SALMO 𝟭𝟜𝟝

Grande é o Senhor, e mui digno de ser louvado; e a sua grandeza é insondável.

Uma geração louvará as tuas obras à outra geração, e anunciará os teus atos poderosos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 145


§ 145:1  Eu te exaltarei, ó Deus, rei meu; e bendirei o teu nome pelos séculos dos séculos.

§ 145:2  Ƈ Cada dia te bendirei, e louvarei o teu nome pelos séculos dos séculos.

§ 145:3  ʛ Grande é o Senhor, e mui digno de ser louvado; e a sua grandeza é insondável.

§ 145:4  Uma geração louvará as tuas obras à outra geração, e anunciará os teus atos poderosos.

§ 145:5  Ɲ Na magnificência gloriosa da tua majestade e nas tuas obras maravilhosas meditarei;

§ 145:6  falar-se-á do poder dos teus feitos tremendos, e eu contarei a tua grandeza.

§ 145:7  Publicarão a memória da tua grande bondade, e com júbilo celebrarão a tua justiça.

§ 145:8  Bondoso e compassivo é o Senhor, tardio em irar-se, e de grande benignidade.

§ 145:9  O Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias estão sobre todas as suas obras.

§ 145:10  Ŧ Todas as tuas obras te louvarão, ó Senhor, e os teus santos te bendirão.

§ 145:11  Ƒ Falarão da glória do teu reino, e relatarão o teu poder,

§ 145:12  para que façam saber aos filhos dos homens os teus feitos poderosos e a glória do esplendor do teu reino.

§ 145:13  O teu reino é um reino eterno; o teu domínio dura por todas as gerações.

§ 145:14  O Senhor sustém a todos os que estão a cair, e levanta a todos os que estão abatidos.

§ 145:15  Os olhos de todos esperam em ti, e tu lhes dás o seu mantimento a seu tempo;

§ 145:16  ɑ abres a mão, e satisfazes o desejo de todos os viventes.

§ 145:17  Justo é o Senhor em todos os seus caminhos, e benigno em todas as suas obras.

§ 145:18  Perto está o Senhor de todos os que o invocam, de todos os que o invocam em verdade.

§ 145:19  Ele cumpre o desejo dos que o temem; ouve o seu clamor, e os salva.

§ 145:20  O Senhor preserva todos os que o amam, mas a todos os ímpios ele os destrói.

§ 145:21  Publique a minha boca o louvor do Senhor; e bendiga toda a carne o seu santo nome para todo o sempre.


O SALMO 145



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Delícias de nosso espírito são os cânticos divinos e mesmo as lágrimas que os acompanham são alegres. Não há recordação mais agradável ao fiel, peregrino neste mundo do que a daquela cidade, longe da qual peregrina. Mas a recordação da cidade durante uma peregrinação vem acompanhada de dor e suspiros. A esperança certa, contudo, de nosso regresso, mesmo durante a peregrinação, consola e exorta os tristes. As palavras de Deus arrebatem vossos corações, e vosso Senhor reclame sua possessão, isto é, as vossas mentes, para que não se desviem para outro objeto. Cada qual esteja totalmente aqui, de sorte que aqui não esteja, isto é, esteja totalmente embebido na palavra de Deus, que soa na terra para nos elevar e não ficarmos sobre a terra. Deus está conosco, para que nós estejamos com ele. A fim de estar no meio de nós, desceu para junto de nós, e leva-nos a estar com ele, a fim de para ele subirmos. Neste ínterim ele não aborreceu nossa peregrinação, porque em parte alguma é peregrino aquele que tudo criou.



§ 2
1 Eis que ressoa o salmo. É determinada voz que, se quiserdes, será vossa, a exortar a alma a louvar a Deus, dizendo a si mesma:

Louva, minha alma, o Senhor”.

Efetivamente, por vezes, no meio das tribulações e tentações desta vida, queira ou não, a alma se perturba; outro salmo alude a esta perturbação nesses termos:

Por que estás triste, ó minha alma? E por que me perturbas?” No intuito de afastar dela tal perturbação, sugere um gáudio proveniente não ainda da total realidade, mas da esperança, e dirige-se a ela, perturbada, ansiosa, triste e aflita:

Espera em Deus; ainda o louvarei(Sl 42,5).

A con-fissão de louvor constitui a esperança que a anima, como se lhe tivesse falado a sua alma, que o perturbava com a tristeza. Por que me dizes:

Espera no Senhor?” A cons-ciência de meus pecados me faz retroceder; sei o que cometi, e dizes:

Espera no Senhor?” Cometeste, é verdade; contudo, por que deves esperar? “Ainda o louvarei”.

Como Deus odeia os que defendem seus pecados, ele reergue aquele que os confessa. Com tal esperança, esperança que não pode existir sem alegria, apesar de estarmos nesta vida presente no meio de dificuldade e de procelas e tempestades, a alma reanimada com esta esperança, porque se alegra na esperança, conforme diz o Apóstolo:

Alegrando-vos na esperança, pacientes na tribulação(cf Rm 12,12) recebe de Deus força para se levantar e louvar a Deus, dizendo-lhe:

Louva, minha alma, o Senhor”.



§ 3
Mas quem o diz, e a quem? Que diremos, irmãos? É a carne que profere:

Louva, minha alma, o Senhor?” E a carne pode sugerir um bom conselho à alma? Por mais que seja domada a carne, e o Senhor nos conceda forças para mantê-la sujeita, de sorte que nos sirva como escrava perpétua, basta que não nos atrapalhe. Além disso, caríssimos, pedem-se conselhos a quem é melhor. E se nossa alma é um bem, e nossa carne é certo bem, porque Deus criou a ambas e ele fez tudo muito bom (cf Gn 1,31); embora, portanto, ambas em seus respectivos gêneros sejam boas, no entanto diz o Apóstolo:

O corpo está morto pelo pecado”.

Existe, é verdade, outro corpo, que nos é prometido e ainda não possuímos, e sobre cuja redenção nos alegramos na esperança, conforme as palavras do Apóstolo:

Gememos interiormente esperando a adoção, suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,10.23.24.25).

Por conseguinte, embora nosso corpo seja um bem, contudo enquanto é mortal devido ao pecado, enquanto é necessitado, enquanto é corruptível, enquanto é mutável, de sorte que nem por um momento consista em si mesmo, e sem dúvida é assim, a fim de que optemos por sua redenção, que o fará um dia não ser mais assim. Mas como será então? Conforme o descreve o Apóstolo em outra passagem:

É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade(1 Cor 15,53).

Mas mesmo quando nosso corpo for tal, corpo já celeste e espiritual, corpo angélico na sociedade dos anjos, nem assim dará conselho à alma. Pois o corpo sempre, visto que é corpo, estará abaixo da alma, e qualquer alma ínfima será sempre mais excelente que o mais excelente dos corpos.



§ 4
Não vos pareça coisa admirável que uma alma ínfima e pecadora é melhor do que qualquer corpo grande e valioso. Não é melhor pelos méritos, mas por natureza. Existe, na verdade, alma pecadora, manchada com certas máculas das concupiscências; no entanto é melhor o ouro, mesmo sórdido do que o chumbo mais purificado. Assim percorra vosso ânimo todas as criaturas, e vereis que não é incrível o que dizemos, a saber, que embora a alma seja censurável, é mais louvável do que um corpo louvável. São duas substâncias: alma e corpo. Censuro a alma, louvo o corpo; censuro a alma que é iníqua; elogio o corpo que é sadio. No entanto, em seu gênero louvo a alma, ou em seu gênero a inculpo; e em seu gênero louvo o corpo, ou o acuso. Se me interrogas qual é o melhor, se o que censurei, ou o que louvei, hás de receber uma resposta estranha. Certamente censurei a um e louvei a outro. Interrogado, porém, qual o melhor, respondo ser melhor o que censurei do que o que louvei. Se te admiras a respeito destes dois, reflete naqueles dois argumentos que relembrei acerca do ouro e do chumbo. Com efeito, eu censurei o ouro. Não é um ouro bom porque é sórdido, não brilha, não está purificado. Este chumbo é ótimo; nada de mais puro. Censurei o primeiro e louvei o segundo; e coloquei a ambos diante de ti, criticando a um e elogiando a outro. Depois desta censura e deste elogio, interroga-me qual o melhor. Responderei: O ouro é melhor, apesar de sórdido, do que o chumbo puro. Por que melhor? E por que o censuraste? Por que censurei? Porque ainda não é o ouro que lhe é possível ser. Que pode ainda ser? Puro e melhor. Como ainda não foi purificado, foi censurado. E por que foi louvado o chumbo? Porque já está purificado, de sorte que não poderia ser melhor. Da mesma forma, dizes que um cavalo é ótimo e um homem é péssimo; entretanto antepões o homem criticado ou cavalo elogiado. Se, pois, fores interrogado qual dos dois é melhor, responderás: O homem, não pelos méritos, mas pela natureza. Entre os artifíces, por exemplo, dizes que alguém é um ótimo sapateiro, e criticas um jurisperito, porque ignora muitas leis. Elogiaste o sapateiro e criticaste o jurisperito. Pergunta, contudo, qual dos dois é o melhor. O jurisperito incapaz é preferido ao sapateiro perfeito. V. Caridade, preste atenção. Entre muitas coisas louváveis, e muitas criticáveis, muitas vezes interrogados, antepomos as criticadas às elogiadas. A natureza da alma é superior à natureza do corpo; muito mais excelente. É espiritual, incorpórea, vizinha da substância de Deus. É invisível, rege o corpo, move os membros, dirige os sentidos, prepara os pensamentos, semeia as ações, capta imagens de seres infinitos; e quem, enfim, irmãos caríssimos, é capaz de louvar dignamente a alma? E se desfalece ao louvar a alma, qual não será o louvor daquele que criou a alma? Entretanto, tamanha é a sua graça que diz o salmista:

Louva, minha alma, o Senhor”.

Quem é capaz de louvar a Deus? Se alguém te dissesse: Louva-te a ti mesma, talvez desistisses; mas diz:

Louva a Deus”.

Esforça-te por piedade, mas desfaleces no meio desses louvores. Convém-te desfalecer no louvor de Deus; melhor do que avançar, louvando-te. Ao louvares a Deus, e não podendo explicar o que queres, teu pensamento se prolonga para o interior; e esse aprofundamento te torna mais capaz de conteres aquele a quem louvas.



§ 5
Como começara a dizer, quem é então que diz:

Louva, minha alma, o Senhor?” Não é a carne que o profere. Fosse mesmo um corpo angélico, seria inferior à alma; e não pode dar conselho a quem lhe é superior. Infeliz é a alma que esperasse conselho da parte do corpo. A carne bem obediente é serva da alma; a alma governa e esta é governada; a primeira ordena e esta serve; quando pode a carne dar conselho à alma? Por que, então, assim fala:

Louva, minha alma, o Senhor?” Nada mais encontramos no homem que a carne e a alma; o homem todo é isto: espírito e carne. Seria a própria alma que fala a si mesma, de certo modo dando ordens a si mesma, exortando-se, incitando-se? Em parte, devido a determinadas perturbações hesitava; de outra parte, porém, a chamada alma racional, que reflete sobre a sabedoria, aderindo ao Senhor agora e suspirando por ele, percebe que a parte inferior se perturba por impulsos mundanos, e por certos desejos terrenos vai para fora, abandonando a Deus, no seu íntimo; torna a chamar-se das coisas exteriores para as interiores, das inferiores às superiores, e diz:

Louva, minha alma, o Senhor”.

Que te agrada no mundo? Que é que queres louvar? Que queres amar? Para qualquer lado que te voltes com os sentidos corporais, encontras o céu, encontras a terra. O que amas na terra é terreno; tudo o que amas igualmente no céu é corpóreo. Em toda parte amas e em toda parte louvas; como não há de ser louvado aquele que criou estes seres que louvas? Já, portanto, longamente viveste ocupada, batida por desejos diversos, chagada, ferida, dividia por muitos amores, sempre inquieta, nunca segura; recolhe-te a ti mesma. Procura quem o autor de tudo aquilo que te agrada exteriormente. Na terra, por exemplo nada melhor do que isto e aquilo: ouro, prata, animais, árvores, suavidades. Pensa na terra inteira. Que existe de melhor no céu do que o sol, a lua, as estrelas? Pensa no céu inteiro. Tudo isto simultaneamente é muito bom, porque Deus fez todas as coisas muito boas. Por toda parte encontrarás a beleza da obra que te recomenda o autor. Admiras o conjunto da criação, ama o Criador. Não te ocupes com o que foi feito, afastando-o de quem o fez. Essas coisas que te ocupam, ele as colocou abaixo de ti, porque te fez abaixo dele. Se aderires ao superior, calcarás os inferiores; se, porém, abandonas o superior, estas coisas se converterão em suplício para ti. Assim, de fato, aconteceu, meus irmãos. O homem recebeu o corpo para seu serviço, tendo Deus por Senhor; o corpo por servo, tendo acima de si o Criador e abaixo de si a criação que lhe foi subordinada. A alma racional foi estabelecida como que em lugar médio, aderindo ao superior e regendo os seres inferiores. Não pode reger os inferiores se não for governada por aquele que é melhor do que ela. É atraída pelos inferiores, e então abandona o melhor. Não pode mais reger o que regia, porque não quis ser regida por aquele que a governava. Agora, então volte, louve. A própria alma, pela mente racional, iluminada pela luz de Deus aconselha-se a si mesma. Concebe pela mente o conselho fixo na eternidade de seu autor. Lê ali algo de tremendo, louvável, amável, desejável, apetecível. Ainda não o apreende, não capta; atinge-a certo relâmpago, mas não tão forte que a retenha ali. Então, recupera, recolhendo-se, a saúde, e diz:

Louva, minha alma, o Senhor”.



§ 6
E então, como é, meus irmãos? Não louvamos o Senhor? Não cantamos diariamente hinos? Segundo nossas capacidades, cotidianamente não soam em nossa boca, e nosso coração não emite os louvores a Deus? E que é que louvamos? Aquele que louvamos é grande, mas nosso louvor é ainda muito fraco. Quando aquele que louva dá um louvor adequado à excelência de quem é louvado? Eis que o homem está de pé, canta a Deus por vezes longamente, e enquanto os lábios freqüentemente se movem para cantar, seu pensamento, contudo, voa não sei atrás de que desejos. Estava, portanto, nossa mente de certa maneira a louvar a Deus, e nossa alma divagava por aqui e por ali, conforme os diversos anelos ou ocupações. A mente, como que acima disso tudo observa esta divagação e inquietação que a incomoda e voltando a si fala-lhe:

Louva, minha alma, o Senhor”.

Por que te inquietas com outras coisas? Por que te ocupas com solicitude de bens terrenos e passageiros? Fica comigo, louva o Senhor. E a alma opressa, sem poder manter-se como é conveniente, responde à mente:

Louvarei o Senhor durante a minha vida”.

Que significa:

durante a minha vida?” Quer dizer que agora estou em minha morte. Por isso, exorta-te e dize:

Louva, minha alma, o Senhor”.

Responder-te-á a tua alma: Louvo quanto posso, tenuamente, debilmente, fracamente. Por quê? Porque enquanto estamos no corpo, estamos peregrinando longe do Senhor (cf 2Cor 5,6).

Por que louvas assim o Senhor, imperfeitamente, sem estabilidade? Interroga a Escritura: Porque “um corpo corruptível pesa sobre a alma e — tenda de argila — oprime a mente pensativa(Sb 9,15).

Tira-me o corpo que pesa sobre a alma e louvarei o Senhor; tira-me a habitação terrena que oprime a mente pensativa, e reduzindo os múltiplos pensamentos em um só, louvarei o Senhor; enquanto, porém, for assim, não posso, estou oprimido. E então? Calarás e não louvarás perfeitamente o Senhor? “Louvarei o Senhor durante a minha vida”.



§ 7
Que será:

durante a minha vida? Tu és a minha esperança”, aqui.

Tu és a minha esperança”, aqui, dizemos. Mas tu “és a minha porção na terra dos vivos”, não aqui (Sl 141,6).

Pois esta terra é terra dos que morrem; daqui nós passamos, mas importa para onde. Com efeito, o mau peregrina aqui, e o bom peregrina aqui. Não sucede que passe o bom e permaneça o mau; ou que o mau passe, e o bom fique; ambos passam, mas não vão ambos para o mesmo lugar. Havia dois homens: Um pobre chagado, que jazia à porta de um rico, e um rico revestido de purpura e linho fino e que se banqueteava diariamente, em lautas mesas; ambos estavam na terra, ambos partiram daqui, mas não para o mesmo lugar; diversos lugares os acolhem porque levam consigo méritos diferentes. O pobre passou para o seio de Abraão, e o rico para os tormentos do inferno. Estavam perto um do outro na terra; um em casa, outro diante da porta. Depois da morte, tão separados que a um deles disse Abraão:

Entre vós e nós existe um grande abismo(Lc 16,19-26).

Por isso, irmãos, uma vez que é a esperança que nos alimenta aqui, nossa vida, porém, não é perfeita, a não ser aquela que nos é prometida. Aqui temos gemidos, aqui tentações, aqui angústias, aqui, tristezas, aqui perigos. Nossa alma louvará o Senhor como ele deve ser louvado, conforme se diz em outro salmo:

Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos século(Sl 83,5), quando toda nossa ocupação será o louvor. Mas quando será isto? “Durante a minha vida”.

E agora? Seria possível dizer: Minha morte. Por que razão é tua morte? Porque peregrino, longe do Senhor. Efetivamente, se aderir a ele é vida, afastar-se dele é morte. Mas, o que te consola? A esperança. Já vives na esperança; louva por causa da esperança, canta por causa da esperança. Onde está a tua morte, não cantes; onde vives, canta. Tua morte consiste na tristeza deste mundo; vives na esperança do século futuro.

Louvarei o Senhor durante a minha vida”.



§ 8
E como louvarás teu Senhor? “Salmodiarei a meu Deus enquanto existir”.

Como será aquele louvor:

Salmodiarei a meu Deus enquanto existir?” Vede, irmãos, como será aquela existência. Onde o louvor será eterno, será eterna a existência. Eis como és; acaso salmodias a teu Deus enquanto existes? Eis que salmodiavas; tu te afastaste para algum negócio. Já não salmodias e ainda és; eis que és, e não salmodias. Talvez ainda por cupidez inclinado a alguma coisa, não somente não salmodias, mas ainda ofendes os ouvidos de Deus; entretanto existes ainda. Que louvor será aquele enquanto existires? Por que disse o salmista:

enquanto existir?” Por acaso em alguma época deixará de existir? Ao contrário, terá duração eterna, e por isso será verdadeiramente duradouro. Pois, tudo o que tem fim no tempo, embora seja longo, não é duradouro.

Salmodiarei a meu Deus enquanto existir”.



§ 9
3 Neste ínterim, é certo, louvarás o Senhor durante tua vida, salmodiarás a teu Deus no futuro enquanto existires. Ótimo! Espera dele tudo o que convém presumir aqui. Não nos abandone a esperança nesta peregrinação e tentação, nesta improbidade e insídias do inimigo, enquanto ao redor de nós lançam gritos as tentações do século, e estamos no meio de trabalhos e angústias de todas as partes. Que faremos? Escuta como continua o salmo:

Não confieis nos príncipes”.

Irmãos, deparamos aqui uma grande questão. É voz divina, e ressoa do alto para nós. Agora, uma fraqueza qualquer da alma humana, quando atribulada, faz com que desista de esperar no Senhor e quer presumir dum socorro humano. Diz-se a alguém aflito por qualquer motivo: Existe um homem poderoso, que pode te libertar. Sorri, alegra-se, anima-se. Mas se alguém lhe disser: Deus te liberte, esfria, quase desesperado. Promete-se um auxílio mortal e alegra-se; promete-se um imortal e fica triste! Foi-te prometido que te libertará alguém que contigo necessita de libertação, e no entanto como se tivesses recebido um grande auxílio; foi te prometido aquele libertador que não precisa de alguém que o liberte e desesperas como se fosse uma fábula. Ai dos que assim pensam! Peregrinam muito longe. Verdadeiramente infeliz e grande a sua morte. Aproxima-te, começa a desejar, começa a buscar e reconhecer aquele que te fez. Ele não abandonará a sua obra, se sua obra não o deixar. Deves converter-te, portanto, para ele, e dizer-lhe:

Louvarei o Senhor durante a minha vida. Salmodiarei a meu Deus enquanto existir”.

O salmista, já repleto de tão grande espírito, admoesta-nos e diz-nos como se estivéssemos longe, em peregrinação longíqua, e não somente não querendo louvar a Deus, mas ainda nem mesmo nele esperando:

Não confieis nos príncipes. Nos filhos dos homens que não podem salvar”.

A salvação se encontra num só filho do homem; e não enquanto filho do homem, mas porque é Filho de Deus; não devido ao que assumiu de tua natureza, mas por causa daquela que conservou em si. Portanto, homem algum pode salvar. De fato, nele está a salvação porque é Deus, “acima de tudo, Deus bendito pelos séculos”.

De Cristo foi dito:

Dos quais descende o Cristo segundo a carne”.

(Rm 9,5).

De quem? Dos judeus, dos pais “descende Cristo segundo a carne”.

Mas, acaso segundo a carne é o Cristo todo? Não; pois segundo a carne não é acima de tudo, Deus bendito pelos séculos”.

Nele está a salvação, porque “do Senhor vem a salvação”.

Diz outro salmo:

Do Senhor vem a salvação. Sobre o teu povo, a tua bênção(Sl 3,9).

É sem razão que se arrogam alguns homens de darem a salvação. Dêem a si mesmos. Responde ao homem soberbo: Tu te glorias de me dares a salvação; concede-a a ti mesmo. Vê se a tens. Ponderando bem a tua fragilidade, verificas que não a tens ainda. Não me exortes a esperá-la de ti, mas espera obtê-la comigo.

Não vos confieis nos príncipes. Nos filhos dos homens que não podem salvar”.

Eis que certos príncipes se apresentam, não sei onde, e dizem: Eu batizo, e o que dou é santo; se o receberes de outrem, nada recebes; mas se receberes de mim, receberás alguma coisa. Ó homem, ó príncipe, queres estar entre os filhos dos homens, e entre os príncipes que não podem salvar? Então, tenho a salvação, porque tu me dás? É teu o que dás? Ou na verdade também tu a dás? Ou pode-se dizer que tu a dás? Diga também o cano que ele fornece a água; diga o canal que ele mesmo mana; diga o pregoeiro que ele liberta. Eu na água considero a fonte, na voz do pregoeiro reconheço o juiz. Tu, na verdade, não serás o autor de minha salvação. Ele é quem me faz seguro; de ti estou incerto. Se não és arrogante, não somente eu estou incerto a teu respeito, mas tu mesmo o estás de ti. Minha salvação, portanto, deriva daquele que é “acima de tudo, porque do Senhor vem a salvação”.

Tu estás entre os filhos dos homens, és do número dos príncipes; mas escuto o salmo dizer:

Não confieis nos príncipes. Nos filhos dos homens que não podem salvar”.



§ 10
4 Considerando a multidão dos homens, que são estes filhos dos homens? Queres saber que são? “Vai-se seu espírito e ele volta ao limo da terra”.

Eis que alguém fala, sem saber por quanto tempo falará; ameaça, sem saber por quanto tempo viverá. De repente vai-se seu espírito e ele volta ao limo da terra. Por acaso vai-se seu espírito quando ele quer? Sairá, e sairá quando ele não quer, e quando ele não sabe volta ao limo da terra. Indo-se o espírito, a carne volta ao limo da terra. Mas como era carne a que assim falava (somente aqueles dos quais foi dito:

Pois ele é carne(Gn 6,3) , teriam coragem de declarar: Confia em mim e eu te darei):

Vai-se o espírito e ele volta ao limo da terra. Naquele dia perecem todos os seus desígnios”.

Onde fica seu inchaço? Onde está a soberba? Onde a jactância? Mas talvez tenha passado para um lugar bom, para junto dos justos; se passar. Pois quem falava deste modo, não sei para onde foi. Pois falava a soberba; e não sei para onde vão tais homens, a não ser que examine outro salmo e verifique que sua passagem é má.

Vi o ímpio sumamente elevado, tão alto como os cedros do Líbano. Passei, e já não existia. Procurei-o e não achei o seu lugar(Sl 36,35.36).

Este homem piedoso que passou e já não encontrou o ímpio, chegou ao lugar onde o ímpio não está. Portanto, irmãos, ouçamos todos; irmãos amados de Deus, ouçamos todos. Em qualquer tribulação, em qualquer desejo dos dons divinos, não confiemos nos príncipes, nem nos filhos dos homens que não podem salvar. Tudo isso é mortal, transitório e caduco.

Vai-se o espírito e ele volta ao limo da terra. Naquele dia perecem todos os seus desígnios”.



§ 11
5 Que faremos então, se não se deve esperar nos filhos dos homens, nem nos príncipes? Que faremos? “Ditoso aquele que tem o Deus de Jacó por protetor”.

Não este homem ou aquele, não este ou aquele anjo; mas:

Ditoso aquele que tem o Deus de Jacó por protetor”.

Foi tal protetor para Jacó, que de Jacó fez Israel (cf Gn 32,28).

Grande auxílio, pois Israel já vê a Deus. Por isso, aqui na terra, peregrino e ainda não vendo a Deus, se tiveres como protetor o Deus de Jacó, de Jacó te tornarás Israel, e verás a Deus; e terminará todo labor e todo gemido, passarão os cuidados mordazes, sucederão os louvores felizes.

Ditoso aquele que tem o Deus de Jacó por protetor”: deste Jacó. Por que ele é ditoso, se nesse ínterim ainda geme nesta vida? “E coloca sua esperança no Senhor seu Deus”.

Por isso é feliz, porque “sua esperança esta no Senhor seu Deus”.

Possuirá realmente aquele que é sua esperança. Irmãos, terei errado por ter afirmado que Deus será nosso bem? Que será se disser que há de ser nossa herança? “Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos(Sl 141,6).

Serás a minha porção. Serás a possessão e possuirás; serás a possessão de Deus e Deus será a tua porção. Serás sua possessão para seres cultivado por ele, e ele será tua porção para o cultuares. Pois tu cultuas a Deus, e Deus te cultiva. Com razão se diz: Cultuo a Deus. Como, porém, sou cultivado por Deus? Encontramo-lo nos escritos do Apóstolo; diz ele:

Sois a seara de Deus, o edifício de Deus(1 Cor 3,9).

E o Senhor:

eu sou a videira e vós os ramos. E meu pai é o agricultor(Jo 15,5.1).

Deus te cultiva para que dês fruto. E cultuas a Deus, para dares fruto. É bom para ti que Deus te cultive, e é bom para ti que cultues a Deus. Se Deus que cultiva se aparta do homem, o homem se torna deserto; e se o homem agricultor se aparta de Deus, se torna ermo. E Deus não cresce quando te aproximas dele, nem decresce se te afastas. Seja, portanto, ele nossa possessão para nos nutrir; e seremos sua possessão para ele nos reger.



§ 12
6 “Coloca sua esperança no Senhor seu Deus”.

Quem é este Senhor seu Deus? Atenção, irmãos. Pois muitos têm muitos deuses, e os denominam seus senhores e seus deuses. Mas diz o Apóstolo:

Se bem que existam aqueles que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra — e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores — para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe(1 Cor 8,5.6).

Seja ele, portanto, a tua esperança. O Senhor teu Deus; nele esteja a tua esperança. No senhor seu deus coloca sua esperança aquele que cultua Saturno; no senhor seu deus coloca sua esperança aquele que cultua Marte, que cultua Netuno, que cultua Mercúrio; mais ainda, quem cultua o ventre, sendo do número dos que menciona o Apóstolo: Seu deus é o ventre (Fl 3,9).

Por conseguinte, um é o deus deste e outro o daquele. Quem é o deste homem feliz, que “coloca sua esperança no Senhor seu Deus?” Mas, quem é? “Aquele que fez o céu e a terra, o mar e tudo o que neles se contém”.

Meus irmãos, temos um grande Deus! Bendigamos seu nome santo, porque se dignou fazer de nós sua possessão. Ainda não vês a Deus, não podes amar plenamente aquilo que ainda não vês. O que vês, foi ele quem o fez. Se admiras o mundo, porque não hás de admirar o artífice do mundo? Olhas para o alto, para o céu, e ficas apavorado; pensas em toda a terra e estremeces; e quando a grandeza do mar ocupa o teu pensamento? Levanta os olhos para as inúmeras estrelas; considera tantas espécies de sementes, tantas diversidades entre os animais, tudo o que nada nas águas, arrasta-se pela terra, voa pelos ares, circula pelo céu. Tudo isso, como é grande, brilhante, belo, estupendo! Eis que foi o teu Deus quem fez tudo isso. Põe nele tua esperança a fim de seres feliz:

coloca sua esperança no Senhor seu Deus”.

Em quem? “Naquele que fez o céu e a terra, o mar e tudo o que neles se contém”.

Temos um grande Deus!



§ 13
Dai atenção, irmãos, a este Deus grandioso, bom, e que faz tais maravilhas. Que então pensou Deus, para fazer (se é possível dizer de Deus: pensou)o céu, a terra, o mar, e tudo o que neles se contém?” Talvez dirá este homem: Vejo, de fato, que tudo isso é grande: o céu e a terra, o mar, criaturas de Deus; como me conta Deus entre as coisas que fez? E na verdade pertenço aos objetos de seus cuidados, e agora Deus pensa em mim, ou sabe que eu vivo? Que estás dizendo? Não se insinue um mau pensamento no teu coração; sê do número daqueles dos quais falávamos um pouco acima:

Louvarei o Senhor durante a minha vida, salmodiarei a meu Deus enquanto existir”.

Mas o salmista fala de outros, não sei bem quais, tépidos, a quem exorta, com receio de que desesperem de si mesmos, porque talvez não estejam nos cálculos de Deus. Muitos se dão a tais cogitações. Por isso, abandonam a Deus, e se lançam em qualquer pecado, porque não acreditam que Deus se ocupa com o que eles fazem. Escuta as palavras divinas. Não desesperes de ti mesmo. Aquele que cuidou de criar-te, não cuidará de te restaurar? Não é o teu Deus aquele que fez o céu, a terra e o mar? Se ele dissesse apenas isto, talvez responderias tu: Deus que fez o céu, a terra e o mar é um grande Deus; mas acaso se preocupa comigo? Ele te fez, alguém replicará. Como? Por acaso sou o céu, ou sou a terra, ou sou o mar? Efetivamente, é claro que não sou nem o céu, nem a terra, nem o mar; mas estou na terra. Ou ao menos me concedes que és terra. Ouve que Deus não fez apenas o céu, a terra e o mar:

Fez o céu e a terra, o mar e tudo o que neles se contém”, e também a ti. Não basta dizer a ti. Fez também o pássaro, o gafanhoto, o vermezinho. Não há entre eles o que Deus não tenha feito, e ele cuida de todos. Este cuidado não provém de um preceito; pois só ao homem ele deu um preceito. De fato, diz um salmo:

Salvaste os homens e os animais, Senhor. Como se multiplicou a tua misericórdia, ó Deus multiplicou-se a tua misericórdia disse o salmista, e de acordo com ela salvaste os homens e os animais(Sl 35,7.8).

E o Apóstolo:

Acaso Deus se preocupa com os bois?” Num lugar:

Deus não se preocupa com os bois”; e em outro lugar:

Salvaste os homens e os animais, Senhor”.

São opostas essas sentenças? Que diz o Apóstolo? “Acaso Deus se preocupa com os bois?” Aí está prescrito:

Não amordaçarás o boi que tritura o grão(1 Cor 9,9; Dt 25,4).

Então, Deus não se preocupa com os bois? Efetivamente quis aludir a determinada espécie de bois. Ora, Deus não cuidou de te admoestar acerca do que deves fazer aos bois; a própria natureza humana o sabe. O homem foi feito de tal modo que sabe cuidar de seus animais; não recebeu a respeito disso preceitos da parte de Deus, mas foi-lhe incutido na mente por Deus, de sorte que pode agir sem um preceito no caso; assim o fez Deus. Mas como o homem dirige o animal, deve ser dirigido por outro; daquele que o governa recebeu um preceito. Quanto ao teor do preceito, portanto, “Deus não se preocupa com os bois”; quanto à providência universal, pela qual criou o mundo e o governa:

Salvaste os homens e os animais, Senhor”.



§ 14
V. Caridade preste atenção. Talvez diga-me alguém 1: Está em o Novo Testamento que “Deus não se preocupara com os bois”; e no Antigo Testamento:

Salvaste os homens e os animais, Senhor”.

Existem caluniadores que afirmam que os dois Testamentos não são concordes. Para evitar que declare haver uma coisa no Antigo e outra em o Novo, e me ataque com uma sentença, como esta:

Salvaste os homens e os animais, Senhor”, que devo fazer? Nada é tão importante em o Novo Testamento como os evangelhos. No evangelho encontro que essas coisas todas pertencem a Deus; ninguém pode contradizê-lo. Seria o Apóstolo contrário ao evangelho? Ouçamos o próprio Senhor, príncipe e mestre dos apóstolos.

Olhai as aves do céu; não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta(Mt 6,26).

Por conseguinte, além do homem, estes animais pertencem a Deus que cuida de que sejam alimentados, e não para que recebam uma lei. Quanto ao que respeita a uma lei, Deus não se preocupa com os bois; quanto, porém, às coisas a criar, apascentar, governar e reger, tudo isso pertence a Deus. Pergunta o Senhor Jesus Cristo:

Não se vendem dois pardais por um asse? E, no entanto, nenhum deles cai em terra sem o consentimento do vosso Pai. Valeis mais do que muitos pardais(Mt 10,29-31).

Não digais: Não pertenço a Deus. Tua alma pertence a Deus, teu corpo pertence a Deus, porque Deus fez tua alma e teu corpo. Talvez responderás: Deus não me conta no meio de uma grande multidão. Acrescente-se aquele dito admirável do evangelho:

Até mesmo os vossos cabelos foram todos contados(Mt 10,30).

1 São designados aqui os maniqueus.



§ 15
7 Por conseguinte, ele é meu Deus, pus minha esperança naquele “que fez o céu, e a terra, o mar e tudo o que neles se contém”.

Em relação a mim, como age? “O que guarda a fidelidade eternamente”.

O salmo recomendou o Deus que deve ser amado e temido.

O que guarda a fidelidade eternamente”.

Que fidelidade e qual dura eternamente? Qual e em que guarda fidelidade? “Faz justiça aos oprimidos”.

Vinga os injuriados, meus irmãos; faz-lhe justiça. A quem? Aos que recebem injúrias, punindo todos os injuriosos. Se, pois favorece os injuriados e pune os injuriosos, vê agora de que número queres ser. Vê, atende se queres estar entre os que recebem injúrias ou entre os que as fazem. Logo se te apresenta a voz do Apóstolo, nesses termos:

De todo modo, já é para vós uma falta a existência de litígios entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma injustiça”? (1 Cor 6,7).

Repreende aqueles, porque não preferem sofrer uma injustiça. Não te exorta a padeceres uma coisa desagradável, mas a suportares uma injustiça; não é tudo que incomoda que é injustiça. Tudo aquilo que sofres por justiça, não é injúria. A fim de não dizeres: Eu também sou contado entre aqueles que sofrem injustiça, pois sofri isso naquele lugar, e aquilo por uma causa padeci. Vê se sofreste injustiça. Os ladrões sofrem muito, mas não é uma injustiça; os celerados, os maléficos, os infractores, os adúlteros, os corruptores, todos sofrem muito, mas nenhum por injustiça. Uma coisa é sofrer injustiça; outra sofrer tribulação, ou pena, ou incômodo, ou suplício. Considera onde estás, vê o que fizeste, por que padeces. Direito e injustiça são contrários. Direito é o que é justo. Nem tudo que é chamado direito é direito de fato. E se alguém criar um direito iníquo? Nem mesmo deve ser denominado direito, se é injusto. É verdadeiro o que é igualmente justo. Vê o que fizeste e não o que sofres. Se agiste conforme o direito, sofres injustamente; se praticaste a injustiça, sofres justamente.



§ 16
Por que falei estas coisas, irmãos1? A fim de que os hereges não se exaltem quando talvez sofram por ordem dos príncipes terrenos; não se enumerem entre aqueles que são injuriados, e digam: Eis que o salmo me consola; pois eu adoro a Deus “que faz justiça aos oprimidos”.

Com razão pergunto se és injuriado. Se praticaste a justiça, é injusto o que sofres. É justo insuflar contra Cristo? É justo levantar um altar com soberba rebelde? É direito poupar os perseguidores da túnica de Cristo, e rasgar a Igreja de Cristo? Ora, se isto não é justo, tudo o que sofres por causa de tais ações é justo. Não és, portanto, do número daqueles que sofrem injustiça. Leio algo de mais claro no evangelho:

Bem-aventurados os que são perseguidos”.

Aguarda; por que te apressas? Por que dizes: sou eu? Espera, digo: lerei o texto todo. Ouviste:

Bem-aventurados os que são perseguidos”.

Já começaras a arrogar-te não sei o quê. Se permites, lerei tudo; vê como continua:

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça(Mt 5,10).

Agora responde: sou eu. Se ousas afirmar: Sou eu. Reconsideremos o que disse mais acima. Ou, se achas muito longo, interrogo apenas uma coisa: Se condenares apenas um homem, cuja causa desconheces, ousarias assegurar que cumpres a justiça? Ou, se algo sofresses por esse motivo, denominarias uma injustiça? Ergues-te no tribunal temerário de teu coração, de onde serás precipitado; e ousas proferir uma sentença acerca de um homem cuja causa desconheces! Se assim agisses a respeito de um só homem, serias injusto; tu o fazes contra todo o orbe da terra, e és justo? Irmãos caríssimos, quem é que sofre injustiça senão a Igreja católica, que padece tantos desses males? Ela geme no meio de tantos escândalos dos hereges; vê serem arrebatados de seu grêmio, por más persuasões e fraudes, os fracos, os pequenos serem arrastados por não sei quais esconderijos de tenebrosas cavernas, serem rebatizados, ser insuflado contra Cristo que neles habita, ser morto não aquilo que os constitui como homens, mas aquilo que os faria viver eternamente. Um homem é persuadido a dizer: Não sou cristão. E consideram isto justiça. Tu te aproximarás do bispo, eles lhe dizem, não digas que és cristão; pois se disseres que és cristão, não serás recebido; tu, para seres acolhido, dize que não és cristão. A que exortas, ó cristão? Que ensinas? Certamente sofres perseguição; é muito mais verdade que és perseguidor! Quando os imperadores perseguiam os cristãos, obrigavam por ameaças a fazer o que tu levas a praticar por persuasão. Persuades cristão a negar que é cristão. O perseguidor matando não fez o que tu fazes persuadindo. Vive sujeito a ti alguém que nega ser cristão. Nega e vive? Já perdeu a vida; é um cadáver que te fala. Aquele que foi ferido pelo gládio do perseguidor, caiu e vive; aquele a quem falas, está de pé e caiu. Assim agindo, qualquer coisa que sofreres, será injúria? Não te iludas; se tudo o que fazes são estas ações injustas, será justo qualquer coisa que padeceres. A quem faz justiça aquele que “guarda a fidelidade eternamente? Aos oprimidos”.



§ 17
8 Agora avança e profere teus bons raciocínios, como se fossem apurados e subtis, pois tu nutres. Profere: Um famélico pode alimentar? Isto é, um pecador pode dar o que é santo? Um famélico pode alimentar? Um doente pode curar? Um homem amarrado pode desligar? Estas reflexões, que parecem importantes e subtis, enganam os ignorantes. Este salmo fecha-lhes a boca:

Dá pão aos que têm fome”.

Eis que nada espero de ti; Deus “dá pão aos que têm fome”.

A que famintos? A todos. Que quer dizer? Todos? A todos os animais, a todos os homens ele dá alimento; e nada reserva para os seus amados? Se eles têm outra espécie de fome, terão também outro alimento. Perguntemos primeiro qual a sua fome e encontraremos qual o seu alimento:

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).

Devemos ser famintos de Deus; mendiguemos diante de sua porta, em sua presença, nas orações; ele “dá pão aos que têm fome”.

Por que, ó herege, te gabas de desatar, erguer, iluminar? Pelo fato de teres sido libertado, estás de pé e és luz? De forma alguma. Atende ao que foi declarado mais acima:

Não confieis nos príncipes. Nos filhos dos homens que não podem salvar”.

Eles não dão a salvação. Portanto, afastem-se os hereges.

O Senhor solta os grilhões dos cativos. O Senhor levanta os caídos. O Senhor torna sábios os cegos”, isto é, daqueles que são cegos ele faz os sábios. De maneira excelente esta sentença expõe-nos todas as anteriores, pois assim, quando o salmista disse:

O Senhor solta os grilhões dos cativos”, não nos referimos àqueles cativos que talvez devido a alguma falta foram postos em ferros por seus senhores; e quando disse:

Levanta os caídos”, não nos venha à memória alguém que tropece e caia, ou que caia do cavalo. Existem outras quedas, outros grilhões, como existem outras trevas e outra luz. Por ter dito:

Torna sábios os cegos” não quis dizer: dá a vista aos cegos, para não entenderes isto carnalmente, da forma que o Senhor empregou, quando deu a vista ao cego, a cujos olhos ele aplicou lama feita com saliva, e o curou (cf Jo 9,6.7).

Conseqüentemente, como os cegos vêem devido à luz da sabedoria, assim se soltam os grilhões dos cativos, e se levantam os caídos. Como estamos agrilhoados? Como caímos? Nosso corpo foi nosso adorno; pecamos e por isso recebemos os grihões. Quais são os nossos grilhões? A própria mortalidade. Escuta o apóstolo Paulo, porque ele também nesta peregrinação fora cativo com grilhões. Quantas terras percorreu este homem com grilhões! Os grilhões não lhe pesaram; com esses grilhões pregou o evangelho a toda a terra. O espírito de caridade arrebatou os grilhões, e ele percorreu quanto pôde. Entretanto, o que disse? “O meu desejo é partir e ir estar com Cristo”.

Partir de onde? Dos grilhões da mortalidade. E no entanto, por misericórdia ainda queria estar em grilhões, por causa dos outros cativos, aos quais servia:

Mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa(Fl 1,23.24).

O Senhor, portanto, solta os grilhões dos cativos”, isto é, dos mortais faz imortais.

O Senhor levanta os caídos”.

Por que caíram? Porque estavam elevados. Por que são levantados? Porque foram humilhados. Adão caiu e deslisou; Cristo desceu. Por que desceu aquele que não caiu, senão para levantar o que caíra? “O Senhor torna sábios os cegos. O Senhor ama os justos”.

Por isto faz justiça aos que sofrem injustiça.



§ 18
9 E quem são os justos? Agora até onde justos? Como está escrito:

O Senhor guarda os prosélitos”.

Prosélitos são os estrangeiros. Toda a Igreja dos gentios é prosélita. Ela é estrangeira junto dos patriarcas, porque não nasceu de sua carne, mas é sua filha pela imitação. No entanto, é o Senhor quem guarda e não um homem qualquer.

Ampara o órfão e a viúva”.

Ninguém pense que se trata de órfão em relação à herança, ou à viúva em vista de qualquer negócio seu. Com efeito, Deus também socorre a estes e em todos os bons ofícios do gênero humano faz uma boa obra quem cuida do órfão, quem não abandona a viúva; mas segundo certo ponto de vista todos somos órfãos, estando ausente nosso pai, não morto. Segundo o ponto de vista humano, fica-se órfão quando morre o pai. E se pensardes bem, irmãos, que a alma não morre, vivem nossos pais; e os órfãos são órfãos propriamente com a ausência dos pais; se foram maus, vivem no meio dos castigos, se foram bons, vivem no repouso: todos os seres permanecem íntegros para o Criador. Todavia, nós, enquanto estamos neste corpo e habitamos num lugar de nossa peregrinação, está ausente nosso Pai, a quem clamamos:

Pai nosso, que estás nos céus(Mt 6,9).

A Igre-ja é como viúva, na ausência do esposo, do cônjuge. Virá aquele que agora a protege, e que não é visto, mas desejado. Somos arrastados por um grande desejo e anelamos com amor por àquele que não vemos. Abraçá-lo-emos quando for visto, se pela fé o retemos antes de vê-lo. Então, o que o salmista quis dar a entender por “órfão e viúva”, irmãos? Os destituídos de todo socorro e auxílio. A alma destituída no mundo, espere o auxílio de Deus. Seja o que for que possues, por exemplo, possues ouro; com isto presumiste? Já não és prosélito, não és órfão, não serás contado entre as viúvas. Tens um amigo. Se presumires a respeito dele e abandonares a Deus, não estás destituído. Tens tudo isso; não presumes por isso, não ficas soberbo? És órfão de Deus e viúva de Deus. Portanto, ele recebe os destituídos; ele o afirmou: acolhe o órfão, e te ampara como a uma viúva.



§ 19
Mas exterminará o caminho dos pecadores”.

Qual o caminho dos pecadores? Zombar das coisas que dizemos. Quem é o órfão? Quem é a viúva? Que é o reino dos céus? Quais as penas do inferno? São fábulas dos cristãos. Viverei para aquilo que vejo:

Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”.

Vê que esses tais não te persuadam, que pelo ouvido não entrem no coração: encontrem espinhos em teus ouvidos; quem começar a entrar assim, seja afastado pelas Picadas. Pois, “as más companhias corrompem os bons costumes(1 Cor 15,32.33).

Mas, então, talvez repliques: Por que são felizes? Eles não adoram a Deus, e diariamente cometem todos os pecados; e têm fartura daquilo de que tenho falta, apesar de meu trabalho. Não invejes os pecadores. Vês o que eles recebem; não vês o que lhes está reservado? Respondes: E como verei o que é invisível? A fé tem, na verdade, olhos; e olhos maiores, mais potentes, mais fortes. Estes olhos a ninguém enganam; “estes olhos estejam voltados sempre para o Senhor, a fim de que ele livre dos laços os teus pés(cf Sl 24,15).

A senda dos pecadores te agrada porque é larga e muitos são os que por ela andam; vês a sua largura, mas não ves a que fim leva. Eis que no seu termo há um precipício; termina na profundeza do báratro. Os que se alegram, se expandem neste caminho, submergem naquele final. Mas não podes alcançar com os olhos este fim; acredita naquele que o vê. E qual o homem que o vê? Talvez nenhum; mas teu Senhor veio a ti, para acreditares em Deus. Acaso não acreditarás no Senhor teu Deus, que disse:

Largo e espaçoso o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele”? (Mt 7,13).

É este o caminho que o Senhor exterminará, porque é o caminho dos pecadores.



§ 20
10 E tendo sido exterminado o caminho dos pecadores, o que ainda falta? “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo(Mt 25,34).

Assim conclui o salmo:

Mas exterminará o caminho dos pecadores”.

E então? “O Senhor reinará eternamente”.

Alegra-te, porque reinará para ti; alegra-te, porque serás o seu reino. Considera a continuação. Certamente és cidadão de Sião, não de Babilônia, isto é, não da cidade deste mundo que vai perecer, mas de Sião, temporariamente em labor e peregrinação, mas que há de reinar eternamente. Ouviste, portanto, qual o termo: de lá és tu.

O Senhor reinará eternamente, o teu Deus, ó Sião”.

Ó Sião, o teu Deus reinará eternamente; será que teu Deus reinará sem ti? “Por geração e geração”.

Repete por duas vezes, porque não pôde dizer sempre. Não julgues que terminadas as palavras, termine a eternidade. A eternidade é palavra que consta de quatro sílabas, mas em si mesma é sem fim. Somente pôde o salmista recomendar-te isso:

O teu Deus reinará por geração e geração”.

Disse pouco. Se falasse o dia todo seria insuficiente; se falasse a vida toda, não teria de calar por vezes? Ama a eternidade. Reinarás sem fim, se teu fim é o Cristo, com o qual reinarás pelos séculos dos séculos. Amém. 1 Contra os donsatistas.