SALMO 𝟭𝟜𝟞

Louvarei ao Senhor durante a minha vida; cantarei louvores ao meu Deus enquanto viver.

Não confieis em príncipes, nem em filho de homem, em quem não há auxílio.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 146


§ 146:1  Ł Louvai ao Senhor.Ó minha alma, louva ao Senhor.

§ 146:2  Ł Louvarei ao Senhor durante a minha vida; cantarei louvores ao meu Deus enquanto viver.

§ 146:3  Ɲ Não confieis em príncipes, nem em filho de homem, em quem não há auxílio.

§ 146:4  Sai-lhe o espírito, e ele volta para a terra; naquele mesmo dia perecem os seus pensamentos.

§ 146:5  Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, e cuja esperança está no Senhor seu Deus

§ 146:6  ɋ que fez os céus e a terra, o mar e tudo quanto neles há, e que guarda a verdade para sempre;

§ 146:7  ɋ que faz justiça aos oprimidos, que dá pão aos famintos. O Senhor solta os encarcerados;

§ 146:8  o Senhor abre os olhos aos cegos; o Senhor levanta os abatidos; o Senhor ama os justos.

§ 146:9  O Senhor preserva os peregrinos; ampara o órfão e a viúva; mas transtorna o caminho dos ímpios.

§ 146:10  O Senhor reinará eternamente: o teu Deus, ó Sião, reinará por todas as gerações. Louvai ao Senhor!


O SALMO 146


SERMÃO 💬

§ 1
Ouvíamos atentamente o canto do presente salmo e nem todos os ouvintes entendiam. Quanto maior não deve ser agora a atenção, se, como espero e desejo, com o auxílio das orações de todos os ouvintes, Deus nos revelar o que nele houver de obscuro. Seja útil esta escuta, e o ouvinte não saia daqui sem proveito, ele que estava tão atento para ouvir. Como inicia? O salmo nos exorta:

Louvai o Senhor”.

Dirige-se a todas as nações e não somente a nós. Cada Igreja escuta esta voz que soa em cada lugar pela voz dos leitores; uma voz, no entanto, a de Deus, acima de todas não se cala, convidando-nos a louvá-lo. E se perguntássemos por que motivo devemos louvar a Deus, vede qual a causa que o salmista apresenta:

Louvai o Senhor porque é bom salmodiar”.

Será esta toda a recompensa dos que louvam? Louvemos o Senhor. Por quê? “Porque é bom salmodiar”.

Dirá alguém: Queria louvar o Senhor, se algo me fosse dado por este louvor. Pois quem louva gratuitamente mesmo um homem? Os que louvam os homens esperam alguma recompensa; quem louvar a Deus não deve esperar, nem pedir, nem aguardar qualquer recompensa? Louva-se um ser fraco e espera-se algo dele; louva-se o Onipotente, e não há recompensa alguma? Ou será que desejo algo que ele não possa dar? Que pode desejar um homem que não esteja nas mãos de Deus? Ao louvares um homem, é possível que ambiciones o que ele não pode te prestar. Louva a Deus com segurança, porque ninguém pode afirmar que ele não pode prestar o que é possível que desejes. Proposta, de fato, a esperança de alcançar alguma recompensa, devemos louvar a Deus; no entanto, ele não há de dar tudo aquilo por que anelamos. Pois, ele é o Pai, e não dá as coisas más que os filhos desejam. Louvemos, esperemos e desejemos não isto ou aquilo, mas aquilo que julga dever nos conceder aquele que louvamos. Com efeito, ele sabe o que convém dar-nos; quanto a nós, demos atenção àquilo que nos é proveitoso receber. Diz o Apóstolo:

Pois não sabemos o que pedir como convém(Rm 8,26).

E o mesmo apóstolo Paulo julgava que lhe seria útil ser-lhe retirado o estímulo da carne, o anjo de Satanás que o esbofeteava, conforme ele mesmo confessa:

A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder(2 Cor 12,7-9).

Desejou alguma coisa; não foi concedida, conforme sua vontade, a fim de ser atendido quanto a sua cura. E neste salmo, que nos é proposto:

Louvai o Senhor”? Por que louvaremos o Senhor? “Porque é bom salmodiar”.

Salmodiar é louvar o Senhor. Por isso exorta o salmo: Louvai o Senhor, porque é bom louvá-lo. Não deixemos de louvar o Senhor. Foi pronunciado o salmo e passou; terminou e interrompemos; louvamos e calamos; cantamos e paramos. Fomos talvez fazer algo que faltava, e outras ações que nos ocorreram; o louvor divino cessará para nós? Não. Pois, tua língua louva por uma hora, mas tua vida sempre louve. Por isso, é bom salmodiar.



§ 2
O salmo, de fato, é um canto, não de qualquer espécie, mas com o saltério. O saltério é um instrumento de música como a lira, a cítara, e outros instrumentos feitos para o canto. Por isso quem salmodia, não salmodia apenas com a voz; mas tomando certo instrumento, denominado saltério, toca-o com as mãos, concordando com a voz. Queres, então salmodiar? Não apenas tua voz cante os louvores de Deus, mas tuas obras concordem com tua voz. Ao cantares com a voz, de vez em quando te calas. Canta com a vida, de tal forma que jamais te cales. Estás fazendo um negócio, e planejas uma fraude: o louvor de Deus se ca-lou; e o que é mais grave, não apenas calaste o louvor, mas partiste para uma blasfêmia. Se Deus é louvado em vista de tua boa obra, louvas a Deus com a tua obra; e quando Deus é blasfemado por causa de teus malfeitos, com tua obra blasfemas contra Deus. Por isso, para uma exortação que os ouvidos apreendam, canta com a voz; mas não cale o coração, não cale a vida. Se num negócio não planejas fraude, salmodias a Deus. Ao comeres e beberes, salmodias. Não mistures a isto as suavidades dos sons agradáveis aos ouvidos, mas como e bebe, modesta, frugalmente com temperança, porque assim se pronuncia o Apóstolo:

Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus(1 Cor 10,31).

Se, portanto, tu te comportas bem ao comer, beber e tomar alimento para refeição do corpo e reparação dos membros, dando graças àquele que te ofereceu estes alívios suplementares, a ti mortal e frágil, teu alimento e tua bebida louvam a Deus. Se, contudo, excedes por imoderada voracidade a medida devida à natureza, e te embriagas de vinho, por mais que tua língua profira louvores a Deus, tua vida blasfema. Depois da comida e bebida descanças e dormes; no leito nada faças de torpe, nem excedas indo além do que permite a lei de Deus. Seja casta a união com tua esposa; e se cuidas da procriação dos filhos, não haja desenfreada luxúria; trata com deferência tua cônjuge no leito, porque ambos sois membros de Cristo (cf 1Cor 6,15), ambos criados por ele, ambos resgatados por seu sangue; agindo assim louvas a Deus e teu louvor não calará. E quando o sono vier? Enquanto dormes, tua consciência pesada não te tire do repouso; e pela inocência do sono louva a Deus. Se, portanto, louvas, não canta apenas com a língua, mas toma também o saltério das boas obras, “porque é bom salmodiar”.

Louvas quando tratas de um negócio, louvas ao tomares alimento e bebida, louvas quando descansas no leito, louvas quando dormes; quando não louvas? O louvor de Deus será perfeito em nós, ao chegarmos àquela cidade, quando nos tivermos tornado iguais aos anjos de Deus: quando nenhuma necessidade corporal nos solicitar de parte alguma (cf Mt 22,30), nem nos ataque a fome e a sede, o calor nos canse, o frio não nos enrijeça, a febre não nos abata, nem a morte seja um termo. Exercitemo-nos para aquele louvor perfeitíssimo por meio deste louvor através das boas obras.



§ 3
Por isso, tendo dito:

Louvai o Senhor porque é bom salmodiar; ao nosso Deus é agradável o louvor”.

Como será agradável o louvor ao nosso Deus? Se o louvarmos vivendo bem. Escuta como lhe será agradável o louvor. Em outra passagem se diz:

O louvor não é belo na boca do pecador(Eclo 15,9).

Se, pois, na boca do pecador o louvor não é belo, não é agradável; é agradável o que é belo. Queres, portanto, que o louvor seja agradável a Deus? Que de bons cânticos não destoem maus costumes.

Ao nosso Deus seja agradável o louvor”.

Que disse o salmista? Vós que louvais, vivei bem. O louvor dos ímpios ofende a Deus. Ele dá mais atenção à maneira como vives do que ao que cantas. Certamente queres ter a paz com aquele a quem louvas; como queres ter paz com ele, se destoas de ti mesmo? Como, respondes, destôo de mim mesmo? Tua língua canta uma coisa, e a vida indica outra.

Ao nosso Deus seja agradável o louvor”.

O louvor pode ser agradável ao homem, se ouve palavras harmoniosas, sentenças finas, voz suave do canto; mas para “nosso Deus seja agradável o louvor”; seus ouvidos estão atentos ao coração não à boca; eles se abrem não à língua, mas à vida do cantor.



§ 4
Quem é o nosso Deus ao qual deve ser agradável o louvor? É suave em relação a nós, recomenda-se a nós; graças a ele que se dignou agir assim. Dignou-se, de fato, recomendar-se a nós, não como se devêssemos prestar-lhe algum serviço, mas para receber muito da parte dele. Como pois Deus se mostra a nós? Ouve a expressão do apóstolo Paulo:

Deus demonstra seu amor para conosco”.

Como “demonstra”? Ouvi: Diga o Apóstolo para o compararmos com as palavras do salmo:

Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores(Rm 5,8).

Que reserva então para os que o louvam quem assim demonstra seu amor aos pecadores? O Apóstolo declara que Deus demonstrou seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido pelos ímpios; não para permanecerem ímpios, mas a fim de que pela morte do justo fossem curados da injustiça. E que ouves do salmo depois do versículo:

Ao nosso Deus seja agradável o louvor?” Vejamos se há a mesma demonstração mencionada pelo Apóstolo: que Cristo morreu pelos pecadores e pelos ímpios.

O Senhor que edifica Jerusalém e congrega os dispersos de Is- rael”.

Eis que o Senhor edifica Jerusalém e congrega os dispersos de seu povo. Povo em Jerusalém, povo de Israel. Existe uma Jerusalém eterna nos céus, onde os cidadãos são os anjos. Como, então, está ali Israel? Se considerares aquele neto de Abraão, chamado Jacó, como entenderemos que os anjos são Israel? Se pesquisarmos o sentido do nome, porque também Jacó teve o nome mudado em Israel (cf Gn 32,28), é mais adequado ali o nome de Isarel; e oxalá também nós sejamos, em conseqüência, Israel. Como se traduz Israel? Aquele que vê a Deus. Por conseguinte, todos os cidadãos daquela cidade, vendo a Deus se alegram naquela grande, ampla, celeste cidade; Deus mesmo será para eles a visão. Mas nós somos peregrinos, longe daquela cidade, expulsos por causa do pecado, sem podermos ali permanecer; e sob o peso da mortalidade, não podemos para lá voltar. Deus considerou nossa peregrinação, e aquele que edifica Jerusalém, restaurou a parte arruinada. Como restaurou a parte arruinada? “Congregando os dispersos de Israel”.

Com efeito, uma parte caiu e se tornou peregrina. Deus olhou misericordiosamente para esta peregrina, e procurou os que não o buscavam. Onde procurou? Quem enviou para junto de nosso cativeiro? Enviou o Redentor, segundo a palavra do Apóstolo:

Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores(Rm 5,8).

Enviou, portanto, para junto de nosso cativeiro seu Filho, como redentor. Leva, disse ele, contigo a bolsa, oferece ali o preço dos cativos. Ele se revestiu, então, da mortalidade da carne, e ali encontrou o sangue que derramou para que fôssemos redimidos. Com aquele sangue congregou os dispersos de Israel. E se ele congregou os que outrora estavam dispersos, como devemos nos empenhar para que agora os dispersos sejam congregados? Se os dispersos foram congregados, para que na mão do artífice entrassem na construção, como devem ser congregados os que caíram da mão do artífice devido à sua inquietude? “O Senhor edifica Jerusalém”.

Eis aquele a quem louvamos, eis aquele ao qual devemos louvor durante toda a nossa vida.

O Senhor edifica Jerusalém, e congrega os dispersos de Israel”.



§ 5
3 Como congrega? Que faz para congregar? “Ele cura os contritos de coração”.

Eis como se congregam os disper-sos de Israel, a fim de serem curados os contritos de coração. Os que não são contritos de coração, não se curam. Que é: ter contrito o coração? Caríssimos, tomai nota; que isto aconteça a fim de poderdes ser curados. Foi dito em muitos outros lugares da Escritura; e principalmente naquele lugar em que a voz de um cantor assim se exprimia:

Pois se quissesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria”.

O salmista dizia a Deus:

Se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria. Não te comprazes em holocaustos”.

E então? Ficamos sem a oblação do sacrifício? Escuta o que ele quer que ofereças. Continua:

Sacrifício a Deus é o espírito contrito; ao coração arrependido e humilhado Deus não despreza(Sl 50,18.19).

Portanto, “ele cura os contritos de coração”; porque deles se aproxima para curá-los, conforme se diz em outra passagem:

O Senhor está perto dos corações contritos(Sl 33,19).

Quais têm o coração contrito? Os humildes. Quais não o têm? Os soberbos. O coração contrito será curado, e o orgulhoso, derrubado. Talvez por isso cai, para que se torne contrito e se cure. Portanto, irmãos, não queira nosso coração estar ereto, antes de ser reto; ergue-se pessimamente o que primeiro não se corrigir.



§ 6
Ele cura os contritos de coração e pensa-lhes as fraturas. Ele cura os contritos de coração”, cura, portanto, os humildes de coração, cura os que confessam, cura os que se penitenciam, exercendo severo juízo contra si mesmos, para poderem sentir a misericórdia de Deus. A esses tais, ele cura; mas a perfeita cura deles se realizará depois de passar a mortalidade, quando este ser corruptível revestir a incorruptibilidade e este ser mortal revestir a imortalidade (cf 1Cor 15,53.54); quando não houver nenhuma solicitação da parte da carne; não somente nenhuma tentação a que possamos consentir, mas nem mesmo sugestão alguma da carne. De fato, agora, meus irmãos, quantos prazeres ilícitos atingem o ânimo! Embora não consintamos, de sorte que nossos membros sirvam à justiça e não à iniqüidade, no entanto, pelo menos sentir o deleite de tais coisas, apesar de não se consentir, ainda não é a perfeita saúde. Serás curado, portanto, serás curado pela contrição do coração. Não te envergonhes, torna contrito o coração; a estes Deus cura. Mas que faço agora? perguntas.

Compraz- me a lei de Deus, segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão, e que me acorrenta à lei do pecado”.

Que deves fazer? Esmaga o coração, confessa; coragem, repete as seguintes palavras:

Infeliz de mim! quem me libertará deste corpo de morte?” Proferir:

Infeliz de mim!” já se trata de coração contrito. Espere a felicidade quem se confessar infeliz. Repete, portanto:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” para obteres a resposta:

A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso(Rm 7,22-25).

Mas, como nos libertará a graça de Deus, da qual agora recebemos o penhor? Escuta o mesmo Apóstolo:

O corpo está morto pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós(Rm 8,10-11).

Nosso Espírito recebeu este penhor, para começarmos pela fé a servir a Deus, e pela fé sermos denominados justos; porque o justo vive da fé (cf Rm 1,17).

Tudo aquilo que em nós ainda repugna e resiste, provém da mortalidade da carne; e isto será curado.

Dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós”.

Deu o penhor para cumprir o que prometeu. Que acontecerá, então, nesta vida, quando ainda temos de confessar, sem ainda possuir, que sucederá nesta vida? Como se dará a cura? “Ele cura os contritos de coração”; mas a saúde perfeita será então, no fim, como dissemos. E agora, como será? “E pensa-lhes as fraturas”.

Aquele que cura os contritos de coração, cuja perfeita cura será na ressurreição dos justos, agora pensa-lhe as fraturas.



§ 7
Quais são as ligaduras da contrição? Do mesmo modo que os médicos enfaixam as fraturas. Algumas vezes, contudo. Compreenda isso, V. Caridade, e é sabido daqueles que o observaram ou ouviram contar os médicos. Acontece que algumas vezes os médicos para corrigirem os ossos que se consolidaram mal e distorcidos, quebram-nos e fazem novo ferimento, porque era má a consolidação errada. Assim, diz a Escritura:

Os caminhos do Senhor são retos. Mas os de coração pervertido tropeçarão neles(Os 14,10).

Que quer dizer:

corações pervertidos?” Coração torto, aquele que tem o coração torto. Ele julga torto tudo que Deus diz, julga torto o que Deus fez, desagradam-lhe todos os juízos de Deus, principalmente quando ele corrige; e senta-se, e disputa como Deus age mal, porque não faz segundo sua vontade. Coração distorcido, não lhe basta não se corrigir segundo o que Deus manda; quer ainda torcê-lo para seu lado. Que lhe fala Deus do alto? Estás torto, e eu sou bem adaptado. Se fosses reto, perceberias minha eqüidade. Do mesmo modo que se colocasses no pavimento um pedaço de madeira torto, não se ajustaria, mas balançaria de todos os lados, mover-se-ia. Não é a desigualdade do pavimento que faz isso e sim a distorção do lenho. Por isso diz a Escritura:

Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração!(Sl 72,1).

E então? Como se retifica o coração torto? É torto e é duro; por isso, o torto e duro seja quebrado, esmagado, para ser retificado. Tu mesmo não podes retificar teu coração: tu deves quebrar, e ele há de retificar. Como quebras? Como esmagas? Confessando, penitenciando-te de teus pecados. Que sentido tem bater no peito? A menos que pensemos que nossos ossos pecaram; e batemos no peito. Mas queremos dizer que nosso coração está contrito para que o Senhor o retifique.



§ 8
Por conseguinte, “ele cura os contritos de coração”, os que têm o coração contrito; e a cura do próprio coração será perfeita, quando se completar a restauração prometida ao corpo. Neste ínterim como age o médico? Pensa tua fratura, a fim de poderes chegar à mais completa firmeza, até que se consolide a fratura, que foi enfaixada. Que faixas são essas? Os sacramentos temporais. São as faixas medicinais de nossa contrição os sacramentos por enquanto temporais, com os quais nos consolamos; e todas essas palavras que vos falamos, que soam e passam, tudo o que se faz na Igreja durante o tempo, constituem faixas de contrição. Da mesma forma que o médico, quando a saúde volta a ser perfeita, tira a ligadura, assim naquela cidade de Jerusalém, ao nos tornarmos iguais aos anjos (cf Mt 22,30), acaso julgais que haveremos de receber o que recebemos aqui? Ou lá será recitado o evangelho, para que nossa fé permaneça? Ou algum superior há de impor as mãos a alguém? Tudo isso são ligaduras de fraturas; serão retiradas quando a saúde for perfeita; mas a ela não se chegaria, sem essas faixas. Portanto, “ele cura os contritos de coração e pensa-lhes as fraturas”.



§ 9
4 “Ele conta a multidão das estrelas e chama cada uma por seu nome”.

Que importância tem o fato de Deus contar a multidão das estrelas? Mesmo os homens tentaram fazê-lo; vejam se puderam realizá-lo; contudo, não tentariam se não esperassem consegui-lo. Deixemos a eles saber o que puderam, e até onde chegaram; quanto a Deus, não considero grande coisa que ele conte todas as estrelas. Será que computa seu número para não esquecê-lo? É grande coisa que Deus conte as estrelas, se ele conta os cabelos da cabeça? (cf Mt 10,30).

É claro, irmãos, que Deus tenciona fazer-nos entender alguma coisa com estas palavras:

Ele conta a multidão das estrelas e chama cada uma por seu nome”.

Existem na Igreja certas estrelas, luzes que consolam nossa noite, todos aqueles mencionados pelo Apóstolo:

No seio da qual brilhais como astros no mundo”.

Diz ele:

No meio de uma geração má e pervertida, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da palavra de vida(Fl 2,15-16).

Deus conta as estrelas; tem numerados todos os que hão de reinar consigo, todos os que deverão ser agregados ao corpo de seu Unigênito, e conta-os. Quem é indigno, nem é contado. Muitos acreditaram, muitos se agregaram a seu povo, por uma sombra de fé; contudo ele conhece o que deve contar, e o que deve ser excluído. Pois, tão grande é a elevação do evangelho que se cumpre a palavra:

Eu os anunciei e narrei; multiplicaram-se acima de qualquer número(Sl 39,6).

Existem, portanto, no meio do povo certos supernumerários. Que significa: supernumerários? Mais do que lá hão de estar. Dentro dessas paredes mais estão do que hão de estar no reino de Deus, naquela Jerusalém celeste; eles estão acima do número. Observe cada um se brilha nas trevas, se não se deixa seduzir pela tenebrosa iniqüidade do mundo; se não for seduzido nem vencido, será qual estrela já contada por Deus.



§ 10
E chama cada uma por seu nome”.

Aí está todo o prêmio, temos certo nome junto de Deus. Devemos, a fim de que Deus conheça nosso nome, desejar isto, agir assim, nisso nos enpenharmos na medida que pudermos, não nos alegrarmos com outras coisas, nem mesmo de certos dons espirituais. Veja V. Caridade; existem muitos dons na Igreja, conforme declara o Apóstolo:

A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda, o dom das curas; a outro, o discernimento dos espíritos”, isto é, de discernir os bons espíritos dos maus; “a outro, o dom de falar em línguas; a outro, a profecia(1 Cor 12,8-10).

Quanta coisa ele disse! E como são grandes! Muitos que usaram mal de tais dons, ouvirão no fim:

Nunca vos conheci”.

E que responderão no final aqueles que ouvirem a sentença:

Nunca vos conheci? Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres?” Tudo isto em teu nome. E que lhes responderá o Senhor? “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade(Mt 7,22-23).

Que é então, ser já agora uma luz do céu que consola nossa noite, que não é vencida pela noite? Diz o Apóstolo:

Passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos. Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou címbalo que tine”.

Que dom não é este de falar as línguas dos anjos e dos homens! Contudo, “se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa, ou um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento do todos os mistérios, de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes(Como são grandes estes dons!), “se eu não tivesse a caridade, eu nada seria”.

Que dom não é o dom do martírio, e de distribuir todos os seus bens! Todavia, “ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria(1 Cor 12,31; 13,1-3).

Serão tirados esses dons daquele que não tiver a caridade, embora os possua por algum tempo. Ser-lhe-á tirado o que tem, porque falta-lhe algo; falta-lhe justamente aquilo que lhe garantiria a posse dos demais e ele mesmo não pereceria. Que significa o que o Senhor disse:

Pois àquele que tem lhe será dado, mas ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado”? (Mt 13,12).

Daquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado. Tem a graça de possuir, mas não a caridade para usá-lo. Por este motivo, tanto o que não tem, como o que tem lhe será tirado. Por essa razão, vejamos o que disse aos discípulos, a fim de terem a caridade aqueles que ele queria transformar em estrelas no céu, e que seguissem o caminho que ultrapassa a todos, o Deus que “conta a multidão das estrelas e chama cada uma por seu nome”.

Os discípulos que haviam sido enviados a pregar, ao voltarem com alegria diziam:

Senhor, até os espíritos imundos se nos submetem em teu nome”.

E ele que “conta a multidão das estrelas e chama cada uma por seu nome”, sabendo que muitos haveriam de dizer:

Não foi em teu nome que expulsamos demônios?” aos quais responderia no fim:

Nunca vos conheci”, porque não os contou entre a multidão das estrlas, nem os chamou pelo nome, disse:

Contudo, não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus(Lc 10,17.20).

Ele conta a multidão das estrelas e chama cada uma por seu nome”.



§ 11
5 “Grande é nosso Senhor”.

O salmista encheu-se de alegria, que irrompeu de maneira inefável. Não sei o quê não conseguia exprimir; e como podia pensar? “Grande é nosso Senhor, e grande o seu poder e sua sabedoria não tem limites”.

Ele que conta a multidão das estrelas, não pode ser medido:

Grande é nosso Senhor, e grande o seu poder e sua sabedoria não tem limites”.

Quem é capaz de explicá-lo? Quem adequadamente ao menos pode pensar no que foi dito:

E sua sabedoria não tem limites?” Oxalá ele infunda em vós este conhecimento, e onde falhamos, ele que é poderoso ilumine vossas mentes, para que saibais o que significa:

E sua sabedoria não tem limites”.

Notai, irmãos; podem-se contar os grãos de areia? Nós não, mas Deus pode. Ele conta os cabelos de nossa cabeça e os grãos de areia. Tudo o que este mundo encerra de infinito, é incontável para o homem, não para Deus; digo pouco, para Deus, pois os anjos o contam.

Sua sabedoria não tem limites”.

Ela excede todos os algarismos; não nos é possível contá-la. Quem conta o próprio número? Todas as coisas numeradas são numeradas por meio dos números. Se uma coisa qualquer é numerada, é numerada por meio do número; quanto ao número não tem número, o número de forma alguma pode ser numerado. Como então é junto de Deus, onde fez todas as coisas e onde? Foi-lhe dito:

Mas tudo dispuseste com medida, número e peso(Sb 11,20).

Ora, quem pode numerar, medir, pesar a própria medida, o próprio número, o próprio peso, com os quais Deus tudo dispôs? Portanto:

Sua sabedoria não tem limites”.

Calem as vozes humanas, silenciem-se as cogitações humanas; não se estendam aos seres incompreensíveis como se pudessem compreendê-los, mas como participantes; pois seremos partícipes. Não seremos aquilo que captamos, nem o captaremos totalmente; mas seremos participantes. Foi dito de Jerusalém, de quem Deus congrega os dispersos, foi dito a seu respeito algo de grande:

Jerusalém, construída como uma cidade, que participa in idipsum(Sl 121,3).

Que se chama: in idipsum senão o que não se pode mudar? As demais coisas criadas, podem ser de um modo e de outro; o criador, porém, não pode ser de um modo e de outro. Ele, portanto, é idipsum, porque lhe foi dito:

Mudá-las-ás e se transformarão”.

Mas tu és sempre o mesmo e teus anos não terminarão(Sl 101,27.28).

Por conseguinte, se ele é sempre o mesmo e não pode mudar em nada, participando de sua divindade seremos também nós imortais na vida eterna. E deu-nos o penhor disto no Filho de Deus, conforme já disse a V. Santidade, de sorte que antes de nos tornarmos participantes de sua imortalidade, ele se fez partícipe de nossa mortalidade. Como, porém, ele é mortal, não por sua substância, mas segundo a nossa, assim nós somos imortais, não segundo nossa substância, e sim segundo a dele. Efetivamente seremos participantes. Ninguém o duvide. A Escritura o disse. E de que seremos participantes, como se em Deus existissem partes, ou ele se dividisse em partes? Quem, então, explica como podem muitos ser participantes de um só e simples? Não exijais o que não se pode dizer adequadamente; penso que o entendeis. Mas voltai ao remédio de nosso Salvador. Esmagai o coração, quebre-se a dureza do ânimo, quebrante-se a pertinácia do espírito, acusa-se o mal para renascer quanto ao bem. Ele mesmo retificará, ligará a fratura, consolidará a cura; e já não nos serão impossíveis as coisas que agora são impossíveis. Pois é bom que confesse a fraqueza quem deseja chegar à divindade.

E sua sabedoria não tem limites”.



§ 12
6 Ora, para que saibas o que fazer quando houver dificuldade de se entender, o salmista te mostra no ver-sículo seguinte:

O Senhor ampara os humildes”.

Por exemplo: Não entendes, entendes pouco, não consegues. Honra a Escritura de Deus, honra a palavra de Deus, embora não abertamente; adia a sua compreensão, por causa da piedade. Não sejas malvado, acusando a obscuridade, ou quase a perversidade da Escritura. Aqui nada há de perverso; de obscuro existe, mas não para te negar o acesso, e sim para te preparar a receber. Por isso, quando um trecho está obscuro, foi o médico quem o dispôs a fim de bateres à porta; quis que te exercitasses batendo; quis que se abrisse a quem bater (cf Mt 7,7).

Batendo tu te exercitas; estando exercitado, tu te alargas tendo-te tornado mais amplo, captarás o que é dado. Portanto, não te encolerizes por encontrar a porta fechada; sê manso, sê tranqüilo. Não recalcitres contra as obscuridades, dizendo: Seria melhor se fosse dito assim. Pois, quando poderás dizer ou julgar o modo conveniente de falar? Assim foi proferido porque assim se devia dizer. O doente não corrija seu medicamento. O médico sabe modificá-lo; acredita naquele que te cura. Por isso como continua o salmo? “O Senhor ampara os humildes”.

Não resistas então, contra o que Deus fecha; sê manso, para que ele te acolha. Se resistes, escuta o que segue:

Aos pecadores humilha até o chão”.

Há muitas espécies de pecadores:

Aos pecadores humilha até o chão”.

Que pecadores senão os contrários aos mansos? Pelo fato de ter dito:

O Senhor ampara os humildes e aos pecadores humilha até o chão”, deu a entender certa espécie de pecadores, suge-rida pela predita mansidão. Neste texto indica como pecadores os impacientes, os que não são mansos. Porque humilha até o chão? Uma vez que censuram as coisas inteligíveis, haverão de sentir as coisas terrenas.



§ 13
Assim Deus agiu para com os que quiseram zombar da lei, mais do que conhecerem. Não foram mansos. Entenda V. Caridade. Existe certa seita perdida, a dos maniqueus. Zombou das Escrituras aceitas e lidas; quis criticar o que não entendia, e discutindo e censurando o que não havia entendido, fez cair no laço a muitos. Mas foram humilhados os que assim quiseram fazer, até o chão. Não lhes foi permitido entender as coisas celestes, e tiveram gosto pelas terrenas. Tudo o que ouves em suas fábulas, não passa de blasfêmias, e invenções de imagens materiais. Na verdade, querendo entender a Deus, chegaram com o pensamento até esta luz visível; não puderam ir além. E dividiram o reino de Deus em campos de luz, considerando-o semelhante a este sol visível, que seria fruto da luz divina. Tudo o que se toca nessa terra carnal é terra para Deus. Pois, temos com que ver, ouvir, cheirar, provar, tocar. Esta carne, através de cinco mensageiros que denominamos sentidos, percebe apenas as coisas corporais; quanto às inteligíveis e espirituais são apreendidas pela mente. Eles, portanto, que zombaram da obscuridade das Escrituras (fechadas para que se exercitassem os que batiam à porta e não para serem negadas ao pequenos), foram humilhados até o chão, de sorte que não puderam ir mais longe com suas cogitações do que o que se percebe pela terra. Que quero dizer com a expressão: Pela terra? Pela carne. Pois, esta carne é terra, e foi tirada da terra. Tudo aquilo que apreendes por meio dos olhos, pertence à terra; tudo o que captas pelos ouvidos, pelo olfato, pelo gosto, pelo tato pertence à terra, porque se percebe por meio da terra. Eles, portanto, não conseguiam entender a sabedoria sem limites, porque “sua sabedoria não tem limites”.

Criticando as Escrituras, que escondem do modo salutar o seu sentido em figuras místicas, para exercício dos pequenos, por sua crítica se tornaram impacientes, o que é o inverso da mansidão; foram humilhados até ao chão, a fim de não poderem perceber o Deus incorporal, e pensassem de modo corporal tudo o que pensassem sobre Deus.



§ 14
7 “Aos pecadores humilha até o chão”.

Que devemos fazer se não queremos ser humilhados até o chão? É coisa grandiosa avançar até os seres inteligíveis, é grandioso avançar até os seres espirituais, grandioso atingir com o coração o conhecimento de existir algo que não se estende por algum lugar, nem varia com o tempo. Qual, pois, a forma da sabedoria? Quem pode abrangê-la com o pensamento? É longa? É quadrada? É redonda? Ora está aqui, ora ali? Alguém reflete sobre a sabedoria no oriente, outro reflete sobre ela no ocidente; se refletem bem, apesar de situados em tamanha diversidade de lugar, ela se apresenta toda inteira a ambos. Que é isto? Quem o apreende? Quem apreende esta substância, esta natureza divina e imutável? Não te apresses, poderás captá-la. Ouve o versículo seguinte:

Começai cânticos, confessando ao Senhor”.

Começa por aí, se queres chegar à inteligência clara da verdade. Se queres ser conduzido pelo caminho da fé à posse da realidade, começa pela confissão. Primeiro te acusa; tendo te acusado, louva a Deus. Invoca aquele que ainda não conheces, para que venha e seja conhecido; propriamente não venha, mas para que te conduza a ele. Como ele pode ir para lá de onde jamais se afastou? Tal é a perfeição da sabedoria; está em toda a parte, mas está longe dos maus; está em toda a parte, dizia, e longe está dos maus que se encontram em toda a parte. Pergunto-vos: De quem está longe aquele que está em toda a parte? Onde imaginais que isto acontece, senão porque os que apagam em si a semelhança de Deus, jazem em sua dessemelhança? Feitos dessemelhantes, afastaram-se; refeitos, voltam. Onde seremos reformados? Quando seremos reformados? “Começai cânticos, confessando ao Senhor”.

E que sucede depois da confissão? Seguem-se as boas obras.

Salmodiai ao nosso Deus ao som da cítara”.

Que quer dizer:

ao som da cítara?” O que já expus, em relação ao saltério em outro salmo; assim também relativamente à cítara; não somente com a voz, mas também com as obras.

Salmodiai ao nosso Deus ao som da cítara”.



§ 15
8 Eis: Confessai, praticai obras de misericórdia:

Salmodiai ao nosso Deus”.

Quem é o “nosso Deus? Aquele que cobre de nuvens o céu”.

Que significa:

Que cobre de nuvens o céu?” Que cobre a Escritura com figuras e sacramentos. Ele que humilha os pecados até o chão, que ampara os humildes, “cobre de nuvens o céu”.

E quem vê o céu coberto de nuvens? Não temas; escuta o que vem em seguida:

Que cobre de nuvens o céu e à terra prepara a chuva. Que cobre de nuvens o céu”; tu te assustaste, porque então não vês o céu; depois de chover, darás fruto e verás um céu sereno.

Que cobre de nuvens o céu e à terra prepara a chuva”.

Talvez tenha sido o Senhor nosso Deus quem o fez. Se a obscuridade da Escritura não nos oferecesse ocasião, não vos diríamos tais coisas, que vos regozijam. Talvez seja esta a chuva que vos alegra. Não seria possível exprimi-lo por meio de nossa língua, se Deus não cobrisse das nuvens das figuras o céu das Escrituras. Ele, com efeito, cobre o céu de nuvens para preparar a chuva para a terra. Quis que os ditos dos profetas fossem obscuros para exisitirem posteriormente servos de Deus que interpretando-as fizessem chover sobre os ouvidos e os corações dos homens, os quais recebem das nuvens de Deus o alimento da alegria espiritual.

Que cobre o céu de nuvens, e à terra prepara a chuva”.



§ 16
Que produz a relva das montanhas e as plantas para o serviço do homem”.

Eis o resultado da chuva.

Que produz a relva nas montanhas”.

Por acaso não o faz também na terra baixa? Mas, trata-se do que é grande, “nas montanhas”.

Montanhas são os ilustres da terra; interpreta essas montanhas como sendo os dignitários. Não é espantoso que tenha certa viúva colocado dois dinheiros no tesouro do templo (cf Mc 12,42).

A terra, a terra baixa, produziu a relva; também o monte o produziu. Zaqueu, aquele príncipe dos publicanos, ainda era mais admirável, porque a montanha produziu relva (cf Lc 19,2-8).

Quanto mais orgulhosos os homens, tanto mais são avaros; e quanto mais são importantes neste mundo, tanto mais amam suas riquezas. Daí vem que afastou-se triste aquele rico que pedia ao Senhor um conselho sobre a vida eterna e chamou-o de mestre bom:

Que farei para ter a vida eterna? Respondeu:

Guarda os mandamentos. Quais?” E proferiu os mandamentos da lei.

Tudo isso eu tenho guardado desde a juventude. Disse ele: Uma coisa te falta. Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue- me(Mt 19,16-21; Mc 10,17-22).

Que disse o Senhor? Eis que és um monte, recebe a chuva e produz a relva. Que darás? Não será a relva? Efetivamente, todas essas coisas que os ricos dão à Igreja para as necessidades dos que servem a Deus, que são senão feno? São bens carnais, e aparentes, temporários; não se adquire com eles algo de carnal. Observa o que podes comprar com coisas banais. O Apóstolo querendo mostrar que são feno, disse:

Se semeamos em vosso favor bens espirituais, será execessivo que colhamos os vossos bens materiais?(1 Cor 9,11).

E escuta como o feno é coisa material:

Toda carne é feno e toda a glória do homem como a flor do feno(cf Is 40,6).

Entretanto, o rico afastou-se triste; e o Senhor declarou:

Um rico dificilmente entrará no reino dos céus(Mt 19,23).

É portanto, importante que ele produza “a relva nas montanhas”.

E como “produz a relva nas montanhas”, se aquele rico, tendo ouvido que devia dar suas propriedades aos pobres, afastou-se pesaroso? Como depois o Senhor respondeu aos apóstolos contristados:

Ao homem isso é impossível, mas a Deus tudo é possível(Mt 19,26).

Por conseguinte, para ele “que produz a relva nas montanhas”, tudo é possível. Pois, nada seria mais estéril do que os montes duríssimos. Fez chover aquele que “produz a relva nas montanhas e as plantas para o serviço do homem”.

Que serviço? Dá atenção ao próprio Paulo:

Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos servos por Jesus Cristo(2 Cor 4,5).

Ele que dizia:

Se semeamos em vosso favor os bens espirituais, será excessivo que colhamos os vossos bens materiais?” declara-se servo. Nós vos servimos, irmãos. Nenhum de nós se apresente como se fosse acima de vós. Seremos maiores, se formos mais humildes.

Aquele que quiser tornar-se grande entre vós(é sentença do Senhor)seja aquele que serve(Mt 20,26).

Portanto, ele “produz a relva nas montanhas e as plantas para o serviço do homem”.

Ora, o apóstolo Paulo que vivia do trabalho de suas mãos, não quis receber a relva dos montes; preferiu passar necessidade; todavia as montanhas produziram relva. Então, considerando que ele não quis receber, a relva das montanhas, por isso as montanhas deviam abster-se de produzir, permanecendo estéreis? À chuva deve corresponder o fruto, ao servo se corresponde com alimento, conforme disse o Senhor:

Comei o que vos servirem”.

E para os que os acolhiam não julgarem que davam do que era seu, ele declara:

Pois o operário é digno do seu salário(Lc 10,8.7).



§ 17
Por isso, irmão, como aconteceu que a esse respeito vos falamos um pouco1, principalmente porque falamos sem procurar tais benefícios de vossa parte, falamos com mais liberdade; mas mesmo que o procurássemos, procuraríamos vosso fruto, vossa justiça e não as vossas riquezas. Contudo, admoesto-vos brevemente, porque já falamos muito e enfim devemos terminar: Se não quereis ser estéreis, e à chuva corresponder com a fertilidade, a fim de não ser condenada posteriormente a vossa esterilidade (pois Deus ameaça a terra estéril e espinhosa com o fogo (cf Hb 6,7.8) , como à fértil prepara o celeiro), exigi muito de vós mesmos, tornai-vos vossos agentes do fisco. Cristo o exige silenciosamente; e mais forte é a voz daquele que cala, porque não cala no evangelho. Com efeito, não cala, quando declara:

Fazei amigos com o dinheiro da iniqüidade, a fim de que eles vos recebam nos tabernáculos eternos(Lc 16,9).

Ele não cala; ouvi a sua voz. Ninguém, de fato, pode exigir de vós senão quando é necessário exigir, de sorte que vos peçam aqueles que vos servem por causa do evangelho. Se acontecer que peçam, cuidai de não pedirdes em vão o que pedis a Deus. Sede, portanto, vossos cobradores, a fim de não acontecer que aqueles que vos servem por causa do evangelho, não digo que sejam obrigados a pedir, pois talvez nem coagidos peçam, mas que não vos censurem em silêncio. Daí vêm as palavras:

Feliz quem entende o necessitado e o pobre(Sl 40,2).

Se o salmista diz:

quem entende o necessitado e o pobre”, diz que não espere que o pobre peça. Deve-se entendê-lo. Uma coisa é o indigente procurar-te, outra, a maneira como tu deves procurá-lo. Ambas as coisas foram prescritas, meus irmãos, tanto:

Dá a quem te pedir(Lc 6,30), que acabamos de ler, quanto em outra passagem da Escritura:

fique suada a esmola em tua mão até que encontres a quem dar”.

Um te procura, a outro tu deves pro-curar. Não deixeis sem socorro o que te procura:

Dá a quem te pedir”, mas a outro deves procurar:

Fique suada a esmola em tua mão até que encontres a quem dar”.

Nunca o fará quem não reservar um pouco de seus bens, conforme for conveniente a cada um segundo as necessidades de sua família, como sendo uma dívida a pagar ao fisco. Se Cristo não tem sua república, não terá também seu fisco. Sabeis o que é o fisco? Fisco é uma sacola; de onde vêm fiscella (cestinho) e fiscina (cesta).

Não julgueis que o fisco é um dragão, porque tem-se medo ao ouvir falar de cobrador do fisco; fisco é uma sacola pública. O Senhor a possuía aqui na terra, quando tinha uma bolsa; e estava confiada a Judas (cf Jo 12,6).

O Senhor tolerava Judas, traidor e ladrão, e para com ele demonstrava em toda parte a sua paciência; no entanto, os que traziam doações, traziam-nas para a bolsa do Senhor. A não ser que imaginais que o Senhor ia pedindo, ou precisava de alguma coisa, ele a quem serviam os anjos e com cinco pães alimentou tantos milhares. Por que, então, quis ter necessidade, senão para dar exemplo aos montes, a fim de que produzissem a erva, e não retribuíssem a chuva com a esterilidade? Separai, portanto, alguma coisa e determinai uma quantia, ou dos produtos anuais ou dos lucros cotidianos. Pois parecerás dar algo de vital, e necessariamente tua mão trepidará se a estendes para dar o que não havias prometido. Reserva uma parte de teus lucros. Queres dar o dízimo? Separa a décima parte, embora seja pouco. Pois foi dito dos fariseus que eles davam a décima parte:

Jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos(Lc 18,12).

E que diz o Senhor? “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos céus(Mt 5,20).

E aqui ele, que tua justiça deve superar, dá o dízimo; tu, porém, não dás nem o milésimo. Como hás de superar aquele a quem nem ao menos igualas? “Que cobre de nuvens o céu e à terra prepara a chuva; que produz a relva nas montanhas e as plantas para o serviço do homem”.



§ 18
9 “Que dá o sustento aos animais”.

Estes animais são os rebanhos de Deus. Deus não nega o sustento a sua grei, através dos homens, para cujo serviço faz brotar a relva. Daí as palavras do Apóstolo:

Quem apascenta um rebanho e não se alimenta do leite do rebanho”? (1 Cor 9,7).

Que dá o sustento aos animais e aos filhotes dos corvos que a ele clamam”.

Julgamos que os corvos invocam a Deus, para que lhes dê o alimento? Não julgueis que um irracional pode invocar a Deus; só a alma racional invoca a Deus. Tomai a palavra no sentido figurado; não imagineis, conforme dizem alguns ímpios, que as almas humanas reencarnam-se em animais, cães, porcos, corvos. Excluí tais opiniões de vossos corações, de vossa fé. A alma humana foi feita à imagem de Deus (cf Gn 1,26); ele não entregará sua imagem a um cão ou a um porco. E então, que significa:

Aos filhotes dos corvos que a ele clamam?” Quem são os filhotes de corvos? Os israelitas diziam que só eles eram justos, porque haviam recebido a lei; e os componentes todos dos outros povos eram pecadores. Na verdade, todos os povos se achavam no pecado, na idolatria, na adoração das pedras e madeiras; mas permaneceram deste modo? Embora os corvos, nossos pais, não invocassem a Deus, todavia nós, os filhotes dos corvos, o invocamos.

Que dá o sustento aos animais e aos filhotes dos corvos que clamam por ele”.

A esses mesmos filhotes dos corvos diz Pedro:

Não foi com coisas perecíveis, isto é, com prata, ou com ouro que fostes resgatados da vida fútil que herdastes dos vossos pais(1Pd 1,18).

O filhotes dos corvos que pareciam adorar os simulacros de seus pais, progrediram, converteram-se a Deus. E agora escutas o filhote do corvo a invocar o Deus único. E então? Abandonaste teu pai? perguntas ao filhote do corvo. Deixei, de fato; pois ele, o corvo, não invoca a Deus, mas eu, seu filhote, invoco a Deus.

E os filhotes dos corvos que a ele clamam”.



§ 19
10 “Não lhe agrada o vigor do corcel”.

O vigor do corcel é a soberba. O cavalo parece adequado a ser um estrado para o homem, para que caminhe mais alto. Com efeito, ele tem a cerviz, que indica certa soberba. Que os homens não se exaltem por suas dignidades, não se considerem ilustres devido às honrarias; acautelem-se para não caírem do cavalo indômito. Eis o que diz outro salmo:

Uns confiam nos carros e outros nos cavalos”.

Nós, porém, “exultaremos no nome do Senhor nosso Deus(Sl 19,8.9).

Isto é, eles se gloriam das honrarias temporais, nós, contudo, nos gloriamos no nome do Senhor nosso Deus. Por isso, que lhes aconteceu? Verifique a continuação do salmo:

Eles se emaranharam e caíram. Mas nós levantamos e ficamos firmes de pé(Sl 19,8.9).

Não lhe agrada o vigor do corcel, nem se compraz nos tabernáculos do homem”.

Diz o salmo:

Nos tabernáculos do homem”.

Com efeito, existe o tabernáculo do Senhor, a própria santa Igreja difundida por toda a terra. Os hereges, separando-se dos tabernáculos da Igreja, fabricaram taberná-culos para si; nesses tabernáculos humanos Deus não se compraz. Mas presta atenção ao filhote dos corvos a dizer:

Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores(Sl 83,11).

Efetivamente, se acontecer talvez a um filhote de corvo que invoca a Deus, bom, piedoso, que confessa sua fraqueza, não ter na Igreja uma dignidade temporal, não saia da Igreja, não construa para si, fora da Igreja, um tabernáculo, em que Deus não se compraz. Mas que dizer? “Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores. Nem se compraz nos tabernáculos do homem”.



§ 20
11 Mas que acrescenta o salmista? “Gosta o Senhor dos que o temem e na sua misericórdia confiam”.

Gosta o Senhor dos que o temem; mas por acaso que temem a Deus como ao ladrão? De fato, teme-se o ladrão, o animal é temido, e do homem injusto e poderoso tem-se muito medo.

Gosta o Senhor dos que o temem”; mas como? “E na sua misericórdia confiam”.

Com efeito, Judas, o traidor de Cristo temeu, mas não esperou em sua misericórdia. Depois se arrependeu de ter traído o Senhor e disse:

Pequei, entregando um sangue inocente”.

Foi bom que tiveste temor; contanto que esperasses na misericórdia daquele a quem temeste. Judas, desesperado, retirou-se e foi se enforcar (cf Mt 27,4.5).

Portanto, teme o Senhor de tal forma que esperes em sua misericórdia. Se temes um ladrão, esperas auxílio de outro, não daquele a quem temes; pedes auxílio de alguém a quem não temes contra aquele a quem temes. Se temes a Deus, e de tal modo o temes por seres pecador, de quem receberás auxílio contra Deus? A quem irás? que farás? queres fugir dele? Foge para junto dele. Queres fugir de Deus irado? Foge para junto dele, já aplacado. Tu, porém, o aplacarás se esperares em sua misericórdia; e assim te acautelarás de ainda pecar, a fim de seres atendido a respeito dos pecados passados e seres perdoado pelo Senhor, ao qual são devidos honra e império com o Pai e o Espírito Santo nos séculos dos séculos. Amém. 1 Cf Com s/salmos 103, sermão 3,9-12.