ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 144 | ||
§ 144:1 | Ꞗ Bendito seja o Senhor, minha rocha, que adestra as minhas mãos para a peleja e os meus dedos para a guerra; | |
§ 144:2 | meu refúgio e minha fortaleza, meu alto retiro e meu e meu libertador, escudo meu, em quem me refugio; ele é quem me sujeita o meu povo. | |
§ 144:3 | Ơ Ó Senhor, que é o homem, para que tomes conhecimento dele, e o filho do homem, para que o consideres? | |
§ 144:4 | Ꝋ O homem é semelhante a um sopro; os seus dias são como a sombra que passa. | |
§ 144:5 | Ɑ Abaixa, ó Senhor, o teu céu, e desce! Toca os montes, para que fumeguem! | |
§ 144:6 | Ɑ Arremessa os teus raios, e dissipa-os; envia as tuas flechas, e desbarata-os! | |
§ 144:7 | ⱻ Estende as tuas mãos desde o alto; livra-me, e arrebata-me das poderosas águas e da mão do estrangeiro, | |
§ 144:8 | ɔ cuja boca fala vaidade, e cuja mão direita é a destra da falsidade. | |
§ 144:9 | Ɑ A ti, ó Deus, cantarei um cântico novo; com a harpa de dez cordas te cantarei louvores, | |
§ 144:10 | ʂ sim, a ti que dás a vitória aos reis, e que livras da espada maligna a teu servo Davi. | |
§ 144:11 | Ł Livra-me, e tira-me da mão do estrangeiro, cuja boca fala mentiras, e cuja mão direita é a destra da falsidade. | |
§ 144:12 | ᶊ Sejam os nossos filhos, na sua mocidade, como plantas bem desenvolvidas, e as nossas filhas como pedras angulares lavradas, como as de um palácio. | |
§ 144:13 | ⱻ Estejam repletos os nossos celeiros, fornecendo toda sorte de provisões; as nossas ovelhas produzam a milhares e a dezenas de milhares em nosos campos; | |
§ 144:14 | ⱺ os nossos bois levem ricas cargas; e não haja assaltos, nem sortidas, nem clamores em nossas ruas! | |
§ 144:15 | Ꞗ Bem-aventurado o povo a quem assim sucede! Bem-aventurado o povo cujo Deus é o Senhor. | |
O SALMO 144 | ||
SERMÃO (Proferido em Útica na basílica da Massa Cândida2) | ||
§ 1 | Tínhamos desejado louvar convosco ao Senhor; e como ele se dignou no-lo conceder, de sorte que o louvor tem uma ordem que lhe é própria, para que não aconteça que alguém se exceda no ato de louvar, procuramos nas Escrituras de Deus o melhor modo de louvar, sem nos desviarmos deste caminho, nem para a direita, nem para a esquerda. Pois ouso dizer a V. Caridade: A fim de que o homem pudesse louvar convenientemente a Deus, louvou-se a si mesmo o próprio Deus; e como ele se dignou louvar-se, o homem descobriu como deve louvá-lo. Não se pode dizer a Deus, o que se diz a um homem: “Não te louve tua boca” (Pr 27,2). Se um homem se louva, é arrogância; se é Deus que se louva, é misericórdia. É vantajoso amarmos aquele a quem louvamos; amando aquele que é bom, tornamo-nos melhores. Então, sabendo ele que é útil para nós amá-lo, louvando a si mesmo ele se torna amável; e é pensando em nosso bem que se torna amável. Por isso, ele exorta nosso coração a louvá-lo. Encheu seus servos de seu espírito, para que o louvassem. E visto que seu espírito em seus servos o louva, quem o louva senão ele mesmo? O presente salmo assim inicia: | |
§ 2 | 1 “Quero exaltar-te, meu Deus e meu rei; e bendizer teu nome nos séculos e pelos séculos dos séculos”. Vedes começado o louvor de Deus, e até o fim do salmo se desenrola este louvor. Com efeito, o título do salmo é: “Louvores de Davi”. Considerando-se que é denominado a Davi, aquele que veio até nós, da descendência de Davi (cf Rm 1,3), nosso rei, que nos governa e nos introduz em seu reino, entende-se que: “Louvores de Davi” são louvores ao próprio Cristo; Cristo, pois, segundo a carne é Davi, porque é filho de Davi; segundo a divindade, porém, Criador de Davi e Senhor de Davi. Por fim, também o Apóstolo, querendo prestar honras ao primitivo povo de Deus, donde saíram os apóstolos que acreditaram, e donde se originaram muitas das primitivas Igrejas - e faziam muitos milhares de homens aquilo que o rico do evangelho ouviu, mas triste se afastou (cf Mt 19,21.22), isto é, vendiam tudo o que tinham e distribuindo aos pobres (cf At 2,41-47; 4,32-35), querendo, pois, louvar aquele primeiro povo, assim se expressou: “Aos quais pertencem os patriarcas, e dos quais descende o Cristo, segundo a carne que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos” (Rm 9,5). Como Cristo descende deles segundo a carne, é Davi; e como ele é acima de tudo Deus, bendito pelos séculos: “Quero exaltar-te, meu Deus, e meu rei, e bendizer teu nome pelos séculos e pelos séculos dos séculos”. Talvez “pelos séculos”. Pelos séculos, seria: aqui; e “pelos séculos dos séculos”: na eternidade. Por conseguinte, começa a louvar agora, se deves louvar eternamente. Quem não quiser louvar no decurso destes séculos calará quando vierem os séculos dos séculos. Daí vem que nos versículos seguintes, o salmista disse mais ou menos isso mesmo. | |
§ 3 | 2 Para não acontecer que alguém compreenda de maneira diferente o versículo: “Louvarei teu nome pelos séculos” e procure outros séculos para louvar, diz o salmista: “Todos os dias eu te bendirei”. Louva, portanto, e bendize ao Senhor teu Deus todos os dias, a fim de que, ao terminarem os dias sucessivos e vier o último dia sem fim, vás de louvor em louvor, como avanças de virtude em virtude (cf Sl 83,8). “Todos os dias eu te bendirei”: não passará um dia sem que eu te bendiga. Não é de admirar que bendigas teu Deus nos dias de alegria. E o que será, se talvez surja um dia triste, como sucede entre os homens, quando há abundância de escândalos, e multiplicação das tentações? Que será se suceder um triste evento? Deixarás de louvar a Deus? Deixarás de bendizer o teu Criador? Se deixas, mentes ao declarar: “Todos os dias eu te bendirei, Senhor”. Se não o deixas de fazer, apesar de te parecer um mal este dia triste, será um bem em teu Deus. Mesmo quando sucede um mal, sem dúvida haverá algum bem para ti. Pois, se por ocasião de algum mal, tu te sentes mal, sem dúvida em algum bem te sentirás bem. E que há de tão bom quanto teu Deus, do qual foi dito: “Ninguém é bom, senão só Deus”? (Lc 18,19). Depreende do próprio bem quão seguro é este louvor, e quão seguro este bem. Pois, se te alegras pelo bem que te sucede num dia, talvez passe no dia seguinte este bem de que te alegras. Foi bom para mim, passei um dia ótimo! Pois, talvez vieram uns lucros, ou foste convidado a um banquete, ou estiveste presente num longo convívio. Alegras-te porque estiveste durante muito tempo num banquete; outro dia te ensinará, porque não te envergonhaste disso. Todavia, seja qual for o bem que te regozija, certamente é transitório. Se, porém, te alegras no Senhor teu Deus, ouvirás a Escritura te dizer: “Põe tuas delícias no Senhor” (Sl 36,4). Alegrar-te-ás com tanto mais firmeza quanto mais seguro o objeto de tua alegria. Pois, se estás contente por causa de dinheiro, temes o ladrão; se, porém, te alegras por causa de Deus, que receias? Alguém te poderá tirar de Deus? Ninguém te roubará Deus, se tu mesmo não o abandonares. Deus não é como esta luz que brilha do céu. Nem sempre quando queremos temos acesso a esta luz, porque não brilha em todos os lugares. Devido a nossa fraqueza, no inverno apraz-nos expor-nos a esta luz; agora, porém, no verão, vereis que procuramos de preferência um lugar, em que não estaremos expostos a ela. Quanto a teu Deus, quando estás em sua presença, e te alegras à luz de sua verdade, não buscas um lugar para te aproximares dele; mas é a consciência que se aproxima ou se afasta. Quanto à palavra: “Acercai-vos dele e sereis iluminados” (Sl 33,6), trata-se da alma, não de um veículo; de afetos, não dos pés. E ao estardes junto dele, não sofrerás calor. O espírito soprará, e sob as suas asas, esperarás (Sl 90,4). | |
§ 4 | Vês, portanto, que tens como te deleitar todos os dias. Pois teu Deus não te abandonará, mesmo se acontecer algo de triste. Como não era triste o que acontecera ao santo varão Jó! De repente, quantos males! Como todas as coisas que pareciam ser-lhe aprazíveis, mas nas quais não confiava sua alegria, foram-lhe subtraídas, por tentação do diabo! Como os filhos foram mortos! Perdeu o que reservava e aqueles para os quais guardava esses bens; mas não perdeu aquele que lhe dera bens e filhos. Os próprios filhos pereceram neste mundo, para serem reconhecidos e recuperados no futuro. Aquele varão, contudo sendo outro o objeto de sua alegria, e para o qual era exato o que há pouco citamos: “Todos os dias eu te bendirei”, acaso, porque naquele dia perdera tudo num dia triste perdeu a luz interior do coração? Ficou firme com aquela luz e disse: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, conforme agradou ao Senhor assim se fez, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Por conseguinte, louvou todos os dias aquele que mesmo em dia tão triste louvou o Senhor. Doutrina resumida: louva sempre a Deus, e dize de coração sincero, não falso: “Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,1). Doutrina resumida, a saber, saibas que ele dá misericordiosamente quando dá, e misericordiosamente tira, quando tira; nem acredites que sua misericórdia te abandona, se ele te acaricia dando para que não desanimes, ou te corrige quando exultas a fim de não te perderes. Seja, portanto, em seus dons, seja nos seus flagelos, louva. O louvor da mão que flagela é cura da ferida. “Todos os dias eu te bendirei”. Absolutamente, irmãos, bendizei todos os dias; aconteça o que acontecer, bendizei a Deus. Com efeito, ele cuida que não te aconteça algo que não possas suportar. Por isso, deves ter temor quando tudo te corre bem; nem te inclines a pensar que jamais serás tentado. Pois, se nunca fores tentado, nunca serás provado. Não é melhor ser tentado e provado, do que não ser tentado e ser reprovado? “E louvarei teu nome pelos séculos e pelos séculos dos séculos”. | |
§ 5 | 3 “Grande é o Senhor e muito digno de louvor”. Quantas coisas ias dizer? Que palavras procurar? Quantos conceitos encerra esta palavra: “muito (valde)?” Pensa quanto quiseres. Quando se pode pensar o que não se pode apreender? “É muito digno de louvor. Sua grandeza não tem limites”. Disse: “muito (valde)”, porque “sua grandeza não tem limites”. Não suceda que comeces a louvar, e penses que ao louvares podes chegar ao fim; entretanto sua grandeza não tem limites. Não penses, portanto, que aquele cuja grandeza não tem limites possa ser suficientemente louvado. Não é mais condizente que assim como ela é infinita, seu louvor não tenha fim? Sua grandeza é sem limites; também seu louvor seja sem fim. Que foi dito de sua grandeza? “Sua grandeza não tem limites”. E de teu louvor? “Louvarei teu nome pelos séculos e pelos séculos dos séculos”. Portanto, como sua magnitude não tem fim, teu louvor seja igualmente sem fim. Pois, nem ao morreres corporalmente, deixas de louvar o Senhor. Pois, foi dito: “Não são os mortos que louvam o Senhor” (Sl 113,17), mas em referência àqueles dos quais se disse: “Para o morto, como se não existisse mais nada, o louvor acabou” (Eclo 17,26) e não daqueles, de que disse o evangelista: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá (Jo 11,25), porque o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó, não é Deus de mortos, e sim de vivos” (Mt 22,32). Se, pois, jamais serás de outrem senão dele, jamais calarás seu louvor. Poderás ter medo de que enquanto vives na terra, deixes de ser dele; e quando morreres não serás dele? Escuta como o Apóstolo te promete segurança: “Porque se vivemos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,8). E como pode ser que sejas dele mesmo depois de morto? Porque ele te remiu pelo preço de seu sangue, quando estavas morto. Como perderá o servo depois de morto, se sua morte é o preço com que te remiu? Por isso, tendo dito o Apóstolo: “Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor”, para mostrar o preço da redenção, disse: “Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9). | |
§ 6 | 4 Tendo em vista, contudo, que “sua grandeza não tem limites”, e devemos louvar aquele que não compreendemos (pois se o compreendêssemos, sua grandeza teria limites; de outro lado, se sua grandeza não tem limites podemos compreender alguma coisa acerca dela, apesar de não a compreendermos totalmente), incapazes diante de sua grandeza, a fim de nos reanimarmos com sua bondade, olhemos para suas obras, e tomando como ponto de partida as obras louvemos o artífice, do artefacto o fabricante, da criatura o Criador. Contemplemos as coisas que ele fez na terra, as quais nos são conhecidas porque nos foram manifestadas. Em sua imensa bondade e infinita grandeza, quantas outras obras criou que nós não conhecemos? Se estendemos até o céu a penetração de nosso olhar, e de novo, do sol, da luz e das estrelas voltamos à terra, e por todo este espaço vaga o nosso olhar, pois, além dos céus quem estenderá, já não digo a intensidade do olhar, mas a da mente? Por isso, céu à medida que nos são conhecidas as suas obras, louvemo-lo através delas. Pois, sua realidade invisível tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas (Rm 1,20). “Geração por geração louvará tuas obras”. Todas as gerações louvarão tuas obras. Pois talvez signifique toda geração a expressão: “Geração por geração”. Não diria: “Geração por geração”, insinuando: até que se completasse o número das gerações todas, mas trata-se de uma repetição, remetendo para o infinito o espírito daquele que raciocina. Com efeito, esta geração que agora vive na carne, passará como veio, e louva as obras de Deus; a que lhe sucederá louvará também as obras de Deus; depois desta, virá outra; e assim, até o fim do mundo, quantas gerações! É isto que o salmista quis dizer, nesses termos: “Geração por geração louvará tuas obras”. Acaso quis sugerir duas determinadas gerações com esta repetição? Pois estamos na geração presente, como filhos de Deus; seremos na outra geração filhos da ressurreição. A Escritura nos denomina filhos da ressurreição e chama a própria ressurreição de regeneração. “Na regeneração, quando o Filho do homem se assentar no seu trono de glória” (Mt 19,28). E ainda em outro lugar: “Nem eles se casam, nem elas se dão em casamento, pois são filhos da ressurreição” (Lc 20,35.36). Portanto, “geração por geração louvará tuas obras”. Agora, enquanto vivemos esta vida mortal louvamos as obras do Senhor; se louvamos enquanto estamos em grilhões, como louvaremos depois de coroados! Por isso, agora, nesta geração, atendamos às obras do Senhor, em cujo louvor se diz: “Geração por geração louvará tuas obras”; porque tua grandeza não tem limites. Convém contemplar tuas obras a fim de seres louvado por criares tais obras. | |
§ 7 | “E proclamará teu poder”. Tuas obras não te louvarão se não anunciarem teu poder. Os meninos na escola aprendem a louvar, e são-lhes propostas as obras de Deus para que as louvem. Ao homem é proposto o louvor do sol, do céu, da terra; e para chegar às coisas míninas, o elogio da rosa, do louro. Tudo isso é obra de Deus, é proposta, é bem recebido, é louvado; celebram-se as obras, e cala-se uma referência ao Criador. Por isso, quero que nas obras seja louvado o Criador; não gosto do louvor de um ingrato. Louvas a obra, e calas aquele que a fez? Como se, de fato, ele não fosse tão grande, não descobririas o que louvar. O que louvas nas coisas visíveis? A beleza, a utilidade, alguma virtude, algum poder. Se é a beleza que te deleita, que há de mais belo do que aquele que as fez? Se louvas a utilidade, que há de mais útil do que aquele que tudo fez? Se é a virtude que é louvada, que há de mais potente do que aquele que tudo fez? E que não abandona suas obras, mas as rege e governa? A geração por geração de teus servos não louva tuas obras como certos homens loquazes e mudos, que louvam a criatura, esquecendo-se do Criador. Mas como é que ela louva? “E proclamará teu poder”. Louvando tuas obras, anunciarão teu poder. Estes panegiristas, fiéis bons e santos, genuínos louvadores, que não são ingratos à graça, ao louvarem as obras de Deus, estas e aquelas, as supremas e as ínfimas, as celestes e as terrestres, no meio destas obras de Deus que louvam, encontram-se a si mesmos, porque também eles são obra de Deus. Aquele, de fato, que fez todas as coisas, também nos fez no meio delas. Por conseguinte, se louvas as obras de Deus, louvar-te-ás a ti mesmo também, porque és igualmente obra de Deus. E então como fica a palavra: “Não te louve tua boca”? (Pr 27,2). Foi descoberto como podes louvar-te, sem te tornares arrogante. Louva a Deus em ti, não a ti mesmo. Não pelo fato de seres o que és, mas porque ele te fez; não porque tu podes algo, mas porque ele pode em ti e por ti. E por isto eles te louvarão e “proclamarão teu poder”: não o seu, mas “o teu”. Aprende, portanto, como louvar. Considerando as obras, admirai o artífice; dando graças, sem arrogância. Louvai porque ele vos criou, assim vos estabeleceu, tais dons vos concedeu. | |
§ 8 | 5.7 Enfim, vê os versículos seguintes: “Proclamarão teu poder. Hão de narrar a magnificência de tua glória e santidade e apregoar as tuas maravilhas. Falarão da força com que assombras e contarão tua grandeza. Expandir-se-ão na lembrança de tua doçura inesgotável”, unicamente da tua. Considera se o salmista, ao meditar nestas obras, declinou do Criador para elas; verifica se perdeu de vista o artífice, voltando-se para o artefacto. Das obras fez um degrau para subir ao Criador e não decaiu de junto dele, por causa destas obras. Pois, se as amares mais do que a ele, não o possuirás. E que te adianta estar com abundância destas obras, se te abandona quem as fez? Certamente deves amá-las também; mas ama-o mais, e ama-as por causa dele. Proclama o seu poder, fala da magnificência de sua glória e santidade, narra suas maravilhas, narra a força com que ele assombra. Com efeito, ele é amável e terrível. Pois, não acaricia sem ameaçar igualmente. Se não acariciasse, não haveria exortação; se não ameaçasse não corrigiria. Narrem, portanto, os que te louvam também a “força com que assombras”; não calarão a força das criaturas que empregas para punir e ensinar. Pois, não proclamarão teu reino eterno, e deixarão de falar do fogo eterno. Efetivamente o louvor de Deus durante a caminhada deve te demonstrar o que tens de amar, o que temer, o que desejar, de que fugir, o que escolher, o que rejeitar. Agora é tempo de opções, depois será de receber o merecido. Anuncie-se, portanto, a força com que ele assombra. “E contarão a tua grandeza”. Não calarão como é infinita, como tua grandeza não tem limites. “A tua grandeza”, digo, da qual falara mais acima: “E tua grandeza não tem limites. Eles hão de narrá-la”. Como hão de narrá-la, se não tem limites? Narrá-la-ão ao louvá-la; e como não tem fim, também seu louvor não terá fim. Provemos que seu louvor não terminará. Diz o salmista: “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). “E a tua grandeza”, aquela grandeza infinita, eles a “contarão”. | |
§ 9 | “Expandir-se-ão na lembrança de tua doçura inesgotável”. Feliz banquete! que comerão os que assim haverão de arrotar? “A lembrança de tua doçura inesgotável”. Que é: “lembrança de tua doçura inesgotável?” Não nos esqueceste quando nós de ti nos esquecemos. De fato, toda carne se esquecera de Deus; ele, contudo, não se esqueceu de sua obra. Cabe-nos apregoar, narrar esta lembrança que teve de nós, pois não nos esqueceu; e como é muito suave, deve ser ingerida e arrotada. Come de sorte que arrotes; recebe para dares. Comes, quando aprendes; arrotas quando pregas: todavia arrotas o que comeste. Finalmente, aquele ávido conviva, o apóstolo João, a quem não bastava a própria mesa do Senhor, mas precisava reclinar sobre o peito do Senhor (cf Jo 13,23), e haurir os segredos divinos daquele esconderijo, que arrotou? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus” (Jo 1,1). “Expandir-se-ão na lembrança de tua doçura inesgotável”, como não basta: tua lembrança, nem: a lembrança de tua abundância, ou a lembrança de tua doçura; mas profere: “a lembrança de tua doçura inesgotável?” Efetivamente que adianta ser inesgotável, se não é suave? É também desagradável se é suave, mas insuficiente. | |
§ 10 | Portanto: “Expandir-se-ão na lembrança de tua doçura inesgotável”, porque não te esqueceste de nós; e bem lembrado nos advertiste a fim de despertar nossa memória. “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra” (Sl 21,28). Uma vez que eles “se expandirão na lembrança de tua doçura inesgotável”, entendendo que em si nada têm de bom que não provenha de ti; nem que teriam podido converter-se a ti, se tu não os advertisses; nem se lembrarem de ti, se tu te esquecesses deles, considerando estas coisas, em tua graça, “exultarão em tua justiça”. Ponderando estas coisas em tua graça, “exultarão em tua justiça”, não na sua. Irmãos, se quereis emitir a graça, bebei a graça. Que quer dizer: bebei a graça? Aprendei o que é a graça, entendei-a. Nós antes de existirmos, absolutamente não éramos; e fomos criados como homens, quando antes nada éramos; em seguida, homens de uma raça pecadora, éramos malignos, por natureza filhos da ira, como os demais (cf Ef 2,3). Consideremos, portanto, a graça de Deus, não somente a de nos ter feito, mas ainda de nos ter refeito. Àquele a quem devemos a graça de sermos, devemos também a de sermos justificados. Ninguém atribua a Deus o fato de ser, e a si o de ser justo. Estás querendo atribuir a ti mais do que a ele; pois é melhor o fato de ser justo do que o de ser homem. Dás a Deus o que é inferior e a ti o que é melhor. Dá-lhe tudo, louva-o por tudo; não caias da mão do artífice. Quem te fez para que existisses? Não está escrito que Deus tomou do limo da terra e plasmou o homem? (cf Gn 2,7). Antes de seres homem, eras limo; antes de seres limo, nada eras. Mas não agradeças a teu artífice apenas por este artefacto; escuta que há outro, com que te fez. “Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho”. Mas, se o Apóstolo disse: “Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho” o que relembrou mais acima? “Pela graça fostes salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós”. São palavras do Apóstolo, não minhas: “Pela graça fostes salvos, por meio da fé”; e isso (que fostes salvos, por meio da fé) “não vem de vós”. Apesar de que a palavra que proferia: “graça” implica que “não vem de vós”, para que ninguém entendesse de modo diverso, dignou-se declará-lo expressamente. Para bom entendedor, ele disse tudo nas palavras: “Pela graça fostes salvos”. Quem ouve: “graça”, entende que é gratuita. Se, portanto, é gratuita, em nada contribuíste, nada mereceste; pois se algo se retribui a um mérito, é recompensa, e não graça. “Pela graça fostes salvos, por meio da fé”. Expõe-no mais claramente por causa dos arrogantes, dos que se comprazem em si mesmos, desconhecendo a justiça de Deus e querendo estabelecer a sua. Escuta-o claramente: E isso, diz ele, que “fostes salvos pela graça, não vem de vós, é dom de Deus”. Mas, talvez tenhamos feito algo para merecermos os dons de Deus. “Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho”. E então? Não agimos bem? Agimos. Mas, como? Quando o Senhor opera em nós; pela fé, damos acesso em nosso coração àquele que opera o bem em nós e por nós. Escuta, pois, como operas o bem: “Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos” (Ef 2,8-10). Tal é a doçura inesgotável de sua lembrança relativamente a nós. Arrotando-a os pregadores de justiça exultarão na justiça dele, não em sua própria. Que nos fizeste, então, Senhor, para existirmos, para louvarmos, para exultarmos em tua justiça, para nos expandirmos em tua doçura inesgotável, que nos fizeste, Senhor, a quem louvamos? Profiramo-lo, e ao proferi-lo louvemos. 2 Márites queimados em calviva. | |
§ 11 | 8 “Clemente e misericordioso é o Senhor, paciente e cheio de compaixão. Benigno é o Senhor para com todos e sua comiseração se estende a todas as suas obras”. Se ele não fosse assim, nada nos valeria essa repetição. Considera a ti mesmo. Que merecias, pecador? Que merecias, tu que desprezaste a Deus? Vê se te ocorre outra coisa senão a pena, se te ocorre outra coisa senão o suplício. Vês, portanto, o que te era devido, e o que te concedeu quem o deu gratuitamente. Deu o perdão ao pecador, deu o espírito de justificação, deu a caridade e o amor, com o qual praticas o bem; e além disso dar-te-á também a vida eterna e a sociedade dos anjos: tudo por misericórdia. Em parte alguma te gabes de teus méritos, porque mesmo teus méritos são dons de Deus. “Exultarão em tua justiça. Clemente e misericordioso é o Senhor”. Tudo fizeste gratuitamente. “Paciente”: pois quantos pecadores ele suporta? “Clemente e misericordioso é o Senhor”, para com aqueles que perdoou, para com os que ainda não perdoou: “paciente”, não condenando, mas esperando e clamando nesta expectativa: “Retornai a mim e eu retornarei a vós” (Zc 1,3; Ml 3,7). E por imensa paciência: “Certamente não tenho prazer na morte do ímpio: que ele se converta e viva” (Ez 33,11). Ele, efetivamente, é paciente; tu, porém, com a dureza de teu coração, com teu coração impenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras (cf Rm 2,5.6). Ele não é agora longâmine em suportar a tal ponto que jamais será justo, castigando. Divide os tempos: agora te chama, agora te exorta; espera que te arrependas, e tu tardas! Sua misericórdia é grande, até por deixar incerto quantos os dias de tua vida, de sorte que não sabes quando partirás daqui; e enquanto esperas cada dia a partida, talvez um dia te convertas; nisto ainda é grande a sua misericórdia. De resto, se marcasse um dia para todos, faria com que os pecados se multiplicassem, devido à segurança. Mas deu esperança de perdão, a fim de que não aconteça que percas a esperança e peques mais. Tanto a esperança, quanto o desespero, são perigosos relativamente aos pecados. Notai as palavras daquele que, desesperado, aumenta os pecados, e as do que espera demais, aumentando os pecados, e como vem ao encontro de ambos a providência e a misericórdia de Deus. Escuta como fala o desesperado: Eu, diz ele, já estou condenado; por que não fazer tudo o que quero? Escuta as palavras do que espera demais: A misericórdia de Deus é grande; quando me converter ele tudo perdoará; por que não fazer tudo o que quero? Desespera para pecar; espera para pecar. Deve-se ter medo de ambas as atitudes; ambas são perigosas. Ai do desespero! Ai da esperança perversa! Como a misericórdia de Deus vai ao encontro de ambos os perigos, de ambos os males? Que dizes tu, que perdendo a esperança, querias pecar? Já estou condenado, por que não faço tudo o que quero? Escuta a Escritura: “Certamente não tenho prazer da morte do ímpio; que ele se converta e viva”. Esta voz do Senhor o reconduz à esperança; mas deve recear outro laço: que não peque mais, devido à mesma esperança. Que dizias tu, que pecas mais, devido à esperança? Quando me converter, Deus tudo me perdoará; farei tudo o que quero. Escuta também tu a Escritura: “Não demores a voltar para o Senhor e não adies de um dia para o outro, porque de repente, a cólera do Senhor virá e no dia do castigo perecerás” (Eclo 5,8.9). Não digas: Amanhã me converterei, amanhã agradarei a Deus; e tudo de hoje e ontem me será perdoado. Falas a verdade, porque Deus prometeu o perdão se te converteres; mas não prometeu um prazo até amanhã. | |
§ 12 | 9 “Benigno é o Senhor para com todos e sua comise-ração se estende a todas as suas obras”. Por que então condena? Por que castiga? Os condenados e castigados não seriam obra dele? Certamente são. E queres saber como “sua comiseração se estende a todas as suas obras?” De onde vem aquela longaminidade que faz seu sol se levantar sobre bons e maus? Não será por “sua comiseração que se estende a todas as suas obras” que ele faz chover sobre justos e injustos? (cf Mt 5,45). “Sua comiseração não se estende sobre todas as suas obras?” Sendo longânime espera o pecador, dizendo: “Retornai a mim e eu retornarei a vós”; não é porque “sua comiseração se estende a todas as suas obras?” E ao proferir a sentença: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41), aqui não se vê a sua comiseração e sim a sua severidade. Concede a compaixão a suas obras; a sua severidade atinge não as suas obras, mas as tuas. Finalmente, se afastas tuas obras más, e não restar em ti senão as suas obras, sua comiseração não te abandonará; se, porém, não renuncias as tuas obras, sua severidade está reservada a tua obra, não a sua. | |
§ 13 | 10 “Glorifiquem-te, Senhor, todas as tuas obras, e os teus santos te bendigam. Glorifiquem-te todas as tuas obras”. E então? A terra não é sua obra? As árvores não são sua obra? Os animais, as feras, os peixes, as aves não são sua obra? Sem dúvida alguma são sua obra. E como o glorificarão também estas? Vejo, de fato, que mesmo entre os anjos suas obras o glorificam, pois os anjos são sua obra. E os homens igualmente são sua obra. E quando os homens o confessam, suas obras o confessam, acaso as árvores e as pedras têm vozes para confessar? Sem dúvida confessam-no todas as suas obras. Que dizes? E a terra e as árvores? Todas as suas obras. Se todas louvam, por que não haveriam todas de confessar? Confissão não se refere apenas à confissão dos pecados, mas existe também confissão de louvor; não aconteça que logo que ouvis falar de confissão, penseis que só pode ser de pecados. A tal ponto se julga assim que logo que se escuta esta palavra da Sagrada Escritura, imediamente costuma-se bater no peito. Existe também confissão de louvor. Acaso nosso Senhor Jesus Cristo tinha pecado? Contudo, ele diz: “Confesso-te, ó Pai, Senhor do céu e da terra” (Mt 11,25). Existe, portanto, também confissão de louvor. Em conseqüência, como entender: “Confessem-te, Senhor todas as tuas obras”.Louvem-te todas as tuas obras. Mas agora volta relativamente ao louvor a mesma questão relativa à confissão. Se, pois, não podiam confessar a terra, as árvores e todas as coisas insensíveis, porque não tinham voz para confessar, nem podem louvar, porque não têm voz para anunciar, todavia, aqueles três jovens, que andavam no meio das chamas intactos não as enumeram? Tinham possiblidade não somente de não se queimarem, mas ainda de louvar a Deus. Diziam a todos os seres, dos celestes aos terrestres: “Bendizei-o, cantai um hino e exaltai-o para sempre” (Dn 3,20.90). Eis como cantam um hino. Ninguém julgue que uma pedra muda, ou um animal mudo tenha razão para conhecer a Deus; os que assim opinaram, erraram muito longe da verdade. Deus tudo ordenou, tudo fez. A certos seres deu percepção, inteligência e imortalidade, como aos anjos; a outros deu sensibilidade, inteligência, mas com mortalidade, como aos homens; a outros deu sentidos corporais, mas não inteligência, nem imortalidade, como aos animais; a outros nem sensibilidade, nem inteligência, nem imortalidade, como às ervas, às árvores, às pedras. No entanto, não falham em seu próprio gênero. Deus ordenou a criação, da terra até o céu, das coisas visíveis às invisíveis, das mortais às imortais, segundo determinados graus. Este conjunto da criação, esta beleza perfeitamente ordenada, que sobe dos seres ínfimos aos supremos, que desce dos supremos aos ínfimos, em parte alguma interrompida, mas moderada pelas diferenças, toda ela tributa louvores a Deus. Por que toda ela tributa louvores a Deus? Porque se a consideras e vês como é bela, tu louvas a Deus por causa dela. A beleza da terra constitui certa voz da terra em sua mudez. Observas e vês sua beleza, vês sua fecundidade, vês suas forças, como brota a semente, e como muitas vezes produz o que não foi semeado; vês e em tua reflexão de certo modo a interrogas; o próprio exame é uma interrogação. Quando pesquisares com admiração, e perscrutares e descobrires sua grande força, grande beleza, preclara virtude e considerando que em si e por si não pode ter tal vigor, logo te ocorre ao pensamento que isso não pode provir de si, mas apenas do Criador. E se chegas a esta conclusão, é uma voz de confissão, louvor ao Criador. Por acaso, ao contemplares toda a beleza deste mundo, esta própria formosura não parece responder-te a uma só voz: Não fui eu que me fiz, mas foi Deus? | |
§ 14 | 11 Portanto, “Confessem-te, Senhor, todas as tuas obras e os teus santos te bendigam”. Os próprios santos observem como a criação confessa, a fim de que teus santos te bendigam com a confissão de tuas obras. Ouve a voz delas a bendizer. Com efeito, ao te bendizerem teus santos, o que dizem? “Proclamarão a glória de teu reino e falarão de teu poder”. Quão poderoso é Deus, que fez o céu e a terra! Quão poderoso é Deus que encheu a terra de bens”. Quão poderoso é Deus que deu vida própria aos animais! Quão poderoso é Deus que entregou sementes diversas às entranhas da terra, para germinar tamanha variedade de frutos, tantas espécies de árvores! Quão poderoso é Deus, como é grande! Interroga e a criação responde; e segundo esta resposta, esta espécie de confissão da criação, tu, santo de Deus, bendizes a Deus e falas de seu poder. | |
§ 15 | 12 “Para tornar conhecidos aos filhos dos homens o teu poder e o magnífico esplendor de teu reino”. Os santos, portanto, recordam o magnífico esplendor de teu reino, a grandeza e beleza de tua glória. Existe um magnífico esplendor de teu reino; isto é, teu reino tem beleza, grande beleza. Na verdade, tudo o que é belo, de ti recebe a beleza; teu próprio reino que beleza tem! Não nos atemorize teu reino; tem beleza que nos deleite. Com efeito, qual não será a beleza de que fruirão os santos, aos quais se dirá: “vinde, benditos de meu Pai, recebei em herança o reino”? (Mt 25,34). Para onde irão? Vede, irmãos; e se podeis, quanto podeis, pensai na beleza daquele reino que há de vir; por este motivo é que pedimos em nossa oração: “Venha a nós o teu reino” (Mt 6,10). Desejamos que venha o reino; os santos apregoam este reino vindouro. Observai este mundo. Tem beleza! Que beleza têm a terra, o mar, o ar, o céu, os astros! Todos esses seres não atemorizam a quem os considera? Sua beleza não brilha tanto que quase nada de mais belo se possa encontrar? E aqui na terra vivem, no meio desta beleza, desta formosura quase inefável, aqui vivem contigo também os vermezinhos e os ratos, e todos os répteis; estes animalzinhos vivem contigo no meio desta beleza. Qual não será a beleza daquele reino, onde contigo não viverão senão os anjos? No entanto, não basta isso para se exprimir o seu esplendor magnífico. Foi possível exprimir o esplendor da beleza de qualquer espécie que vive neste mundo, ou que brota da terra ou que refulge no céu; mas o “magnífico esplendor de teu reino” refere-se a alguma coisa que ainda não vemos, em que acreditamos sem ter visto, que desejamos por termos acreditado, por cujo desejo tudo suportamos. Existe, portanto, um esplendor magnífico. Seja amado antes de ser visto, a fim de o segurarmos quando o virmos. | |
§ 16 | 13 “Teu reino”. A que reino me refiro? “Teu reino se estende a todos os séculos”. Efetivamente, também os reinos deste mundo têm sua beleza. Mas não existe ali aquele esplendor magnífico do reino de todos os séculos. “E teu império a toda geração e geração”. Trata-se daquela repetição que significa ou toda geração, ou aquela geração que virá após a presente geração. | |
§ 17 | “Fiel é o Senhor em todas as suas promessas, e santo em todas as suas obras. Fiel é o Senhor em todas as suas promessas”. Pois, o que prometeu e não deu? “Fiel é o Senhor em todas as suas promessas”. Existem algumas coisas que prometeu e ainda não deu; mas acredite-se nele, tendo em vista o que já deu. “Fiel é o Senhor em todas as suas promessas”. Poderíamos acreditar somente em suas palavras. Mas não quis que confiássemos apenas no que dizia; quis obrigar-se por sua Escritura. Seria como se dissesses a alguém a quem prometesses algo: Não acredi-tais em mim; escrevo para ti. Na verdade, uma vez que uma geração vai, e outra geração vem, e assim transcorrem estes séculos, enquanto os mortais dão lugar aos que são seus sucessores, devia permanecer a Escritura de Deus, e certo documento de Deus, que pudessem ler todos os que passassem e retivessem a garantia de sua promessa. E quantas coisas são as que ele cumpriu contidas neste documento? Os homens duvidam, não querem confiar nele a respeito da ressurreição dos mortos e do século futuro, as únicas coisas que ainda faltam ser cumpridas. Quando, se ele acertar as contas com os infiéis, eles se envergonharão? Se Deus te disser: Tens o meu título; prometi o juízo, a separação ente bons e maus, o reino eterno aos fiéis, e não queres acreditar? Lê no meu documento o que prometi, acerta comigo; certamente, ao menos computando o que paguei, podes acreditar que hei de pagar o que ainda devo. No próprio título tens a promessa de enviar meu Filho Único, que não poupei, mas o entreguei por todos vós (cf Rm 8,32); computa-o entre o que foi pago. Lê o documento; prometi que daria o penhor do Espírito Santo, por meio de meu Filho (cf Sl 1,8; 2,2-4); anota o crédito. Prometi ali o sangue e as coroas dos mártires gloriosíssimos; anota o pagamento. Advirta-te a Mas-sa, do pagamento de meu débito1. Mas, também a fim de ser dada esta glória aos mártires, prometida no documento, onde se acha escrito: “Por tua causa somos expostos à morte todo dia” (Sl 43,22), para que isto acontecesse: “As nações se agitaram e os povos tramaram em vão. Os reis da terra se sublevaram e os príncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo” (Sl 2,1.2). Os príncipes unidos conspiraram contra os cristãos. Por quê? Acaso não prometi no documento, e cumpri na realidade, que seus reis teriam a fé? Toma conhecimento de como prometi: “Adorá-lo-ão todos os reis da terra, todas as nações o servirão” (Sl 71,11). Ingrato, lês o débito, verificas o paga-mento e não acreditas na promessa? Lê outra coisa em meu documento: “Por que as nações se agitaram, e amaldiçoam-me os inimigos”, isto é, a Cristo: “Quando há de morrer e de extinguir-se o seu nome”? (Sl 40,6). Uma vez que eles fizeram tudo isso e assim falaram, lê o que prometi, o que me obriguei a solver: “O Senhor será terrível contra eles! Quando ele suprimir todos os deuses da terra, prostrar-se-ão diante dele, cada um em seu lugar” (Sl 2,11). De fato, já prevaleceu; exterminou todos os deuses dos gentios da terra. Acaso não faz isso, não paga assim? Diante dos olhos de todos apresenta o pagamento de seu débito. Certas coisas pagou no tempo de nossos maiores e nós o vimos; outras, em nossa época, que eles não viram; por todas as gerações cumpre o que está escrito. E o que resta? Não se confia nele, depois que pagou tudo isso? Que resta ainda? Eis que presto contas; paguei tanto; acaso por causa do pouco que restou tornei-me infiel? De forma alguma. Por quê? Porque “fiel é o Senhor em todas as suas promessas e santo em todas as suas obras”. | |
§ 18 | 14 “O Senhor confirma todos os que caem”. Mas quais são esses “todos que caem?” Absolutamente todos, mas que caem de certa maneira. Com efeito, muitos caem, afastando-se dele; muitos, porém, caem devido a seus pensamentos. Se tinham maus pensamentos, caem por causa deles, mas o “Senhor confirma todos os que caem”. Aqueles que perdem algo neste mundo e são santos, de certo modo são privados das honrarias neste mundo: de ricos tornam-se pobres, de honrados se fazem abjetos, contudo são santos de Deus; parecem estar caídos. Mas “o Senhor confirma todos os que caem”. Os justos caem sete vezes e se levantam, mas os ímpios “tropeçam na desgraça” (Pr 24,16). Quando sucedem males aos ímpios, eles tropeçam; quando acontecem aos justos: “O Senhor confirma todos os que caem”. Jó decaíra da glória da luz primitiva das coisas caducas que o cercara temporariamente. Decaíra a glória de sua casa. Queres saber quanto decaíra? Estava sentado num monturo; e o Senhor confirmou o que caíra. A que ponto confirmou? A tal ponto que, ferido em todo o corpo com graves chagas, respondeu à mulher, que o tentava e que foi a única que o diabo lhe deixou por auxiliar: “Falas como uma insensata: se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males”? (Jó 2,7-10). Como o Senhor confirmara aquele que caíra! “O Senhor confirma todos os que caem. O justo ainda que caia não ficará prostrado, porque o Senhor o ampara com a mão” (Sl 36,24). “E levanta os prostrados”, todos os que lhe pertencem. Pois, Deus resiste aos soberbos (cf Tg 4,6). | |
§ 19 | 15 “Os olhos de todos em ti esperam e a seu tempo lhes dás o alimento”. Na verdade, dás, como a um doente se dá alimento quando oportuno, quando deve receber; e dás o que deve. De fato, por vezes é desejado por ele, e o Senhor não dá; ele sabe qual a hora de dar àquele que ele cura. Por que falo assim, irmãos? Para não suceder que, se por acaso, alguém pedir a Deus uma coisa justa, ele não dê, pois se é pedido algo de injusto, ele atende para castigo; mas digo se pedir uma coisa justa, se não foi ouvido, não fique de ânimo abatido, desanimado; seus olhos esperem o alimento, que ele dá a seu tempo. Quando não dá, não o dá para que seu dom não prejudique. O Apóstolo também não pedia coisa injusta quando rogava que lhe fosse tirado o estímulo da carne, o anjo de Satanás que o esbofeteava; rogou e não recebeu, porque ainda era tempo de exercitar sua fraqueza e não oportunidade para o alimento. Foi-lhe respondido: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2 Cor 12,7-9). O diabo pediu permissão para tentar Jó, e recebeu (cf Jó 1,9-12; 2,4-6). Atenção, meus irmãos; trata-se de um grande mistério que deve ser ensinado, repetido, conservado na lembrança, jamais esquecido, por causa da abundância das tentações neste mundo. Que direi? Na verdade, devemos comparar Apóstolo e diabo? O Apóstolo roga e não recebe; o diabo pede e recebe. Mas o Apóstolo não recebeu por causa de sua perfeição, enquanto o diabo recebeu para sua condenação. Enfim, o próprio Jó recebeu a cura em tempo oportuno. Houve demora, contudo, para que ele fosse provado. Por muito tempo esteve sentado, coberto de feridas, e proferiu muitas palavras; rogava a Deus que o livrasse destes males e Deus não os tirava. Atendeu mais rapidamente ao diabo para tentá-lo, do que o próprio Jó para ser curado. Aprendei, portanto, a não murmurar contra Deus, e quando não sois ouvidos, não falhe entre vós a realização da palavra: “Todos os dias eu te bendirei”. O próprio Filho, o único, viera para sofrer, para pagar o que não devia, para morrer nas mãos dos pecadores e por seu sangue apagar o documento de nossa morte. Veio para isso; e no entanto, para te dar um exemplo de paciência, transfigurou o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso (cf Fl 3,21). Disse ele: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice” (Mt 26,39). E para cumprir a palavra: “Todos os dias eu te bendirei”, embora não recebesse o que parecia pedir, disse: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres. Os olhos de todos em ti esperam e a seu tempo lhes dás o alimento”. | |
§ 20 | 16 “Abres as mãos e enches de bênçãos a tudo o que tem vida.” Embora por vezes não dás, contudo dás em tempo oportuno. Diferes, mas não retiras, e isto a seu tempo. | |
§ 21 | 17 “Justo é o Senhor em todos os seus caminhos”. Quer fira, quer cure, ele é justo e nele não se encontra iniqüidade. Com efeito, todos os santos quando atribulados, primeiro louvavam sua justiça e depois pediam os seus benefícios. Primeiro diziam: É justo o que fazes. Assim rezou Daniel, assim os outros santos: São justos os teus juízos, sofremos merecidamente, com razão sofremos (cf Dn 3,27-31; 9,5-19). Não atribuíram a Deus injustiça, não lhe atribuiram iniqüidade e insipiência. Primeiro louvaram aquele que os castigava e assim sentiram que ele os alimentava: “Justo é o Senhor em todos os seus caminhos”. Ninguém o considere injusto, quando talvez sofra algum mal; mas louve a sua justiça e acuse sua própria injustiça: “Justo é o Senhor em todos os seus caminhos e santo em todas as suas obras”. | |
§ 22 | 18 “Perto está o Senhor de quantos o invocam”. E então como se explica: “Chamar-me-ão, e não escutarei”? (Pr 1,28). Ora, pondera o que segue: “De quantos o invocam com sinceridade”. Pois, muitos o invocam, mas não com sinceridade. Querem obter dele outra coisa; não o buscam. Por que amas a Deus? Porque me deu saúde. É claro, foi ele quem a deu; de nenhum outro vem a saúde senão dele. Porque me deu uma mulher rica, a mim que nada possuía, e que me serve. Isso também foi ele quem deu; falas a verdade. Deu-me filhos, muitos e bons, deu-me uma família, deu-me todos os bens. É por isso que o amas? Então nada mais procuras? Sê faminto; bate ainda à porta do pai de família; ele tem mais coisas para dar. És mendingo com tudo isso que recebeste e o desconheces. Ainda carregas uma carne maltrapilha e mortal; acaso já recebeste aquela veste da glória da imortalidade, e já nada pedes, estando saciado? “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). Por conseguinte, se Deus é bom, porque te concedeu estes bens, quanto mais feliz não serás quando ele te der a si mesmo? Desejaste tanta coisa dele; peço-te, deseja-o a ele mesmo. Estes bens, na verdade, não são mais suaves do que ele, nem lhe são comparáveis, de modo algum. Invoca a Deus com sinceridade quem antepõe o próprio Deus, de quem recebeu os bens que o alegram, a tudo que recebeu. Pois, como sabeis, se a tais homens for proposto: Se Deus quiser tirar-te todos esses bens que te alegram? Eles já não o amarão. Não há entre eles quem diga: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; conforme foi do agrado do Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Mas talvez diga aquele a quem Deus o tirou: Deus, que te fiz? Por que me tiraste e deste a eles? Dás aos iníquos e tiras dos teus? Acusas a Deus, como se fosse injusto, e te louvas como se fosses justo. Deves converter-te; acusa-te e louva-o. Então serás reto, quando Deus te agradar em todos os bens que ele te dá; e em todos os males que sofres, ele não deixa de te ser aprazível. Isto é que é invocar a Deus com sinceridade. Deus atende os que assim o invocam: “Perto está”, isto é, ainda não te deu o que queres, mas está presente. Como acontece com o médico que talvez prescreva para os olhos ou as vísceras algum remédio que queime visando a curar. Se o doente lhe rogar que o retire, o médico espera o momento adequado, não faz o que o doente pede; contudo, não se afasta dele. Está perto e não atende; e tanto menos atende, quanto perto está. Para curar, impôs o que impôs, e curando não faz o que lhe é pedido. Não te ouve segundo a vontade atual, para atender à futura saúde; e isto, na verdade, de acordo com tua vontade; pois, queres ficar curado, embora não queiras ser queimado. “Perto está o Senhor de quantos o invocam”. Mas, quais são esses “todos? De quantos o inovocam com sinceridade”. | |
§ 23 | 19 “Ele fará a vontade dos que o temem”. Fará, fará. Embora não faça no momento, fará contudo. Certamente, se temes a Deus, fazendo sua vontade, ele também de certo modo te serve, faz tua vontade: “Ouvirá seu clamor e os salvará”. Vês que o médico ouve para salvar. Quando? Escuta a palavra do Apóstolo: “Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que aguardamos” (Rm 8,24.25) a salvação, que Pedro declara “prestes a revelar-se no tempo do fim” (1Pd 1,5). | |
§ 24 | 20 “O Senhor guarda a todos os que o amam, e perderá todos os pecadores”. Vedes que aquele que tem tanta suavidade, tem igualmente a severidade. Salvará a todos os que esperam nele, todos os fiéis. Todos os que o temem, todos os que o invocam com sinceridade; “e perderá todos os pecadores”. Que “pecadores todos”, senão os que perseveram nos pecados, que ousam censurar a Deus, não a si, que disputam todos os dias contra Deus, que desesperados de obterem o perdão dos pecados, por desespero acumulam pecados? Ou que prometendo a si mesmos perversamente o perdão, devido a isso não se importam com os pecados e com a impiedade? Virá o tempo em que todos esses serão separados, e se formarão dois grupos, um à direita e outro à esquerda. Os justos receberão o reino eterno e eles irão para o fogo eterno (cf Mt 25,32.33.46): “E perderá todos os pecadores”. | |
§ 25 | 21 Uma vez que assim são as coisas, e ouvimos a bênção do Senhor, e escutamos acerca das obras do Senhor, das maravilhas do Senhor, da misericordia do Senhor, da severidade do Senhor, de sua providência sobre todas as suas obras, da confissão de todas as suas obras, notai como o salmista conclui o louvor: “Meus lábios hão de proferir os louvores do Senhor. Bendiga toda carne o seu nome santo pelos séculos, e pelos séculos dos séculos”. 1 Isto é, os mártires vulgarmente chamados de Massa Cândida. Cf. o título e o Com s/salmo 49,9.53. | |