ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 141 | ||
§ 141:1 | Ơ Ó Senhor, a ti clamo; dá-te pressa em me acudir! Dá ouvidos à minha voz, quando a ti clamo! | |
§ 141:2 | ᶊ Suba a minha oração, como incenso, diante de ti, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde! | |
§ 141:3 | Ꝓ Põe, ó Senhor, uma guarda à minha boca; vigia a porta dos meus lábios! | |
§ 141:4 | Ɲ Não inclines o meu coração para o mal, nem para se ocupar de coisas más, com aqueles que praticam a iniqüidade; e não coma eu das suas gulodices! | |
§ 141:5 | Ƒ Fira-me o justo, será isso uma benignidade; e repreenda-me, isso será como óleo sobre a minha cabeça; não o recuse a minha cabeça; mas continuarei a orar contra os feitos dos ímpios. | |
§ 141:6 | Ꝙ Quando os seus juízes forem arremessados duma penha abaixo, saberão que as palavras do Senhor são verdadeiras. | |
§ 141:7 | Ƈ Como quando alguém lavra e sulca a terra, são os nossos ossos espalhados à boca do Seol. | |
§ 141:8 | ɱ Mas os meus olhos te contemplam, ó Senhor, meu Senhor; em ti tenho buscado refúgio; não me deixes sem defesa! | |
§ 141:9 | ʛ Guarda-me do laço que me armaram, e das armadilhas dos que praticam a iniqüidade. | |
§ 141:10 | Ƈ Caiam os ímpios nas suas próprias redes, até que eu tenha escapado inteiramente. | |
O SALMO 141 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | Assim como vos compete celebrar com fervor a solenidade dos mártires, cabe-nos o dever de usar da palavra. Mas, relembro à V. Caridade quanto falamos ontem. Nem mesmo diante da avidez interior com que ouvistes o longo sermão, devemos esquecer a fraqueza comum aos homens; em primeiro lugar, porque convém honrar as palavras sublimes, conforme foi escrito: As palavras de uma sabedoria sublime pertencem ao Senhor Deus. Todavia, servimos de instrumentos para ministrá-las; e se os pratos são de barro, o pão é celeste. Afirma o Apóstolo: “Trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila, para que este incomparável poder seja de Deus” (2 Cor 4,7). Este tesouro é igualmente pão. Pois, se tesouro e pão não se identificassem, não estaria escrito a respeito do mesmo tesouro em outra passagem: “Tesouro precioso descansa na boca do sábio, mas o insensato o engole” (cf Pr 21,20). Por este motivo, admoestamos a V. Caridade a que, após ouvir e guardar na memória, novamente revolvendo e refletindo, rumineis estas verdades. É isto que quer dizer: “Tesouro precioso descansa na boca do sábio, mas o insensato o engole”. Em resumo: O sábio rumina, o estulto não rumina. Que significa isto numa linguagem clara e vernácula? O sábio reflete no que ouviu; o insensato, porém, deixa no esquecimento o que escutou. Não foi por outra razão que na lei se denomina puros os animais que ruminam, impuros os que não ruminam (cf Lv 11,3); pois toda criatura de Deus é pura. Para Deus criador é tão puro o porco quanto o cordeiro. Pois, tudo o que ele criou é muito bom (Gn 1,31) e o Apóstolo assegura: “Tudo o que Deus criou é bom” (1 Tm 4,4); e: “Para os puros, todas as coisas são puras” (Tt 1,15). Embora por natureza ambos sejam puros, quanto ao simbolismo o cor-deiro representa o que é puro, e o porco, algo de impuro; o cordeiro significa a inocência da sabedoria de quem rumina; o porco, a impureza da insensatez de quem se esquece. Devido à solenidade foi recitado um salmo curto; vejamos se é possível comentá-lo também brevemente. | |
§ 2 | 2 “Com minha voz clamei ao Senhor”. Bastaria: “Com a voz clamei ao Senhor”. Talvez não seja inútil o acréscimo: “minha”. Pois muitos clamam ao Senhor, não com sua voz, mas com a voz de seu corpo. Por isso, o homem interior, no qual Cristo começou a habitar pela fé (cf Ef 3,17), clame ao Senhor, não com o ruído dos lábios, mas com o afeto do coração. Com efeito, Deus não ouve do mesmo modo que o homem; o homem não te ouve se não clamares com a voz emitida pelos pulmões, as cordas vocais e a língua, ao passo que teu pensamento é um clamor diante do Senhor. “Com minha voz clamei ao Senhor. Com minha voz supliquei ao Senhor”. Tendo dito: “clamei”, explicou: “supliquei”. Pois, também clamam ao Senhor os que blasfemam. No primeiro versículo empregou: clamor, e no segundo explicou que espécie de clamor. Como se alguém insistisse: Com que espécie de clamor clamaste ao Senhor? Ele responde: “Supliquei ao Senhor”. Meu clamor é minha súplica; não é uma injúria, não é murmuração, não é blasfêmia. | |
§ 3 | 3 “Expando diante dele minha prece”. Que quer dizer: “Diante dele?” Em sua presença. Que significa: Em sua presença? Onde ele vê. E onde ele não vê? Pois, dizemos: Onde vê, como se ele não visse em alguma parte. Ora, os homens vêem e os animais vêem, no conjunto dos seres corporais; Deus, porém, vê mesmo onde o homem não vê. De fato, ninguém vê teu pensamento, Deus, contudo, vê. Lá, então, expande a tua prece, lá onde somente vê aquele que te remunera. Pois, o Senhor Jesus Cristo mandou orar em segredo; se conheces teu aposento e o purificas, ali rogas a Deus. Disse o Senhor: “E, quando orardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de fazer oração pondo-se em pé nas praças e nas encruzilhadas, a fim de serem vistos pelos homens. Mas, tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a Deus ocultamente e ele, que vê o que está oculto, te recompensará” (Mt 6,5.6). Se são os homens que recompensarão, expande tua prece diante deles; se é Deus quem há de recompensar, expande diante dele a tua prece, e fecha a porta, a fim de que não entre o tentador. O tentador não cessa de bater, para irromper lá dentro; se encontrar fechada a porta, passa adiante. Por isso o Apóstolo, visto que está em nosso poder fechar a porta, a porta do coração, não das paredes, porque no coração existe também um quarto, e está em nosso poder fechar a porta, diz o Apóstolo: “Nem deis lugar ao diabo” (Ef 4,27). Por conseguinte, se ele entrou e tomou posse, verifica se tu fechaste com negligência ou deixaste de fechar. | |
§ 4 | Que é, então, fechar a porta? Esta porta tem duas folhas: a da cupidez e a do temor. Ou ambicionas algo de terreno, e ele entra por aí; ou temes algo de terreno e ele entra por esta parte. Fecha, portanto, a porta do temor e da ambição contra o diabo, e abre para Cristo. Como as abres para Cristo? Desejando o reino dos céus e temendo o fogo da geena. O diabo entra pelas ambições mundanas, e Cristo entra pelo desejo da vida eterna; o diabo entra pelo temor das penas temporais, e Cristo entra pelo temor do fogo eterno. Eis que os mártires fecharam a porta contra o diabo e abriram-na para Cristo. Este mundo lhe prometeu muitos bens; eles se riram, fecharam a porta da cupidez contra o diabo. O mundo ameaçou-os com feras, fogo, cruz; não temeram, fecharam a folha do temor contra o diabo. Vejamos se as abriram para Cristo: “Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, também eu me declararei por ele diante de meu Pai que está nos céus” (Mt 10,32). Amaram, portanto, o reino dos céus, onde Cristo se declarará por eles. Como? “Vinde, benditos do meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Cristo confessará aqueles que estiverem à direita. Vejamos se também abriram para Cristo a folha do temor, que fecharam ao diabo. Numa só e mesma passagem, o Senhor admoesta a que se feche ao diabo e se abra para si. Diz ele: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28); exorta a bater a porta do temor na cara do diabo. Então, nada se deve temer? Não se deixa aberta a entrada do temor diante de Cristo, tendo-a fechada para o diabo? Logo acrescenta, como se quisesse dizer: “Tu o repeliste; então, abre-me. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena” (Mt 10,28). Por conseguinte, se acreditaste, e abriste a porta a Cristo, fecha-a ao diabo. Cristo está dentro e aí habita; expande diante dele a tua prece, sem procurar que ele te atenda de longe. Pois, a Sabedoria de Deus não está distante: “Alcança com vigor de um extremo ao outro e governa o universo suavemente” (Sb 8,1). Portanto, ele está em teu interior e diante dele expande tua prece; ali estão atentos seus ouvidos. “Não é do oriente, nem do ocidente, nem das montanhas desertas, pois o juiz é Deus” (Sl 74,7). Se, porém, ele é juiz, verifica qual a causa que defendes em teu coração. | |
§ 5 | 4 “Expando diante dele minha prece. Em sua presença exponho minha tribulação”. Há repetição nos dois primeiros versículos e nos seguintes. São duas sentenças, ambas repetidas. Uma é a seguinte: “Com minha voz clamei ao Senhor. Com minha voz supliquei ao Senhor”. A outra assim é enunciada: “Expando diante dele a minha prece. Em sua presença exponho minha tribulação”. “Diante dele” é o mesmo que: “em sua presença”. E: “expando minha prece” é igual a: “exponho minha tribulação”. E quando fazes isto? Fala o perseguido: “Quando meu espírito desfalecia”. Por que desfalece teu espírito, ó mártir atribulado? Para que não atribua minhas forças a mim mesmo e saiba que é outro quem opera em mim, dando-me vigor. Da seguinte forma o Senhor exortou os que ele queria que fossem mártires: “Quando vos entregarem aos juízes, não fiqueis preocupados em saber o que haveis de falar. Não sereis vós que estareis falando, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,19.20). Por isso, desfaleça teu espírito, e fale o Espírito de Deus. Com razão, o Senhor desejava que houvesse pobres em espírito: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). Bem-aventurados, portanto, os pobres em seu espírito, e ricos do Espírito de Deus. Pois, todo o homem que segue seu próprio espírito é soberbo. Submeta seu espírito a fim de captar o Espírito de Deus. Ia ao cume; descanse no vale. Se for ao cume, a água escapará para baixo. Se permanecer no vale, encher-se-á dela o seio, do qual foi dito: “De seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38). Portanto, “quando meu espírito desfalecia, em sua presença expus minha tribulação”. Tornei-me humilde, confessando-te quando fra-queja o meu espírito, porque estou repleto de teu Espírito. | |
§ 6 | Talvez tenham ouvido os outros que meu espírito desfalecera, e de mim nada esperando disseram: Nós o pegamos e o oprimimos. “Conheceste tu também as minhas sendas”. Eles me consideravam prostrado, mas tu vias que eu estava de pé. Aqueles que me perseguiam e me haviam aprisionado, pensavam que meus pés estavam amarrados; mas eles se emaranharam e caíram. Mas nós nos levantamos e ficamos firmes de pé (cf Sl 19,7). Meus olhos se voltam sempre para o Senhor, porque ele é quem há de tirar os meus pés do laço (Sl 24,15). Continuei andando. “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22). Eles me julgavam oprimido, mas eu andava. Onde andava? Pelas sendas que não viam aqueles que me consideravam preso; pelas sendas de tua justiça, sendas de teus preceitos. “Conheceste as minhas sendas”. O perseguidor não as conhecia, pois do contrário não me invejaria, mas andaria comigo por elas. Quais são estas sendas, senão aquelas vias mencionadas em outro lugar: “O Senhor conhece o caminho dos justos; o caminho dos ímpios leva à perdição”? (Sl 1,6). O salmista não afirmou: Deus não conhece o caminho dos ímpios, e sim: “conhece o caminho dos justos; o caminho dos ímpios leva à perdição”. Pois, aquilo que Deus não conhece, perece. Em muitas passagens da Escritura verificamos que o conhecimento de Deus conserva, o conhecimento de Deus guarda, e se ele desconhece, é condenação. Donde vem que aquele que tudo sabe, há de dizer no fim do mundo: “Nunca vos conheci”? (Mt 7,23). Nem por isso se regozijem os ímpios, dizendo: Não seremos punidos, porque o juiz não nos conhece. Já estão castigados, se o juiz não os conhece. As vias, das quais se disse que o Senhor não as conhece, são as mesmas que aqui têm o nome de sendas: “conheceste as minhas sendas”. Pois toda senda é via; mas nem toda via é senda. Por que são denominadas sendas aquelas vias, senão porque são estreitas? Caminho largo dos ímpios, caminho estreito dos justos. | |
§ 7 | Denominam-se via e vias, como se diz Igreja e igrejas, céu e céus. Pode-se dizer no singular e no plural. Por causa da unidade da Igreja diz-se que é uma Igreja: “Uma só é minha pomba, uma só a preferida pela mãe que a gerou” (Ct 6,8). Em vista dos agrupamentos fraternos por vários lugares, as Igrejas são muitas. Diz o Apóstolo: “As igrejas da Judéia que estão em Cristo ouviam dizer: quem outrora nos perseguia, agora evangeliza a fé que antes devastava, e por minha causa glorificavam a Deus” (Gl 1,22-24). Refere-se a igrejas e a uma só Igreja: “Não vos torneis ocasião de escândalo, nem para os judeus, nem para os gregos, nem para a Igreja de Deus” (1 Cor 10,32). Assim também há vias e via; sendas e senda, e por que senda? Como demos as razões de se falar em igrejas e Igreja, devemos dá-las também aqui. São denominadas sendas de Deus, porque os preceitos são muitos; mas estes preceitos que são muitos podem ser reduzidos a um só, porque o amor é a plenitude da lei (cf Rm 13,10); por isso estas vias de muitos preceitos se reduzem a uma só, e se chama uma, porque nossa via é a caridade. Vejamos se a caridade é uma via. Ouçamos o Apóstolo: “Passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (1 Cor 12,31). Que dizes, ó Apóstolo? “Um caminho que ultrapassa a todos?” Escuta qual é: “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria” (1 Cor 13,1-3). Por conseguinte, ele denomina a caridade: “caminho que ultrapassa a todos”. Este grande caminho, irmãos, é um grande prodígio. Certamente este caminho que a todos ultrapassa é o mais excelente; ultrapassa porque é excelso. Nada de mais excelso que o caminho da caridade, mas por ele só andam os humildes. E estes caminhos foram por ele denominados preceitos da caridade. “Conheceste as minhas sendas”. Sabes que o que sofro por ti, sofro por amor; sabes que a caridade em mim tudo suporta; sabes que se entrego meu corpo às chamas, tenho a caridade sem a qual nada é de proveito para o homem. | |
§ 8 | Mas, quem conhece esses caminhos do homem, meus irmãos, senão aquele ao qual foi dito: “Conheceste as minhas sendas?” Com efeito, todas as ações humanas estão diante dos olhos dos homens; mas é incerta a intenção com que são realizadas. E quantos são os maus que medindo os outros por si mesmos, conforme o que são, dizem que nós na Igreja procuramos honras, louvores, utilidades temporais? Quantos afirmam que vos falo para me aclamardes e elogiardes e que falo com esta finalidade e esta intenção? E como posso mostrar-lhes que não falo com tal intenção? Resta-me apenas dizer: “Conheceste as minhas sendas”. Como eles sabem o que nem vós sabeis? Como sabem o que eu mal conheço? De fato, nem a mim mesmo julgo; quem me julga é o Senhor (cf 1Cor 4,3.4). Não sei bem o que Pedro inconscientemente presumia de si, e como via o médico de forma diferente as forças dele. Por isso, com piedade e pureza deve-se clamar pelo Senhor, pois é um clamor genuíno: “conheceste minhas sendas”. Efetivamente, queres que ele te conduza por estas sendas? Sê manso, sê suave; não sejas cruel, soberbo, de cerviz ereta e agitado, “como o cavalo e o mulo, sem inteligência” (Sl 31,9). Se fores manso e sossegado, o Senhor sentar-se-á sobre ti e te conduzirá através de seus caminhos. Pois, ele dirigirá os mansos no juízo, e ensinará aos dóceis os seus caminhos (cf Sl 24,9). “Conheceste as minhas sendas”. | |
§ 9 | “No caminho que trilhava, esconderam-me um laço”. Este caminho trilhado é Cristo; ali esconderam um laço os que me perseguem por ser de Cristo, por causa do nome de Cristo. Ali, portanto, “esconderam-me um laço”. Que invejam em mim? Que perseguem? Pelo fato de ser cristão. Se me perseguem por ser cristão, “no caminho que trilhava, esconderam-me um laço”. Quanto puderam, no caminho que eu trilhava, eles esconderam-me um laço; na medida de sua ambição, de seus esforços, de seus desejos, quiseram armar-me um laço para apanhar-me no caminho. Mas, “o Senhor conhece o caminho dos justos” (Sl 1,6): “Conheceste as minhas sendas”. Efetivamente, eles quiseram colocar um tropeço contra ti, mas não lho permitiste, porque és o meu caminho. Com efeito, também os hereges em relação ao nome de Cristo querem esconder-nos um tropeço e se enganam. Aquilo que eles julgam pôr no caminho, põem do lado de fora, porque eles também estão fora do caminho; não podem armar um laço onde não estão. Mas isto, em relação a seus desejos, seus votos e opiniões, pois foi dito expressamente em outro lugar: “Perto do caminho puseram-me um tropeço” (Sl 139,6). A expressão: “no caminho”, refere-se a sua ambição e a seu desejo; quanto a outra: perto da senda, isto é, “perto do caminho”, refere-se à realidade. Com efeito, não põem na senda, no caminho, porque Cristo é o caminho; mas colocam perto do caminho. Cristo não permite que eles o coloquem no caminho para que tenhamos por onde passar; permite, contudo, que o coloquem perto do caminho, a fim de não nos desviarmos dele. O pagão pensa que coloca um tropeço no caminho quando me diz: Adoras a um Deus crucificado. Critica a cruz de Cristo, que ele não entende. Julga colocar em Cristo o que de fato coloca perto do caminho. Não me apartarei de Cristo, e não cairei no laço, fora do caminho. Que ele injurie a Cristo crucificado; e eu veja a cruz de Cristo na fronte dos reis. Sou salvo por aquela cruz que eles ridicularizam. Não há maior soberbo do que o doente que zomba de seu medicamento. Se não zombasse, ele o tomaria, e seria curado. A cruz é sinal de humildade. O pagão, por enorme soberba não reconhece a cruz que curaria o tumor de sua alma. Todavia, se eu conheço, ando pelo caminho. A tal ponto não me envergonho da cruz que não coloco a cruz de Cristo num esconderijo, mas a trago na fronte. Recebemos muitos sinais sagrados de várias maneiras: alguns, como sabeis, recebem na boca, outros por todo o corpo. Uma vez que a fronte manifesta o rubor, estabeleceu que tivéssemos esse sinal de ignomínia, de certo modo, e que é objeto de escárnio da parte dos pagãos, lá onde aparece nosso pudor, aquele que disse: “Aquele que me renegar diante dos homens, também o renegarei diante de meu Pai, que está nos céu” (Lc 9,26;10,33). Ouves alguém injuriar assim um insolente: Não tem vergonha na face. Que quer dizer: Não tem vergonha na face? É insolente. Não tenha eu a fronte desnuda; cubra-a a cruz de meu Senhor. Portanto: “No caminho que trilhava, esconderam-me um laço”, quanto puderam, pois o colocaram perto do caminho; eu, porém, estarei seguro, se não me afastar do caminho. “Saibas que caminhas entre laços” (Eclo 9,20), diz a Escritura. Que é: “entre laços?” No caminho de Cristo existem laços daqui e dali, laços à direita e laços à esquerda, laços à direita, a prosperidade neste mundo; laços à esquerda, a adversidade; laços à direita, as promessas; laços à esquerda, as ameaças. Caminhas entre laços; não te apartes do caminho. Nem a promessa te apanhe, nem a ameaça te derrube. “No caminho que trilhava, esconderam-me um laço”. | |
§ 10 | 5 “Olhava à direita e examinava”. Ele olhava à direita e via; quem olha para a esquerda, cega-se. Que significa considerar à direita? É olhar para onde se acham aqueles aos quais se dirá: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino”. Com efeito, existirão os da esquerda, aos quais se dirá: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,34.41). O salmista, portanto, num mundo enfurecido e ameaçador, durante as perseguições, enquanto de toda parte aumentavam as injúrias e o terror, desprezava as coisas presentes, contemplava as futuras, considerava a direita onde ele havia de estar. Meditava, ponderava, via, e tudo suportava. Os perseguidores não viam. Por isso, tendo dito: “Olhava à direita” e examinava, continua: “E não havia quem me conhecesse”. Ao tolerares tudo, quem sabe qual a tua intenção, se diriges o olhar para a direita, ou para a esquerda? Se toleras, procurando o louvor dos homens, consideraste a esquerda; se suportas, procurando as promessas de Deus, tiveste em conta a direita. Olhaste à di-reita, verás; olhaste à esquerda, ficarás cego. Mas ao olhares à direita, não haverá quem te conheça. Quem, então, te consola, senão o Senhor ao qual dizes: “Conheceste as minhas sendas? E não havia quem me conhecesse”. | |
§ 11 | “Faltou-me um meio de escapar”. Parece cercado de todos os lados: “Faltou-me um meio de escapar”. Insultem os perseguidores. O salmista foi oprimido, capturado, sitiado, vencido; faltou-lhe como escapar. Faltou um meio de escapar àquele que não foge. Quem, contudo, não foge, sofre tudo o que pode por Cristo, isto é, não foge pelo espírito. Pois, corporalmente é lícito fugir, é concedido, é permitido, segundo a expressão do Senhor: “Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra” (Mt 10,23). Mas, quem não foge pelo espírito, faltam-lhe meios de escapar. Interessa, contudo, saber qual o motivo por que não foge. Não foge porque está cercado, porque foi capturado, ou porque é forte? Meios de escapar faltam ao prisioneiro e ao forte. Qual, então, a fuga a evitar? Qual a fuga que nos escapa? O Senhor no evangelho trata de uma fuga. “O bom pastor dá sua vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, vê o lobo aproximar-se e foge”. Vendo o assaltante, por que foge? “Porque não se importa com as ovelhas” (Jo 10,11.13). Faltara-lhe o meio de escapar, quer o tomemos relativamente à Cabeça, e escutamos a voz do Cristo Senhor, que morreu por todos os homens; quer em relação a seus membros, nossos mártires, que igualmente padeceram em favor dos irmãos. Escuta como fala João: “Ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Mas, quando eles a dão, é Cristo quem a dá, pois quando eles sofrem perseguição, Cristo clama: “Por que me persegues”? (At 9,4). “Faltou-me um meio de escapar e não há quem cuide de minha vida”. Então, não há quem cuide de sua vida? Ele vê os homens enfurecidos, querendo sua morte e derramar seu sangue; como não há quem cuide de sua vida? Esta expressão tem dois sentidos: faltar um meio de escapar tem dois sentidos, porque tanto ao preso não há como fugir, quanto ao forte; assim também de dois modos se cuida da vida de um homem: ou da parte dos perseguidores, ou da parte dos amigos. Assim, portanto, trata-se dos perseguidores: “Não há quem cuide de minha vida”, isto é, certamente perseguem minha vida e não cuidam de minha vida. Se cuidassem, descobririam que ela adere a ti; e se não sabem cuidar dela, não sabem também imitar. Pois, para se saber que também os perseguidores procuram a vida do homem, diz-se em outra passagem: “confundam-se e envergonhem-se juntos os que procuram tirar-me a vida” (Sl 39,15). | |
§ 12 | 6 “Clamei por ti, Senhor; e eu disse: Tu és a minha esperança”. Quando suportava, atribulado, “disse: Tu és a minha esperança”. Minha esperança aqui; por isso suporto. “Minha porção”, porém, não aqui, e sim, “na terra dos vivos”. Deus dá a porção na terra dos vivos; mas não algo fora de si, alheio a si. Que dará àquele que o ama, senão a si mesmo? | |
§ 13 | 7 “Atende a minha oração, porque fui em extremo humilhado”. Humilhado pelos perseguidores, humilhado na confissão. Ele se humilha invisivelmente e é humilhado visivelmente pelos inimigos. Deus, porém, o eleva visível e invisivelmente. Invisivelmente já foram exaltados os mártires; visivelmente serão exaltados, quando este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade (cf 1Cor 15,53), na ressurreição dos mortos e for restaurado o corpo, o único ao qual os perseguidores puderam infligir tormentos. “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28). E o que pereceu? Aquilo que eles matam? Ao menos lhes é permitido matar e fazer perecer? Não perecerá. Escuta a promessa do próprio Senhor: Em verdade vos digo, “nem um só cabelo de vossa cabeça se perderá” (Lc 21,18). Por que ficas preocupado com os demais membros, se nem os cabelos se perderão? | |
§ 14 | “Livra-me dos perseguidores”. De quem pensas que ele reza para ser libertado? De homens que o perseguiam? São os homens que são nossos inimigos? Temos outros inimigos invisíveis, que nos perseguem de modo diferente. O homem persegue para matar o corpo; outro persegue para que a alma caia no laço. E isto através de seus instrumentos, porque dele foi dito: “O espírito que agora opera nos filhos da desobediência” (Ef 2,2), por seus instrumentos, isto é, os homens nos quais ele opera, lançando uma perseguição aos corpos, a fim de arruinar interiormente os corações. De fato, se o corpo cai, mas a alma fica firme, o laço rompe-se e nós somos libertados (cf Sl 123,7). Existem, portanto, outros inimigos, dos quais devemos pedir a Deus que nos livre, para que não nos seduzam, dobrando-nos pelas tribulações deste mundo, ou arrastando-nos aos prazeres. Quais são estes inimigos? Vejamos se algum servo do Senhor não os descreve claramente, algum soldado perfeito que lutou contra eles. Escuta o Apóstolo falar: “O vosso combate não é contra o sangue nem contra a carne”. Não devoteis ódio aos homens reputando-os inimigos e julgando que sua inimizade vos esmaga; estes homens que temeis são de carne e sangue. “O vosso combate não é contra o sangue nem contra a carne”. Assim se exprimiu, desprezando os mortais. E contra quais, então? “Contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo, destas trevas” (Ef 6,12). Tu te assustaste ao ouvires: “os Domi-nadores deste mundo”. Se são os dominadores deste mundo, terás de ir para fora do mundo, para te livrares deles? Terás de ir para fora do mundo, para não sofreres da parte deles? Não compreendas os termos: “mundo e domi-nadores destas trevas”, como sendo os dominadores do céu e da terra; pois estes são criaturas de Deus. Céu e terra denominam-se mundo, e também se chamam mundo os homens malvados. Por que estes também são mundo? Porque eles amam o mundo; e são trevas, porque são ímpios. Por esta razão, pelo fato de que muitos deste número se tornaram fiéis, que afirma o Apóstolo? “Outrora éreis treva, mas agora soi luz no Senhor” (Ef 5,8). Observai que dominador tivestes antes de vos tornardes luz, quando éreis trevas. Que dominador têm os iníquos, senão o diabo, assim como os pios e fiéis têm Cristo por chefe? Por isso, o Apóstolo chamou o diabo e seus anjos de “domina-dores deste mundo”, isto é, dominadores dos que amam o mundo, dominadores dos pecadores, isto é, “destas trevas”; temos a esses mesmos como inimigos, e devemos suplicar ao Senhor que nos livre deles. | |
§ 15 | Escuta que na Sagrada Escritura, no evangelho, num só lugar, claramente se distingue um mundo de outro mundo. Há o mundo que Deus fez; e o mundo que o diabo governa, isto é, os que amam o mundo. Quanto aos próprios homens, Deus os fez; mas não os fez que amassem o mundo. Pois amar o mundo é pecado e Deus não fez o pecado. Escuta, portanto, como eu começara a dizer que há mundo e mundo. Foi dito: “Ele estava no mundo” (Jo 1,10). De quem foi afirmado: “Ele estava no mundo”, senão da Sabedoria de Deus, que é Cristo Jesus? Dela se declarou o que citei há pouco: “Alcança com vigor de um extremo ao outro e governa o universo com suavidade” (Sb 8,1). “Por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Nada de impuro nela se introduz” (Sb 7,24.25). “Ele estava no mundo e o mundo foi feito por ele, mas o mundo não o conheceu” (Jo 1,10). Ouviste falar de dois mundos: “O mundo foi feito por ele”, e: “O mundo não o conheceu”. Não é o mundo que por Jesus foi feito que é regido por aqueles Principados e Potestades das trevas; mas é o mundo que não conheceu Jesus, isto é, dos que amam o mundo, os pecadores, os iníquos, os soberbos e infiéis. Por que os pecadores constituem este mundo? Porque amam o mundo, e amando-o, neles habitam; do mesmo modo se chama casa o edifício e os que nela moram. Boa casa, muitas vezes designa um bom edifício; e boa casa, porque são bons os que ali vivem. E: Acautela-te desta casa, porque é ruim, tem dois sentidos. É uma casa péssima, cuidado! Talvez pelo perigo de ruir, a fim de que não caia uma parte qualquer e te esmague. Diz-se também de outro modo: Cuidado com esta casa péssima, para não incorreres no perigo de cair no laço dos caçadores, para não sofreres, sendo pobre, a opressão de um rico, para não estares sujeito a uma fraude. Da mesma forma que existe casa e casa, há mundo e mundo. Qual o motivo porque também os justos, apesar de estarem também eles no mundo, não sejam chamados mundo? Porque afirma o Apóstolo: “Embora vivamos na carne, não militamos segundo a carne” (2 Cor 10,3). “Mas a nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20). O justo habita na terra pela carne, mas o coração está unido a Deus. Seria chamado mundo se ouvisse inutilmente: Corações ao alto; se, porém, ouve na verdade, habite nas alturas. Diz o Apóstolo: “Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Aqueles, cuja vida decorre aqui na terra, isto é, que ficam apegados à terra pelo desejo e pelo amor, aqui são esmagados, aqui ficam envolvidos, e com justeza são denominados habitantes do mundo; com razão são chamados mundo, aqueles que nele habitam, como na verdade se chama casa os seus habitantes. Então, há mundo e mundo: “O mundo que foi feito por ele”, e: “O mundo que não o conheceu”. Eis o mundo que foi feito pelo Senhor, eis o mundo que não conheceu o Senhor. Louva a criatura e ama o Criador; e não gostes de morar na construção, mas habita no construtor. | |
§ 16 | “Livra-me dos perseguidores, pois se tornaram mais fortes do que eu”. Quem disse: “se tornaram mais fortes do que eu?” É o corpo de Cristo que clama, é a voz da Igreja, clamam os membros de Cristo: Cresceu demais o número dos pecadores. “E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 24,12). “Livra-me dos perseguidores, pois se tornaram mais fortes do que eu”. | |
§ 17 | 8.1 “Tira da prisão a minha alma, para que eu confesse teu nome”. Nossos predecessores entenderam esta prisão de várias maneiras. Talvez seja o mesmo que se encontra no título: “gruta”. Com efeito, é o seguinte o título deste salmo: “Intelecto de Davi. Quando estava na gruta. Oração”. A gruta equivale aqui a cárcere. Propusemos dois conceitos a explicar; entendendo-se um, ambos estão explicados. Os méritos é que fazem a prisão. Pois, uma só habitação, para um é casa, para outro é cárcere. Existem aqueles que guardam os prisioneiros; embora estejam guardando em sua casa, os que são estritamente guardados estão no cárcere; acaso se dirá que os primeiros estão na prisão? Uma só é a habitação de uns e outros; para uns a liberdade faz dela uma casa; para outros, a servidão faz uma prisão. Alguns intérpretes, portanto, opinaram que gruta e prisão representam este mundo. E a Igreja pede que seja tirada da prisão, isto é, deste mundo, de debaixo do sol, onde tudo é vaidade. De fato, diz a Escritura: “Tudo é vaidade e presunção de espírito. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol”? (Ecl 1,2.3). Por isso, fora deste mundo, em não sei que repouso, Deus nos promete o que haveremos de ser; talvez seja a respeito deste lugar que clamamos: “Tira da prisão a minha alma”. Nossa alma pela fé e a esperança está em Cristo, conforme disse mais acima: “A vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Mas, nosso corpo se acha nesta prisão, neste mundo. Se o salmista dissesse: Sai da prisão, meu corpo, entenderíamos sem dúvida que prisão é o mundo. Talvez, contudo, por causa de alguns desejos terrenos, contra os quais lutamos e combatemos, porque: “Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão” (Rm 7,23), dizemos com exatidão: Tira da prisão a minha alma deste mundo, isto é, dos trabalhos e angústias deste mundo. Servem-me de prisão, não a carne que tu fizeste, mas a corrupção da carne, as angústias e as tentações. | |
§ 18 | Alguns, porém, interpretaram que esta prisão e esta gruta são o corpo: “Tira da prisão a minha alma”. Mas esta interpretação é um tanto duvidosa. Pois, que há de extraordinário em dizer: “Tira da prisão a minha alma”, se o sentido fosse: Tira do corpo a minha alma? As almas dos ladrões e criminosos não saem do corpo, para sofrerem castigos piores do que os da terra? E que há de especial em pedir: “Tira da prisão a minha alma”, se cedo ou tarde, há de sair efetivamente? Talvez diga um justo: Que morra logo; tira da prisão do corpo a minha alma. Se tem pressa demais, não tem caridade. Com efeito, deve desejar e almejar o que disse o Apóstolo: “O meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor”. Todavia, onde está a caridade? Por isso, ele prossegue: “Mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (Fl 1,23.24). Então, Deus a retire do corpo, quando ele quiser. Poder-se-ia chamar também o nosso corpo de cárcere, mas não que Deus o tenha feito qual uma prisão, e sim por ser sujeito à pena e à morte. Temos de ponderar duas coisas acerca de nosso corpo: enquanto criatura de Deus e enquanto merecedor de castigo. A sua forma, estado, andar, membros bem ordenados, disposições dos sentidos: ver, ouvir, cheirar, provar e tocar, todo esse conjunto e distinção do corpo só puderam ser criados por Deus que tudo fez, os seres celestes, terrestres, supremos e ínfimos, visíveis e invisíveis. E a parte penal que é nossa? A carne corruptível, sua constituição frágil, mortal, indigente; isto não existirá como prêmio. O corpo não cessará de ser, ao ressurgir. Mas, o que não haverá nele? A corrupção: pois o ser corruptível revestirá a incorruptibilidade (cf 1Cor 15,13). Então, se a carne é uma prisão para ti, não é o corpo que é tua prisão e sim a corrupção de teu corpo. Pois, Deus fez bom o teu corpo, porque ele é bom; mas infligiu a corruptibilidade, porque é juiz. O primeiro é benefício, o segundo, suplício. Por isso talvez tenha dito o salmista: “Tira da prisão a minha alma”. Tira da corrupção a minha alma. Se compreendermos assim, não é blasfêmia; tem sentido. É claro. | |
§ 19 | No final, irmãos, a meu ver: “Tira da prisão a minha alma” eqüivale a: tira da angústia. Para um homem alegre a prisão é ampla, e para o triste o prado é estreito. Por esta razão, suplica ser retirado da angústia. Apesar de ter amplidão em esperança, na realidade presente tem angústia. Nota as angústias do Apóstolo: “Não tive repouso de espírito, pois não encontrei Tito, meu irmão” (2 Cor 2,13). E noutro trecho: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem cai, sem que eu também me abrase”? (2 Cor 11,29). Quem, portanto se sentia fraco e se abrasava não estava em penas e prisão? Mas estas penas provenientes da caridade geram a coroa. Ora, ele diz ainda: “Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2 Tm 4,8). Por isso: “Tira da prisão a minha alma, para que eu confesse teu nome”. Já livre da corrupção, que tem para confessar? Ali não há mais pecados, mas existe o louvor. De fato, confissão tem duas interpretações: confissão de nossos pecados, e confissão de louvor a Deus. A confissão dos pecados é bem conhecida, e tão conhecida de todo o povo que, ao se ouvir o nome de confissão na leitura, quer seja de louvor, quer de pecados, logo se bate no peito. Por conseguinte, sabe-se o que é confissão dos pecados; procuremos saber o que é confissão de louvor. Onde a encontramos? Tens nas Escrituras: “Assim direis em seu louvor: Todas as obras do Senhor são magníficas” (Eclo 39,20.21). Trata-se, portanto, de confissão de louvor. Em outro lugar diz o próprio Senhor: “Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra”. Que confessava? Acaso pecados? Para Cristo, confessar era louvar. E ouve o louvor do Pai: “Porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Uma vez que, após as angústias da corrupção habitaremos na casa de Deus, toda a nossa vida será apenas louvor de Deus. Já vos expusemos freqüentemente que terminadas todas as penúrias, caem todas as ocupações necessárias; por isso, não teremos o que fazer lá.1 Não digo dia e noite, porque lá não há noite; mas os dias todos, porque será um só dia, não teremos o que fazer senão louvar aquele que amamos, porque então veremos igualmente. Agora anelamos por aquele que não vemos, e louvamos; então, vendo aquele que amamos, de que modo louvaremos? Será um louvor sem fim, porque sem fim é o amor. Uma vez, então, que o faremos lá, pedimos: “Tira da prisão a minha alma, para que eu confesse o teu nome. Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). Agora a prisão é um obstáculo, porque “um corpo corruptível pesa sobre a alma” (Sb 9,15). Não é o corpo que pesa sobre a alma (pois, então, teremos também um corpo) e sim “um corpo corruptível”. Conseqüentemente, o que faz a prisão não é o corpo, mas a corrupção. “Tira da prisão a minha alma, para que eu confesse teu nome”. Logo, a voz que vem em seguida, vem da Cabeça, nosso Senhor Jesus Cristo. E é tal qual a última palavra, de ontem. A última, ontem, se vos lembrais, foi a seguinte: “Estou sozinho, até que passe” (Sl 140,10). E aqui, qual é a última? “Os justos me esperarão até que venhas retribuir-me”. 1 Cf: Com. ao salmo 83 | |