SALMO 𝟭𝟜𝟛

Ó Senhor, ouve a minha oração, dá ouvidos às minhas súplicas!

Atende-me na tua fidelidade, e na tua retidão;

e não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 143


§ 143:1  Ơ Ó Senhor, ouve a minha oração, dá ouvidos às minhas súplicas! Atende-me na tua fidelidade, e na tua retidão;

§ 143:2  E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente.

§ 143:3  Pois o inimigo me perseguiu; abateu-me até o chão; fez-me habitar em lugares escuros, como aqueles que morreram há muito.

§ 143:4  Pelo que dentro de mim esmorece o meu espírito, e em mim está desolado o meu coração.

§ 143:5  Ł Lembro-me dos dias antigos; considero todos os teus feitos; medito na obra das tuas mãos.

§ 143:6  A ti estendo as minhas mãos; a minha alma, qual terra sedenta, tem sede de ti.

§ 143:7  Atende-me depressa, ó Senhor; o meu espírito desfalece; não escondas de mim o teu rosto, para que não me torne semelhante aos que descem à cova.

§ 143:8  Ƒ Faze-me ouvir da tua benignidade pela manhã, pois em ti confio; faze-me saber o caminho que devo seguir, porque a ti elevo a minha alma.

§ 143:9  Ł Livra-me, ó Senhor, dos meus inimigos; porque em ti é que eu me refugio.

§ 143:10  Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus; guie-me o teu bom Espírito por terreno plano.

§ 143:11  Vivifica-me, ó Senhor, por amor do teu nome; por amor da tua justiça, tira-me da tribulação.

§ 143:12  E por tua benignidade extermina os meus inimigos, e destrói todos os meus adversários, pois eu sou servo.


O SALMO 143



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 O título deste salmo é breve no número de palavras, mas pesado de mistérios.

De Davi. Contra Golias”.

Este combate se deu no tempo de nossos pais, conforme se recorda comigo V. Caridade, segundo consta da leitura das Sagradas Escrituras. Como um povo estrangeiro combatesse contra o povo de Deus, um só guerreiro provocou a um combate singular, Golias a Davi (cf 1Rs 17).

Nesta luta, a vontade de Deus se mostraria, com a vitória de uma parte. Mas, por que nos preocuparmos acerca da vitória, quando ponderamos qual o provocador e qual o provocado? A impiedade provocou a piedade, a soberba provocou a humildade, por fim, o diabo provocou a Cristo. Como admirar que o diabo seja vencido? Golias era de grande estatura; Davi pequeno, mas grande pela fé. O santo jovem Davi tomou as armas bélicas para avançar contra Golias. Mas não pôde usar estas armas devido à idade, e à pequena estatura, conforme dissemos. Rejeitou as armas que o oneravam, e não o ajudavam; tomou cinco pedras do rio, e colocou-as na funda de pastor. Armado assim corporalmente, mas espiritualmente armado com o nome de Deus, avançou e venceu. Isto aconteceu a Davi; mas perscrutemos o mistério. Havíamos proposto o título do salmo, breve no número das palavras, mas pesado de mistérios. Venha-nos à mente a sentença do Apóstolo:

Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo(1 Cor 10,11), para não parecermos procurar com insolência algo de escondido, numa passagem em que tudo pode ser explicado simplesmente, sem a profundidade do mistério. Temos, portanto, uma palavra autorizada que nos torna atentos para procurar, vigilantes para investigar, devotos para ouvir, fiéis para crer, infatigáveis para praticar. Em Davi encontra-se Cristo. Mas como costumais entender, tendo sido instruídos em sua escola, trata-se de Cristo, Cabeça e corpo. Não ouvis alguma coisa acerca de Cristo, como se não vos tocasse, a vós, membros de Cristo. Tendo posto esta base, vede a seqüência.



§ 2
Sabeis que aquele povo do Antigo Testamento foi onerado com muitos sacramentos visíves e materiais: a circuncisão, aquele sacerdócio complicado, o templo cheio de figuras, os múltiplos holocaustos e outras espécies de sacrifícios. Nosso Davi os aboliu, como que tirando as armas que o oneravam, sem ajudá-lo.

Se tivesse sido dada uma lei capaz de comunicar vida, então sim, realmente, a justiça viria da lei”.

Para que então a lei? Continua:

Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem (Gl 3,21.22). Afinal, que fez este Davi, isto é, Cristo Cabeça e corpo, no tempo da revelação do Novo Testamento, tempo de se insinuar e recomendar a graça de Deus? Tirou as armas, e tomou cinco pedras (cf 1Rs 17,39-40); tirou as armas, conforme dissemos, que eram muito pesadas; portanto, os mistérios da lei, aqueles sacramentos da lei, que não são impostos aos gentios, que não observamos. Estais lembrados de quantas coisas lemos da antiga lei que não observamos; contudo entendamos que foram estabelecidas e propostas com algum significado. Não devemos rejeitar a lei de Deus, mas uma vez que os sacramentos eram uma promessa, cumprida esta, não os celebramos. Pois, veio o objeto da promessa. Com efeito, a graça do Novo Testamento estava velada na lei; no evangelho se revela. Removemos o véu, porque sabemos o que velava. Conhecemos, porém, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, nossa Cabeça, nosso Salvador, que por nós foi crucificado; quando foi crucificado, o véu do templo se rasgou. Afinal, ele tirou as armas, enquanto figuravam o peso dos sacramentos da antiga lei; mas aceitou a mesma lei. Pois, as cinco pedras representam os cinco livros de Moisés. Apanhou, portanto, aquelas cinco pedras no rio. Sabeis o que é este rio. Passa o século mortal, e flui tudo o que vem ao mundo. As pedras, portanto, estavam no rio, como se estivessem naquele povo antigo; ali eram inúteis, ociosas, imprestáveis, rolavam nos rios. Que fez Davi, para que a lei fosse útil? Recebeu a graça. A lei sem a graça não pode ser cumprida:

O amor é a plenitude da lei(Rm 13,10).

E de onde veio esta caridade? Vê se não provém da graça. O amor de “Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado(Rm 5,5).

Como a graça faz cumprir a lei, ela é representada pelo leite. Este, na carne, é gratuito, porque a mãe não quer receber, mas empenha-se em dar. A mãe o dá gratuitamente e entristece-se se falta quem o aceite. Como, então, Davi mostrou que a lei sem a graça não pode agir, senão quando, querendo unir à graça aquelas cinco pedras, que figuravam a lei em cinco livros, colocou-as no alforje de pastor, onde costumava guardar leite? Assim armado, quer dizer, munido da graça, e por isso não presumindo de si mesmo, mas confiando em seu Senhor, avançou contra Golias soberbo, que se gabava e presumia de si. Tomou uma pedra, lançou-a, e feriu o inimigo na fronte; ele caiu, ferido naquela parte do corpo onde não tinha sinal de Cristo. Merece atenção também o seguinte: apanhou cinco pedras, mas jogou uma só. Os cinco livros são lidos, mas vence a unidade. Pois “a plenitude da lei”, como há pouco relebrávamos, é “o amor”; e diz o Apóstolo:

Suportando-vos uns aos outros com amor, procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz(Ef 4,2.3).

Em seguida, estando Golias ferido e derrubado, Davi tirou-lhe a espada e com ela cortou-lhe a cabeça. Isto fez nosso Davi: expulsou o diabo do que era seu. Quando acreditam os grandes que o diabo tinha em suas mãos e com os quais ele trucidava certas almas, aqueles voltam suas línguas contra o diabo; e assim a cabeça de Golias é cortada com sua própria espada. Comentamos o mistério do título, de acordo com a brevidade do tempo; vejamos agora o conteúdo do próprio salmo.



§ 3
Bendito o Senhor, meu Deus, que adestra minhas mãos para a luta, meus dedos para a guerra”.

É a nossa voz, se somos o corpo de Cristo. Bendigamos o Senhor nosso Deus, que adestra nossas mãos para a luta, nossos dedos para a guerra. Parece repetição da mesma sentença. Nossas mãos para a luta e nossos dedos para a guerra, teriam o mesmo sentido. Ou existe diferença entre mãos e dedos? Na verdade, as mãos agem por meio dos dedos; por isso, não é absurdo considerar que dedos aí substituem a palavra: mãos. Todavia, nos dedos reconhecemos a divisão das operações, mas com a raiz da unidade. Vê a graça; diz o Apóstolo:

A um o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o dom de falar em línguas; a outro a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos. Mas, isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz(1 Cor 12,8-11).

A um”, isto, “a outro”, aquilo: são as divisões das operações.

Isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza”: é a raiz da unidade. Com esses dedos, portanto, combate o corpo de Cristo, avançando para a luta, avançando para a batalha.



§ 4
Talvez seja longo demais relembrar as espécies de combates e guerras, e seja mais fácil entrar neles do que explicá-los. Temos apenas uma guerra mencionada pelo Apóstolo:

O nosso combate não é contra a carne e o sangue”, isto é, contra homens que vos ocasinam sofrimentos; não é contra eles que lutais, e sim “contra os Principados e Potestades, contra os Dominadores deste mundo”.

E para não entenderes que se trata do mundo que consta de céu e terra, mostra o que quer dizer:

Destas trevas(Ef 6,12).

Não do mundo feito por ele, pois:

O mundo foi feito por meio dele”, porém o mundo que não o conheceu:

Mas o mundo não o conheceu(Jo 1,10).

Essas trevas não são naturais, mas voluntárias. Pois, a alma por si mesma não ilumina; canta ela humilde e verazmente:

Senhor, farás brilhar a minha lâmpada. Iluminarás meu Deus as minhas trevas(Sl 17,29), e:

Pois em ti está a fonte da vida e na tua luz contemplamos a luz(Sl 35,10).

Não em nossa luz, mas “na tua luz”.

Também nossos olhos se chamam luz (lumina); contudo, se faltar a luz extrínseca, mesmo que os olhos sejam sadios e estejam abertos, permanecerão nas trevas. Por isso, fazemos guerra contra os dominadores destas trevas, os dominadores dos infiéis, o diabo e seus anjos, senhores da espada com que luta o diabo contra os fiéis. Mas como se tirou a espada de Golias prostrado, para que sua cabeça fosse cortada com sua própria espada (cf 1Rs 17,51), assim quando os infiéis passam a crer, aplica-se-lhes a palavra:

Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor(Ef 5,8).

Lutaste, ó espada, pela mão de Golias; agora na mão de Cristo, corta a cabeça de Golias.



§ 5
Este é um combate; outro, porém tem cada qual em si mesmo. Há pouco foi lido o trecho sobre esta guerra na epístola do Apóstolo:

A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne; de sorte que não fazeis o que quereis(Gl 5,17).

É uma guerra intensa, e tanto mais molesta quanto mais interna. Nesta guerra, para que alguém seja vencedor, deverá continuamente superar aqueles inimigos invisíveis. O diabo ou seus anjos não tentam senão o que em ti for dominado pelo que é carnal. Pois, como vencemos aqueles inimigos invisíveis, a não ser porque sentimos nossos movimentos carnais interiores? Quando os combatemos, ferimos também a eles. Com o amor do dinheiro a avareza domina; se a avareza te domina, o diabo do lado de fora propõe-te um lucro com fraude. Muitas vezes, de fato, não consegues lucro, se não cometeres fraude. Por isso, ele de fora propõe à avareza que não venceste interiormente, que não domaste, que não sujeitaste; propõe como um mau presidente dos jogos ao atleta a fraude e o lucro, a obra e o prê-mio: Faze isto, e retira o prêmio. Tu, porém, se calcas a avareza, se ela interiormente não te domina, e sentindo-a a vences (porque ao diabo que te arma insídias não vês), se domaste a avareza, percebes outro a propor-te a obra e a recompensa. Que te propôs? A fraude e o lucro. Que te propõe o Senhor? A inocência e a coroa. Um e outro te di-zem: Faze, e obterás. Logo tu, lutador interiormente, se não tiveres sido vencido pela avareza, mas fores vencedor, atendes a Cristo, vences o diabo. Tens discernimento sobre um e outro e dizes: Aqui vejo a obra e o prêmio, ali a isca e o laço. Percebes em ti o que te pertence. Com efei-to, o pecado te dividiu contra ti mesmo. Arrastas em ti a propagação e a origem da morte; tens o que combater em ti mesmo, tens o que expugnar. Mas tens também a quem invocar, para que te ajude na luta, e te coroe após a vitória; aquele que te fez quando não existias.



§ 6
Como, perguntas, hei de vencer? Eis que o próprio Apóstolo te propõe um combate dificílimo, e se não entendo, mostra quão laborioso ou talvez mesmo insuperável é. Diz ele:

Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne, de sorte que não fazeis o que quereis(Gl 5,17).

Como me ordenas que vença, se ele afirma:

De sorte que não fazeis o que quereis?” Perguntas: Como? Presta atenção à graça do alforje de pastor, coloca uma pedra tirada do rio no receptáculo de leite. Eis o que te digo, ou antes o que te diz a própria verdade. De fato, não fazes o que queres, pois a carne tem aspirações contrárias ao teu espírito. Se nesta luta presumires de ti mesmo, deves ser admoestado, a fim de não ouvires inutilmente:

Exultai em Deus, nosso protetor(Sl 80,2).

Se por ti mesmo realizasses tudo, não te seria necessário um protetor. De outro lado, se por tua vontade nada fizesses, não seria chamado teu auxíliador: serve de auxílio quem auxilia a alguém em sua ação. Enfim, tendo dito:

A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne, de sorte que não fazeis o que quereis”, e tendo colocado ante teus olhos a ti mesmo, como alguém que em si é deficiente, logo te envia a quem pode te ajudar:

Mas se vos deixais guiar pelo Espírito, não estais debaixo da lei”.

Quem está debaixo da lei, não cumpre a lei, mas é coagido por ela, como Davi se sentia sob o peso das armas. Portanto, se és guiado pelo Espírito, vê quem te ajudará para cumprires o que queres. É teu amparo, teu protetor, tua esperança que adestra tuas mãos para a luta, teus dedos para a guerra.

Ora, as obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, luxúria, feitiçaria, rixas, inimizades, bebedeiras, comedorias, e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni: os que tais coisas praticam, não herdarão o reino de Deus(Gl 5,18-21).

Não se trata dos que combatem tais vícios, mas dos que os praticam. Uma coisa é combater, outra vencer; e outra ainda ter paz e repouso. Prestai atenção a alguns exemplos que vos mostro. Se é sugerido um lucro, isto agrada; inclui uma fraude, mas é grande lucro; agrada, contudo não consentes; vê a luta; ainda alguém persuade, insta, delibera; portanto o lutador periclita. Vimos a luta; vejamos o restante. Ele despreza a justiça para cometer a fraude: foi vencido. Desprezou o lucro, para servir a justiça: venceu. Nesses três casos, tenho pena do vencido, receio pelo que luta, alegria pelo que vence. Mas, mesmo o vencedor, por acaso agiu de tal modo que não deu atenção ao dinheiro, ou nada despertou nele de atração, embora superável, desprezível, apesar de não ter consentido, mas nem ao menos se dignou combater? Todavia, inclui-se certo incentivo de deleite. Este incentivo e aquele inimigo, já não atacam, nem reinam; existe, contudo, o incentivo e como que mora na carne mortal, embora não haverá no futuro. Será arrastado na vitória, mas depois; agora, contudo:

O corpo está morto, pelo pecado”; por conseguinte o pecado está no mesmo corpo, embora não reine:

Mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós(Rm 8,10ss).

Lá já não haverá o que combata, ou incite; tudo estará em paz. Pois, não é uma natureza contrária que combate outra natureza; é sim como numa casa marido e mulher. Se discordam entre si, é uma luta molesta e perigosa; se o marido é vencido e a mulher domina, é uma paz pervertida; se porém, a mulher se sujeita ao marido que domina, é paz correta; não é, contudo algo proveniente de outra natureza, porque a mulher foi tirada do homem. É tua carne, tua cônjuge, tua serva. Seja o que for que empreendas, é preciso que a sujeites, e se lutas, que lhe seja útil a luta. Convém que o inferior se submeta ao superior, de tal forma que quem quiser lhe seja submisso o inferior, submeta-se a quem lhe é superior. Reconhece qual a ordem, procura a paz. Tu obedeças a Deus, e a carne a ti. Que há de mais justo? De mais belo? Tu obedeças ao maior, e o menor a ti; serve aquele que te fez para que te sirva aquele que foi feito por tua causa. A ordem que conhecemos e recomendamos não é esta: A carne a ti e tu a Deus; e sim: tu a Deus, e a carne a ti. Mas, se tu desprezas a Deus, jamais conseguirás que a carne te obedeça. Se não obedeces ao Senhor, serás atormentado pelo escravo. Acaso, se não obedeceres primeiro a Deus, para que em seguida a carne te obedeça, poderás proferir as seguintes palavras:

Bendito o Senhor, meu Deus, que adestra minhas mãos para a luta, meus dedos para a guerra?” Queres combater sem perícia, serás vencido e condenado. Em primeiro lugar, portanto, que te submetas a Deus; em seguida, com seu ensino e auxílio combaterás, e dirás:

Que adestra minhas mãos para a luta, meus dedos para a guerra”.



§ 7
E uma vez que estás combatendo, e combatendo corres perigo, dize as palavras seguintes, enquanto perdura o perigo:

Minha misericórdia”.

Não serei vencido. Que significa:

Minha misericórdia?” Ofereces-me a misericórdia, foste misericordioso para comigo? Ou: Deste-me a capacidade de ser misericordioso, também eu? Nada vence melhor o inimigo de que sermos misericordiosos. Ele prepara, de fato, calúnias para apresentar no juízo, mas não pode acusar-nos de coisas falsas, porque não tem a quem acusar-nos. Se o juízo fosse perante os homens, poderia enganá-los mentindo, e acumular contra nós acusações falsas; mas como é perante tal juiz que nossa questão com ele é julgada, este não pode enganá-lo; por isso empenha-se em nos seduzir ao pecado, para ter objeções verdadeiras. E quando por acaso a fragilidade humana sucumbe por causa de algumas de suas fraudes, entregue-se a humilde confissão, exerça-se em obras de misericórdia e piedade. Tudo será apagado, quando de coração sincero e com inteira confiança dizemos àquele que nos vê:

Perdoa-nos como nós perdoamos(Mt 6,12).

Profere-o de todo coração, com toda confiaça, e segurança:

Perdoa-nos, como nós perdoamos”; ou não perdoes, se não perdoamos. Mesmo que não peças: Não perdoes, se não perdoamos, ele efetivamente não perdoa, se não perdoamos. Ele não promete falsamente, de sorte que sejas um pecador impune. Queres que te perdoe? Perdoa. Existe também outro fruto da misericórdia: Queres que eu dê? Dá. Num mesmo lugar do evangelho se encontra:

Perdoai, e vos será perdoado. Dai, e vos será dado(Lc 6,37.38).

Diz o Senhor: Tenho algo contra ti e tu tens algo contra outro; perdoa e eu perdôo. Tu me pedes alguma coisa, e o próximo, por sua vez, te pede algo; dá e eu dou. E que perdoa? Que dá? Não é a caridade? E de onde vem a caridade, senão do Espírito Santo que nos foi dado? (cf Rm 5,5).

Se, portanto, vencemos o inimigo com as obras de misericórdia, e não podemos praticá-las a não ser que tenhamos a caridade, e não haveria em nós caridade alguma se não a recebêssemos do Espírito Santo, ele adestra nossas mãos para a luta, nossos dedos para a guerra; por isso dizemos-lhe com razão:

Minha misericórdia”, pois dele provém que somos misericordiosos.

O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia(Tg 2.13).



§ 8
Julgas que são insignificantes as obras de misericórdia? Convém falar alguma coisa a respeito disso. Notai primeiro esta sentença da Escritura que acabo de mencionar:

O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia”.

Será julgado sem misericórdia aquele que não praticou a misericórdia antes do juízo. E então? Qual a conseqüência? “Mas a misericórdia triunfa do juízo(Tg 2,13).

Que significa isto, irmãos:

A misericórdia triunfa do juízo?” A misericórdia supera o juízo; onde se encontrar uma obra de misericórdia, embora haja algo talvez a ser punido no juízo, a misericórdia, como água, extingue o fogo do pecado.

A misericórdia triunfa do juízo”.

E então? Deus seria injusto quando socorre a tais pecadores, quando os liberta e perdoa? De forma alguma. Nisto também é justo. Nele a misericórdia não afasta a justiça, nem a justiça retira a misericórdia. Vê, pois, se não é justo: Perdoa e eu perdôo; dá e eu dou. Vê se não é justo:

Com a medida com que medis sereis medidos(Mt 7,2).

Quanto à expressão:

Com a medida”, não se julgue que se trata da mesma espécie de medida; mas mede-se do mesmo modo: Perdoa, e perdôo. Tens por medida dar o perdão; encontrarás em mim por medida recebê-lo; em ti está a medida de dar o que tens; encontrarás em mim a medida de receber o que não tens.



§ 9
Minha misericórdia, meu refúgio, meu baluarte, meu libertador”.

Muito trabalho tem este lutador, contendo a carne que tem aspirações contrárias ao espírito. Segura o que tens. Virá plenamente o que queres, quando a morte for absorvida na vitória (cf 1Cor 15,54), quando este corpo mortal ressuscitado for transferido para a convivência angelical e voar revestido de qualidades celestes. Diz o Apóstolo:

então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor(1 Ts 4,16-18).

Lá a morte será absorvida na vitória, e dir-se-á:

Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão(1 Cor 15,55).

Não restará, nem na alma, nem no corpo, qualquer rebeldia contra o amor de Deus. Plena vitória, plena paz. A nós, durante o combate, nos é dito:

Vinde, filhos, ouvi-me. Eu vos ensinarei o temor do Senhor”.

Estais em combate, lutais numa contenda; contudo, desejais certo repouso.

Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?” Quem não responderá: Eu? No céu será a vida, os dias bons, quando nada terá aspirações contrárias ao espírito. Lá não se diz: Luta; e sim: Alegra-te. Mas quem é que quer ver estes dias? Certamente todos dizem: Eu. Escuta o que segue. Vejo que labutas, vejo que te achas num combate, em perigo. Escuta o que segue. O Senhor adestra tuas mãos para a luta, teus dedos para a guerra.

Preserva tua língua do mal e os teus lábios das palavras enganosas. Aparta-te do mal e faze o bem”.

Como poderás fazer o bem, se não te apartares do mal? Como desejar que vistas o pobre, quando ainda o espolias? Como queres que dês, quando ainda roubas? “Aparta-te do mal e faze o bem”.

Que o pobre não chore primeiro sob teu poder, para depois alegrar-se por tua causa.

Aparta-te do mal e faze o bem”.

Qual a recompensa? Pois agora lutas.

Procura a paz e segue-a(Sl 33,12-15).

Aprende a dizer:

Minha misericórdia, meu refúgio, meu baluarte, meu libertador, meu protetor. Baluarte” para que não caia; “libertador”, para que não fique prostrado; “protetor”, para que não seja ferido.

Meu protetor, em quem esperei”.

Nele esperei em tudo isso, em todo meu labor, em todos os meus combates, em todas as minhas dificuldades.

E que a mim submeteu os povos”.

Eis que conosco fala nossa Cabeça.



§ 10
3 “Senhor, que é o homem, para te manifestares a ele?” Ele é tudo o que é porque te manifestaste a ele.

Que é o homem, para te manifestares a ele? Ou o filho do homem para o apreciares?” Tu o estimas, dás-lhes tanta importância, tanto valor; tu pões tudo em ordem. Sabes sob quem o colocas, e acima de quem. Estimar é avaliar o valor de uma coisa. Quanto estimas o homem, pois o Filho Único derramou por ele seu sangue? “Que é o homem, para te manifestares a ele?” A quem te dás a conhecer? “Que é o filho do homem para o apreciares?” Se lhe dás tanto valor, tanta estima, mostras que é algo de precioso. Pois, Deus não estima o homem do mesmo modo que um homem estima a outro; quando este encontra um escravo à venda, dá um preço mais elevado por um cavalo a para um homem. Vê quanto Deus te estima, de sorte que poder dizer:

Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” E quanto te estimou aquele que “não poupou o seu próprio Filho e o entregou por nós? Como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele”? (Rm 8,31-32).

Quem deu tal ração ao combatente, o que não reserva ao vencedor? “Eu sou o pão vivo, disse ele, descido do céu(Jo 6,41).

Esta a ração do combatente, trazida dos celeiros do Senhor, de onde se alimentam os anjos, porque “o homem comeu o pão dos anjos(Sl 77,25).

Depois do combate e desta refeição, que nos reserva? Que dará aos vencedores, senão o que diz o salmo:

Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei. Habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida, para contemplar as delícias do Senhor. E ele me proteja como a seu templo(Sl 26,4).

Que é o homem para te manifestares ele? Ou o filho do homem para o apreciares?



§ 11
4 “Comparável à vaidade é o homem”.

E no entanto, a ele te manifestaste e o estimas.

Comparável à vaidade é o homem”.

A que vaidade? Dos tempos passageiros e transitórios. Chama-se vaidade em comparação com a verdade que sempre permanece e nunca desvanece. Com efeito, a criação tem também seu lugar. Pois, como está escrito, “o Senhor encheu a terra de seus bens(Eclo 16,30).

Por que:

seus?” Bens que lhe são adequados. Mas todos esses bens terrenos, voláteis, transitórios, se comparados àquela verdade, da qual foi dito:

Eu sou aquele que é(Ex 3,14); tudo o que passa chama-se vaidade. Desvanece, pois, com o tempo, como a fumaça no ar. E posso dizer mais que o apóstolo Tiago, querendo reduzir os homens soberbos à humildade? Diz ele: Que é a vossa vida? “Com efeito, não passais de um vapor que se vê por alguns instantes e depois logo se desfaz(Tg 4,14).

Portanto, “comparável à vaidade é o homem”.

Pecando “é comparável à vaidade é o homem”.

Pecando “é comparável à vaidade”.

Com efeito, ao ser criado, foi feito semelhante à verdade; mas como pecou, recebeu o que merecia, e “se tornou comparável à vaidade. Por causa da iniqüidade castigaste o homem”, diz outro salmo, “e fizeste consumir-se sua alma qual aranha”.

Daí deduz-se:

Comparável à vaidade é o homem”.

Naquele salmo, se diz:

Eis que reduziste os meus dias à velhice(Sl 38,12.6), e aqui, que diz o salmista? “Seus dias são sombra que passa”.

Esteja atento o homem nos dias de sombra, a fim de fazer alguma coisa digna da luz por que almeja; e se está na sombra da noite, procure o dia. Para o homem consciente de que são vãos os seus dias, estes são dias de tribulação. Quer o mundo nos prejudique com algum fato incômodo ou molesto, quer nos sorria pela prosperidade, tudo é temível e lastimável, visto que é uma tentação a vida humana sobre a terra (cf Jó 7,1).

Daí dizer o salmista:

Todo dia acabrunhado de tristeza(Sl 37,7).

Precisamos de alívio, e tudo o que Deus agora nos oferece, quando oferece prosperidade, não consiste em alegrias dos bem-aventurados, mas trata-se de consolo dos infelizes. Por isso, faça o homem algo que seja digno da luz almejada, nestes dias de sombra, e busque a Deus à noite, conforme foi escrito:

No dia de minha tribulação procurei a Deus, de noite levantei as mãos para ele e não fiquei decepcionado(Sl 76,3).

Que é o mencionado dia de tribulação senão o mesmo que noite? “De noite, levantei as mãos para ele”.

Ainda estamos na noite, vigilantes sob a luz das profecias. Alguma coisa foi prometida que ainda é esperada; mas que diz o apóstolo Pedro? “Temos, também, por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações(2Pd 1,19).

Lá nosso prêmio será o próprio dia.

Desde a manhã ouvirás a minha voz. Desde a manhã estarei de pé diante de ti e verei(Sl 5,4.5).

Age, portanto, enquanto é noite, com tuas mãos; isto é, procura a Deus, com boas obras, antes que venha o dia que te alegrará, e não o que te entristecerá. Vê, pois, a segurança com que agirás, porque não serás abandonado por aquele a quem procuras:

Procurei a Deus, de noite levantei as mãos para ele(Sl 76,3).

Assim, teu Pai que vê o que está oculto, te recompensará (cf Mt 6,4); por isso :

para ele”.

Interiormente tem a misericórdia, a caridade; não faças coisa alguma no intuito de agradar aos homens.

As mãos”, as minha obras: na sombra, nesta vida, que ele vê, e onde não procuro agradar aos homens. Qual a conseqüência? “E não fiquei decepcionado. Comparável à vaidade é o homem, seus dias são sombra que passa”, e no entanto, tu te manifestaste a ele e o apreciaste.



§ 12
5.7 “Inclina, Senhor, os teus céus e desce. Toca os montes e eles fumegarão. Faze coruscar o raio e dispersa-os. Desfere as tuas flechas e enche-os de temor. Estende do alto a tua mão, tira-me. Salva- me das muitas águas”.

O corpo de Cristo, Davi humilde, cheio de graça, confiante em Deus, combatente neste mundo, invoca o auxílio de Deus:

Inclina, Senhor, os teus céus e desce”.

Que céus inclinados são estes? Os apóstolos humilhados. Pois, estes são “os céus que narram a glória de Deus”; e destes céus que narram a glória de Deus logo acrescenta o salmista:

Não são linguagem, nem discursos, sons imperceptíveis. Seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras(Sl 18,2.4.5).

Então, estes céus emitiam sons por toda a terra, faziam milagres pois o Senhor através deles fazia coruscar e trovejar, por milagres e preceitos; por isso, foram considerados deuses que tivessem descido do céu para junto dos homens. Pois, alguns pagãos julgando assim, até quiseram oferecer-lhes sacrifícios. Então, eles vendo que queriam prestar-lhes honra indébita, cheios de pavor e horror, e corrigindo aqueles que erravam desta maneira, a fim de demonstrarem a comoção de sua alma, rasgaram as vestes e perguntaram:

Que estais fazendo? Nós também somos homens, passíveis da mesma sorte que vós(At 14,13).

Com estas palavras começaram a exaltar a excelência de nosso Senhor Jesus Cristo, humilhando-se a fim de se entregarem a Deus, porque os céus se haviam inclinado para que Deus descesse.

Inclina, Senhor, os teus céus e desce”.

Assim aconteceu.

Toca os montes e fumegarão”, montes soberbos, orgulhos terrenos, túmidas grandezas.

Toca”, diz o salmista, “toca estes montes”.

Dá a estes montes parte de tua graça; “e fumegarão”, porque confessarão seus pecados. A fumaça dos que confessam seus pecados fará correr lágrimas dos soberbos que foram humilhados.

Toca os montes e fumegarão”.

Enquanto não forem tocados, considerar-se-ão grandes homens. Haverão de dizer:

Tu, Senhor, és grande(Sl 47,2); dirão também os montes:

E tu somente és o Altíssimo em toda a terra(Sl 82,19).



§ 13
Mas existem alguns que conspiram, unidos conspiram contra o Senhor, e o seu Cristo (Sl 2,2; At 4,26,27).

Congregaram-se, conspiram.

Faze coruscar o raio e dispersa-os”.

Aumenta teus milagres, e sua conspiração, se dissolverá.

Faze coruscar os raios e dispersa-os”.

Assustados com os milagres, não ousarão empreender coisa alguma contra ti, e hesitarão apavorados diante dos mesmos milagres. Quem é este que pode tanto? Quem é este que se exalta de tal forma, cujo nome tem tanto poder? Ao dizerem: Quem é este? haverão de crer. Fizeste brilhar os milagres, e dispersaste sua concórdia malvada.

Desfere as tuas flechas e enche-os de temor. Aguçadas setas de poderosos(Sl 119,4); teus preceitos, teus ditos firam os corações deles.

Desfere as tuas flechas e enche-os de temor”.

Sejam feridos os sadios para seu mal, a fim de serem curados com feridas oportunas; e já na Igreja, no corpo de Cristo, digam, digam com a Igreja:

Estou ferida de amor(Ct 2,5, sg LXX).

Desfere as tuas flechas e enche-os de temor”.



§ 14
Estende do alto a tua mão”.

E depois? E no final? Como vence o corpo de Cristo? Com o auxílio celeste. Pois, virá, “o Senhor, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, do céu(1 Ts 4,16); o próprio Salvador de seu corpo, as mãos de Deus.

Estende do alto a tua mão, tira-me. Salva-me das muitas águas”.

Que significa:

das muitas águas?” Do meio de muitos povos. Que povos? Estrangeiros, infiéis, que atacam de fora, e armam insídias de dentro.

Salva-me das muitas águas”, com as quais me exercitavas onde me revolvias para que saísse do meio de imundícies. É a água de contradição.

Tira-me. Salva-me das muitas águas”.



§ 15
7.8 Ouçamos alguma coisa acerca destas muitas águas, das quais Deus libertará o corpo de seu Cristo, das quais libertará Deus a humildade de Davi. Que significa:

das muitas águas?” Que disseste para que não se entenda de modo diferente as águas? Por que falaste de muitas águas? Escuta o que disse.

Da mão dos filhos dos estranhos”.

Ouvi, irmãos, no meio de quem estamos vivendo, e dos quais devemos desejar libertar-nos.

Cuja boca falou o que é vão”.

Hoje, todos vós, se não vos tivésseis reunido para estes divinos espetáculos da palavra de Deus, e se estivésseis misturados a eles nesta mesma hora, quantas coisas vãs teríeis ouvido! “Cuja boca falou o que é vão”.

Enquanto eles proferem o que é vão, vos ouviriam quando proferísseis a verdade? “Cuja boca falou o que é vão e cuja direita é direita iníqua”.



§ 16
9 Que farás tu no meio deles com o alforje de pastor contendo cinco pedras? Dize-me outra coisa. A mesma lei, que simbolizaste em cinco pedras, tem também outro sentido.

Quero cantar-te, ó Deus, um cântico novo”.

Cântico novo é o cântico da graça; o cântico novo é peculiar ao homem novo; o cântico novo pertence ao Novo Testamento.

Quero cantar-te um cântico novo”.

Mas não julgues que a graça se afasta da lei; ao contrário, pela graça mais se cumpre a lei:

Celebrar-te no saltério de dez cordas. No saltério de dez cordas”, na lei de dez mandamentos. Com ela salmodiar-te-ei, com ela alegrar-me-ei, com ela cantar-te-ei o cântico novo, porque o amor é a plenitude da lei (cf Rm 13,10).

De resto, os que não possuem a caridade, podem carregar o saltério, mas não podem tocá-lo. Eu, portanto, diz o salmista, no meio das águas da contradição, quero cantar-te um cântico novo; e o estrépido das águas da contradição jamais farão calar o meu saltério:

No saltério de dez cordas” celebrar-te-ei.



§ 17
10 “Tu, que dás a vitória aos reis”.

Os montes já fumegam.

Que redimiste teu servo Davi”.

Reconheceis quem é Davi. Sede Davi. Como ele redimiu Davi, seu servo? Como redimiu Cristo? Como redimiu o corpo de Cristo? “Da espada maligna livra-me”.

Da espada, não basta. Acrescentou:

maligna”.

Sem dúvida existe um gládio benigno. Qual é este gládio benigno? O referido pelo Senhor:

Não vim trazer paz à terra, mas espada(Mt 10,34).

Ele haveria de separar os fiéis dos infiéis, os filhos dos pais, e cortar as demais relações, cortando com a espada o que estava apodrecido, e curando os membros de Cristo. Existe, portanto, um gládio benigno de dois gumes, afiado nas duas partes da lâmina, o Antigo e o novo Testamento, que narram fatos passados e prometem eventos futuros. Este é, portanto, o gládio benigno; maligno é aquele de que usam os que falam a vaidade, pois é benigno o de Deus, pelo qual ele fala a verdade. Por isso:

Da espada maligna livra-me. Armas e flechas são os dentes dos filhos dos homens. Espada afiada, a sua língua(Sl 56,5).

Livra-me deste gládio maligno. Aqui o samista fala em espada, mas acima denomina-o muitas águas:

Salva-me das muitas águas”.

O que o salmista chama de águas, eu chamo de espada maligna. Enfim, tendo dito: muitas águas, continua:

Da mão dos filhos dos estranhos, cuja boca falou o que é vão”.

E para que saibais que se refere à mesma coisa, tendo dito aqui:

Livra-me da espada maligna”, continua:

Livra-me da mão dos filhos dos estranhos, cuja boca falou o que é vão”, de maneira semelhante ao que se acha ali. E o versículo seguinte:

Cuja direi-ta é direita iníqua”, também o dissera mais acima, ao mencionar as muitas águas. Para que não penses que as muitas águas são boas, explicou o sentido dizendo: espada maligna. Agora, então, exponha a locução:

cuja boca falou o que é vão e cuja direita é direita iníqua”.

Que coisa vã falou sua boca? E como sua “direita é direita iníqua?



§ 18
12.14 “Seus filhos são sarmentos novos, fortes desde a sua juventude”.

Quer narrar sua felicidade. Atenção, filhos da luz, filhos da paz; atenção, filhos da Igreja, membros de Cristo; notai a quem o salmista denomina estrangeiros, denomina filhos dos estranhos, chama de águas da contradição, de espada maligna. Atenção, eu vos peço: porque entre eles estais em perigo, no meio destas línguas, lutais contra os desejos da carne; no meio destas línguas em poder do diabo, que ele usa para atacar, tendes luta, “não contra a carne e o sangue, mas contra os Principados e contra as Potestades, contra os Domina-dores deste mundo, destas trevas(Ef 6,12), isto é, dos iníquos. Atenção, para discernirdes; atenção, a fim de não julgardes ser verdadeira felicidade a que preferem os homens fracos ou malignos. Eis, irmãos, certamente o salmista denota os filhos dos estranhos, com certeza, as muitas águas, a espada maligna. Vede as coisas vãs que eles falam e acautelai-vos para não falardes tais coisas, cuidado para não imitardes os que as proferem.

Cuja boca falou o que é vão e cuja direita é direita iníqua”.

Que coisa vã proferiu sua boca e qual a direita que é iníqua? Escuta:

Seus filhos são sarmentos novos, fortes desde a sua juventude. Suas filhas estão cobertas de ornatos, à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transbordantes de toda espécie de frutos. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Seus bois são cevados. Não há brechas nas sebes, nem ruína, nem clamor em suas praças”.

Então, isso não é felicidade? Interrogo os filhos do reino dos céus, interrogo a raça da ressurreição que é para sempre, interrogo o corpo de Cristo, os membros de Cristo, templo de Deus: Então não é felicidade ter filhos incólumes, filhas cobertas de ornatos, celeiros atulhados, rebanho numeroso, nenhuma ruína, já não falo das paredes, mas nem das sebes, nenhum tumulto e clamor nas praças, mas tranqüilidade, paz, abundância, fartura nas casas e nas cidades? Não é isto uma felicidade? Ou os justos devem fugir disto? Ou não encontras casa alguma de um justo repleta de todas as coisas, cheia desta felicidade? A casa de Abraão não tinha fartura de ouro, prata, filhos, família, rebanhos? E o santo patriarca Jacó, fugindo de seu irmão Esaú para a Mesopotâmia, não enriqueceu trabalhando, e não voltou, dando graças ao Senhor seu Deus, porque atravessara o rio com um bastão, e regressou com tamanha abundância de rebanhos e filhos (cf Gn 12,5; 13,2-6; 31,18; 32,7-10)? Que dizemos? Isto não é felicidade? Seja, concedo, mas esquerda. Que quer dizer: esquerda? Temporal, mortal, corporal. Não digo que fujas dela, mas que não a consideres direita. Estes não eram malignos, vãos, porque tinham tal fartura de bens, mas porque aquilo que de-viam considerar esquerda, punham à direita. Por isso, sua “direita é direita iníqua; e sua boca falou o que é vão”, porque colocaram à direita o que deviam considerar como esquerda. Que deveriam ter como direita? Deus, a eternidade, os anos de Deus que não terminaram, e dos quais diz o salmo:

E teus anos não terminam(Sl 101,28).

Ali está a direita, ali deve-se concentrar nosso desejo. Usemos da esquerda no tempo, desejemos a direita na eternidade. Se fluírem as riquezas, a elas não prendais o coração (Sl 61,11).

Se prenderdes o coração às grandes riquezas, tomais a esquerda por direita. Corrigi-vos, reconhecei a sabedoria que vos abraça; a ela foi dito:

Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça(Ct 2,6).

Vede os santos cânticos de amor; vede o Cântico dos cânticos, nas núpcias celestes de Cristo e da Igreja. Que diz a esposa do esposo? “Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça”.

A esquerda sob a cabeça, a direita sobre a cabeça. Quem abraça põe o braço sobre a cabeça a esquerda sob a cabeça.

A esquerda”, diz o Cântico, “sob a cabeça”.

Pois, não me aban-done nas necessidades temporais. Contudo, a esquerda esteja sob a cabeça; não se sobreponha à cabeça, mas estará sob a cabeça, para que sua direita me abrace, prometendo-me a vida eterna. Assim, pois, a esquerda fica sob a cabeça, se a direita está por cima; e se cumprirá o que foi escrito a Timóteo:

Pois contém a promessa da vida presente e futura(1 Tm 4,8).

Diz o Apóstolo:

Contém a promessa da vida presente e futura”.

Que acontece no presente? “A esquerda sob a cabeça”.

E no futuro? “Com a direita me abraça”.

Procurais o necessário durante o tempo? “Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus”, isto é, a direita; “e todas estas coisas vos serão acrescentadas(Mt 6,33).

Tendes aqui riquezas e glória e no século futuro a vida eterna. Com a esquerda sustentarei vossa fraqueza, com a direita coroarei a vossa perfeição. Por acaso os apóstolos, abandonando todos os seus bens, ou distribuindo tudo o que tinham aos pobres, ficaram desprovidos de riquezas neste mundo? E como se realiza aquela promessa acerca da esquerda: Receberá neste mundo sete vezes mais? (cf Mt 19,29; Mc 10,28.31; Lc 18,28-30).

Promete uma multiplicação. E de fato, que falta ao homem de Deus? Se alguém é infiel, possui uma casa ou poucas; contudo, todas as riquezas do mundo são do fiel (cf Pr 17,6 sg LXX).

Vede sua esquerda sob a cabeça, repleta de bens: Receberá neste mundo sete vezes mais. Vede a destra a abraçá-lo:

E no século futuro a vida eterna(Mt 19,29).

Com razão diz outra passagem da Sabedoria:

Em sua direita longos anos; em sua esquerda: riqueza e honra(Pr 3,16).



§ 19
15 Donde, então, vêm estes homens que falam o que é vão? Por que sua boca falou o que é vão? Porque “sua di-reita é direita iníqua”.

Eu não os censuro porque seus filhos são sarmentos novos, fortes desde a sua juventude, nem porque suas filhas estão cobertas de ornatos, à semelhança de um templo, nem porque outros bens superabundam para eles e possuem a paz terrena. Mas por que os censuro? Porque “eles denominam feliz o povo que goza destes bens”.

Ó homens que falam o que é vão! “Feliz é o povo que goza destes bens”.

Perderam a noção da verdadeira direita; malignos, perversos, vestiram pelo avesso os benefícios de Deus. Ó malignos, grandiloqüentes, ó filhos de estranhos! “Eles denominam feliz o povo que goza destes bens”.

Tomaram por direita o que era esquerda.

Denominam feliz o povo que goza destes bens”.

E tu, Davi? E tu, corpo de Cristo? E vós, membros do Cristo? Vós, filhos dos estranhos, mas filhos de Deus? Uma vez que os que falam o que é vão, os filhos dos estranhos “denominam feliz o povo que goza destes bens”, vós, o que dizeis? “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus”.

Por conseguinte, possuí os bens da esquerda, mas à esquerda; desejai os da direita, para colocá-los à direita. Tiveram os bens da esquerda na conta de esquerda aqueles junto dos quais o Cristo teve fome e eles lhe deram de comer; teve sede e lhe deram de beber; foi hóspede e eles o receberam; esteve nu e eles o vestiram (cf Mt 25,35.36).

Eles retiraram tudo isto da esquerda, e transferiram-no para as obras da direita, a fim de serem colocados à direita. Portanto, os loquazes filhos dos estranhos “denominaram feliz o povo que goza destes bens”; quanto a vós, dizei conosco:

Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus”.

Voltando-nos para o Senhor,1 etc. Amém. Demos sempre graças a Deus. 1 Começo de uma oração, habitualmente rezada, no fim dos Sermões.