SALMO 𝟭𝟜𝟟

Louvai ao Senhor; porque é bom cantar louvores ao nosso Deus;

pois isso é agradável, e decoroso é o louvor.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 147


§ 147:1  Ł Louvai ao Senhor; porque é bom cantar louvores ao nosso Deus; pois isso é agradável, e decoroso é o louvor.

§ 147:2  O Senhor edifica Jerusalém, congrega os dispersos de Israel;

§ 147:3  ʂ sara os quebrantados de coração, e cura-lhes as feridas;

§ 147:4  ɔ conta o número das estrelas, chamando-as a todas pelos seus nomes.

§ 147:5  ʛ Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; não há limite ao seu entendimento.

§ 147:6  O Senhor eleva os humildes, e humilha os perversos até a terra.

§ 147:7  Ƈ Cantai ao Senhor em ação de graças; com a harpa cantai louvores ao nosso Deus.

§ 147:8  Ele é que cobre o céu de nuvens, que prepara a chuva para a terra, e que faz produzir erva sobre os montes;

§ 147:9  ɋ que dá aos animais o seu alimento, e aos filhos dos corvos quando clamam.

§ 147:10  Ɲ Não se deleita na força do cavalo, nem se compraz nas pernas do homem.

§ 147:11  O Senhor se compraz nos que o temem, nos que esperam na sua benignidade.

§ 147:12  Ł Louva, ó Jerusalém, ao Senhor; louva, ó Sião, ao teu Deus.

§ 147:13  Porque ele fortalece as trancas das tuas portas; abençoa aos teus filhos dentro de ti.

§ 147:14  Ele é quem estabelece a paz nas tuas fronteiras; quem do mais fino trigo te farta;

§ 147:15  ɋ quem envia o seu mandamento pela terra; a sua palavra corre mui velozmente.

§ 147:16  Ele dá a neve como lã, esparge a geada como cinza,

§ 147:17  E lança o seu gelo em pedaços; quem pode resistir ao seu frio?

§ 147:18  ɱ Manda a sua palavra, e os derrete; faz soprar o vento, e correm as águas;

§ 147:19  Ele revela a sua palavra a Jacó, os seus estatutos e as suas ordenanças a Israel.

§ 147:20  Ɲ Não fez assim a nenhuma das outras nações; e, quanto às suas ordenanças, elas não as conhecem. Louvai ao Senhor!


O SALMO 147



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Lembra-se V. Caridade que adiamos o sermão sobre o salmo que agora cantamos até o dia de hoje. Ele havia sido lido no domingo, e deveria ser comentado. Mas então comovidos pela leitura do evangelho, devido ao grande temor que sentimos e tendo em vista o vosso proveito, detemo-nos naquilo que o Senhor nos recomendou sobre o último dia, querendo que esperássemos cautelosos e vigilantes a sua vinda. Atemorizando-nos pelos exemplos, a fim de não nos condenar no juízo, declarou que a vinda do Filho do homem será como nos dias de Nóe: os homens comiam e bebiam, compravam, vendiam, casavam-se e adquiriam esposas, até que Nóe entrasse na arca; e veio o dilúvio e todos pereceram (Mt 24,37.42; cf Le 17,26).

Preocupados, portanto, e tomados de grande temor (pois quem não temerá se tiver fé?), detemo-nos neste assunto, quanto foi possível, de tal modo que o sermão desenvolveu a questão de vossos costumes, vossa vida e de todos nós, tendo em vista que possamos esperar aquele dia não somente seguros, mas até desejá-lo. Se amamos a Cristo, devemos anelar por sua vinda. Pois é perverso, e nem sei se seria verdadeiro amor, temer que venha aquele a quem se ama; pedir:

Venha teu reino(Mt 6,10), e ter medo de ser atendido. De onde, então, provém o temor? Porque o juiz está para vir? Será ele injusto? Ou malévolo? Ou invejoso? Ou, finalmente, espera instruir tua causa por meio de outro? Ou talvez aquele a quem instruíste, pode te enganar prevaricando, ou faltando-lhe eloqüência ou capacidade, não conseguirá demonstrar tua inocência por suas palavras? Nada disso. Quem, então, é que virá? Por que não te alegras? Quem virá para te julgar senão aquele que veio para ser julgado por tua causa? Não temas o acusador, do qual ele mesmo disse:

Agora o príncipe deste mundo foi lançado fora(Jo 12,31).

Não receies um mau advogado, pois agora é teu advogado aquele que então há de ser teu juiz. Será entre ele e tu, e tua causa; a defesa de tua causa é o testemunho de tua consciência. Sejas quem fores que temes o futuro juiz, corrige tua consciência atual. Não te basta que não indagará acerca do passado? Julgará então sem mais espaço de tempo; mas com quanto espaço de tempo agora dá preceitos? Então já não será permitido corrigir-se; e agora, quem o impede? Ao recomendarmos com veemência tudo isso no domingo, porque na verdade é quase a única coisa que devemos dizer, passou-se bastante tempo e fomos obrigados a adiar para hoje o comentário deste salmo que estávamos disposto a expor. Agora ele está aí; fixemos nele o olhar, ou antes em Deus que se dignou dispensar-nos estas palavras em seu Espírito, conforme ele sabe conveniente às nossas fraquezas. Pois, qual o doente que ousa dar conselhos ao médico?



§ 2
Ao ser lido o salmo, acredito que todos ou muitos de vós notaram que alguns versículos nos impelem a bater à porta para que se nos abram, especialmente este trecho:

Faz cair a neve como lã, espalha a névoa como cinza, envia cristais de gelo como pedaços de pão. Exposto a seu frio quem resistirá?” Tendo ouvido essas coisas, quem as tomar à letra, pensa de fato nas obras divinas. Pois, quem dá a neve, a não ser Deus? E quem espalha a névoa, senão Deus? Quem endurece o gelo senão ele? E essas três figuras têm as correspondentes semelhanças, em sentido oposto. A lã não é muito diferente da neve, ou a cinza da névoa, ou um pedaço de pão branco do brilho e candor do cristal. O cristal, efetivamente, é uma espécie de vidro, mas é branco. Contam isso os que o sabem; por isso não devemos duvidar, porque a fidelíssima Escritura disso dá testemunho: diz-se que o cristal de gelo, neve endurecida no decorrer de muitos anos, sem se derreter; de tal forma congela que não é fácil o degelo. A neve do inverno precedente facilmente se dissolve com a chegada do verão; não lhe advêm os anos para corroborar a sua dureza. Onde, porém, a quantidade de neve acumulada por muitos anos uma sobre as outras, e por sua abundância vence a violência do verão, não só de um verão, mas de muitos, principalmente como aconteceu em algumas partes da terra, isto é, nas plagas do norte, onde nem no verão encontra-se um sol muitíssimo ardente, a mesma dureza prolongada e anual produz esta espécie de objeto que se chama cristal de gelo. Preste atenção, V. Caridade. Que é o cristal de gelo? É neve congelada por muitos anos, de tal sorte que não possa facilmente ser dissolvida pelo sol ou pelo fogo. Nós o expusemos um pouco longa-mente, porque muitos ignoram; nem mesmo aqueles que talvez o soubessem, não devem ter por oneroso o sermão sobre assunto conhecido, utilizado não por sua causa, mas por causa daqueles que o ignoravam. Ao ouvirdes essas palavras cantadas pelo leitor, não duvido que os pensamentos de uns e outros eram diferentes. Alguns devem ter dito, e é verdade: São grandes as obras do Senhor, por isso algumas partículas foram mencionadas, de obras terrenas e conhecidas de quase todos, como Deus faz nevar, como espalha a névoa, como solidifica o cristal. Outros terão dito consigo mesmos: Pensas que na Escritura estas coisas foram citadas sem razão, ou verdadeiramente tudo isso se dá conforme soa? Não nos terão insinuado algo esta neve e esta lã, a névoa e a cinza, o cristal e o pão? Mas por que a Escritura quis se exprimir assim, por meio de comparações nebulosas? Não seria muito melhor falar claramente? Por que hei de perguntar ou hesitar sobre o sentido daquelas palavras? Por que ao ouvi-las faço tal esforço? Por que muitas vezes depois de ouvir um salmo, saio daqui sem entender? É o que disse um pouco antes: suporta o tratamento; assim hás de ser curado. É muito soberbo e precipitado o doente que ousa dar avisos ao méduco, mesmo em se tratando de um homem. O doente ousará dar conselhos ao médico? Quando é um homem que está doente e Deus o trata, o início válido de piedade e de cura consiste em que antes de saberes por que algo foi dito, acreditar que assim devia ser proferido o que foi proferido. Esta piedade te tornará capaz de procurar entender o que foi dito, e ao procurares encontrarás, e ao encontrares te alegrarás. Apresente-se, portanto, junto do Senhor nosso Deus este afeto de vossas preces; e que se ele se digne, se não por nossa causa, certamente por vossa causa, esclarecer o que aqui está escondido. Agora, portanto, imaginai que nós, uma vez que prometemos um dia de determinado espetáculo e representação divina, depois de proferidos estes versículos que ainda não foram explicados, apresentamos alguns invólucros de nosso Empresário. Efetivamente, são apresentados enrolados, para que se espere sejam abertos; vós, porém, preprarai-vos não só para contemplar, mas também para, revestidos, participardes da representação.



§ 3
Havíamos dito no domingo, se V. Caridade se recorda, os que estavam presentes, que a leitura do evangelho sobre a qual longamente nos detemos a ponto de diferirmos a exposição do salmo, estava muito de acordo com o mesmo salmo. Nós o declaramos então, mas não pudemos demonstrá-lo, porque adiamos a explicação do salmo. Hoje, portanto, vamos mostrar esse acordo. Naquela leitura muito nos assustamos por causa do último dia. Aquele medo gera segurança. Aterrorizados, precavemo-nos, e precavendo-nos tornamo-nos seguros. Assim como uma segurança sem fundamento impele ao temor, uma solicitude bem ordenada gera segurança. Fomos atemorizados a fim de não amarmos a vida presente, deficiente, rápida, transitória, como se não houvesse outra; se, de fato, não existe outra, amemos a atual. Se não existe outra vida, são mais felizes do que nós os que hoje estiveram acordados no anfiteatro. Pois, o que diz o Apóstolo? “Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens(1 Cor 15,19).

Existe, portanto, outra vida. Interrogue cada qual a Cristo, com fé; mas a fé está adormecida. Com razão flutuas, porque Cristo dorme na barca. Pois, Jesus dormia na barca e a barca flutuava no meio das águas e de grande tempestade (cf Mt 8,24-25).

Ora, o coração flutua quando Cristo dorme. Mas, Cristo sempre está desperto; que significa então: Cristo dorme? Dorme a tua fé. Por que ainda és sacudido pela tempestade da dúvida? Desperta o Cristo, desperta tua fé; contempla com os olhos da fé a vida futura, em vista da qual acreditaste, e foste assinalado com o sinal daquele que assumiu esta vida para te mostrar quão desprezível era a que amavas, e quão desejável aquela em que não acreditavas. Se, portanto, despertares a fé, e fixares os olhos da fé nos últimos acontecimentos e se pensares no século futuro em que nos alegraremos após o segundo advento do Senhor, depois de realizado o juízo, após ter sido entregue aos santos o reino dos céus, se pensares naquela vida, caríssimos, e na ocupação, no lazer, do qual freqüen-temente vos falamos, não há de soçobrar nossa ocupação, ocupação que é lazer, repleto apenas de suavidade, sem incômodos, sem fadiga, sem nuvem alguma de perturbação. Qual será nossa ocupação? Louvar a Deus, amar e louvar; louvar com amor, amar com louvor.

Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos(Sl 83,5).

Por que, senão porque pelos séculos dos séculos haverão de te amar? Por que, senão pelos séculos dos séculos haverão de te ver? Que espetáculo, meus irmãos, será a visão de Deus! Os homens vêem um caçador e se deleitam; ai desses infelizes, se não se corrigirem! Pois, os que vêem o caçador e se deleitam, verão o Salvador e se contristarão. Que haverá de mais miserável que aqueles para os quais o Salvador não trará a salvação? Não é de admirar que Deus não dará a salvação que liberta àqueles que se deleitam em ver um homem lutar. Nós, porém, irmãos, se nos lembrarmos de seus membros, se desejarmos, se perseverarmos, veremos e nos alegraremos. Aquela cidade não terá, depois de purificados todos os seus cidadãos, sedioso algum ou turbulento. Aquele inimigo que agora nos inveja procurando impedir que cheguemos à pátria, ali já não pode armar ciladas, porque nem ao menos lhe é permitido estar ali. Pois, se agora é expulso do coração dos fiéis, como não será excluído da cidade dos vivos? Que será, irmãos, que será, pergunto-vos, estar naquela cidade, se é tão grande alegria falar sobre ela? Para esta vida futura devemos preparar nossos corações. Todo aquele que preparar o coração para isto, despreza esta vida; desprezada esta, seguro esperará o dia, de cuja expectativa o Senhor nos atemorizou.



§ 4
Enquanto este salmo nos descreve e canta a vida futura, o evangelho nos assustou a respeito da presente; o salmo desperta o amor da vida futura, e o evangelho nos incute temor sobre a presente. As letras do Novo Testamento não calam sobre os deleites futuros, principalmente nas passagens onde trata do que quer dar a entender sem figuras; ali parecem claras, a fim de serem entendidas aqui as obscuras. Como se nos dissesse o evangelho: Notai que o último dia há de vir, o dia da vinda do Filho do homem; ele há de encontrar em más condições os que agora se sentem seguros, porque estão erradamente seguros; estão seguros no meio dos prazeres do mundo, quando deviam estar seguros, domando as ambições mundanas; por sua vez, já o Apóstolo nos preparou para aquela vida, em termos que então igualmente citei:

Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não a tivessem; aqueles que compram, como se não possuíssem, aqueles que se regozijam como se não se regozijassem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem. Pois passa a figura deste mundo. Eu quisera que estivésseis isentos de preocupações(1 Cor 7,29.32).

Aquele que coloca toda sua alegria e toda a sua felicidade em comer, beber, casar-se, comprar, vender, usar deste mundo, estar sem preocupações, mas fora da arca, ai dele no dilúvio. Todo aquele, contudo, que quer coma, beba, ou faça alguma coisa, tudo faz para a glória de Deus (cf 1Cor 10,31); e se tem alguma tristeza acerca dos bens mundanos, chora, alegrando-se interiormente pela esperança; e se tem alguma alegria proveniente de coisas mundanas, de tal forma se alegra que interiormente, no espírito, teme, nem se entrega à felicidade corrompendo-se, nem se deixa quebrantar pela adversidade (e isto é chorar como se não chorasse, e alegra-se como se não se alegrasse); todo o que, tendo mulher, compadece-se de sua fraqueza, dando, não exigindo, o débito; ou se por causa da própria fraqueza se casa, lamenta-se antes porque não pôde permanecer sem mulher do que se alegra por tê-la adquirido; todo aquele que vende aquilo que sabe não fazê-lo feliz, se o guardasse; todo o que sabe que passará o que compra; e que não presume de tudo isso, mesmo que haja abundância, que o cerque de todos os lados, e pratica a misericórdia com aquele que não tem, a fim de receber o que não possui daquele que tudo tem; todo aquele que assim age, espera com segurança o último dia, porque não está fora da arca; já é contado entre os lenhos incor-ruptíveis, com os quais a arca foi fabricada. Por isso, não tema o Senhor que vem, mas o espere e deseje; de fato, não virá para infligir castigo, e sim para pôr fim às aflições. Assim ele age por desejo daquela cidade. Ele pratica aquilo a que exortou o evangelho e enche-se de anelos pela cidade cantado pelo salmo. Desta forma o evangelho concorda com o salmo.



§ 5
12 E ouçamos qual a cidade que este salmo canta. Ouçamos e cantemos; nossa alegria, ao ouvirmos, é um cântico de nosso Deus. Pois, não cantamos apenas quando de nossa voz e de nossos lábios fazemos ressoar o cântico; existe interiormente também um cântico, porque interiormente existem igualmente ouvidos. Cantamos com a voz, para nos estimularmos; cantamos pelo coração, a fim de agradarmos a Deus. Diz-se que o salmo é de “Ageu e Zacarias”.

Ageu e Zacarias eram profetas. Com efeito, eram profetas no cativeiro daquela Jerusalém que na terra era sombra de outra Jerusalém celeste. Ora, no cativeiro daquela cidade em Babilônia, estes profetas profetizaram a restauração de Jerusalém, profetizaram a cidade nova nascida da restauração da antiga, depois de libertado o povo do cativeiro. Reconhecemos também em nós este cativeiro, se verdadeiramente conhe-cemos nossa peregrinação. Pois, neste mundo, nas tribulações deste século, nesta multíplice turba de escândalos, de certa maneira gememos no cativeiro. Mas seremos reerguidos. Pois, se prenuncia que teremos uma nova cidade, igual, no futuro. Depois que estes profetizaram, aconteceu visivelmente que se desenrolasse tudo o que pertencia ao cumprimento da imagem. Jerusalém foi reconstituída após setenta anos de cativeiro. Assim o profeta Jeremias assinala setenta anos, figurando aquele número setenário todas as vicissitudes do tempo; pois estes dias, como sabeis, decorrem em número de setenta; eles vão e voltam. Portanto, após setenta anos, conforme profetizara o profeta Jeremias acerca da reconstrução de Jerusalém (cf Jr 25,12; 29,10), cumpriu-se a profecia, de tal sorte que nisto se figurava o futuro; foi simbolizado que, após toda esta volubilidade do tempo, que se desenrola segundo o número setenta, viria a nossa cidade, já na eternidade, em um só dia. Na verdade, naquela habitação o tempo não decorre, porque seus habitantes ali não passam. Os profetas em espírito a contemplavam; contemplavam-na e falavam a respeito desta. Mas falavam sobre esta o que levava à outra. Tudo o que acontecia segundo o tempo, segundo os movimentos corporais, segundo os atos humanos, eram sinais e prenúncios do futuro.



§ 6
Ouçamos agora como é cantada aquela cidade, e elevemo-nos até ela. O Espírito de Deus muitas coisas nos recomenda sobre ela, infundindo-nos seu amor, a fim de suspirarmos por ela, gemermos na peregrinação e desejarmos alcançá-la. Amemo-la, e este amor em si já é um caminhar. Amemo-la, conforme fala a boca do santo salmista, a boca profética que profere pelo Espírito de Deus:

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor”.

Aqueles que ainda se acham no cativeiro, vêem os rebanhos, ou antes um só rebanho de todos os cidadãos, congregados de todas as partes naquela cidade; vêem a alegria da massa, depois de trituradas, depois de ventiladas e colocadas no celeiro, sem temor algum, sem padecer labor ou incômodo algum; e ainda estando aqui, vivendo nesta trituração, antecipam a alegria pela esperança e anelam por ela, de certa maneira unindo seus corações aos anjos de Deus, e àquele futuro povo que há de permanecer unido a eles na alegria.

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor”.

Que hás de fazer, ó Jerusalém? Certamente passarão o labor e os gemidos. Que hás de fazer? Arar, semear, plantar árvores, navegar e negociar? Que hás de fazer? Ainda terás de te exercitar naquelas obras, apesar de boas e provenientes da misericórdia? Considera teu número, considera tua sociedade de todas as partes. Verifica se alguém tem fome para lhe dares pão; se alguém tem sede, para lhe dares um copo de água fria; vê se de algum modo existe um peregrino junto de ti, a quem hospedes; vê se há doentes, aos quais visites (cf Mt 25,35.56); olha se alguém pleteia contra ti, para com ele concordares; vê se alguém morre, para o sepultares. Que farás, então? “Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor”: eis a tua ocupação. Como é costume escrever nos títulos: Feliz proveito.

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor”.



§ 7
Sede Jerusalém. Lembrai-vos de quem foi dito:

Senhor, reduziste a nada em tua cidade a imagem deles(Sl 72,20).

São eles que agora se alegram com tais pompas; entre eles acham-se os que hoje não compareceram porque há espectáculo. De quem o espectáculo? Para quem o prejuízo? Ou onde está o espectáculo? Ou onde o dano? Pois, não são apenas os que dão tais espectáculos que sofrem prejuízo; mas são feridos, por dano maior, os que de bom grado olham tais coisas. Esvazia-se de ouro o tesouro dos empresários; o peito destes é espoliado quanto às riquezas da justiça. Lamentam-se muitas vezes os empresários ao venderem suas propriedades; como não devem lamentar-se os pecadores que perdem as suas almas! Será que o Senhor para isto clamou no domingo:

Vigiai”, visando a que hoje se ficasse desperto desta forma? Rogo-vos, ó cidadãos de Jerusalém; conjuro-vos pela paz de Jerusalém, pelo redentor, pelo construtor, pelo governador de Jerusalém, a que façais preces por eles a Deus. Que vejam, sintam sua futilidade; e apesar de tão atentos àqueles espectáculos que lhes agradam, por vezes olhem para si mesmos e sintam desagrado. Estamos contentes porque em muitos isso já se realizou. Outrora também nós ali nos sentamos, como loucos. E quantos pensamos que ali estão agora sentados, e que hão de se tornar não somente cristãos, mas até bispos? Conjec-turamos de fatos passados ou futuros; de eventos que já se deram, prevemos o que Deus há de fazer. Vossas preces sejam vigilantes; não são inúteis vossos gemidos, irmãos. Com efeito, aqueles que de lá escaparam, rezam por aqueles que correm perigo, porque também eles eram do número dos periclitantes, e são atendidos; Deus retirará do cativeiro de Babilônia o seu povo, há de redimi-los inteiramente e libertá-los, e se completará o número dos santos que trazem a imagem de Deus. Não estarão ali aqueles cuja imagem de Deus desprezará em sua cidade e reduzirá a nada; porque também eles em sua cidade, isto é Babilônia, reduziram a nada a imagem dele. Estará a louvar o Senhor aquele povo que o Espírito de profecia agora prevê, e nos diz que exultemos na esperança, anelando plena realidade.

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor. Louva a teu Deus, ó Sião. Louva em comum”, porque constas de muitos; “louva, porque te tornaste um só. Diz o Apóstolo:

Nós, embora muitos, somos um só em Cristo Jesus(cf 1Cor 10,17).

Portanto, como somos muitos, louvamos juntos; porque somos um só, louvamos. Os mesmos que são muitos formam um só; porque aquele no qual somos um, é sempre um só.



§ 8
Por que, diz esta Jerusalém, louvo ao Senhor e louvo a meu Deus em Sião? Sião identifica-se com Jerusalém. Por diversos motivos, dois nomes. Jerusalém significa visão de paz; Sião significa observação. Notai se estes nomes diferem do significado de espectáculos, a fim de que os gentios não pensem que eles têm espectáculo e nós, não. Algumas vezes, ao saírem do teatro ou do anfiteatro, quando daquela caverna começa a ser vomitada a turba dos homens perdidos, por vezes tendo no ânimo fantasias de sua vaidade, e alimentando sua memória de coisas não somente inúteis, mas até perniciosas, e gozando como se fossem suaves, apesar de pestíferas, vêem muitas vezes, como acontece, passarem os servos de Deus, reconhecem-nos pelo hábito, pela veste ou pela cabeça, ou pelo pudor, e dizem consigo mesmos: Que infelizes! O que perdem! Irmãos, roguemos ao Senhor devido à benevolência deles, porque consideram aquilo um bem. Querem-nos bem; mas quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma (cf Sl 10,6).

Se odeia a sua alma, como poderá amar a minha alma? Entretanto, por uma perversa, inútil e vã benevolência, se pode ser chamada benevolência, lastimam que percamos o que eles amam; rezemos para que não percam o que nós amamos. Vede qual a Jerusalém que é convidada ao louvor, ou antes qual o salmista apresenta prestes a louvar? Não cabe à voz do profeta exortar e estimular ao louvor aquela cidade, onde veremos, amaremos e louvaremos. Mas, agora os profetas falam a fim de que os que estão nesta carne mortal prelibem as futuras alegrias dos bem-aventurados, e irrompendo sua voz em nossos ouvidos, despertem o amor daquela cidade. Ardamos de anelos; não sejamos indolentes de espírito.



§ 9
13 Mas considerai qual Jerusalém diz o salmista que haverá de louvar a Deus, e como: por certa perfeição da bem-aventurança.

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor. Louva a teu Deus ó Sião”.

E se ela respondesse: Como louvarei com segurança? Ele responde:

Porque ele reforçou os ferrolhos de tuas portas”.

Atenção, meus irmãos.

Reforçou os ferrolhos de tuas portas”.

Não se reforçam os ferrolhos de portas abertas, e sim da portas fechadas. Daí vem que alguns códices trazem:

Reforçou as fechaduras (seras) de tuas portas”.

Preste atenção, V. Caridade. O salmista diz que Jerusalém, com as portas fechadas, louva o Senhor.

Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor. Louva a teu Deus, ó Sião”.

Louvamos unidos agora, louvamos agora, mas no meio de escândalos. Entram muitos que não queríamos que entrassem; muitos, apesar de não o querermos, saem; e os escândalos aumentam. Diz a Verdade:

E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará(Mt 24,12).

Por causa dos que entram, que não podemos julgar e dos que saem, que não podemos reter. Por que isto? Porque ainda não veio a perfeição, nem ainda a bem-aventurança. Por que isto? Porque ainda estamos na eira, não no celeiro. E como será, se não que não deves ter receio de que algo de semelhante advirá? “Louva em comum, ó Jerusalém, ao Senhor. Louva a teu Deus, ó Sião. Porque ele reforçou os ferrolhos de tuas portas”.

Reforçou. Não disse apenas: Cerrou:

Reforçou os ferrolhos de tuas portas”.

Ninguém saia, ninguém entre. Ninguém saia, alegremo-nos. Ninguém entre, temamos. Mas, nem isto deves temer, será dito ao entrares. Apenas sê do número das virgens que levaram óleo consigo (cf Mt 25,4).



§ 10
Com efeito, aquelas virgens representam as almas. De fato, não eram apenas cinco, mas aquelas cinco figuravam milhares. No número de cinco entendem-se não apenas as mulheres, mas também os homems; ambos os sexos são aqui denominados mulher, por causa da Igreja; e ambos os sexos, isto é, a Igreja, chamam-se virgens.

Des-posei-vos a esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura(2 Cor 11,2).

A virgindade na carne é de poucos, mas de todos deve ser a do coração. A virgindade da carne é o corpo intacto; a virgindade do coração é a fé incorrupta. Portanto, toda a Igreja é chamada virgem, e com o gênero masculino é denominado povo de Deus. De ambos os sexos consta o povo de Deus, e é um povo, um único povo; e uma só Igreja, uma única pomba; e nesta virgindade encontram-se milhares de santos. Por conseguinte, as cinco virgens significam todas as almas que haverão de entrar no reino de Deus; não é sem motivo que se trata do número cinco, porque são cinco os sentidos do corpo, que todos conhecem. Pois, por cinco portas é que tudo entra através do corpo até a alma. Ou pelos olhos entra o que provoca um mau desejo, ou pelos ouvidos, ou pelo olfato, ou pelo gosto, ou pelo tato. Por estas cinco portas, quem não admitir corrupção, é contado entre as cinco virgens. A corrupção é admitida pelos desejos ilícitos. Os livros das Escrituras estão cheios de explicações sobre o que é permitido e o que não é lícito. Portanto, é necessário que estejas entre aquelas cinco virgens. Não temerás o que foi dito: Ninguém entre. Pois, isto é dito, e se realiza. Mas tendo entrado, ninguém fechará a porta contra ti. Após entrares, fechar-se-ão as portas de Jerusalém e serão reforçados os seus ferrolhos. Quanto a ti, se não quiseres ser virgem de coração, ou, apesar de virgem, preferires estar entre as virgens loucas, ficarás fora, e em vão baterás à porta.



§ 11
Quais são as virgens loucas? Elas também são cinco. Quem são, senão as almas que têm a continência da carne, de sorte que evitam a corrupção proveniente dos sentidos, já enumerados? Evitam a corrupção que vem de todos os lados, mas em sua consciência não praticam o bem diante de Deus; querem com isso agradar aos homens, e seguem um juízo alheio. Andam à caça dos favores do vulgo; em si são vis, enquanto querem ser caras aos espectadores; não lhes basta a consciência. Com razão, não têm óleo consigo. Pois, óleo é a exaltação, figurada por seu brilho e esplendor. Mas que diz o Apóstolo? Considera as virgens prudentes que levam óleo consigo.

Cada um examine sua própria conduta, e então terá o de que se gloriar por si só e não por referência a outro(Gl 6,4).

Estas são, portanto, as virgens prudentes. As estultas, porém, de fato acendem as lâmpadas. Com efeito, suas obras parecem brilhar; mas falham e se extinguem, porque não são alimentadas por um óleo interior. E elas adormecem, porque tarda o esposo; de ambos os gêneros de homens há os que adormecem na morte; dentre as loucas e dentre as sábias, como tarda a vinda do Senhor, vai-se a esta morte corporal e visível, que as Escrituras costumam chamar de sono, como é sabido de todos os cristãos. O Apóstolo assim se refere aos doentes:

Eis porque há entre vós tantos débeis e enfermos e muitos adormeceram(1 Cor 11,30).

Adormeceram, diz ele, isto é, morreram. Eis que vêm o esposo e todos ressurgem, mas nem todos entrarão. Apagar-se-ão as obras das virgens estultas, por que não têm o óleo da consciência; não encontram onde comprá-lo; costumam vendê-lo os aduladores. Foi-lhes respondido por algumas que zombavam, não que as invejassem:

Ide, comprai para vós”.

As insensatas haviam pedido às sábias:

Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão se apagando”.

E que responderam as prudentes? “O azeite poderia não bastar para nós e para vós. Ide antes aos que vendem e comprai para vós”.

A admoestação era: De que vos servem aqueles dos quais costumáveis comprar adulações? Enquanto elas foram, as outras entraram.

E fechou-se a porta(cf Mt 25,1-13).

Vão pelo coração, enquanto cogitam de tais coisas, e se afastam da boa intenção, olhando para trás, lembradas dos atos passados; de certo modo vão procurar os que vendem. Então não encontram quem as favoreça, não encontram quem as louve dentre os que costumavam elogiá-las, como que estimulando-as à prática das boas obras; não as faziam, porém, pelo vigor de uma consciência reta, mas por instigação das línguas dos outros.



§ 12
Quanto à palavra:

Poderia não bastar para nós”, provém de consideração cheia de humildade. Pois o óleo que trazemos na consciência, é o juízo que fazemos de nós mesmos, quais somos; e é difícil que alguém julgue de maneira perfeitamente correta a si mesmo. Meus irmãos, por mais que um homem progrida, por mais que avance para o que está adiante e se esqueça do que ficou para trás (cf Fl 3,13), se já diz a si mesmo: Está bem, está procedendo segundo uma regra extraída dos tesouros de Deus e examina-se literalmente. E quem se gloriará de ter um coração casto? E quem se gloriará de estar puro de pecado? (cf Pr 20,9).

Mas como se exprime a Escritura? “O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia(Tg 2,13).

Por mais que avances, esperarás na misericórdia. De fato, se a justiça for proferida sem misericórdia, encontrará em cada um o que condenar. Qual a palavra da Escritura que nos consola? A que nos exorta a praticar a misericórdia, de sorte que cresçamos inteiramente, distribuindo nosso supérfluo. Ora, teremos muita coisa supérflua, se guardarmos apenas o necessário; de fato, se procurarmos coisas inúteis, nada nos basta. Irmãos, procurai ter o suficiente para a obra de Deus e não o que satisfaz a vossa cupidez. Vossa ambição não é obra de Deus. Vossa forma, vosso corpo, vossa alma, isso tudo é obra de Deus. Busca o suficiente e verás como é pequena a sua quantidade. Para a viúva bastaram duas moedinhas para praticar a misericórdia, bastaram duas moedinhas para comprar o reino de Deus (cf Mc 12,42).

Para vestir tantos caçadores que quantia basta ao empresário? Vede que não apenas é pouco o que te basta, mas nem mesmo o próprio Deus vos pede muito. Procura saber quanto ele te deu, e disso retira o que basta; o restante, que é supérfluo, é necessário aos outros. O supérfluo dos ricos é o necessário dos pobres. Possuem bens alheios os que possuem bens supérfluos.



§ 13
Praticando, portanto, estas obras de misericórdia, e principalmente aquela que é gratuita:

Perdoai, como perdoamos(Mt 6,12) — e nisto, dás apenas a caridade, que cresce quando é dada — praticando-as, portanto, ardoroso nestas obras de misericórdia, e considerando que as boas obras, conforme já dissemos, não serão necessárias no final, porque não haverá miserável algum para receber esta obra de misericórdia1, aguardarás com segurança o juízo; não tanto garantido por tua justiça quanto seguro por causa da misericórdia de Deus; pois também tu antes praticaste a misericórdia.

Porque o juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia. Mas a misericórdia ultrapassa o juízo(Tg 2,13).

Não julgueis, irmãos, que Deus não é justo quando se compadece de nós, ou se afasta da norma de sua justiça. Tanto ao condenar é justo, como ao se compadecer é justo. Pois, que há de tão justo quanto usar de misericórdia para com quem a praticou antes? Que há de mais justo do que serdes medidos com a medida com que medistes? (cf Mt 7,2).

Dá aos irmãos necessitados. A que irmão? Ao Cristo. Se, portanto, uma vez que dás ao irmão, dás a Cristo; e se dás a Cristo é a Deus, acima de tudo bendito pelos séculos (cf Rm 9,5), Deus quis precisar de ti e tu retrais a mão? Certamente estendes a mão para pedires a Deus. Ouve como fala a Escritura:

Que a tua mão não seja aberta para receber e fechada para retribuir(Eclo 4,36).

Deus quer que distribuas daquilo que ele deu. Com efeito, que podes dar que ele não te tenha concedido? Que tens que não tenhas recebido? (cf 1Cor 4,7).

Ou, não digo a Deus, mas a qualquer um dás algo que seja teu? Dás do que é de quem te ordenou dar. Sê distribuidor, não usur-pador. Assim agindo se, bem humilde, disseres a respeito daquele óleo:

Poderia não bastar para nós(Mt 25,9), entras e fecha-se a porta. Escuta o Apóstolo dizer:

Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós(1 Cor 4,3).

Como podeis julgar a minha consciência? Quando podeis examinar com que intenção estou agindo em tudo? Como podem os homens julgar os outros? De fato, pode melhor julgar de si; mas Deus pode mais do que o homem, do que o homem pode a respeito de si. Conseqüentemente, se fores tal, entrarás; estarás entre as cinco virgens; as outras, insensatas, serão excluídas. Efetivamente, isto está escrito no evangelho: Fechar-se-á a porta, e elas ficarão fora, gritando:

Abre-nos”; e não será aberta:

Porque ele reforçou os ferrolhos de tuas portas. Reforçou os ferrolhos de tuas portas”, diz o salmo. Com segurança fica de pé, com segurança louva, louva sem fim. Tuas portas estão firmemente fechadas.

Ele reforçou os ferrolhos de tuas portas”: Não sai o amigo, não entra o inimigo. 1 Cf Com s/83, nª 8 e 11.



§ 14
Abençoou em teu recinto os teus filhos”.

Não vagam por fora, não peregrinam; dentro alegram-se, dentro louvam, dentro são abençoados; lá dentro não se dá à luz, porque ninguém é gerado. São filhos, são santos; estes filhos santos que já louvam e se alegram, foram concebidos e dados à luz, tendo a caridade por mãe, e foram postos lá dentro pela caridade que os congregou. Escuta como a caridade os faz nascer. O apóstolo Paulo, dotado desta caridade, tinha um coração não somente paterno, mas também materno para com seus filhos. Disse ele:

Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto(Gl 4,19).

Quando Paulo os dava à luz, era a caridade que os dava à luz; quando a caridade os dava à luz, o Espírito Santo os dava à luz; “porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,5).

Por conseguinte, reúna aqueles a quem concebeu e deu à luz. Agora os filhos já estão lá dentro, estão seguros. Voaram do ninho do temor, voaram para as regiões celestes, voaram para as regiões eternas; já nada receiam de temporal.



§ 15
14 “Abençoou em teu recinto os teus filhos”.

Quem? “Aquele que estabeleceu a paz em tuas fronteiras”.

Como exultais todos vós! Amai-a, meus irmãos. Muito nos deleita, quando clama de vossos corações o amor da paz. Como vos deleitou? Nada eu havia dito, nada explicara; apenas pronunciei o versículo e exclamastes. Que foi que vos fez clamar? O amor da paz. Que foi que se mostrou a vossos olhos? Por que clamastes, se não amais? Como podeis amar, se não vedes? A paz é invisível. Que olho a viu para amá-la? Não aclamaríeis, se não a amásseis. São estes os espectáculos que Deus nos exibe das coisas invisíveis. Quanta beleza não despertou em vossos corações o pensamento da paz? Vosso afeto veio ao encontro de todas as minhas palavras. Não consigo exprimir, não posso, não sou capaz. Adiemos todos os louvores da paz até chegarmos à pátria da paz. Ali a louvaremos plenamente, pois ali a teremos de maneira mais completa. Se a amamos tanto quando apenas começada, como a louvaremos quando for perfeita? Eis o que digo, filhos amados, filhos do reino, cidadãos de Jerusalém: em Jerusalém encontra-se a visão da paz; e todos que amam a paz, serão abençoados nela, e ali entram ao se fecharem as portas e serem reforçados os ferrolhos. Se assim a amais e apreciais quando apenas nomeada, segui-a, desejai-a; amai-a em casa, amai-a no negócio, amai-a na esposa, amai-a nos filhos, amai-a nos servos, amai-a nos amigos, amai-a nos inimigos.



§ 16
É esta a paz que não possuem os hereges. Que faz a paz nas incertezas desta região, nesta nossa peregrinação mortal, quando ainda ninguém é transparente para o outro, ninguém vê o coração do próximo? Que faz a paz? Não julga a respeito das coisas incertas, não afirma o que desconhece; é mais inclinada a pensar bem dos homens do que a suspeitar mal. Não se condói muito de errar ao acreditar o bem mesmo de um malvado; muito pior, porém, se pensa mal talvez acerca de um bom. Não sei como é alguém; que perco, se acredito que é bom? Se é incerto, é lícito ter precaução, porque pode ser verdade; todavia não condenes como se fosse verdade. Assim o ordena a paz.

Procura a paz e segue-a(Sl 33,15).

Que aconselha a heresia? Condena os desconhecidos, condena o mundo inteiro: O mundo todo está perdido, não há cristãos, só resta a África. Julgaste bem. De que tribunal proferes a sentença contra o orbe da terra? Em que foro o mundo compareceu a tua presença? Ninguém acredita em mim, mas também não em ti. Acredite-se em Cristo, no Espírito de Deus que fala através dos profetas, acredite-se na lei de Moisés. Que disse Moisés dos tempos futuros? A Abraão foi prometido:

Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra(Gn 22,18).

Ainda duvidas qual seja a descendência de Abraão? Julgo que ao afirmar o Apóstolo, não duvidarás; ou se até do Apósto- lo duvidares, por que, então:

Paz! Paz! quando não havia paz”? (Jr 6,14).

Que diz o Apóstolo? “As promessas foram asseguradas a Abraão e à sua descendência. Não diz: e os descendentes, como referindo-se a muitos, mas como a um só: e à tua descendência, que é Cristo(Gl 3,16).

Eis que há mais de mil anos foi dito a Abraão:

Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra”.

Foi dito há mais de mil anos, um homem acreditou e agora vemos cumprido. Isto lemos, vemos, e tu resistes, vindo em sentido oposto? Que dirás? Não acredites. Em quem? No Espírito de Deus? Em Deus que fala a Abraão? E em quem vou acreditar? Em ti? Não digo isso, respondes. Não dizes isto? Não estás dizendo: Acredita mais em mim do que no Espírito de Deus e em Deus a falar a Abraão? Que me dizes, então? Este entregou, aquele entregou. Repetes isto do evangelho, do Apóstolo, dos profetas? Examina todas as Escrituras, lê-me isto das Escrituras em que acredito; pois em ti não creio. De onde vais ler? Isto foi meu pai que me disse, meu avô, assim falou meu irmão, meu bispo. Mas isto falou Deus a Abraão:

Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações”.

Um só homem ouviu e acreditou, e isto se realizou em muitos, após muito tempo. Quando foi dito, há quem adredite; quando cumprido, deve-se duvidar? Pois, assim falou Moisés; digam também os profetas. Observa a negociação de nossa compra. Cristo está pendente do madeiro; vê por que preço comprou e assim verificarás o que comprou. Estás para comprar alguma coisa; ainda não sabes o quê. Verifica, verifica por quanto, e verás o seu valor. Cristo derramou seu sangue, comprou com seu sangue, comprou com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do Filho único de Deus. O que foi comprado com o sangue do Filho único de Deus? Considera ainda o valor. O profeta anunciou muito antes de realizado:

Traspassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos”.

Ó Cristo, vejo o grande preço; verei o que compraste:

Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra”.

Em um só e mesmo salmo noto o comprador, o preço, e a aquisição. O comprador é Cristo, o preço é o sangue e o que adquire é o orbe da terra. Ouçamos as próprias vozes do profeta, apesar das contradições dos hereges contenciosos. Eis a posse do meu Senhor. Justamente leio no salmo:

Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra. E adorarão em sua presença todas as famílias das nações”.

Vê o provocador, vê o que defende o direito:

Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos”.

Ele mesmo, Cristo, que comprou, e não Donato que apostatou.

E adorarão; com razão. E adorarão em sua presença todas as famílias das nações”.

Por que: com razão? “Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos(Sl 21,17. 18.28,29).

Isso afirma Moisés, isso afirmam os profetas, e outros muitos mil. Quem pode enumerar os testemunhos da Igreja difundida por todo o orbe da terra? Quem enumera? As heresias contra a Igreja não são tão numerosas quanto os testemunhos da lei em seu favor. Qual a página em que isto se ressoe? Que versículo não o declara? Tudo clama em favor da unidade do Senhor, porque ele estabeleceu a paz nas fronteiras de Jerusalém. Tu, ó herege, ladras contra ela! Com razão, portanto, se diz naquela cidade o que está escrito no Apocalipse:

Fora os cães(Ap 22,15).

Tu ladras contra ela. De onde julgaste o orbe da terra, conforme eu começara a dizer? Em que tribunal? Na presunção de teu coração. Tribunal elevado, mas pronto a ruir. Moisés o afirmou, afirmaram-no os profetas; e os que querem parecer cristãos ainda não acreditam!



§ 17
Certo rico era atormentado no inferno, e desejou que pingasse uma gota d’água do dedo de um pobre que ele desprezara diante de sua porta, pois ele estava ardendo nas chamas. E como não lhe era dada, visto que “o juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia(Tg 2,13), como não lhe era dada, disse a Abraão:

Pai Abraão, envia Lázaro até à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que ele os advirta, para que não venham eles também para este lugar de tormentos. E que lhes respondeu Abraão? Eles têm Moisés e os profetas. Disse ele: Não, pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos ressuscitar, eles acreditarão. E Abraão replicou: Se não escutam nem a Moisés nem aos profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão(Lc 16,19-31).

De quem ele disse:

Eles têm Moisés e os profetas?” A respeito daqueles, de fato, que ainda viviam, cujo tempo para a correção ainda era amplo, que ainda não tinham ido para aquele lugar de tormentos.

Eles têm Moisés e os profetas; que os ouçam. Não acreditam nesses, mas se alguém dentre os mortos ressuscitar, eles acreditarão. Se não escutam nem a Moisés nem aos profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão”.

É sentença de Abraão. Sentença de Abraão, onde e de onde? De certo lugar elevado, cheio de repouso e felicidade, visto por aquele que era atormentado nas chamas, quando levantou os olhos; viu no seio de Abraão, quer dizer, no seu lugar secreto, o pobre exultante e feliz; dali foi proferida a sentença. Vê de que tribunal. Pois ali habita Deus, visto que Deus habita entre seus santos. Por isso o Apóstolo manifesta seu anelo:

Partir e ir estar com Cristo, me é muito melhor(Fl 1,23).

E foi dito ao ladrão:

Hoje estarás comigo no paraíso(Lc 23,43).

Por conseguinte, o Senhor que permanecia com Abraão e em Abraão proferiu a seguinte sentença:

Eles têm Moisés e os profetas; se não os escutam, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão”.

Ó hereges, tendes aqui Moisés e os profetas; ainda viveis, ainda podeis ouvir, ainda é permitido corrigir-vos, conter a animosidade; ainda vos é concedido apreender a verdade. Discuti entre vós se deveis ouvir Moisés e os profetas, que apresentaram tantos testemunhos de sua fé; de fato, vemos que decorrem as coisas humanas conforme foram por eles preditas. Por que ainda hesitais em crer em Moisés e nos profetas? Por que hesitais em ouvir? Acaso procurais alguém que tenha ressurgido dentre os mortos, a fim de que ele vos fale de sua Igreja? O rico o procurou obter no inferno: que alguém fosse enviado dentre os mortos para junto de seus irmãos. Foi censurado porque o procurava. Deviam ter bastado a seus irmãos Moisés e os profetas. Ele inutilmente o procurou para que vós, advertidos por seu exemplo, não procurásseis em vão e tardiamente, e fosseis torturados como ele. Deveis escutar Moisés e os profetas. Que disse Moisés? “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações(Gn 22,18).

Que disseram os profetas? “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra(Sl 21,28).

Ainda me haverás de dizer: Ressuscite alguém dentre os mortos; eu não creio, se não vier alguém de lá e me falar? Ó Senhor, graças a tua misericórdia; quiseste morrer para que alguém surgisse da região dos mortos; e este alguém, não é qualquer um, mas a Verdade, que ressuscitou da região dos mortos. Que falaria a verdade acerca das regiões infernais, embora não tenha descido aos infernos; no entanto, contradizendo os gritos dos malvados ignorantes, eis que ele morreu, e ressuscitou da região dos mortos. Que replicas, ó herege? Que respondes? Agora quero ouvir-te; acabaram-se todas as tuas desculpas. Mesmo se repetires as palavras do rico que estava no inferno, Cristo ressuscitou dos mortos; tu te dignarás ao menos ouvi-lo? Eis que estando vivo, tu desejavas talvez o mesmo que o rico morto. Ele ressuscitou dentre os que estavam na região dos mortos. Não ressuscitaram teu pai, nem teu avô, nem qualquer um que eles difamaram com o nome de traidor. Mas suponhamos que não tenham difamado, que tenham dito a verdade. Queres saber quanto isso não me importa? Ouçamos juntos o que disse aquele que ressuscitou da região dos mortos. Para que me deter mais? Ouçamos; abra-se o evangelho, leia-se o que se deu como se estivesse agora se realizando; coloquem-se diante dos nossos olhos os fatos passados, para nos precavermos dos futuros. Eis que Cristo, ressurgindo dos mortos, aparece aos discípulos. São as suas núpcias; ele é o esposo, a Igreja é a esposa. Eis o esposo que se dizia estar morto, defunto, desaparecido; eis que ele ressuscitou íntegro, eis que aparece ante os olhos dos discípulos, oferece-se para ser tocado; eis que eles tocaram as cicatrizes, chagas incuráveis. Apresentou-se a seus olhos para que o vissem, ofereceu-se para ser tocado com as mãos; pensam que se trata de um espírito. Haviam perdido a esperança da sua própria salvação. Ele os exorta, confirma-os na fé:

tocai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”.

Tocam, alegram-se, hesitam.

E como, por causa da alegria, não podiam acreditar ainda(Lc 24,39-41); assim está escrito. Nas coisas que nos causam demasiada alegria, embora sejam certas, mal acreditamos. A dúvida de alguém que custa a crer fundamenta o prazer de possuir. Necessariamente o homem mais se alegra se acontece aquilo que não esperava mais. Por isso, o Senhor não quis dar-se a conhecer imediatamente para fundamentar e aumentar a alegria. Impediu a visão de seus discípulos, daqueles dois que ele encontrou no caminho conversando, já sem esperança, e dizendo:

Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel(Lc 24,21).

Esperavam, já não tinham esperança. A esperança não estava com eles, entretanto com eles estava Cristo; mas ele se revelou e fez voltar a esperança. De fato, dizem em seguida, depois que eles o reconheceram na fração do pão, e apareceu aos outros discípulos, que pensavam se tratar de um espírito.

Tocai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho. E como, por causa da alegria, não podiam acreditar ainda, disse-lhes: Tendes o que comer”? (Lc 24,39.41).

Tomou, abençoou, comeu e deu-lhes. Manifestou-se a verdade do corpo, foi afastada toda suspeita da falsidade. E que mais? “Não sabíeis que era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos”? (Lc 24,44).

E como eles acreditavam em Moisés e nos profetas, era verdade o que disse Abraão:

Se não escutam nem a Moisés nem aos profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão(Lc 16,31).

Como eles acreditavam em Moisés e nos profetas, e não eram do número dos censurados por Abraão, ouviram a palavra do Senhor:

Não sabíeis que era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos profe-tas e nos salmos?” Eis que eles acreditaram em Moisés e nos profetas; vede como devido ao testemunho deles, acreditaram naquele que ressuscitou dentre os mortos:

Então abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras, e disse-lhes: Assim está escrito que o Messias devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia(Lc 24,45. 46).



§ 18
Aí temos o esposo da Igreja. E Moisés não calou, não calaram os profetas que Cristo haveria de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia; que sofreria e ressuscitaria. Foi-nos descrito o esposo para evitar que errássemos. Mas existem alguns, não sei quem, que visto não errarmos acerca do esposo — e eles parecem acreditar o mesmo que nós a respeito do esposo — a fim de nos afastar dos membros do esposo, dizem-nos: Ele é de fato o esposo em quem acreditais, em quem nós acreditamos; mas a esposa não é a Igreja a que aderis. E quem é ela? É o partido de Donato. Isto é o que dizeis; isto tu dizes, ou o esposo? Tu dizes; seria Deus, através de Moisés? Eis que através da palavra de Moisés, eu adiro à Igreja; pois foi dito por Moisés:

Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra(Gn 22,18).

Tu dizes, ou o Espírito de Deus através dos profetas? Eis que por meio dos profetas adiro à Igreja; foi dito por um profeta:

haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra(Sl 21,28).

Eis que já tenho o testemunho da lei e o testemunho dos profetas; ouçamos também aquele que ressuscitou dos mortos. Revelou-se como esposo, pren-damo-lo. Confirmou demonstrando, apresentando testemunhos. Pois, Moisés e os profetas atestaram que o “Messias devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia(Lc 24,46).

Por conseguinte, já temos ambos o esposo, por meio de suas palavras, e julgo que já começas a acreditar comigo também nas palavras de Moisés e dos profetas; acreditemos igualmente naquele que ressuscitou dos mortos. Prossiga, e diga: Ó Senhor, já considero Cristo como esposo; isto se fez. Que ninguém me afaste dos membros de tua esposa, e deixes de ser minha Cabeça, se deixar de estar entre seus membros. Dize-me também algo sobre a Igreja, porque já não duvido acerca do esposo. Escuta também uma palavra sobre a Igreja. Prossegue o evangelho:

Em seu nome, fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados”.

Nada de mais verdadeiro.

Em seu nome fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados(Lc 24,47).

Mas, onde? Uns dizem:

Olha aqui. Outros: Olha ali”.

E como se exprime ele? “Não creiais. Pois hão de surgir falsos Messias e falsos profetas(Mt 24,23.24).

Eles dirão:

Olha aqui”, e:

Olha ali”.

Ora, eles não afirmam sobre a própria Cabeça:

Olha aqui”, e:

Olha ali”, pois é notório que Cristo está nos céus, e sim sobre a Igreja onde Cristo se acha, pois ele disse:

E eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos(Mt 28,20).

Mas o Senhor diz:

Não creiais”.

Quem diz:

Eis aqui, eis ali”, mostra parte; eu comprei o todo. Fale-me o evangelho; fale-me ele mesmo por intermédio do evangelho, pois que já ressuscitaste dos mortos, para que acreditem em ti os que crêem em Moisés e nos profetas; fala-me também tu. Escuto:

O Messias devia sofrer e ressuscitar ao terceiro dia, e que em seu nome, fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém(lc 24,46.47).

E então herege? Certamente, quando citei Moisés, ou mencionei os profetas, passaste àquele que haveria de ressucitar dos mortos. Eis que ele ressuscitou, eis que ele falou. Já não há dúvida alguma sobre a Igreja de Cristo e esposa de Cristo, como não existe dúvida sobre o corpo de Cristo, percebido pelos olhos, apalpado pelas mãos dos discípulos. Aquele que ressuscitou dos mortos mostrou a ambos: mostrou a Cabeça, mostrou os membros; mostrou o esposo, mostrou a esposa. Ou acredita em ambas as coisas comigo, ou somente na pri- meira, para tua condenação. Como sabes que ressuscitou dos mortos, que ressurgiu com o mesmo corpo? Muito bem; porque mostrou as cicatrizes; porque assim como foi crucificado, sepultado, voltou, demonstrou. É ótimo que acredites. Escuta como fala aquele em que acreditas.

Em seu nome, fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados”.

Onde? Por dilatadas regiões. Se eu quisesse dizer aquelas palavras, já lutando contra os hereges, já combatendo, já mantendo um conflito sobre tamanha questão, não conseguiria dizê-lo contra os hereges presentes como o Senhor o proferiu contra os futuros hereges. Que queres mais? É proclamada a remissão dos pecados, em nome de Cristo. Onde? “A todas as nações”.

De onde? Começando “por Jerusalém”.

Comunica-te com esta Igreja. Por que pleiteamos? Pois, a Igreja começou desta Jerusalém terrena, a fim de alegrar-se em Deus naquela Jerusalém celeste. Começa por Jerusalém, termina ali. Lá estará a Igreja inteira, desta assumiu o início da fé.



§ 19
Lê os Atos dos Apóstolos, verifica se minto. Como ali se reuniram os discípulos por ocasião da vinda do Espírito Santo. Assim se demonstra o que te disse o Senhor:

A começar por Jerusalém” como aqueles sobre os quais desceu o Espírito Santo falavam as línguas de todos (cf At 1,4-14; 2,1-12).

Por que não queres falar as línguas de todos? Eis que ali ressoaram todas as línguas. Por que agora quem recebe o Espírito Santo não fala as línguas de todos? Pois, tal era então o indício da vinda do Espírito Santo sobre os homens: que eles falavam as línguas de todos. Agora o que hás de dizer, ó herege? Que o Espírito Santo não é dado? Não digo: Onde? É dado, ou não é dado? Se não é dado, que é que fazeis, falando, batizando, abençoando? Que é que fazeis? Celebrações vãs? Por conseguinte, ele é dado. Se é dado, por que não falam as línguas de todos aqueles aos quais é dado? Por acaso, enfraqueceu-se o dom de Deus, ou produz menor fruto? Cresceu o joio, mas também o trigo:

Deixai-os crescer juntos até a colheita(Mt 13,30).

Não disse: Cresça o joio e diminua o trigo: ambos cresceram. Por que não se manifesta agora o Espírito Santo em línguas de todos? Ao contrário, manifesta-se nas línguas de todos; outrora a Igreja ainda não estava difundida por toda a terra, de sorte que os membros de Cristo falassem as línguas de todos os povos. Então, realizava-se em um só o que era prenunciado a respeito de todos. Agora o corpo de Cristo já fala as línguas de todos; e onde ainda não fala, há de falar. Pois a Igreja crescerá até possuir todas as línguas. Até onde não cresceu aquilo que abandonastes! Possuí conosco todos os lugares em que ela tem acesso, para que conosco alcanceis até onde ela ainda não atingiu. Falo as línguas de todos; ouso afirmá-lo. Estou no corpo de Cristo, estou na Igreja de Cristo; se o corpo de Cristo já fala as línguas de todos, eu também estou de posse das línguas de todos; é minha a língua grega, minha a síria, minha a hebraica, minha a de todos os povos, porque estou na unidade de todos os povos.



§ 20
Por conseguinte, irmãos, a Igreja começou por Jerusalém; caminha por todos os povos; que há de mais evidente do que este testemunho da lei, dos profetas, do próprio Senhor? Por toda a parte ressoam as vozes dos apóstolos, prestando testemunho de nossa esperança na unidade do corpo de Cristo. Regozijai-vos por causa do trigo, tolerai o joio, gemei na trituração, suspirai no celeiro. Virá o tempo em que nos alegraremos, tendo sido reforçados os ferrolhos das portas de Jerusalém. Entre quem deve entrar. Aquele que então entrará ali em público, aqui não entra se é fingido. Quem agora é fingido e entra, está fora. Está fora, sem o saber; a ventilação o mostrará, os ferrolhos o provarão. Quem agora está verdadeiramente dentro, genuinamente dentro, lá estará firmemente dentro; aqui, tolerando do lado de dentro, e lá regozijando-se do lado de dentro. Pois, as fronteiras de Jerusalém são a paz. Diz o salmo:

Estabeleceu a paz nas tuas fronteiras”.

Agora anelamos pela paz, que possuímos aqui só em esperança. Que espécie de paz ainda temos em nós? A carne tem aspirações contrárias ao espírito, e o espírito contrárias à carne (cf Gl 5,17).

Onde se encontra a paz perfeita mesmo num só homem? Quando for plena num só homem, então será plena em todos os cidadãos de Jerusalém. Quando haverá perfeita paz? Quando este ser corruptível revestir a incorruptibilidade, e este ser mortal revestir a imortalidade (cf 1Cor 15,53).

Então haverá paz perfeita, então será firme a paz. Não haverá luta contra a alma do homem, nem ela contra si mesma, pois não terá uma parte ferida. Não haverá fragilidade da carne, nem carência corporal, nem fome, nem sede, nem frio, nem calor, nem cansaço, nenhuma penúria, nem provocação, nem mesmo certamente a cautela solícita de evitar ou de amar o inimigo. Tudo isso, meus irmãos, nos combatem; ainda não existe plena e perfeita paz. Se exclamastes ao ouvir nomeada a paz, clamastes por desejo. Vosso clamor veio da sede e não da saciedade. Pois, haverá perfeita justiça onde houver perfeita paz. Agora temos fome e sede de justiça.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).

Como serão saciados? Quando alcançarmos a paz. O salmista, após a frase:

Estabeleceu a paz nas tuas fronteiras”, considerando a saciedade e a ausência de qualquer penúria, imediatamente acrescenta:

E te sacia com a flor do trigo”.



§ 21
Irmãos, visto que a paz a que nos referimos ainda não existe totalmente em nós, isto é, totalmente em cada um de nós, talvez vosso espírito ainda se deleite em ouvir-me; mesmo que nada resista, nem se rebele da parte do corpo, terminemos o salmo. Nunca vos percebo cansados; contudo, receio, Deus o sabe, ser pesado a vós ou a alguns irmãos; vejo o empenho de muitos que exigem de mim este trabalho e estes suores, e acredito que no Senhor não serão sem fruto. Alegro-me de ser tal o prazer em ouvir a verdade da palavra de Deus, de tal sorte que vossos bons esforços em vista do bem e deles provenientes superam os dos insensatos que estão no anfiteatro. Será que eles, se ficassem tanto tempo de pé, ainda estariam olhando? Por conseguinte, irmãos, ouçamos o restante, uma vez que o quereis. O Senhor nos assista, assista também às nossas forças e às nossas mentes.

Aquele que estabeleceu a paz nas tuas fronteiras”, fala a Jerusalém:

e te sacia com a flor do trigo”.

Passa a fome e a sede de justiça e a saciedade as sucede. Qual será ali a flor do trigo, senão aquele pão que do céu desceu até nós? (cf Jo 6,41).

Como não haverá de saciar na pátria o pão que de tal forma nos alimentou em nossa peregrinação?



§ 22
Agora, o salmista está para nos falar acerca da própria peregrinação, no final da qual chegaremos àquela Jerusalém onde juntos louvaremos ao Senhor, louvaremos ao Senhor nosso Deus; nós que constituímos aquela Jerusalém, nós que somos Sião, quando forem reforçados os ferrolhos de nossas portas. Entretanto, aquele que então nos saciará com a flor do trigo, que faz durante esta peregrinação? O que se segue:

ele envia à terra sua palavra”.

Eis que na terra trabalhamos cansados, débeis, preguiçosos, frios; quando seremos conduzidos para junto da flor do trigo que sacia, se ele não tivesse enviado à terra que pesava sobre nós, que impedia nosso retorno, a sua palavra? Enviou sua palavra, não abandonou mesmo no deserto, fez chover o maná do céu.

Ele envia à terra sua palavra” e veio à terra seu verbo. Como? Ou qual é seu verbo? “E sua palavra corre com velocidade”.

Ele não disse: Veloz é sua palavra. Mas:

Sua palavra corre com velocidade”.

Entendamos bem, irmãos; não poderia escolher melhor expressão. O objeto quente esquenta-se com o calor; o frio, esfria-se pelo frio, o veloz torna-se veloz pela velocidade. Que há de mais quente do que o próprio calor, que esquenta tudo o que se aqueça? Que de mais frio que o próprio frio, que esfria tudo o que se torna frio? Que, há, portanto, de mais veloz que a própria velocidade, que torna veloz tudo o que corre velozmente? Podem-se enumerar muitos seres velozes; uns mais, outros menos; e uma coisa é tanto mais veloz quanto mais participa da velocidade. Um ser participa mais da velocidade; portanto, é mais veloz. Ou participa menos da velocidade e será menos veloz. Mas, que será mais veloz do que a própria velocidade? Por conseguinte, até onde corre? “Até à velocidade”.

Aumenta quanto quiseres a velocidade da palavra e dize: É mais veloz do que isto e aquilo, do que as aves, do que o vento, do que os anjos. Seria alguma dessas coisas tão veloz quanto a própria velocidade, até à velocidade? Que é a própria velocidade, irmãos? Ela está em toda a parte, porém não é parcial. Compete ao Verbo de Deus não estar numa parte, porém estar em toda a parte pelo próprio Verbo, enquanto é Virtude de Deus e Sabedoria de Deus (cf 1Cor 1,24), antes de assumir a carne. Mas pensemos em Deus na condição divina, Verbo igual ao Pai; é a mesma Sabedoria de Deus, da qual foi dito:

Alcança com vigor de um extremo ao outro”.

Que velocidade! “Alcança com vigor de um extremo ao outro(Sl 8,1).

Talvez alcance por imobilidade. Se é por imobilidade, seria como se uma volumosa rocha enchesse um lugar qualquer; foi dito que atinge do mesmo lugar de um extremo a outro, não contudo por movimento. Que estamos dizendo? Aquele Verbo não tem movimento, e aquela Sabedoria é estulta? E onde fica o que se afirma sobre o Espírito da Sabedoria? Tendo dito muitas coisas, acrescenta:

Sutil, móvel, penetrante, imaculado(Sb 7,22).

Assim, na verdade, a sabedoria de Deus é móvel. Se é móvel, quando atinge isto, não atinge aquilo? Ou toca a este e abandona aquele? E onde está a velocidade? A velocidade faz com que esteja sempre em toda a parte, e em parte alguma fique circunscrita. Mas não conseguimos raciocinar sobre estas coisas; somos preguiçosos. Quem pode pensar nisto? E, de fato, meus irmãos, expus conforme me foi possível (se o foi, se entendi), e entendestes como pudestes. Mas que diz o Apóstolo? “Ao que é poderoso para realizar por nós em tudo infinitamente além do que pedimos ou pensamos(Ef 3,20).

Que nos demonstra aqui? Que por mais que entendamos, não entendemos tal qual é. Por quê? “Um corpo corruptível pesa sobre a alma(Sb 9,15).

Portanto, na terra somos gélidos. A velocidade é fervente; e todas as coisas férvidas são mais velozes e todas as coisas geladas mais tardas. Nós somos tardos, porque tíbios. Aquela Sabedoria, porém, corre até a velocidade. Portanto, é ardorosíssima; ninguém se furta a seu calor (cf Sl 18,7).



§ 23
16 Nós, portanto, que pela lentidão do corpo somos tíbios, onerados com o vínculo desta vida terrena corruptível, não temos esperança alguma de apreender o Verbo, que corre até uma grande velocidade? Teria ele, embora possuindo um corpo, abandonado os que estavam oprimidos entre as realidades ínfimas? Não nos predestinou, antes de nascermos com este corpo mortal e preguiçoso? Aquele que nos predestinou deu à terra a neve, nós mesmos. Agora tratemos daqueles versículos obscuros do salmo. Começamos a tirar os invólucros, pois encontro-vos tanto mais ávidos da palavra de Deus, quanto mais falamos. Eis que nós, preguiçosos, nesta terra, quase congelávamos aqui. E como acontece com a neve, em cima está gelada e por baixo vai derretendo, assim, com o esfriar da caridade, a natureza humana caiu nesta terra, e envolvida num corpo preguiçoso, tornou-se como neve. Mas desta neve foram retirados os predestinados filhos de Deus. Pois, ele “faz cair a neve como lã”.

Que quer dizer: Como lã? Quer dizer, ele há de fazer alguma coisa desta neve que ele faz cair; destes que ainda são lentos e frios espiritualmente, e que são predestinados. Lã é um material com que se fabricam as vestes; a lã apresenta-se como certo material para a veste. Portanto, uma vez que Deus predestinou a alguns que temporariamente se arrastam friamente sobre a terra, e ainda não são fervorosos pelo espírito de caridade (pois ainda fala a respeito da predestinação), ele os fez como lã; desta ele fabricará as vestes. Com razão, no monte, as vestes de Cristo refulgiram, como neve (cf Mt 17.2).

A veste de Cristo brilhava como neve, como se daquela lã já tivesse sido feito a túnica. Desta lã, isto é, da neve que ele fez cair como lã, os predestinados ainda eram preguiçosos. Contudo, espera, vê a continuação. Ele os fez como lã e desta se confecciona a túnica. Assim como se denomina a Igreja corpo de Cristo, diz-se que a veste de Cristo é a própria Igreja; daí provém a palavra do Apóstolo:

Para apresentar a si mesma a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga(Ef 5,27).

Por conseguinte, apresenta a si mesmo a Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga; faça para si uma veste daquela lã que predestinou quando neve. Ainda mesmo quando se trata de homens incrédulos, tíbios, preguiçosos, que ele faça uma veste de tal lã. Para que se lavem as máculas, a Igreja se purifique pela fé; a fim de não ter ruga, seja estendida na cruz.

Faz cair a neve como lã”.



§ 24
Se são predestinados, devem ser chamados. Pois, “os que chamou, também os justificou(Rm 8,30).

Como são chamados, tirados do estado de fraqueza daquele corpo, a fim de serem curados? Como são chamados? Escuta o evangelho:

Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores(Mt 9,13).

Por conseguinte, a neve pela predes-tinação começa a conhecer seu torpor, a acusar seu pecado; começa pelo chamado a procurar a penitência. Com justeza, portanto, aquele que “faz cair a neve como lã”, para confeccionar a futura túnica, igualmente, chamando à penitência, “espalha como cinza a névoa”.

Diz o salmo:

Espalha como cinza a névoa”.

Quem? Aquele que faz “cair a neve como lã”.

Ele chama à penitência aqueles que predestinou; porque “os predestinou, “também os chamou”.

A cinza figura a penitência. Ouve como chamou à penitência, exprobrando algumas cidades, nestes termos:

Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro e em Sidônia tivessem sido realizados os milagres que em vós se realizaram, há muito se teriam convertido, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinza(Mt 11,21).

Portanto, “espalha a névoa como cinza”.

Que quer dizer:

Espalha a névoa como cinza?” Ao ser alguém chamado para conhecer a Deus, e lhe é dito: Apreende a verdade, começa a querer apreendê-la, e não consegue. Vê-se cercado de certa nebulosidade, que antes não via. A névoa presta-se para o seguinte: saberes que desconheces, saberes o que importa saber, e te vejas inválido para conhecer. Como importa conhecer. Pois, se estando esta névoa, presumires conhecer, ouvirás do Apóstolo:

Se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber(1 Cor 8,2).

Portanto, ainda não compreendeste, ainda suportas a névoa. Mas não te abandonou aquele que acendeu para ti a lâmpada de sua carne. Segue a fé e não errarás no meio da névoa. Mas, como te esforças por ver, e não podes, arrepende-te de teus pecados; porque a cinza foi espalhada qual névoa. Arrepende-te de teres sido contumaz contra Deus; arrepende-te de ter seguido teus péssimos caminhos. Chegaste a esta dificuldade acerca da feliz visão; e a névoa, que o Senhor espalha como cinza, te será salutar. Ainda te achas dentro da névoa, mas ela é como cinza. Pois, os penitentes ainda se revolvem na cinza, meus irmãos, atestando que lhe são semelhantes, e dizendo a seu Deus:

Confundo-me com a cinza”.

Diz ainda esta passagem da Escritura: Menosprezei-me e desfaleci.

Confundo-me com o pó e a cinza(Jó 30,19).

É humildade de um penitente. Quando Abraão fala a seu Deus, querendo uma explicação sobre o incêndio de Sodoma, disse:

Sou pó e cinza(Gn 18.27).

Sempre se encontra tal humildade nos grandes e santos varões! Por isso, “espalha a névoa como cinza”.

Por quê? “Porque os que predestinou, também os chamou, aquele que não veio chamar justos, mas pecadores(Mt 9,13) à penitência.



§ 25
17 “Envia cristais de gelo como pedaços de pão”.

Não precisamos novamente dar-nos ao trabalho de explicar que é cristal de gelo. Nós o expusemos antes, e acredito que V. Caridade não se esqueceu. Que significa então:

Envia cristais de gelo como pedaços de pão?” Assim como a neve figura os predestinados; como a névoa representa os chamados à penitência, que são predestinados à salvação, de modo semelhante acontece com o cristal. Que é cristal de gelo? É muito duro, congelou muito; já não pode dissolver-se facilmente como a neve. A neve endurecida por muitos anos e pela série dos séculos, chama-se cristal de gelo; e este é enviado como pedaços de pão. Que quer dizer isto? Existiram alguns excessivamente duros, comparáveis não à neve, mas ao cristal; e eles foram predestinados e chamados; alguns mesmo para apascentar os outros e serem úteis aos demais. Que necessidade há de enumerarmos muitos que talvez conhecemos, este ou aquele? Ocorre a cada qual refletir dentre seus conhecidos quantos foram duros, pertinazes, resistentes contra a verdade, e que agora anunciam a verdade. Tornaram-se pedaços de pão. Qual é o único pão? Diz o Apóstolo:

Nós somos muitos e formamos um só corpo em Cristo(Rm 12,5); “há um único pão; nós, embora muitos, somos um só corpo(1 Cor 10,17), diz ele mesmo. Portanto, se todo o corpo de Cristo forma um só pão, os membros de Cristo são pedaços de pão. De alguns que são duros faz seus membros, úteis para nutrir os outros. Por que ir à busca de muitos? Consideremos aquele Paulo, apóstolo, muito notório. Mas do que este varão nada temos de mais notório, de mais suave, de mais familiar nas Escrituras. E se houve outros que tinham tanta dureza quanto ele, e se tornaram pães, o seu exemplo inclui os outros todos, a fim de ficar explicado o sentido do versículo:

Envia cristais de gelo como pedaços de pão”.

Com efeito, o apóstolo Paulo era cristal duro, resistindo à verdade, clamando contra o evangelho, endurecido mesmo ao sol. Quão duro foi, tendo crescido sob a lei, instruído aos pés do doutor da lei, Gamaliel. Ele não ouvia Moisés e os profetas a pregarem o Cristo? Grande dureza! Certamente os gentios não haviam escutado os profetas, não escutaram Moisés; eram gelados, mas não cristais. Aquele que acreditava nas palavras que anunciavam o Cristo, mas não acreditavam em Cristo que viera, havia se endurecido demasiado. Como era cristal de gelo, parecia brilhante e branco; mas era duro e bastante gélido. Como era brilhante e cândido? “Hebreu filho de hebreus; quanto à lei, fariseu”.

Considera o brilho do cristal. Mas escuta a dureza do cristal:

Quanto ao zelo, perseguidor da Igreja(Fl 3,56).

Entre os apedrejadores do máritr santo Estêvão encontrava-se este homem duro, talvez mesmo mais duro do que os demais, pois guardava as vestes de todos que o apedrejavam, para apedrejá-lo por meio das mãos de todos os outros (cf At 7,58).



§ 26
18 Por isso, vemos a neve, a névoa, o cristal. Será bom que ele faça soprar o vento e os dissolva. Se ele não fizer soprar, se ele próprio não dissolver a dureza deste gelo:

Exposto a seu frio, quem resistirá? Exposto ao frio”, de quem? De Deus. Onde se encontra seu frio? Abandona o pecador, não o chama, não lhe abre o entendimento, não infunde a graça. Dissolva o homem, se puder, o gelo da estultície. Não pode. Por que não pode? “Exposto a seu frio, quem resistirá?” Nota como o homem congela e o afirma:

Mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” Eis que esfrio, me congelo; qual o calor que me dissolverá, a fim de que eu corra? “Quem me libertará deste corpo de morte? Exposto a seu frio, quem resistirá?” E quem poderá libertar-se a si mesmo, se ele abandonar? Quem liberta? “A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso(Rm 7,23-25).

Escuta também aqui a referência à graça de Deus:

Envia cristais de gelo como pedaços de pão. Exposto a seu frio, quem resistirá?” É, portanto, de se desesperar? De forma alguma. Pois, o salmo prossegue:

Manda sua palavra e os derrete”.

Por conseguinte, não desespere a neve, não desespere a névoa, não desespere o cristal. Da neve, de fato, como se fosse lã, faz-se a túnica. Aquela névoa, na penitência, encontrou a salvação, porque “os que predestinou, também os chamou”.

Mas, embora haja entre os predestinados alguns duríssimos, que congelaram por muito tempo, e se tornaram cristais de gelo, não serão duros diante da misericórdia de Deus.

Manda a sua palavra e os derrete”.

Que significa:

os derrete?” Não entendais em sentido ruim a palavra:

derrete”.

Há de liquefazer, dissolver. Pois, eles são duros por causa da soberba. Com razão a soberba é denominada torpor; tudo o que se entorpece é gelado. Os homens quando sentem o rigor do frio, dizem no dia-a-dia: Fiquei entorpecido. Portanto, a soberba é um torpor.

Manda a sua palavra e os derrete”.

E, de fato, a neve acumulada, sendo aquecida, derrete, abaixa-se. Como o entorpecimento levanta montes de neve, assim também a soberba eleva os estultos.

Manda a sua palavra e os derrete”.

Eis que aquele cristal, Saulo, depois da morte e apedrejamento de Estêvão, por certa dureza estulto contra Cristo, pede cartas aos sacerdotes, para em toda parte prender os cristãos, respirando ameaças. Era duro e gélido, em oposição ao fogo de Deus. Mas, apesar de ser ele duro, gélido, eis que o Senhor “manda a sua palavra e o derrete”, clamando com ardor do céu:

Saulo, Saulo, por que me persegues”? (cf At 9,1-4).

Por uma só voz, tão grande dureza do cristal de gelo se dissolve. Pois, “manda a sua palavra e os derrete”.

Não se desespere relativamente ao cristal. Escuta a palavra de um destes cristais:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente”.

Mas, por que Deus dissolveu o cristal de gelo? Para que a neve não perca a esperança acerca de si mesma. Diz ainda:

Mas obtive misericórdia, foi para que em mim, Cristo Jesus demonstrasse toda a sua longaminidade, como exemplo para quantos nele hão de crer, para a vida eterna(1 Tm 1,13-16).

Por conseguinte, Deus clama aos povos: Dissolvi o cristal, vinde, ó neves.

Manda a sua palavra e os derrete. Ordena que soprem os ventos e corram as águas”.

Eis que o cristal e a neve derretem, tornam-se águas; os que têm sede, venham e bebam. Saulo duro como cristal, Estêvão perseguido até a morte. Paulo já água viva, chama os povos à fonte.

Ordena que soprem os ventos e corram as águas”.

O vento é ardente; daí se origina a palavra de outro salmo:

Reconduz nossos cativos, Senhor, como a torrente no sul(125,4).

Pois, a Jerusalém cativa, de certo modo, congelara em Babilônia; sopra vento sul, solve-se o rigor do cativeiro e o ardor da caridade corre para Deus.

Ordena que soprem os ventos e corram as águas”.

Faça-se neles fonte de água que jorra para a vida eterna (cf Jo 4,14).



§ 27
19 “Revelou sua palavra a Jacó, sua justiça e seus juízos a Israel”.

Qual justiça? Que juízos? Tudo aquilo que o gênero humano anteriormente sofreu aqui na terra, sendo neve, névoa e cristal, sofreu merecidamente devido à soberba e orgulho contra Deus. Remontemos à origem de nossa queda, e vejamos com quanta verdade canta o salmo:

Antes de ser humilhado, errei”.

Mas o salmista que diz:

Antes de ser humilhado, errei”, é o mesmo que afirma:

Foi bom que me humilhaste para que eu aprenda as tuas justificações(Sl 118,67.71).

Estas justificações, Jacó as aprendera de Deus, que fez o mesmo Jacó lutar com o anjo; sob a figura do anjo o próprio Senhor lutara. Agarrou-o, enpregou força para segurá-lo, enfraqueceu para que ele o prendesse. Deixou-se prender por misericórdia, não por fraqueza. Por conseguinte, Jacó lutou, prevaleceu, segurou-o; e quem parecia ter vencido, pede a bênção (cf Gn 32,24-26).

Como entendia com quem tinha lutado, a quem segurava? Por que lutou violentamente, e segurou-o? “Por que o reino dos céus sofre violência, e violentos se apoderam dele(Mt 11,12).

Então, por que motivo lutou? Porque foi com labor. Por que seguramos mal o que facilmente perdemos? A fim de que não recebendo com facilidade o que perdemos, aprendamos que podemos perder o que temos. Esforce-se o homem por segurar; segurará firmemente o que tiver obtido com trabalho. Ora, foram estes seus juízos que Deus revelou a Jacó e a Israel. Direi mais claramente. Os justos aqui na terra sofrem trabalhos, perigos, incomodidades, padecimentos, por justo juízo de Deus. Somente do Senhor se pode dizer que sofreu sem razão para tal; embora não tenha sido sem motivo, porque foi por nossa causa. Somente ele pode dizer:

Restituía o que não roubei(Sl 68,5); ele só pôde afirmar:

O príncipe do mundo vem; contra mim, ele nada pode”.

E como se lhe fosse perguntado: Então, por que sofres? continua o evangelho: Mas para que saibam todos que faço a vontade de meu Pai.

Levantai-vos! Partamos daqui(cf Jo 14,30.31).

Todos os outros por seus merecimentos, segundo o juízo de Deus, mesmo que sofram pela justiça, não pretendam sofrer a paixão de um inocente, como Cristo. Escuta o apóstolo Pedro:

Com efeito, é tempo de começar o juízo pela casa do Senhor”.

Exortando os mártires e testemunhas de Deus, a suportarem com toda paciência todas as ameaças do mundo enfurecido, disse-lhes:

É tempo de começar o juízo pela casa de Deus. Ora, se ele começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a obedecer ao evangelho de Deus? Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e o pecador”? (1Pd 4,17.18).

Revelou sua palavra a Jacó, sua justiça e seus juízos a Israel”.



§ 28
20 “Com nenhum outro povo agiu assim”.

Ninguém vos engane. Não foi revelado a alguns povos este juízo de Deus, a saber, como é que sofrem justos e injustos; como todos sofrem segundo merecem; como, segundo o graça de Deus, não são libertados os próprios justos de acordo com seus méritos. Não foi revelado isto a todos os povos; mas somente a Jacó, somente a Israel. Que fazemos, então, nós, se Deus não o revelou a todos os povos, mas apenas a Jacó, apenas a Israel? Onde ficaremos nós? Em Jacó e em Israel.

A nenhum manifestou os seus juízos”.

A quem? A todos os povos. E como são chamadas as neves, depois que o cristal de gelo se dissolveu? Como são chamados os povos, depois que Paulo foi justificado? Como, se não estivessem em Jacó? Foi tirado o galho da oliveira silvestre para ser enxertado na oliveira genuína (cf Rm 11,17).

Já pertencem à oliveira; já não devem ser denominados gentios, mas um só povo em Cristo, o povo de Jacó, o povo de Israel. Por que o povo de Jacó e povo de Israel? Porque Jacó é filho de Isaac, Isaac filho de Abraão. E que foi dito a Abraão? “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra”.

A mesma promessa foi feita a Isaac e a Jacó (cf Gn 22,18; 26,4; 28,14).

Pertencemos, portanto, a Jacó, uma vez que pertencemos a Isaac, pertencemos a Abraão. A posteridade de Abraão, contudo, não sou eu ou qualquer outro, mas de acordo com a interpretação do santo Apóstolo, é Cristo. Disse ele:

Não diz: e os descendentes, como referindo-se a muitos, mas como a um só: e à tua descendência, que é Cristo(Gl 3,16).

Se a posteridade é uma só, um é Jacó, um é Israel, e todas as gentes formam um só povo em Cristo. Com efeito, pertencem a todas as gentes o que Deus revelou ao próprio Jacó e ao próprio israel. Devem ser contados entre os outros povos somente aqueles que não quiseram acreditar em Cristo, nem serem retirados da oliveira silvestre e enxertados na verdadeira oliveira. Permanecerão nas selvas, como ramos estéreis e amargos. Alegre-se Jacó. Que significa Jacó? Suplantador, porque suplantou o irmão (cf Gn 27,36).

O endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios(Rm 11,25).

De Jacó se constituiu Israel. Que é Israel? Ouçamos todos, todos de Israel, quer sejais vós que aqui estais como membros de Cristo, quer os de fora e não de fora, e através de todos os povos, em toda parte de fora, em toda parte de dentro; ouça Israel, que de Jacó se tornou Israel. Que quer dizer Israel? Aquele que vê a Deus. Onde verá a Deus? Na paz. Em que paz? Na paz de Jerusalém; pois, ele “estabeleceu a paz nas tuas fronteiras”.

Ali nós louvaremos. Todos nós um só naquele que é um seremos orientados para a unidade; porque de então em diante já não seremos muitos dispersos.