SALMO 𝟜

Responde-me quando eu clamar, ó Deus da minha justiça!

Na angústia me deste largueza; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 4


§ 4:1  Responde-me quando eu clamar, ó Deus da minha justiça! Na angústia me deste largueza; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração.

§ 4:2  Ƒ Filhos dos homens, até quando convertereis a minha glória em infâmia? Até quando amareis a vaidade e buscareis a mentira?

§ 4:3  Sabei que o Senhor separou para si aquele que é piedoso; o Senhor me ouve quando eu clamo a ele.

§ 4:4  Irai-vos e não pequeis; consultai com o vosso coração em vosso leito, e calai-vos.

§ 4:5  Oferecei sacrifícios de justiça, e confiai no Senhor.

§ 4:6  ɱ Muitos dizem: Quem nos mostrará o bem? Levanta, Senhor, sobre nós a luz do teu rosto.

§ 4:7  Puseste no meu coração mais alegria do que a deles no tempo em que se lhes multiplicam o trigo e o vinho.

§ 4:8  Em paz me deitarei e dormirei, porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança.


O SALMO 4



§ 1
1 “Para o fim. Salmo. Cântico de Davi”.

A finalidade da lei é Cristo para a justificação de todo o que crê(Rm 10,4).

Fim”, aqui, siginifica perfeição, não aniquilamento. É viável a pergunta se todo cântico é salmo, ou se qualquer salmo é cântico, ou ainda se existem cânticos que não devam ser denominados salmos e salmos aos quais não convém o nome de cânticos. Mas, verifique-se nas Escrituras se cânticos não indicariam alegria, enquanto salmos seriam as composições acompanhadas ao saltério. Narra a história ter o profeta Davi utilizado o saltério (1 Cor 13,8 e 16,5), no grande mistério do culto. Não seria oportuno agora dissertar sobre a questão, que exige diuturna pesquisa e longa discussão. Por enquanto vejamos este salmo como palavras do homem-Senhor, após a ressurreição, ou na Igreja, do homem que nele crê e espera.



§ 2
2 “Ao invocá-lo, ouviu-me Deus, minha justiça”.

Ao invocá-lo, ouviu-me Deus, do qual procede a minha justiça.

Na tribulação, puseste-me ao largo”.

Das angústias da tristeza conduziste-me à amplidão das alegrias.

Tribulação e angústia para todo aquele que pratica o mal(Rm 2,9).

Mas quem declara:

Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança”, até o trecho:

Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,3.5), não sente angústia no coração, embora os perseguidores a incutam de fora. Se a mudança de pessoa: da terceira, “ouviu”, imediatamente à segunda, “me dilataste”, não foi introduzida para variar e suavizar as expressões, acho estranho que primeiro pareça indicar aos homens que foi ouvido e só depois fazer exigências àquele que o atendeu. A não ser que, após ter declarado como foi ouvido, pelo alívio que teve no coração, preferiu falar com Deus. Deste modo mostrou o que é alívio para o coração, a saber, já ter a Deus infuso em seu coração. Com ele fala em seu íntimo. Isto bem se aplica àquele que, acreditando em Cristo, foi iluminado. Não vejo, porém, como possa convir ao homem-Senhor, assumido pela Sabedoria de Deus, pois não foi em tempo algum abandonado por ela. Mas, como a sua própria súplica é antes indício de nossa fraqueza, assim deste repentino alívio do coração pode o mesmo Senhor falar em lugar dos fiéis, cujas vezes ele fez também quando disse:

Tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber(Mt 25,35) etc. Por isso, igualmente, pode dizer aqui, “me dilataste”, em lugar de um dos pequeninos que são seus, dirigindo-se a Deus, cuja caridade foi difundida em seu coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado.

Compadece-te de mim, e ouve a minha oração”.

Por que roga novamente, se já declarou que foi ouvido e aliviado? Será por nossa causa, uma vez que foi declarado:

E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,25), ou para que se complete no fiel o que foi começado?



§ 3
3 “Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido?” Se ao menos só até o advento do Filho de Deus perdurasse o vosso erro. Por que depois ainda tendes o coração empedernido? Quando haveis de pôr termo às mentiras, se mesmo na presença da verdade não o conseguis? “Por que amais a ilusão e procurais a mentira?” Por que buscais a felicidade em futilidades? Só a verdade, que torna verdadeiras todas as coisas, faz-nos felizes. A vaidade é dos frívolos, e tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,2.3).

Por que vos deterdes no amor às coisas temporais? Qual o motivo de irdes atrás de coisas ínfimas, isto é, de vaidade e mentira, como se fossem o principal? Desejais que permaneçam convosco todas essas coisas que passam como sombras.



§ 4
4 “E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo”.

Qual santo senão aquele que Deus ressuscitou da região dos mortos e colocou no céu à sua direita? O gênero humano é convidado a “finalmente” se converter do amor deste mundo para o Senhor. Se alguém ficar intrigado com o acréscimo da conjunção “e” ao verbo “compreendei”, não lhe será difícil descobrir nas Escrituras a frequência desta espécie de locução na língua em que os profetas falaram. Muitas vezes se encontra este início: E o Senhor lhe falou. E foi-lhe dirigida a palavra do Senhor. Se a sentença anterior não se liga à subsequente, a conjunção talvez insinue de modo admirável que a enunciação da verdade pela voz se une à visão do coração. A frase anterior “Por que amais a ilusão e procurais a mentira?” poderia equivaler a: Não ameis a vaidade nem busqueis a mentira. Dito isso, segue-se com plena exatidão:

E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo”.

Mas a interposição do “diapsalma” impede a junção desta frase com a anterior.

Diapsalma” pode vir do hebraico, conforme opinião de alguns, e significa: faça-se; ou do grego, e marca intervalo na salmodia. Denomina-se salmo o que é cantado, e diapsalma, a pausa na salmodia. Como simpsalma significa a união das vozes no canto, diapsalma representaria a separação entre elas, certa pausa, interrupção. Seja isso, aquilo ou ainda outra coisa, há muita probabilidade de que onde se achar intercalado o diapsalma não se deve continuar, nem unir o sentido.



§ 5
O Senhor me ouvirá, quando a ele clamar”.

Creio tratar-se de uma exortação a implorarmos o auxílio de Deus com grande ardor do coração, com clamor íntimo e espiritual. É mister congratular-nos com as luzes recebidas nesta vida; e cabe-nos suplicar o repouso depois dela. Por isso, quer se aplique ao fiel evangelizador, quer ao próprio Senhor, entenda-se: O Senhor vos ouvirá quando a ele clamardes.



§ 6
5 “Irai-vos e não pequeis”.

É possível ocorrer a pergunta: Quem será digno de ser ouvido, ou como não clamará o pecador em vão ao Senhor? Por isso diz o salmista:

Irai-vos e não pequeis”.

Há dois modos de se entender isso. Ou: Mesmo se vos irardes, não pequeis, isto é, apesar de surgir a emoção, que não está em vosso poder em consequência do pecado, ao menos a razão e o espírito não consintam, eles que foram regenerados interiormente segundo Deus, de modo que pela mente sirvamos à lei de Deus, se ainda pela carne servimos à lei do pecado (Rm 7,26).

Ou então: Fazei penitência, isto é, irai-vos contra vós mesmos por causa dos pecados passados e doravante deixai de pecar.

O que dizeis em vossos corações”.

Subentende-se: Dizei-o, de sorte que a frase integral seria: O que dizeis, proferi-o em vossos corações, isto é, não sejais o povo do qual se afirmou:

Honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim (Is 29,13).

Tende compunção em vossos leitos”.

É repetição do que foi dito supra:

Em vossos corações”.

São os aposentos, dentro dos quais o Senhor nos exorta a orarmos com as portas fechadas (Mt 6,6).

Tende compunção”, porém, ou se refere à dor da penitência, de sorte que a alma, castigando-se a si mesma, se arrependa a fim de não ser condenada no juízo de Deus e atormentada, ou é relativo ao despertar e usa de um estímulo para vermos bem despertos a luz de Cristo. Alguns, todavia, preferem a leitura:

abri-vos” e não:

arrependei-vos”, porque no saltério grego acha-se katanoígete, em referência à abertura do coração necessária para se receber a efusão da caridade, realizada pelo Espírito Santo.



§ 7
6 “Oferecei um sacrifício de justiça e esperai no Senhor”.

A mesma coisa encontra-se em outro salmo:

Sacrifício a Deus é o espírito contrito(Sl 50,10).

Não é absurdo considerar aqui sacrifício de justiça o efetuado através da penitência. Que de mais justo do que aborrecer antes os próprios pecados do que os alheios, e castigando-se a si mesmo, sacrificar-se a Deus? Ou sacrifício de justiça seriam as obras justas depois da penitência? Pois o “diapsalma” intercalado talvez insinue com justeza a passagem de uma vida velha a uma vida nova, de tal maneira que extinto ou enfraquecido pela penitência o velho homem, se ofereça a Deus um sacrifício de justiça, segundo a regeneração do homem novo, quando a própria alma, já purificada, a si mesma se oferta e coloca sobre o altar da fé, para ser consumida pelo fogo divino, o Espírito Santo. O sentido seria então:

Oferecei um sacrifício de justiça e esperai no Senhor”, isto é, vivei com retidão e esperai o dom do Espírito Santo, a fim de que a verdade, na qual acreditastes, vos ilumine.



§ 8
7 Mas, “esperai no Senhor” é frase incompleta. O que se espera senão os bens? Cada qual deseja obter de Deus o bem que ama; é difícil, contudo, encontrar quem ame os bens interiores, pertencentes ao homem interior, únicos dignos de serem amados; e os demais devem ser utilizados segundo a necessidade e não por prazer. Por isso, o salmista tendo dito admiravelmente:

Esperai no Senhor”, acrescentou: Muitos dizem:

Quem nos dará a felicidade?” Tal palavra, tal interrogação é de todos os dias da parte dos estultos e maus. Ou é dos desejosos da paz e tranquilidade da vida no século, que não as encontram por causa da perversidade do gênero humano; em sua cegueira ousam acusar a ordem do universo, enquanto envolvidos no que merecem, julgam os tempos atuais piores do que os passados. Ou é dos ainda hesitantes ou desesperados em relação à vida futura, a nós prometida, que dizem muitas vezes: Quem sabe se é verdade, ou quem voltou dos infernos para contar essas coisas? Esplêndida e brevemente mostrou o salmista, mas somente aos que veem interiormente, quais os bens desejáveis, respondendo à interrogação:

Quem nos dará a felicidade? Está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face”.

Esta luz constitui o bem total e verdadeiro do homem, vista não com os olhos, mas com o intelecto.

Assinalada em nós”.

Como o cenário é cunhado com a efígie do rei, o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), mas pecando corrompeu-a. É, portanto, seu bem verdadeiro e eterno ser assinalado, ao renascer. Conforme a opinião prudente de alguns, penso que foi por isto que o Senhor, tendo observado a moeda de César, disse:

Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus(Mt 22,21), como se quisesse declarar: César exige de vós o cunho de sua imagem; o mesmo reclama Deus. Como se restitui a moeda a César, se restitua a Deus a alma iluminada e assinalada pela luz de sua face.

Tu me deste alegria ao coração”.

Por conseguinte, aqueles que ainda têm o coração empedernido, amam a vaidade e procuram a mentira, não busquem a alegria fora de si, e sim no interior, onde está assinalada a luz da face de Deus. Cristo habita no homem interior (Ef 3,17), diz o Apóstolo. A esse homem cabe a verdade, pois Cristo afirmou:

Eu sou a Verdade(Jo 14,6).

E ao falar Cristo no Apóstolo, que perguntava:

Procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim?(2 Cor 13,3), não se dirigia a ele exteriormente, mas no próprio coração, a saber, naquele recinto onde se deve orar (cf. Mt 6,6).



§ 9
8.9 Os homens, certamente muito numerosos, que andam à busca de bens temporais, apenas souberam dizer:

Quem nos dará a felicidade?” porque não sabem ver os bens verdadeiros e certos dentro de si mesmos. Por conseguinte, ainda se diz a seu respeito:

No tempo de seu trigo, vinho e óleo se multiplicaram”.

Não é supérfluo o acréscimo da palavra “seu”.

Há também um trigo de Deus, na verdade, o pão vivo descido do céu (Jo 6,51); existe igualmente um vinho de Deus, pois “inebriar-se-ão na abundância de tua casa(Sl 35,9).

Existe ainda um óleo de Deus, do qual se disse:

Ungiste com óleo a minha cabeça(Sl 22,5).

Todavia, os muitos que dizem:

Quem nos dará a felicidade?” e não veem o reino dos céus dentro de si mesmos (Lc 17,21), “no tempo de seu trigo, vinho e óleo se multiplicaram”.

Multiplicação nem sempre significa abundância. Por vezes significa penúria. A alma entregue aos prazeres temporais arde de desejos insaciáveis e dissipada em inúmeros e atribulados pensamentos, acha-se impedida de ver o bem em sua simplicidade. Assim acontece à alma da qual se diz:

Um corpo corruptível pesa sobre a alma — tenda de argila — oprime a mente pensativa(Sb 9,15).

Esta alma, pelas vicissitudes dos bens temporais, isto é, no tempo de seu trigo, vinho e óleo, cheia de inumeráveis fantasias, sente-se de tal modo dispersa que fica impossibilitada de praticar o preceito:

Pensai no Senhor com retidão, procurai-o com simplicidade de coração(ib. 1,1).

Tal dispersão opõe-se diametralmente àquela simplicidade. Por isso, deixando de lado tantos homens, dissipados devido à ambição dos bens temporais, que perguntam:

Quem nos dará a felicidade?”, felicidade esta que não há de ser procurada exteriormente com os olhos e sim no íntimo do coração simples, o fiel exultante profere:

Em paz, logo adormecerei e descansarei em profundo sono”.

Destes espera-se, com razão, afastamento espiritual completo das coisas passageiras e esquecimento das misérias deste mundo, significadas de maneira conveniente e profética com os termos adormecer e sono, lá onde a paz suprema não é interrompida por tumulto algum. Tal meta não se alcança nesta vida, mas na outra. Mostram-no os próprios verbos no futuro. Não se disse: Adormeci e dormi profundamente, ou: Adormeci e durmo profundamente, e sim:

Adormecerei e descansarei em profundo sono”.

Então este corpo corruptível se revestirá de incorruptibilidade, e este corpo mortal estará revestido da imortalidade; então a morte será absorvida pela vitória (1 Cor 15,54).

Daí se declarar:

E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(8,25).



§ 10
10 Por isso, se acrescenta no final com toda conveniência:

Por que tu, Senhor, de modo singular me firmaste na esperança”.

Não disse: firmarás, mas “firmaste”.

Para quem já possui tal esperança, virá sem dúvida também o que se espera. E com justeza se afirma:

de modo singular”.

Provavelmente tais palavras foram aduzidas contra os muitos que no tempo de seu trigo e óleo dizem:

Quem nos dará a felicidade?” Desaparece esta multiplicidade e subsiste a unidade entre os santos de que falam os Atos dos Apóstolos:

A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma(At 4,32).

Devemos, portanto, chegar à unidade e ser simples, isto é, separados da multidão e da turba das coisas que nascem e morrem, ser amantes da eternidade e da unidade, se queremos aderir ao nosso único Deus e Senhor.