ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 51 | ||
§ 51:1 | Ƈ Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. | |
§ 51:2 | Ł Lava-me completamente da minha iniqüidade, e purifica-me do meu pecado. | |
§ 51:3 | Ꝓ Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. | |
§ 51:4 | Ƈ Contra ti, contra ti somente, pequei, e fiz o que é mau diante dos teus olhos; de sorte que és justificado em falares, e inculpável em julgares. | |
§ 51:5 | ⱻ Eis que eu nasci em iniqüidade, e em pecado me concedeu minha mãe. | |
§ 51:6 | ⱻ Eis que desejas que a verdade esteja no íntimo; faze-me, pois, conhecer a sabedoria no secreto da minha alma. | |
§ 51:7 | Ꝓ Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve. | |
§ 51:8 | Ƒ Faze-me ouvir júbilo e alegria, para que se regozijem os ossos que esmagaste. | |
§ 51:9 | ⱻ Esconde o teu rosto dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniqüidades. | |
§ 51:10 | Ƈ Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito estável. | |
§ 51:11 | Ɲ Não me lances fora da tua presença, e não retire de mim o teu santo Espírito. | |
§ 51:12 | ꭆ Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustém-me com um espírito voluntário. | |
§ 51:13 | ⱻ Então ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e pecadores se converterão a ti. | |
§ 51:14 | Ł Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha salvação, e a minha língua cantará alegremente a tua justiça. | |
§ 51:15 | Ɑ Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca proclamará o teu louvor. | |
§ 51:16 | Ꝓ Pois tu não te comprazes em sacrifícios; se eu te oferecesse holocaustos, tu não te deleitarias. | |
§ 51:17 | Ꝋ O sacrifício aceitável a Deus é o espírito quebrantado; ao coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus. | |
§ 51:18 | Ƒ Faze o bem a Sião, segundo a tua boa vontade; edifica os muros de Jerusalém. | |
§ 51:19 | ⱻ Então te agradarás de sacrifícios de justiça dos holocaustos e das ofertas queimadas; então serão oferecidos novilhos sobre o teu altar. | |
O SALMO 51 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | O salmo de que pretendemos tratar diante de V. Caridade é curto, mas tem um título um tanto difícil. Tende, pois, paciência, enquanto o explicamos, à medida do possível e do auxílio do Senhor. Não devemos passar por cima destas questões, porquanto aprouve a nossos irmãos apreender o que vamos dizer não só com os ouvidos e o coração, mas também com o estilete. Por isso, devemos pensar não apenas nos ouvintes, mas ainda nos leitores. Deram ocasião a este salmo certos fatos, registrados no livro dos Reis, que mandamos vos fossem lidos. O rei Saul fora escolhido pelo Senhor, mas não de modo permanente. Foi destinado a um povo de coração duro e mau, para sua correção e não para sua utilidade (cf 1Rs 8,7), segundo aquela sentença das Sagradas Escrituras, que refere de Deus: “Ele faz reinar o hipócrita por causa da perversidade do povo” (Jó 34,30, sg. LXX). Sendo assim, portanto, Saul perseguia Davi (cf 1Rs 18,24), figura do reino salvífico e eterno, e que Deus escolhera para que em sua descendência perdurasse esse reino. Com efeito, seria da descendência de Davi, segundo a carne, o nosso rei, rei dos séculos com o qual haveríamos de reinar eternamente. Por conseguinte, tendo Deus escolhido Davi de antemão e predestinado ao reino, não quis que Davi reinasse antes de estar livre dos seus perseguidores. Nisto ele nos figurava, isto é, o corpo do qual Cristo é a Cabeça. Além disso, se nossa própria Cabeça não quis reinar no céu antes de ter realizado na terra o seu trabalho, nem elevar ao céu o corpo que recebeu na terra, a não ser pelo caminho da tribulação, por que hão de pretender seus membros serem mais felizes do que a Cabeça? “Se chamaram Beelzebu ao chefe da casa, quanto mais chamarão assim aos seus familiares” (Mt 10,25)! Não esperemos um caminho mais plano; vamos por onde ele nos precedeu, sigamos por onde nos conduziu. Se perdermos as suas pegadas, nós pereceremos. Vedes portanto, o que Davi prefigurava; vede também de que Saul era figura: o reinado péssimo em Saul, o bom reinado em Davi; a morte em Saul e a vida em Davi. Pois, só a morte nos persegue; dela triunfaremos no fim, dizendo: “Morte onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15,55). O que digo? Só a morte nos persegue? Digo isto porque se não fôssemos mortais, o inimigo nada de mal nos poderia fazer. Por acaso faz alguma coisa aos anjos? Portanto, mesmo a morte, da qual sofremos principalmente perseguição, e cujo aguilhão terminará no fim dos tempos, ao ressuscitarmos dos mortos, como acabou em nossa Cabeça, acabará também em nós, se então formos justos. Pois, ao morrer ele matou a morte. Antes morreu a morte nele do que ele, na morte. | |
§ 2 | Finalmente, se observarmos atentamente, o próprio nome encerra um mistério. Pois, Saul significa desejo, anelo. E como podemos duvidar que nós mesmos causamos a morte? A morte surgiu do pecado do homem. Com razão, portanto, o próprio homem desejou a morte, e por isso desejo seria nome da morte. Pois está escrito: “Deus não fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes. Tudo criou Deus para que subsista e fez cooperarem na salvação as nações do mundo”. E como se perguntasses de onde vem a morte, responde o livro da Sabedoria: “Mas os ímpios a chamam com gestos e com vozes, por ela se consomem, crendo-a sua amiga” (Sb 1,13.14.16). Por conseguinte, desejando-a eles se consumiram e se precipitaram na morte, como se fosse sua amiga, da mesma forma que o povo de Deus considerou que um rei seria um amigo, e pediram de fato, um inimigo. O povo extorquiu de Deus a possibilidade de ter um rei, e foi-lhe dado Saul. Foi como se o povo fosse entregue às mãos daqueles que chamaram a morte com gestos e palavras. Saul representava a morte. Por isso o salmo 17 tem por título: “No dia em que o Senhor o livrou da mão de todos os seus inimigos e da mão de Saul” (Sl 17,1). Disse primeiro: todos os seus inimigos, e em seguida: “da mão de Saul”, porque o último inimigo a ser destruído será a morte (cf 1Cor 15,26). Que significa: “da mão de Saul?” Que Cristo nos tirou das profundezas e nos libertou das mãos da morte. | |
§ 3 | Quando, pois, Saul perseguia o santo varão Davi, este fugiu para onde julgava ser um lugar seguro; passando pela casa de certo sacerdote chamado Aquimelec, dele recebeu alguns pães. Ali ele fez o papel não só de rei, mas também de sacerdote, porque comeu os pães da proposição, “que não era lícito comer” (Mt 12,4), conforme declara o Senhor no evangelho, a não ser os sacerdotes. Em seguida, Saul começou a procurá-lo, e encolerizou-se contra os seus porque ninguém queria lho entregar. Isto se lê no livro dos Reis (cf 1Rs 21 e 22). Achava-se ali certo Doeg, idumeu, chefe dos pastores de Saul, quando Davi esteve com o sacerdote Aquimelec. Estando presente quando Saul se encolerizava contra os seus porque nenhum queria trair a Davi, Doeg declarou onde o havia visto. Imediatamente Saul mandou chamar o sacerdote e toda a sua família e ordenou que fossem mortos. Nenhum dos homens do rei Saul ousou, nem mesmo com a ordem do rei, lançar mãos aos sacerdotes do Senhor. Mas aquele que o traíra como Judas, que não desistiu de seu propósito e perseverou nele até o fim, até que daquela raiz viessem os frutos (quais, senão os de uma árvore má?), este Doeg matou com as próprias mãos, obedecendo ao rei, o sacerdote e toda a sua família. Em seguida, foi passada ao fio da espada também a cidade dos sacerdotes. Vimos, portanto, como Doeg era inimigo do rei Davi e do sacerdote Aquimelec. Doeg foi um homem, mas representa determinada espécie de homens, como Davi corporalmente foi rei e sacerdote, um só homem e duas funções, mas representante de outra espécie de homens. Efetivamente, em nosso tempo e lugar vemos estas duas espécies, de sorte que nos é útil o que cantamos ou ouvimos cantar. Agora consideremos quem é Doeg, vejamos a estirpe real e sacerdotal, e pensemos na espécie de homens que é contra o rei e o sacerdote. | |
§ 4 | Em primeiro lugar verificai como são místicos os próprios nomes. Doeg se traduz por movimento; idumeu significa terreno. Logo verificais qual a espécie de homens representada por Doeg, este movimento, que não durará eternamente, mas partirá daqui. É terreno. Esperas de um homem terreno alguns frutos? O homem celeste é eterno. Existe, portanto, um reino terreno (para falar com brevidade e insinuar num instante) hoje neste mundo, onde está também o reino celeste. Ambos os reinos têm os peregrinos como seus cidadãos, o reino terreno e o reino celeste, o reino que há de ser arrancado e o reino que há de ser plantado eternamente. Agora, neste mundo, os cidadãos dos dois reinos estão misturados; o corpo do reino terreno e o do reino celeste estão mesclados. O reino celeste geme no meio dos cidadãos do reino terreno, e por vezes (pois nem isto devemos calar) de certo modo o reino terreno angaria os cidadãos do reino dos céus, e o reino celeste angaria os cidadãos do reino terreno. Ambas as coisas nós vos demonstraremos, baseados nas Escrituras de Deus. Daniel e os três jovens em Babilônia, prepostos aos negócios do rei (cf Dn 2,49); José no Egito, no segundo lugar, onde foi posto pelo rei para administrar os bens daquela “república” da qual o povo de Deus devia ser libertado; José era obrigado de certo modo a prestar serviço público ali, como aqueles três jovens, como Daniel (cf Gn 41,40). É manifesto que o rei do reino terreno o empregara em suas obras, isto é, nos trabalhos de seu reino, mas não para os seus feitos malvados, pois era cidadão do reino dos céus. E o reino dos céus, como emprega neste mundo durante certo tempo os cidadãos do reino terreno? Não era deles que o Apóstolo afirma que anunciavam o evangelho não sinceramente, mas desejando bens terrenos pregavam o reino dos céus e procurando os próprios interesses proclamavam a Cristo? E a fim de que saibais que eles foram tomados como mercenários para a obra do reino dos céus, o Apóstolo mesmo assim se regozija e diz a seu respeito: “É verdade que alguns anunciam o Cristo por inveja e porfia, não sinceramente, julgando com isso acrescentar sofrimento às minhas prisões. Mas que importa? De qualquer maneira, ou com segundas intenções ou sinceramente, Cristo é proclamado, e com isso eu me regozijo e me regozijarei” (Fl 1,17.18). Desses também fala Cristo nestes termos: “Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem mas não fazem” (Mt 23,2.3). O que dizem refere-se a Davi; o que fazem, contudo, refere-se a Doeg. Ouvi-me através deles, mas não os imiteis. Existem estas duas espécies de homens atualmente na terra. Deles canta o presente salmo. | |
§ 5 | 1.2 É o seguinte o título do salmo: “Para o fim. Inteligência. De Davi. Quando Doeg, o idumeu, veio dizer a Saul: Davi esteve na casa de Abimelec” e no entanto lemos que ele esteve na casa de Aquimelec. Talvez não percebamos por causa da semelhança dos nomes e da diferença de uma sílaba, ou antes de uma letra, que divergem os títulos. Nos códices dos salmos que examinamos, porém, encontramos Abimelec em vez de Aquimelec. Em outra passagem, num salmo com muita clareza, encontra-se não uma diferença pequena de nome, mas insinuado de fato outro nome. Efetivamente Davi mudou de fisionomia diante do rei Aquis e não diante de Abimelec. Despediu-se dele e partiu. O título do salmo assim foi re-gistrado: “Quando alterou a expressão do rosto diante de Abimelec” (Sl 33,1). A própria mudança de nome torna-nos atentos ao mistério, a fim de não procurarmos a realidade histórica, desprezando os véus do sentido sagrado. Naquele salmo, pesquisando o sentido do nome de Abimelec, encontramos a interpretação: reino de meu pai. Como foi que Davi deixou o reino de seu pai, e partiu, senão quando Cristo deixou o reino dos judeus e passou para os gentios? Daí também o espírito profético ao dar um título a este salmo não quis escrever Aquimelec, mas Abimelec, porque Davi foi traído quando foi ao reino de seu pai, a saber, quando veio nosso Senhor Jesus Cristo ao reino dos judeus — instituído por seu Pai, do qual ele disse: “O reino de Deus vos será tirado e confiado a um povo que produzirá seus frutos” e a justiça (Mt 21,43) —, então foi entregue à morte, conforme significa Saul. Não foi morto1 e nem Isaac, que foi uma figura da paixão do Senhor (cf. Gn 22,12); contudo, isso não se realizou sem a figura do derramamento de sangue; no segundo caso o sangue daquele cordeiro, e no primeiro o do sacerdote Aquimelec. Não convinha que fossem mortos aqueles que então não deviam ressuscitar; foi libertada sua vida do perigo de morte, apesar do derramamento de sangue; e ficou representada melhor a ressurreição de Jesus, que eles figuraram desta maneira, mas que era reservada ao Senhor. Muito mais poderia falar a este respeito, se neste sermão houvéssemos empreendido tratar dos mistérios escondidos naqueles fatos. | |
§ 6 | Agora ouçamos o que toca a essas duas espécies de homens, pois quanto ao título já tratamos, conforme Deus nos concedeu, embora com muito empenho e talvez com palavras demasiadas. Prestai atenção às duas espécies de homens seguintes: uma dos que sofrem, outra daqueles no meio dos quais se padece; uma dos que só pensam na terra, outra que cogita do céu; uma dos que mergulham o coração nas profundezas, outra dos que se unem de coração aos anjos; uma dos que esperam nos bens terrenos, que florescem neste mundo, outra dos que presumem alcançar os celestes, prometidos por um Deus que não mente. Mas estas duas espécies se acham misturadas. Podemos encontrar agora cidadão de Jerusalém, cidadão do reino dos céus cuidando de administração na terra. Quer dizer, usa vestes de púrpura, é magistrado, é edil, é procônsul, é imperador, governa uma república terrena; tem, contudo, o coração ao alto, se é cristão, fiel, piedoso, se despreza as coisas presentes e espera as futuras. Desta espécie foi aquela santa mulher Ester, que sendo esposa do rei, enfrentou o perigo de interceder em favor de seus concidadãos; e quando orava diante de Deus, onde não podia mentir, disse em sua oração que os ornamentos reais eram para ela como panos imundos (cf Est 14,16). Por conseguinte, não percamos a esperança a respeito dos cidadãos do reino dos céus, quando os virmos a administrar negócios em Babilônia, algo de terreno na república terrena; também não, ao contrário, nos congratulemos com todos os que vemos ocupar-se de questões celestes, porque também homens pestilentos sentam-se por vezes na cátedra de Moisés; deles foi dito: “Fazei quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem e não fazem” (Mt 23,3). Aqueles no meio das questões terrenas elevam o coração ao céu, estes ouvem palavras do céu e arrastam o coração pela terra. Virá o tempo de se limpar a eira, e então com diligência se distinguirá a palha do trigo, para que nenhum grão seja levado ao montão de palha para ser queimado, nem palha alguma passe junto com o trigo a ser recolhido no celeiro. Por conseguinte, enquanto estão misturados, ouçamos aqui a nossa voz, isto é, a voz dos cidadãos do reino dos céus (devemos empenhar-nos em tolerar aqui os maus antes que sermos tolerados pelos bons), e juntemos a esta a nossa voz, nosso ouvido, nossa língua, nosso coração e nossas obras. Se assim agirmos, nós é que falaremos com as palavras que ouvimos. Tratemos primeiro dos maus incorporados do reino da terra. | |
§ 7 | 3 “Por que te glorias de tua malícia, ó prepoten-te?” Observai, meus irmãos, a glória da perversidade, a glória dos homens malvados. Qual? “Por que te glorias de tua malícia, ó prepotente?” A saber, de que se gloria o pre-potente? É preciso ser poderoso, mas em bondade, não em malícia. É algo de grande gloriar-se na malícia? Poucos são os que sabem construir uma casa; para destruí-la qualquer tolo serve. Também de poucos é semear o trigo, cultivar a plantação, esperar que amadureça, alegrar-se com o resultado de seu trabalho; mas qualquer um pode com uma fagulha incendiar toda a messe. É grande tarefa aceitar um filho, nutri-lo depois de nascer, educá-lo, guiá-lo até a idade juvenil; qualquer um, porém, pode matá-lo num instante. Por conseguinte, tudo o que se faz para destruir é facílimo. Aquele que se gloria, no Senhor se glorie (cf. 1Cor 1,31); aquele que se gloria, glorie-se na bondade. Tu te glorias, ó prepotente, na malícia. Que hás de fazer, ó poderoso, que hás de fazer, tu que tanto te gabas? Hás de matar um homem. Mas, isto pode fazer um escorpião, uma febre, um tumor maligno. A isto se reduz todo o seu poder, a saber, igualar-te a um tumor maligno? Os bons cidadãos de Jerusalém se gloriam da bondade, não da malícia. Em primeiro lugar se gloriam no Senhor, não em si mesmos; em seguida, empenham-se em fazer o que serve para edifi-cação, e ações tais que mereçam perdurar; os atos destru-tivos são realizados em favor da educação dos que aproveitam e não para oprimir inocentes. Comparado aquele corpo terreno a este poder, como não lhe aplicar as palavras: “Por que te glorias de tua malícia, ó prepotente?” | |
§ 8 | 4 “Todos os dias a tua língua cogitou da injustiça. A injustiça todos os dias”, isto é, em todo tempo, sem cansaço, sem intervalo, sem pausa. E quando não a praticas, nela pensas; quando o mal se afasta das mãos, do coração não se afasta; ou praticas o mal, ou se não o podes fazer, proferes o mal, quer dizer, maldizes; ou quando nem isto é possível, queres e planejas o mal. “Todos os dias”, portanto, isto é, sem interrupção. Ficamos na expectativa do castigo deste homem. É pequeno o castigo para ele? Tu o ameaças; e ao ameaçares, que mal lhe desejas? Deixa-o a si mesmo. Por mais que te enfureças, só poderás lançá-lo às feras. Mas, em si mesmo ele é pior do que elas. A fera pode dilacerar o corpo; ele não deixa sadio o próprio coração. Inteiramente ele se maltrata, e tu procuras infligir-lhe ferimentos externos? Ao contrário, reza por ele a Deus, para que ele se liberte de si mesmo. Por causa disso, meus irmãos, este salmo não é uma oração em favor dos malvados, ou contra eles, mas uma profecia do que lhes acontecerá. Por conseguinte, não julgueis que o salmo emprega palavras malévolas, mas fala o espírito profético. | |
§ 9 | Como continua? Se toda a tua força, todo o teu pensamento maligno todos os dias, e os planos maldosos estão em tua língua sem interrupção, o que se produz? O que fazes? “Agiste dolosamente como navalha afiada”. Eis o que os maus fazem aos santos; raspam-lhe os cabelos. O que quero dizer? Se são cidadãos de Jerusalém, ouvem a palavra do Senhor, seu rei: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28), e escutam também a palavra que foi lida há pouco do evangelho: “Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida”? (Mt 16,26). Desprezam todos os bens presentes e ainda mais a própria vida. E que pode fazer a navalha de Doeg a um homem que nesta terra medita no reino dos céus e que há de entrar no reino dos céus, tendo Deus consigo e onde há de permanecer para sempre com Deus? Que fará aquela navalha? Raspará os cabelos, e fá-lo-á calvo. E isto se refere a Cristo, crucificado no Calvário. Fá-lo-á também ao filho de Coré, que significa calvície. Pois, os cabelos representam o supérfluo dos bens temporais. Em verdade, os cabelos não foram feitos por Deus como supérfluos no corpo humano, mas servem de algum ornamento; no entanto, como podem ser cortados sem que se sinta, aqueles que aderem de coração ao Senhor, consideram as riquezas terrenas como se fossem cabelos. Mas às vezes é possível praticar algum bem com os cabelos, por exemplo, partindo o pão com o que tem fome, abrigando o sem teto em casa, vestindo o nu (cf Is 58,7). Finalmente, os próprios mártires que imitaram o Senhor, derramando o próprio sangue pela Igreja, e atendendo àquela palavra: Como Cristo “deu a sua vida por nós, nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3,16), de certa maneira fazem o bem com seus cabelos, isto é, com o que aquela navalha pode cortar ou raspar. Também aquela mulher pecadora, que tendo derramado lágrimas sobre os pés do Senhor, enxugou-os com os cabelos, demonstra que com os cabelos é possível praticar algum bem (cf Lc 7,38). O que significava este ato? Significa que, ao te compadeceres de alguém, deves, se possível, igualmente socorrê-lo. Ao te compadeceres, derramas lágrimas; ao socorreres, enxugas com os cabelos. E se fazes isto a qualquer um, quanto mais aos pés do Senhor! Quais são os pés do Senhor? Os santos evangelistas, dos quais se disse: “Quão graciosos são os pés dos mensageiros, dos que anunciam a paz, dos que proclamam boas novas” (Is 52,7; Rm 10,15). Por conseguinte, afie Doeg a língua, qual navalha, aguce quanto puder seu dolo. Há de tirar os supérfluos temporais; acaso conseguirá tirar o necessário eternamente? | |
§ 10 | 5 “Preferiste o mal ao bem”. Diante de ti estava a bondade, para a amares. Não era preciso gastar alguma coisa, ou ir buscar através de uma longa navegação o que amar. A bondade está diante de ti, e a maldade diante de ti. Compara e escolhe. Mas talvez tenhas olhos para ver a malvadez e não os tenhas para ver a bondade. Ai do coração iníquo! E o que é pior, desvia o olhar para não ver o que poderia ver. Que se diz destes homens em outra passagem? “Não quis entender para agir bem”, não foi dito: não pôde; mas: “Não quis entender para agir bem”, fechou os olhos à luz. Qual a conseqüência? “No leito tramou o crime” (Sl 35,4.5), quer dizer, no íntimo segredo de seu coração. Coisa semelhante se lança em face a Doeg, o idumeu, o corpo maligno, morto e terreno, que não persistirá, não é celeste. “Preferiste o mal ao bem”. Pois, queres saber como o mau vê ambas as coisas, e escolhe uma e rejeita outra? Por que é que grita quando sofre algum mal? Qual o motivo por que então exagera quanto pode a maldade, e louva a bondade, censurando aquele que agiu para com ele, preferindo o mal ao bem? Seja a seguinte a regra para seu modo de viver: será julgado de acordo com o seu modo de ser. Com efeito, se cumprir o que foi escrito: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39); e: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7,12), em si mesmo encontrará meios de saber porque não deve fazer a outrem o que não quer que se lhe faça (Tb 4,16). “Preferiste o mal ao bem”. De maneira iníqua, desordenada, perversa queres colocar a água acima do óleo; a água vai para o fundo e o óleo sobe. Queres encobrir a luz com as trevas; afugentam-se as trevas e a luz permanece. Queres colocar a terra acima do céu; por seu peso a terra volta a seu lugar. Tu, portanto, afundas, amando mais o mal que o bem. Mas, a maldade jamais superará a bondade. “Preferiste o mal ao bem, a mentira à eqüidade”. Acha-se diante de ti a eqüidade, e também diante de ti a iniqüidade. Tens uma só língua e a diriges para o lado que escolheres. Por que escolherás a iniqüidade e não a eqüidade? Não ingeres alimentos amargos para o teu estômago, e dás à tua língua maligna alimentos iníquos? Como escolhes o que comer, assim deves escolher o que falar. Portanto, preferes a iniqüidade à eqüidade, e preferes o mal ao bem. Tu, de fato, escolhes, mas o que pode estar em cima a não ser a bondade e a eqüidade? Mas tu, impondo de certo modo a ti mesmo ter em cima as coisas que necessariamente se colocam em baixo, não consegues colocá-las acima do bem, mas, ao invés, tu mergulharás com elas no mal. | |
§ 11 | 6 Por esta razão continua o salmo: “Só gostas de palavras que submergem”. Livra-te, se puderes, de seres afogado. Foges do naufrágio, e agarras-te a um pedaço de chumbo! Se não queres naufragar, agarra uma tábua, sobe a um pedaço de madeira, e que a cruz te conduza. Agora, porém, como és Doeg, idumeu, movimentado e terreno, que farás? “Só gostas de palavras que submergem, ó língua pérfida”. A língua pérfida precede, em seguida vêm as palavras que afogam. Que é língua pérfida? A língua pérfida é escrava da falácia. É própria dos que têm uma coisa no coração e proferem outra com a boca. Mas em tudo isso há subversão, em tudo naufrágio. | |
§ 12 | 7 “Por isso Deus te há de destruir para sempre”, apesar de pareceres agora verdejante como o feno no campo antes de o ardor do sol o atingir. Toda carne é feno e toda a sua graça como a flor do campo. Seca o feno e mur-cha a flor, mas a palavra do Senhor subsiste para sempre (cf Is 40,6.8). É a isto que deves visar: o que permanece eternamente. Pois se te apegares ao feno e à flor, uma vez que o feno fenece e a flor murcha, “Deus te há de destruir para sempre”. Apesar de não o fazer agora, certamente no fim há de destruir, quando vier aquela ventilação, e o acervo de palha for separado do trigo. O trigo não irá para o celeiro e a palha para o fogo? Todos os que pertencem a Doeg estarão à esquerda, quando o Senhor há de dizer: “Ide malditos para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”? (Mt 3; 13,40; 25,41). Portanto, “Deus te há de destruir para sempre. Há de te arrancar e remover de tua tenda”. Agora, pois, este idumeu, Doeg, está na tenda; mas o escravo não permanece na casa (cf Jo 8,35). Ele também faz alguma coisa boa; se não por suas ações, ao menos por causa da palavra de Deus, de maneira que se procurar na Igreja apenas seus próprios interesses (Fl 2,21), ao menos profira as palavras de Cristo. “Mas há de te remover de tua tenda. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa” (Mt 6,2). “E de extirpar as tua raízes da terra dos vivos”. Com efeito, devemos ter as raízes na terra dos vivos. Lá esteja a nossa raiz. A raiz é oculta. Os frutos são visíveis, mas a raiz não. Nossa raiz é a caridade e nossos frutos são nossas obras. É preciso que tuas obras procedam da caridade. Então, tua raiz estará na terra dos vivos. De lá é arrancado este Doeg, e de forma nenhuma ele poderia lá permanecer, porque lá não aprofundou suas raízes; mas como aquelas sementes que caíram sobre a pedra, embora lancem raízes, logo que o sol se levantar murcham, por falta de umidade (cf Mt 13,5). Ao invés, o que ouvem do Apóstolo os que aprofundam suas raízes? “Eu dobro os joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, para que sejais arraigados e fundados no amor”. Aí está a raiz: “para compreenderdes qual é a largura e o cumprimento, e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento, para vos encherdes com toda a plenitude de Deus” (Ef 3,14.16-19). De tais frutos é digna a grande raiz que é tão simples, tão vigorosa, e cujo germe penetrou tão profundamente. Ao invés, a raiz acima referida será arrancada da terra dos vivos. 1 A saber, Davi. | |
§ 13 | 8 “Os justos hão de ver e temer. Rir-se-ão dele”. Quando temerão? Quando haverão de rir? Entendamos bem, portanto, e distingamos estes dois termos, de temer e de rir, porque isto é muito útil. Enquanto nos achamos neste mundo, ainda não é tempo de rir, a fim de que depois não tenhamos de chorar. Lemos o que está reservado para Doeg no final. Lemos, e visto que entendemos e cremos, vemos mas tememos. Por isto foi dito: “Os justos hão de ver e temer”. Quando só vemos o que há de advir no final aos maus, por que devemos temer? Porque o Apóstolo disse: “Operai a vossa salvação com temor e tremor” (Fl 2,12). E foi dito no salmo: “Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Por que motivo com temor? “Assim, pois, aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair” (1 Cor 10,12). Qual a razão de temer? Porque em outra passagem exorta o Apóstolo: “Irmãos, caso alguém seja apanhado em falta, vós, os espirituais, corrigi esse tal com espírito de mansidão, cuidando de ti mesmo, para que também tu não sejas tentado” (Gl 6,1). Por isso, os justos de hoje, que vivem da fé, vêem o que há de suceder a este Doeg, e temem por si mesmos. Sabem o que são hoje, mas desconhecem o que serão amanhã. “Agora, portanto, os justos hão de ver e temer”. Quando, porém, é que haverão de rir? Quando houver passado a iniqüidade, quando tiver decorrido, como já em grande parte transcorreu o tempo incerto, quando forem afugentadas as trevas deste século, nas quais andamos tendo por luz apenas as Escrituras; por isso temos medo como quem caminha à noite. Andamos à luz das profecias, das quais declara o apóstolo Pedro: “Temos por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em vossos corações” (11 2Pd 1,19). Efetivamente, enquanto andamos a esta luz, necessariamente vivemos com temor. Ao chegar, porém, o nosso dia, isto é, a manifestação de Cristo, da qual afirma o mesmo Apóstolo: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória” (Cl 3,4). Então, os justos se rirão deste Doeg. Não haverá mais possibilidade de socorro. Não será como agora, pois se vês um homem de vida má, esforça-te por ajudá-lo a se corrigir. Pois, quem é injusto pode se converter em justo, como também o justo pode se perverter, e tornar-se injusto. Por isso, não presumas de ti mesmo, nem percas a esperança a respeito do injusto. À medida de tuas possibilidades, se és bom, se não preferes o mal ao bem, corrige o homem que segue por um mau caminho e traz o errante para o caminho reto. Então, ao chegar o dia do juízo, não haverá mais possibilidade de correção, mas somente de condenação; haverá remorso, mas sem fruto, porque tardio. Queres que a penitência seja frutuosa? Que não venha tarde demais. Corrige-te hoje. Tu és réu e Cristo é juiz. Corrige a culpa, e alegrar-te-ás diante do juiz. Hoje ele te exorta a fim de não te condenar no juízo. Hoje é teu advogado aquele que será teu juiz. Por conseguinte, irmãos, haverá tempo oportuno para rir. Quanto às zombarias dos maus, em relação aos justos, estão descritas no livro da Sabedoria. Esta fará nos seus, aos quais se comunicou, o que disse: “Recusastes os meus conselhos e não aceitastes minha exortação: por isso rir-me-ei da vossa desgraça” (Pr 1,24-26). É o que farão os justos a este Doeg. Agora, porém, vejamos e temamos, para não nos acontecer o que dissemos contra ele. E se éramos iguais, deixemos de sê-lo, de sorte que agora tenhamos temor e depois riamos. | |
§ 14 | 9 Que dirão, então, os que haverão de rir? “Rir-se-ão dele e dirão: Eis o homem que não tomou a Deus por protetor”. Vede o corpo terreno. Vales tanto quanto tens! — é provérbio dos avaros, dos ladrões, dos que oprimem os inocentes, dos que invadem os bens alheios, dos que negam o que lhes foi entregue em penhor. Qual o sentido deste provérbio? Vales tanto quanto tens, isto é, quanto mais dinheiro tiveres, quanto mais adquirires, tanto maior poder terás. “Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas depositou confiança na afluência de suas riquezas”. Não diga um pobre, malvado talvez: Não pertenço a este grupo. Ele ouviu o profeta dizer: “Depositou confiança na afluência de suas riquezas”. Logo, se é pobre, olha seus farrapos, vê talvez junto de si um rico do povo de Deus bem vestido e diz em seu coração: O profeta fala dele; mas, de mim? Não te isentes, não separes, a não ser que vejas com temor a fim de depois poderes rir. Pois, que te adianta carecer de bens e arder de cobiça? Quando nosso Senhor Jesus Cristo disse àquele rico, entristecido porque ele lhe dissera: “Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21), e predisse aos ricos grande motivo de desânimo, dizendo ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus, os discípulos imediatamente se constristaram, dizendo a si mesmos: “Quem poderá então salvar-se?” (Mt 19,24.25). Portanto, ao dizerem: “Quem então poderá salvar-se?” visavam ao pequeno número dos ricos; desconheciam tão grande multidão de pobres? Não podiam dizer a si mesmos: Se é difícil, até impossível que os ricos entrem no reino dos céus, como é impossível que um camelo passe pelo buraco de uma agulha, todos os pobres entrarão no reino dos céus, com exclusão apenas dos ricos? Quantos são, então, os ricos? Ao invés, os pobres são inumeráveis, aos milhares. Não haveremos de examinar no reino dos céus as túnicas, mas o fulgor da justiça servirá de veste a cada um. Serão, portanto, os pobres iguais aos anjos de Deus. Vestidos com a túnica da imortalidade, fulgirão como o sol no reino de seu Pai (cf Mt 13,43); por que nos preocuparmos com uns poucos ricos, ou nos empenharmos em seu favor? Não foi assim que pensaram os apóstolos; mas quando o Senhor declarou: “É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”, eles disseram a si mesmos: “Quem então poderá salvar-se?” A que deram atenção? Não às riquezas, mas à cobiça. Eles viram que os próprios pobres, apesar de não terem dinheiro, têm avareza. No intuito de saberdes que é condenada no rico não a riqueza, mas a avareza, ficai atentos ao que digo: Tens a teu lado aquele rico; talvez tenha dinheiro, mas não avareza, enquanto tu não tens dinheiro e és avaro. Certo pobre coberto de úlceras, atribulado, lambido por cães, não tendo recursos, nem alimento e talvez nem mesmo veste, foi levado pelos anjos ao seio de Abraão (cf Lc 16,22). Ó pobre, tu te alegras com isso; deves então desejar as úlceras? Tua saúde não é um patrimônio? O mérito de Lázaro não está na pobreza, mas na piedade. Sabes quem foi levado, mas não vês para onde foi levado. Quem foi levado pelos anjos? Um pobre, atribulado, ferido. Para onde foi levado? Para o seio de Abraão. Lê as Escrituras; verificarás que Abraão era rico (Gn 13,2). Assim reconheces que as riquezas não são culposas. Abraão possuía muito ouro, prata, rebanhos, servos. Era rico, e foi para seu seio que o pobre Lázaro foi levado. Um pobre no seio de um rico. Ou antes, não seriam ambos ricos diante de Deus e pobres de ambições? | |
§ 15 | Que incrimina a Escritura em Doeg? Não disse: Eis um homem que foi rico; mas: “Eis o homem que não tomou a Deus por protetor, mas depositou confiança na afluência de suas riquezas”. Não foi pelo fato de possuir riquezas, mas porque nelas depositou confiança e não esperou em Deus que é condenado, punido, removido da tenda, como aquele movimentado e terreno, como a poeira que o vento carrega da superfície da terra (Sl 1,4). Por isso, a sua raiz é extirpada da terra dos vivos. Acaso seriam semelhantes a eles os ricos, dos quais o apóstolo Paulo trata: “Aos ricos deste mundo, exorta-os a que não sejam orgulhosos, como Doeg; nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza, como ele depositou confiança na afluência de suas riquezas; mas em Deus”, vivo, não como aquele que “não tomou a Deus por protetor?” Finalmente que ordem lhes dá? “Enriqueçam-se com boas obras; sejam pródigos, capazes de partilhar” (1 Tm 6,17.18). E que lhes acontecerá se forem pródigos, capazes de partilhar com os que nada têm? Entrarão pelo buraco da agulha? Certamente entrarão: pois em seu lugar o próprio camelo já entrou. Entrou primeiro aquele que, como a um camelo ninguém imporia o peso da paixão, se ele mesmo não se abaixasse até o chão. Por este motivo é que ele disse: “Ao homem isto é impossível, mas a Deus tudo é possível” (Mt 19,26). Seja condenado portanto, este Doeg, temam a respeito dele agora os justos, e riam-se depois. É justo que seja condenado quem não “tomou a Deus por protetor”, como tu; talvez possuas dinheiro; mas presumes de Deus, não do dinheiro. “Mas depositou confiança na afluência de suas riquezas”; assemelhou-se àqueles que, tendo afirmado: Feliz o povo que possui tais bens, isto é, os bens terrenos, replicou o salmista, atacando a Doeg: “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus”. Pois, o salmo 143 enumera os bens aos quais se atribui a felicidade de um povo. Eles falaram como filhos estranhos, como este Doeg, idumeu, isto é, terreno: “Cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua. Seus filhos são sarmentos, novos, fortes desde a sua juventude. Suas filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transbordantes de toda espécie de frutos. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Seus bois são cevados. Não há brechas nas sebes, nem ruína ou clamor em suas praças” (Sl 143,11-15). Parece que consideram como a maior felicidade ter a paz terrena. Mas aquele que é terreno, também é instável, quer dizer, é como a poeira que o vento carrega da superfície da terra. Enfim, o que se censura neles? Não é a posse de bens, porque há também bons que possuem riquezas; então, o quê? Atenção. Não se deve censurar indistintamente os ricos, nem presumir acerca da pobreza e da indigência. Se, pois, não se deve presumir das riquezas, quanto mais da pobreza, e sim do Deus vivo? Em que, portanto, eles são advertidos? Porque “denominam feliz quem goza destes bens”. São filhos estranhos estes, “cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua”. E tu que dizes? “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus”. | |
§ 16 | 10 Por conseguinte, é condenado aquele que “depositou confiança na afluência de suas riquezas e prevaleceu-se de sua vaidade”, pois que pode haver de mais fútil do que pensar que o dinheiro vale mais do que Deus? Com efeito, condenado aquele que declarou: “Feliz quem goza destes bens” tu que, ao contrário, afirmas: “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus” o que pensas de ti mesmo? Que esperas? “Eu, porém” — já se ouve aquele corpo; “Eu, porém, como oliveira verdejante na casa de Deus”. Não é um só homem que fala, mas aquela oliveira verdejante, de onde foram tirados os ramos soberbos, e enxertada a oliveira silvestre (cf Rm 11,17). “Como oliveira verdejante na casa de Deus, esperei na misericórdia de Deus”. E o outro? “Na afluência de suas riquezas” e em conseqüência sua raiz será extirpada da terra dos vivos. “Eu, porém, como oliveira verdejante na casa de Deus”, tenho a raiz alimentada, não arrancada e “esperei na misericórdia de Deus”. Mas, seria agora? Nisto erram às vezes os homens. Adoram, de fato, a Deus, e já não são semelhantes a Doeg; mas embora presumam a respeito de Deus, é somente em relação aos bens temporais, de modo que dizem a si mesmos: Adoro a meu Deus, que me fará rico na terra, que me dará filhos, que me concederá uma esposa. Tais bens, efetivamente, somente Deus pode dar, mas não quer ser amado por causa deles. Por isso, freqüentemente os dá também aos maus, a fim de que os bons procurem obter dele dons diferentes. Como, então, dizes: Esperei na misericórdia de Deus? Talvez seria para obter bens temporais? Ao contrário, “para sempre e nos séculos dos séculos”. Havendo dito: “para sempre” quis repetir, acrescentando: “nos séculos dos séculos”, para confirmar pela repetição quão firme estava no amor ao reino dos céus, e na esperança da felicidade eterna. | |
§ 17 | 11 “Louvar-te-ei eternamente por aquilo que fizeste. Que fizeste?” Condenaste Doeg e coroaste a Davi. “Louvar-te-ei eternamente por aquilo que fizeste”. Grande louvor: que fizeste! Qual a tua obra senão a referida acima: que eu, como oliveira verdejante na casa de Deus, esperasse na misericórdia de Deus para sempre e nos séculos dos séculos? Tu “fizeste”. O ímpio não pode fazer-se justo por si mesmo. Mas quem é que justifica? Diz o Apóstolo: “Ao que crê naquele que justifica o ímpio” (Rm 4,5). “Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer se não o tivesses recebido” (1 Cor 4,7), como se o tivesses por ti mesmo? Longe de mim gloriar-me deste modo, declara o opositor de Doeg, que o tolera na terra até que ele emigre da tenda e seja extirpado da terra dos vivos. Não me glorio como se não tivesse recebido, mas glorio- me em Deus. “Louvar-te-ei por aquilo que fizeste, a saber, porque foste tu que fizeste, não por meus méritos, mas devido a tua misericórdia. Eu, portanto, o que fiz? Se te lembras: “Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Tu porém, o que fizeste? Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância” (1 Tm 1,13). “Louvar-te-ei eternamente por aquilo que fizeste”. | |
§ 18 | “E esperarei em teu nome, porque é suave”. O mundo é amargo, mas teu nome é suave. E se o mundo oferece alguns alimentos agradáveis, são amargos para digerir. Teu nome está acima, não só em grandeza, mas também em suavidade. Os injustos me falaram de seus deleites, mas eles não igualam a tua lei, Senhor (cf Sl 118,85). Se nada de suave houvesse para os mártires, não suportariam de ânimo tranqüilo tantas amarguras das tribulações. A amargura era sentida por todos; quanto à suavidade não era fácil a qualquer um experimentá-la. O nome de Deus, portanto, é suave para os que o amam, acima de todos os deleites. “Esperarei em teu nome, porque é suave”. E como provas que é suave? Mostra-me a qual paladar ele é suave. Louva o mel quanto puderes, exagera sua suavidade com quantas palavras tiveres; ao que ignora o que seja o mel, se não o provar, não perceberá o que dizes. Por isso, outro salmo, ao convidar para experimentares, como se exprime? Provai e vede como é suave o Senhor”. Não queres provar e perguntas: É gostoso? Como será gostoso? Se experimentares. O gosto está no fruto que deres e não apenas em tuas palavras, que seriam somente folhas e merecerias a maldição do Senhor e secarias como aquela figueira (cf Mt 21,19). “Provai e vede como é suave o Senhor” (Sl 33,9). “Provai e vede”. Verás se provares. Como comprovarás isto a quem não o experimentar? Se louvas a suavidade do nome de Deus, por mais que falares, são palavras; o gosto é outra coisa. Até os ímpios ouvem as palavras de louvor; mas não experimentam quão suave é, não os santos. Por isso, o salmista sentindo a suavidade do nome de Deus, e querendo explicar, mostrar, não encontra como fazê-lo. De fato, aos santos não há necessidade de mostrar porque eles mesmos provam e sabem; os ímpios não podem entender o que não provam. O que fazer então da suavidade do nome de Deus? Ele se separa imediatamente da turba dos ímpios: “E esperarei em teu nome, porque é suave na presença de seus santos”. Suave é teu nome, mas não na presença dos ímpios. Eu sei o quanto é suave, mas para aqueles que o experimentaram. | |