria é verdadeira causa de temor; contudo, não se teme. Ouve, reconhece, entende a esses tais. Alguém, por exemplo, entrega a outro uma bolsa para que a guarde. Este, depois, não a quer devolver, considera-a sua, não quer que seja reclamada, já a tem por sua, recusa entregar. Considere ele o que receia perder, e o que não quer ter. Hesita entre o dinheiro e a fidelidade. Mais pesado é o prejuízo de um objeto mais precioso. Tu, porém, para guardares o ouro, perdes a fidelidade. Sofreste mais prejuízo, e tu te alegras com o lucro. Foste “tomado de terror onde não havia o que temer”. Devolve o dinheiro. Ainda não estou dizendo o bastante: Devolve; perde o dinheiro para não perderes a fidelidade! Temeste perder o dinheiro e preferiste perder a fidelidade! Os mártires não tiraram o alheio, mas para não perderem sua fé, desprezaram o dinheiro; e não bastou perder o dinheiro, quando foram proscritos; perderam também a sua vida quando foram martirizados; perderam a vida para a recuperarem na vida eterna (cf Mt 10,39). Por conseguinte eles temeram quando havia o que temer. Aqueles, porém, que disseram a Cristo: “Não há Deus, foram tomados de terror onde não havia o que temer”. Pois disseram: “Se o deixarmos assim, os romanos virão, destruirão o nosso lugar santo e a nação” (Jo 11,48). Ó loucura e imprudência, que diz “em seu coração: Não há Deus!” Tiveste medo de perder a terra e perdeste o céu; temeste que os romanos viessem e te tomassem o lugar santo e o reino; acaso te tirariam Deus? Que resta, então? Senão que confesses que quiseste segurar o que tinhas e segurando-o mal, o perdeste? Perdeste o lugar santo e a nação ao matares a Cristo. Preferiste matar a Cristo e não perder o lugar, mas perdeste o lugar, a nação e o Cristo. Sentindo temor mataram a Cristo; mas por que razão? “Porque Deus esmagou os ossos dos que agradam os homens”. Querendo agradar aos homens, recearam perder o lugar. Cristo, contudo, a respeito do qual disseram: “Não há Deus”, preferiu desagradar a homens tais quais eles eram; preferiu desagradar aos filhos dos homens, não aos filhos de Deus, por isso seus ossos foram esmagados, enquanto ninguém quebrou os de Cristo. “Foram confundidos porque Deus os rejeitou”. Efetivamente, irmãos, grande confusão os atingiu. Não há mais judeus no lugar onde crucificaram o Senhor, e eles o fizeram para não perderem o lugar santo e o reino. “Deus, portanto, os rejeitou”. No entanto, ao rejeitá-los exortava-os a se converterem. Agora conheçam a Cristo e digam: É Deus, àquele a quem disseram: “Não há Deus”. Voltem à herança paterna, à herança de Abraão, Isaac e Jacó. Possuam com eles a vida eterna, apesar de terem perdido a vida temporal. E por quê? Porque de filhos dos homens se tornaram filhos de Deus. Pois enquanto permanecem o que eram e não querem mudar, “não há quem faça o bem, nem um sequer. Foram confundidos porque Deus os rejeitou”. E o salmo como que se dirigindo a eles, diz: “Quem dará de Sião a salvação a Israel?” Ó insensatos! Censurais, insultais, esbofeteais, cobris de escarros, coroais de espinhos, levan-tais na cruz. A quem? “Quem dará de Sião a salvação a Israel?” Não será aquele a quem dissestes: “Não há Deus? Quando Deus fizer regressar seu povo do cativeiro”. Faz voltar seu povo do cativeiro somente aquele que quis fosse cativo em vossas mãos. Mas quais são os que antecederão isso? “Exultará Jacó e alegrar-se-á Israel”. O verdadeiro Jacó e verdadeiro Israel, o irmão mais novo que será servido pelo mais velho, exultará, porque há de conhecer (cf Gn 25,23). | |