SALMO 𝟭

Sei que o Senhor manterá a causa do aflito, e o direito do necessitado.

Decerto os justos louvarão o teu nome; os retos habitarão na tua presença.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 140


§ 140:1  Ł Livra-me, ó Senhor, dos homens maus; guarda-me dos homens violentos,

§ 140:2  os quais maquinam maldades no coração; estão sempre projetando guerras.

§ 140:3  Aguçaram as línguas como a serpente; peçonha de áspides está debaixo dos seus lábios.

§ 140:4  ʛ Guarda-me, ó Senhor, das mãos dos ímpios; preserva-me dos homens violentos, os quais planejaram transtornar os meus passos.

§ 140:5  Os soberbos armaram-me laços e cordas; estenderam uma rede à beira do caminho; puseram-me armadilhas.

§ 140:6  Eu disse, ao Senhor: Tu és o meu Deus; dá ouvidos, ó Senhor, à voz das minhas súplicas.

§ 140:7  Ơ Ó Senhor, meu Senhor, meu forte libertador, tu cobriste a minha cabeça no dia da batalha.

§ 140:8  Ɲ Não concedas, ó Senhor, aos ímpios os seus desejos; não deixes ir por diante o seu mau propósito.

§ 140:9  Ɲ Não levantem a cabeça os que me cercam; cubra-os a maldade dos seus lábios.

§ 140:10  Ƈ Caiam sobre eles brasas vivas; sejam lançados em covas profundas, para que não se tornem a levantar!

§ 140:11  Ɲ Não se estabeleça na terra o caluniador; o mal persiga o homem violento com golpe sobre golpe.

§ 140:12  Sei que o Senhor manterá a causa do aflito, e o direito do necessitado.

§ 140:13  Ɗ Decerto os justos louvarão o teu nome; os retos habitarão na tua presença.


O SALMO 140



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Ouvistes, irmãos, da boca do Apóstolo, ao ser lida há pouco sua carta, uma exortação e uma súplica. De fato, disse ele:

Perseverai na oração, vigilantes, orando por nós também ao mesmo tempo, para que Deus nos abra uma porta à palavra, para falarmos do mistério de Cristo, a fim de que eu dele fale como devo(Cl 4,2-4).

Dignai-vos considerar estas palavras como se fossem minhas também. Existem nas Sagradas Escrituras mistérios profundos, que foram escondidos para não serem subestimados; devem ser procurados para que nos exercitem; e a porta se abre para nutrirem. O salmo que acabamos de cantar é um tanto obscuro em muitas sentenças. Quando, com o auxílio do Senhor, começarmos a tirar para fora e expor o que foi dito, verificareis que já conhecíeis o que ouvis. Mas foram repetidas essas coisas de muitas formas para que a diversidade no modo de serem emitidas acabasse com o fastio, diante da verdade.



§ 2
Pois, que verdade haveis de ouvir e conhecer melhor, mais salutarmente, do que esta:

Amarás ao Senhor teu Deus de todo coração, de toda a alma e de todo o entendimento”, e:

Amarás o teu próximo como a ti mesmo?” Mas não julgueis que estes dois preceitos são pequenos:

Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas(Mt 22,37-40).

Que pode, portanto, a mente conceber de mais salutar, ou a boca proferir, ou qualquer página divina inscrever, que não tenha por fim a caridade? Mas não uma caridade de qualquer modo. Com efeito, os que vivem mal travam entre si sociedade relativamente a uma consciência condenável, e dizem que se amam entre si, que não querem se separar uns dos outros, que são concordes em suas conversas, sentem falta dos ausentes e se alegram com a mútua presença. Este amor é infernal; tem um visgo que os lança nas profundezas e não asas que os elevem para o céu. Que é então a caridade, segre-gada e distinta das outras que assim são chamadas? Caridade verdadeira é a dos cristãos, definida por Paulo, de tal modo de limites definidos que se distingue das outras espécies, pois é infinita devido à divindade. Diz Paulo:

A finalidade desta admoestação é a caridade(1 Tm 1,5).

Podia dizer tudo isso. Pois, em outros trechos onde falava a bom conhecedores, declarou:

A caridade é a plenitude da lei(Rm 13,10), e não explicou qual a caridade. Não o exprimiu, porque já dissera noutra passagem; não se pode, nem se deve falar tudo em todos os lugares. Portanto, aqui disse:

A caridade é a plenitude da lei”.

Talvez perguntarias: Que caridade? Qual caridade? Escuta outra passagem:

A finalidade desta admoestação é a caridade, que procede de um coração puro”.

Ponderai se entre ladrões existe caridade que procede de um coração puro. Coração puro no exercício da caridade consiste em amar o próximo segundo Deus; porque também a ti mesmo deves amar assim, para que seja exata a regra:

Amarás o teu próximo como a ti mesmo(Mt 22,39).

Se, pois, amas de maneira errada e sem fruto a ti mesmo, de que aproveita ao próximo se o amas assim? Como, porém, amas a ti mesmo de forma errada? Como o insinua a Escritura, que não adula, e te convence de que não amas a ti mesmo; ainda mais, convence-te de que te odeias:

Quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma(Sl 10,6).

Se, então, amas a iniqüidade, pensas que te amas a ti mesmo? Erras; e ao amares deste modo ao próximo, tu o levas à iniqüidade, e teu amor será uma cilada para o ser amado. Por conseguinte, “a caridade que procede de um coração puro” é segundo Deus, e procede também de “uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia(1 Tm 1,5).

Esta caridade definida pelo Apóstolo se desdobra em dois preceitos: amor a Deus e amor ao próximo. Em parte alguma da Escritura procures outra coisa; ninguém vos prescreve mandamento diferente. Tudo que há de obscuro na Escritura traz oculta a caridade; tudo o que é manifesto a revela. Se a caridade em parte alguma aparecesse claramente, não te nutriria; se nunca estivesse oculta, não te exercitaria. Esta caridade clama de um coração puro, do coração daqueles que proferem estas palavras, como aquele que reza agora. E quem é ele, logo direi: é Cristo.



§ 3
Mas, ides ouvir algumas palavras que não se aplicam a nosso Senhor Jesus Cristo, e quem não entender bem achará que foi temerário de minha parte afirmar que se trata de Cristo neste salmo. Como, pois, seria possível entender a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo, daquele cordeiro imaculado, daquele que foi o único em quem não se encontrou pecado, único a poder afirmar com toda verdade:

Pois o príncipe do mundo vem; contra mim, ele nada pode(Jo 14,30), isto é, não encontra culpa alguma, crime algum; único que restituía o que não tirou (cf Sl 68,5); único a ter derramado seu sangue inocente, Filho de Deus unigênito a assumir a carne, não para ser diminuído, mas para nos fazer crescer: como, então, seria possível atribuir-lhe com exatidão essas expressões:

Põe, Senhor, uma guarda a minha boca, e uma porta que feche meus lábios. Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas, buscando escusas aos pecados?” É bem evidente que o sentido é o seguinte: Guarda, Senhor, minha boca, fechando-a com a porta, os batentes de teu preceito, a fim de que meu coração não se incline às palavras malignas. Quais são estas palavras malignas? As que desculpam os pecados. Prefiro, diz o salmista, não escusar e sim acusar os meus pecados. Estas palavras não se adaptam a nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, que pecados cometeu, de sorte que devesse antes confessá-los que defendê-los? Estas palavras são nossas. Mas, certamente Cristo fala. Se são palavras nossas, como fala Cristo? E onde fica a caridade que mencionei? Não sabeis que ela nos fez um em Cristo? A caridade clama e em nosso favor; a caridade clama da parte de Cristo por nossa causa. Como a caridade clama a Cristo por nossa causa? “Então, todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo(Jl 3,5).

Como a caridade de Cristo clama por nós? “Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4).

Diz o Apóstolo:

Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros(1 Cor 12,27).

Se, portanto, ele é a Cabeça e nós somos o corpo, é um só homem que fala; quer seja a Cabeça que fale, quer sejam os membros, é um só Cristo que fala. E é próprio da Cabeça falar também em lugar dos membros. Observai o costume que temos. Em primeiro lugar, como somente a Cabeça pode falar em lugar de nossos membros. De fato, como nossa cabeça fala em lugar de todos os membros, notai-o. Num lugar apertado alguém te pisa o pé. Diz a cabeça: Tu me pisas. Uma mão te bate: Tu me bates, diz a cabeça. Ninguém tocou a cabeça, mas fala a unidade do conjunto de teu corpo. A língua que se acha na cabeça toma a defesa de todos os teus membros, e emprega a palavra em favor de todos. Assim, portanto, ouçamos Cristo a falar; mas cada qual reconheça aí sua voz, pois está incorporado a Cristo. Às vezes vai pronunciar palavras, nas quais nenhum de nós se reconhece, mas pertence apenas à Cabeça; esta, contudo, não se põe à parte de nossas palavras e se eleva às suas próprias, ou de suas palavras deixa de retornar às nossas. Pois, dele e da Igreja foi dito:

Eles se tornam uma só carne(Gn 2,24).

Daí se origina a palavra do evangelho sobre o mesmo assunto:

De modo que já não são dois, mas uma só carne(Mt 19,6).

Isso não é novidade; sempre ouvis estas coisas, mas ao se apresentar a ocasião é necessário relembrá-las, em primeiro lugar porque as próprias Escrituras que comentamos de tal forma são conexas, que muitas coisas se repetem em muitas passagens; e é útil. As preocupações mundanas são espinhos e sufocam as sementes. Por isso, importa que o Senhor relembre aquilo que o mundo leva a esquecer.



§ 4
1 “Senhor, clamei por ti, escuta-me”.

Estas palavras todos nós podemos proferir. Mas, não sou eu quem falo, é o Cristo total. Refere-se, contudo, mais ao corpo. Quando Cristo estava na terra, vivendo na carne, orou e em lugar do corpo suplicou ao Pai. E ao orar, de todo o corpo corriam gotas de sangue. Assim está escrito no evangelho:

Orava com mais insistência ainda”, e suou sangue (Lc 22,44).

Que simboliza esse suor sanguíneo por todo o corpo senão a paixão dos mártires de toda a Igreja? “Senhor, clamei por ti, escuta-me atende à voz de minha prece, quando por ti clamar”.

Pensavas que a questão dos clamores tinha terminado ao dizeres:

Clamei por ti”.

Clamaste, mas não fiques tranqüilo. Se a tribulação terminou, terminou o clamor; se, porém, permanece a tribulação da Igreja e do corpo de Cristo até o fim do mundo, não somente diga:

Clamei por ti, escuta-me, mas ainda:

Atende à voz de minha prece, quando por ti clamar”.



§ 5
2 “Qual incenso, suba a minha oração a tua presença e a elevação de minhas mãos seja um sacrifício vespertino”.

Todo cristão sabe que estas palavras costumam ser aplicadas à própria Cabeça. Ao declinar o dia, à tarde, o Senhor na cruz entregou o espírito que tomaria novamente; não o perdeu, contra sua vontade. Todavia, nisto também nos representava. Que parte dele esteve pendente da cruz, senão a natureza que de nós recebeu? E como seria possível que alguma vez Deus Pai abandonasse o Filho único, que efetivamente é com ele um só Deus? Entretanto cravando na cruz nossa fraqueza, onde “nosso velho homem”, na expressão do Apóstolo, “foi crucificado com ele(Rm 6,6), tomou a voz do próprio homem e clamou:

Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste”? (Sl 21,2; Mt 27,46).

Sacrifício vespertino, por conseguinte, é a paixão do Senhor, a cruz do Senhor, a oblação da vítima salutar, holocausto agradável a Deus. Aquele sacrifício vespertino transformou-se por ocasião na ressurreição, em dom matutino. Quanto à oração que se eleva com pureza do coração fiel, é como o incenso que sobe do santo altar. Não há odor mais agradável ao Senhor; assim o exalam todos os que crêem.



§ 6
3 “Nosso velho homem”, portanto, conforme as palavras do Apóstolo, “foi crucificado com ele, para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado(Rm 6,6).

Igualmente no salmo mencionado, tendo dito:

Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste”, imediatamente acrescentou o salmista:

As vozes de meus delitos”.

De que delitos, se consideras a Cabeça? Entretanto, esta palavra do salmo ele fez sua, conforme atestou na cruz, onde proferiu estas palavras, pronunciou o mesmo versículo. Não há margem para conjeturas humanas, nem acesso para qualquer negação de um cristão. Escuto do Senhor o mesmo que leio no salmo. Também no próprio salmo reconheço o que leio no evangelho:

Traspassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Estiveram a olhar-me e me examinaram. Dividiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sorte(Sl 21,17-19).

Tudo isso se realizou conforme fora predito. Como ouvimos, assim vimos (cf Sl 47,9).

Por conseguinte, se nosso Senhor Jesus Cristo, figurando-nos pelo amor a seu corpo, apesar de ser ele mesmo sem pecado, disse:

As vozes de meus delitos”, e proferiu-o representando seu corpo, qual de seus membros ousa afirmar que não tem pecado, a não ser que ouse aplicar-se uma falsa justiça, e acusar a Cristo de falsidade? Confessa, portanto, ó membro, aquilo que a Cabeça pronunciou em teu lugar. Para o confessarmos, para o fazermos, não nos justifiquemos diante daquele que é o único justo e que justifica o ímpio (cf Rm 4,5).

Logo acrescenta o salmista a voz do corpo:

Põe, Senhor uma guarda a minha boca e uma porta que feche meus lábios”.

Não disse: um claustro que feche e sim:

uma porta”.

A porta abre-se e fecha-se; portanto, se é porta, abre-se e fecha-se. Abre-se para a confissão dos pecados, fecha-se para escusá-los. Assim, pois, será uma porta que contenha, não arruíne.



§ 7
4 De que nos serve esta porta que fecha? Como ora Cristo em nome de seu corpo? “Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas. Que é:

meu coração?” O coração de minha Igreja, o coração de meu corpo. Notai aquelas palavras que encerram para nós uma norma:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(At 9,4) quando ninguém o tocava.

Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber etc.” E eles perguntarão:

Quan-do foi que te vimos com fome, com sede?” E o Senhor:

Toda vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,35.37.40).

Essas palavras não devem ser estranhas aos cristãos, especialmente por conterem normas, que tornam claras as outras; e não devem ser alteradas, ou logo corrigidas. Como, então, dirão os justos: Senhor, por que disseste:

Tive fome e me destes de comer? Quando foi que te vimos com fome? E ele há de responder: Toda vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”; assim também agora digamos a Cristo interiormente, em nosso homem interior, porque ele se digna habitar ali pela fé (cf Ef 3,17).

Pois, ele não está ausente, e temos a quem falar, uma vez que ele mesmo nos diz:

Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos(Mt 28,20).

Digamos, portanto, também nós, porque assumimos sua voz neste salmo; com efeito ninguém nega que se trata de sua voz nesse versículo:

E a elevação de minhas mãos seja um sacrifício vespertino”.

Conseqüentemente, deves proferir:

Põe, Senhor, uma guarda a minha boca e uma porta que feche meus lábios. Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas, buscando escusas aos pecados”.

Por que rezas deste modo, Senhor? Que pecados tens para te escusares? Ele responderá: Toda vez que um de meus membros assim reza, eu também rezo, da mesma forma que respondeu naquela passagem do evangelho:

Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes(Mt 25,40).



§ 8
Quando, porém, teu coração não se inclinar, ó membro de Cristo, quando teu coração não declinar “para palavras malignas, buscando escusas aos pecados, com os malfeitores” não te comunicarás “com os eleitos deles”.

Quais são os eleitos deles? Os que se justificam a si mesmos. Quais são os eleitos deles? Os que se consideram justos e desprezam os outros, como aquele fariseu que disse no templo:

Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens(Lc 18,11).

Quais são os eleitos deles? “Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca(Lc 7,38).

Reconheceis as palavras de outro fariseu, que convidara o Senhor a sua casa, quando aquela mulher que era pecadora na cidade veio e aproximou-se de seus pés? Aquela mulher impudica, antes descarada por sua fornicação, mas ainda mais sem pudor, para obter a salvação invadiu a casa alheia. Mas, não era alheio aquele que estava ali à mesa. Ela não era estranha a determinado conviva e sim serva do Senhor, e que o seguiu. Aproximou-se dos pés, porque queria seguir suas pegadas; lavou-os com as lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Quais são os pés de Cristo, senão aqueles pelos quais ele percorreu o mundo? “Quão graciosos são os pés dos mensageiros, dos que anunciam a paz, dos que proclamam boas novas!(Is 52,7; Rm 10,15).

Quantos receberam os pés do Senhor a fim de que, recebendo um justo na qualidade de justo, pudessem receber a recompensa própria de justo, e recebendo um profeta na qualidade de profeta, pudessem receber a recompensa própria de profeta! “E quem der, nem que seja um copo d’água fria, a um destes pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa(Mt 10,41.42).

Quem, portanto, recebe os pés do Senhor com tal atenção, o que dá senão o que tem de supérfluo em casa? É com razão que aquela mulher enxugava os pés do Senhor com os cabelos, porque estes são considerados um tanto supérfluos. As coisas supérfluas se tornarão para ti necessárias, se com elas obsequiares os pés do Senhor. Ora, ela queria curar-se, cônscia como estava de seu grande ferimento. Mas o ferimento era grave e o médico pouco hábil? Os fariseus não se deixavam tocar pelos impuros e evitavam todo contato com os pecadores; e se por necessidade os tocavam, faziam abluções. E quase toda hora purificavam não somente a si mesmos, mas seus utensílios, seus leitos, cálices, pratos, segundo menciona o Senhor no evangelho (cf Mt 23,25).

E como, portanto, o fariseu que conhecia aquela mulher, e se ela se lhe aproximasse dos pés, a repeliria, para não tornar-se impuro, possuía a santidade no corpo, não no coração; e visto que não a possuía no coração, era falsa a do corpo. Uma vez, então, que ele a teria repelido, e o Senhor assim não agiu, ele julgou que o Senhor desconhecia quem ela era, e disse a si mesmo:

Se esse homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca(Lc 7,39).

Não disse: repeliria, mas se soubesse quem é; seria conseqüente que, sabendo, a repelisse. Pelo fato de não ter repelido, suspeitou que ele não soubesse. O Senhor, contudo, tinha pousado os olhos naquela mulher, enquanto os ouvidos estavam atentos ao coração do fariseu. Por isso, percebendo seus pensamentos, propôs a parábola que conheceis.

Um credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta. Como não tivessem com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?” E ele respondeu, coagido pela verdade a proferir sentença contra si próprio:

Suponho que aquele ao qual mais perdoou”.

E voltando-se para a mulher, disse a Simão:

Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste um ósculo; ela, porém, não parou de cobrir-me os pés de beijos. Não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou- me os pés com lágrimas. Não me derramaste óleo na cabeça; ela, ao invés, ungiu-me com perfume. Por esta razão, eu te digo, seus numerosos pecados lhe estão perdoados, porque ela demonstrou muito amor(Lc 7,36-47).

Por quê? Porque confessou, chorou, seu coração não se inclinou a palavras malignas, buscando escusas para seus pecados, não se comunicou com os eleitos deles, isto, com os que se defendem.



§ 9
Pois, não faltaria essa mulher de defender seus pecados, se seu coração se inclinasse para palavras malignas. Acaso diariamente as iguais a ela na impureza, mas não iguais na confissão, meretrizes, adúlteras, criminosas não defendem seus pecados? Se são escondidos, negam; se, porém, forem surpreendidas no pecado, forem convencidas, ou se os fizerem publicamente, defendem. E como é fácil a defesa delas, como é rápida, quão precipitada, cotidiana e sacrílega! Oh, se Deus não o quisesse, não o faria! Foi Deus, foi a fortuna, foi o destino que o quiseram. Não dizem:

Eu disse: Compadece-te de mim, Senhor”, nem procuram como aquela pecadora os pés do médico:

Cura a minha alma, porque pequei contra ti(Sl 40,5).

E quais são os que empregam tal defesa, meus irmãos? Não somente os ignorantes, mas também os instruídos. Sentam-se e fazem o cômputo dos astros; intervalos; cursos, volubilidade, estado, movimento, tudo isso observam, descrevem, calculam. Parecem doutos, importantes. Todo esse conhecimento e grandeza empregam na defesa do pecado. Serás adúltero, porque assim te quer Vênus; serás homicida porque o quer Marte. Portanto, é Marte que é homicida e não tu; e Vênus que é adúltera, não tu. Cuidado, não aconteça seres condenado por causa de Marte e de Vênus. Pois, Deus que haverá de condenar, sabe quem és tu que dizes: Não fui eu, a um juiz bem informado. Na verdade, o próprio astrólogo, que te vende fábulas insidiosas, de sorte que adquires, mas não gratuitamente, tua morte (pois compras do astrólogo a morte, tendo desprezado a vida gratuita que Cristo te oferece); o mesmo astrólogo se acaso vir sua esposa conversar com certa petulância, ou atender perversamente a alguns estranhos, ou freqüentemente ir à janela, não a pega, não lhe bate, e impõe disciplina a sua casa? Se a mulher lhe responder: Se podes, bate em Vênus, não em mim. Ele não responderá: Louca, uma coisa é o que compete ao dono e outra é o que se diz ao comprador? Portanto, os eleitos deles quais são? Eleitos dos maus, eleitos dos ímpios, com os quais não deve haver comunicação, isto é, com os quais não se estabelece sociedade. Quais são eles? Os que se consideram justos, e desprezam os demais como pecadores, como eram aqueles fariseus. Se os próprios pecados são manifestos ou são descobertos, ou são praticados em público, defendem e afirmam que culpa alguma lhes deve ser atribuída; e isto a fim de que se julgue que eles não praticaram mal algum, mas dizem eles, tudo foi Deus que fez, porque ou assim criou o homem, ou ordenou as estrelas, ou negligencia os negócios humanos. São as defesas dos eleitos do mundo. Mas diga o membro de Cristo, diga o corpo de Cristo, diga Cristo em nome de seu corpo:

Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas, buscando escusas aos pecados, com os malfeitores; e não me comunicarei com os eleitos deles”.



§ 10
Sabeis, irmãos, não devo, contudo, omiti-lo, que os maniqueus denominam eleitos os que se consideram justos eminentes, ocupando de certo modo o primeiro grau da justiça. Os que sabiam, recordem; os que não sabiam, ouçam. Na verdade, eleitos de Deus são todos os santos, e temos isto nas Escrituras; mas eles usurparam aquele nome, e aplicaram-no a si habitualmente, de sorte que sejam chamados, como se lhes fosse nome próprio, de eleitos. Quais são estes eleitos? Aqueles dos quais se disseres: Pecaste, imediatamente proferem aquela defesa ímpia, pior que as outras e mais sacrílega: Não fui eu que pequei, mas a raça tenebrosa. Qual é esta raça tenebrosa? A que entrou em guerra com Deus. E é ela que peca quando tu pecas? Ela mesma, responde, porque estou mesclado com ela. De que teve medo Deus, que te misturou com ela? Dizem o seguinte: Aquela raça tenebrosa se rebelou contra Deus, antes da criação do mundo; e ele temendo que seus reinos, devido a um ataque hostil fosse devastado, enviou para a terra seus membros, sua substância, aquilo que ele mesmo é; se é ouro, ouro; se é luz, luz. Tudo o que ele é, foi enviado e misturado às entranhas do povo das trevas; e assim Deus criou o mundo. E nós, as almas, dizem eles, somos dos membros de Deus; mas somos oprimidos aqui nas entranhas do povo tenebroso, e todo pecado que se nos atribui, é ele que o comete. Com efeito, parecem escusar-se de pecado; mas não escusam seu Deus do crime do medo, nem a própria substância de Deus do crime da corruptibilidade. Mas, se Deus é incorruptível, se imutável, se incontaminável, se ima-culado, se impenetrável, que lhe pode fazer aquela raça? Lançasse ela o ataque que quisesse; como atemorizaria o impenetrável, o inviolável, o incontaminado, o imutável o incorruptível? Se, portanto, Deus é tal, é cruel, porque vos mandou para cá sem motivo, pois nada poderia causar-lhe dano. Por que vos enviou? De fato, aquela raça tenebrosa não poderia causar-lhe dano. Ele, no entanto, vos prejudicou gravemente, e ele, mais do que ela, foi vosso inimigo. Entretanto, ele mesmo podia vos prejudicar. Pudestes ser oprimidos, ser capturados, pudestes ser manchados, pudestes vos corromper; portanto, também ele o pôde. Pois, um pedaço, uma pequena porção de sua natureza venceu a massa. Aquele que ficou lá é tal a porção que foi enviada para cá. Isto afirmam eles. Eles afirmam que existem duas substâncias: uma aquela e outra esta. Os livros deles contêm essas coisas; e se negam, leiam-se os livros e ficarão convencidos.



§ 11
E então? Para neste exórdio não falar mais, omitirei os fatos piores, os mais criminosos; neste mesmo exórdio, pelo qual fazem a guerra, vede como devem ser vencidos. E quanto a dizer que a raça tenebrosa lutou contra Deus, eles mesmos se acham envolvidos nesta contenda de palavras. De fato, não têm como responder, ou para onde fugir. Se queres, ó nefando, falsamente eleito, defender teu pecado, de tal maneira que tendo cometido algum pecado, pareças não seres tu que o cometeste, procuras sobre quem jogar a culpa de teu pecado e a lanças sobre a raça tenebrosa. Mas considera se não estás lançando a culpa de teu pecado sobre Deus. Se a raça tenebrosa, que inventais pudesse, te diria: Por que me acusas? Pude fazer algo contra teu Deus, ou não? Se pude, sou mais forte do que ele; se não pude, por que ele teve medo de mim? Se não teve medo, por que te mandou para cá, a fim de sofreres tanto, apesar de seres membro dele, sua substância? Se não teve medo, teve inveja; se não agiu assim por medo, foi por crueldade. Quão iníquo, então, não é ele, visto que nada podia prejudicá-lo, no entanto fez com que seus membros na terra a tal ponto sofressem dano! Ou podia ser atingido? Nesse caso não seria incorruptível. Querendo, pois, defender-te de teu pecado, não podes louvar a Deus. Se não te jactasses louvando-te a ti mesmo, não serias impedido de louvar a Deus. Passa a censurar-te e louvarás a Deus. Retorna às palavras dos salmos que aborreces e dize:

Eu disse: Compadece-te de mim, Senhor, cura a minha alma, porque pequei contra ti(Sl 40,5).

Declarei: Eu pequei. Não foi a fortuna, o destino, a raça tenebrosa. Se, pois, tu pecaste, logo hás de ver como se abre o caminho ao louvor de Deus, que era estreito enquanto querias defender-te. É melhor sentir angústias por teus pecados e te dilatares no louvor de Deus. Tendo confessado teu pecado, vê como Deus será louvado. Ele é justo, ao punir o que persiste no pecado, e misericordioso ao libertar aquele que confessa. Diz o salmo:

Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas, buscando escusas aos pecados”, a ponto de dizer que a raça tenebrosa foi que cometeu o pecado que eu cometi.



§ 12
Com os malfeitores”.

Qual malefício? Digamos uma de suas iniqüidades nefandas. Escutai a narração de uma iniqüidade maligna e pública dos maniqueus, que eles mesmos confessam. Dizem que é melhor ser usurário do que agricultor. Interrogas qual a razão e eles a dão. Vê se tal razão não deve ser chamada loucura. Dizem eles: Aquele que empresta dinheiro com usura, não lesa à cruz luminosa (muitos não entendem, mas vou explicar); quanto ao agricultor, lesa muito à cruz luminosa. Perguntas que cruz luminosa é esta? Respondem: Os membros de Deus que foram aprisionados no combate, misturaram-se ao mundo todo, e estão nas árvores, nas ervas, nos po-mos, nas frutas. Fere os membros de Deus aquele que abre sulcos na terra; fere os membros de Deus, quem arranca a erva da terra; fere os membros de Deus, quem colhe a mãça da árvore. Para não fazer no campo falsos homicídios, comete com empréstimos verdadeiros homicídios. Ele não dá o pão ao mendigo. Vede se existe maior iniqüidade do que esta justiça. Não dá o pão ao mendigo; perguntas qual o motivo. Para que aquele mendigo não receba a vida que se acha no pão, denominada por eles membro de Deus, substância divina; e não a prenda na carne. E então, que fazeis vós? Por quê? Por que comeis? Não tendes carne? Mas nós, respondem, uma vez que somos maniqueus iluminados pela fé, pelas nossas orações e salmos, e que somos eleitos, purificamos assim a vida que está no pão, e a enviamos aos tesouros dos céus. Tais são os eleitos; não são salvos por Deus, mas salvadores de Deus. E isto é Cristo, dizem eles, crucificado em todo o mundo. Eu pelo evangelho recebera Cristo como salvador; vós, porém, em vossos livros, ledes que sois salvadores de Cristo. Sois, sem dúvida, blasfemadores de Cristo, e portanto por ele não deveis ser salvos. Portanto, não se dê a esmola ao mendigo, e para não chorar no bocado de pão o membro de Deus, o mendigo há de morrer de fome! Falsa misericórdia para com o bocado de pão, que pratica um verdadeiro homicídio contra um homem. Mas quem são estes eleitos deles? “Não deixes inclinar-se meu coração a palavras malignas e não me comunicarei com os eleitos deles”.



§ 13
5 “O justo me corrigirá e repreenderá com misericórdia”.

Vede o pecador a confessar. Quer ser corrigido misericordiosamente, antes que ser louvado com mentira.

O justo me corrigirá com misericórdia”, se é justo, se é misericordioso, ao me vir pecando. Assim, na verdade, se exprimem certos membros de Cristo, falam sobre determinados membros de Cristo, falam em um só corpo. O Senhor se digne falar como alguém que corrige, sem rejeitar falar em lugar daquele que se corrigiu ou deve ser corrigido. Pois, todos os membros nele, e ele próprio dizem:

O justo me corrigirá”.

Qual o justo que te haverá de corrigir? A Cabeça emenda todos os membros.

O justo me corrigirá e repreenderá com misericórdia”.

Repreenderá, mas com misericórdia; repreenderá, mas não com ódio; e repreenderá tanto mais quanto não odeia. E o repreendido, porque agradece por isso? Porque:

Repreende o sábio, e ele te agradecerá(Pr 9,8).

O justo me corrigirá” porque me persegue? De forma alguma. Deveria então ser emendado, se corrige com ódio. Por que então corrige? “Com misericórdia. E me repreenderá”.

Como? “Com misericórdia. Mas o óleo do pecador não me unja a cabeça”.

Que significa:

O óleo do pecador não me unja a cabeça?” Não erguerá minha cabeça com a adulação. Adulação é falso louvor; louvor falso do adulador é óleo do pecador. Por isso, os homens quando querem zombar de alguém louvando-o com falsidade, dizem a respeito dele: Ungi-lhe a cabeça. Gostai, portanto, de serdes repreendidos pelo justo com misericórdia, e não serdes louvados pelo pecador com irrisão. Levai óleo convosco, e não procureis o óleo do pecador. Pois, aquelas virgens prudentes levaram óleo consigo (cf Mt 25,4).

As virgens prudentes levavam óleo consigo, isto é, a consciência delas prestava-lhes bom testemunho. O óleo representa a glória; brilha, resplandece na superfície. Mas a glória deve ser boa e verdadeira, para que esteja dentro, nos vasos. Escuta o que é estar nos vasos.

Cada um examine sua própria conduta, e então terá de que se gloriar por si só e não por referência ao outro(Gl 6,4).

Que quer dizer: em seus vasos? Escuta o próprio Apóstolo:

O nosso motivo de ufania é este testemunho da nossa consciência(2 Cor 1,12).



§ 14
Finalmente, uma vez que estás no corpo de Cristo, e ainda carregas certa mortalidade, sê justo para ti mesmo, sê justo em ti mesmo. És pecador, castiga a ti mesmo; volta à tua consciência, exige de ti cumprimento de pena, atormenta-te. Assim ofereces um sacrifício a Deus.

Pois se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria. Não te comprazes em holocaustos”.

E então? Não aceitas sacrifício algum? “Sacrifício a Deus é o espírito contrito; ao coração arrependido e humilhado Deus não despreza(Sl 50,18.19).

Humilha teu coração, esmaga-o, atormenta-o; também tu te emendarás com misericórdia; não te odiaste a ti mesmo, ao te enfureceres contra ti. A parte que se corrige te faz justo, embora sejas na parte que precisa ser emendada, pecador; quanto à parte que te desagrada, és injusto; quanto a que te desagrada por te fazer injusto, és justo. Queres ver quanto és justo? Desagrada-te o mesmo que a Deus; já te uniste à vontade de Deus, e odeias em ti não o que ele fez, mas o que ele aborrece. Na medida que odeias em ti o que fizeste, e que odeia igualmente aquele Deus que não o fez, começaste a ser severo para contigo mesmo; e ele será misericordioso, poupando-te porque tu não te poupaste. Portanto, devido ao fato de que olhas como ele vê, e te comprazes em sua lei, e censuras em ti o que sua lei condena, e te desagrada o que não apraz aos olhos de Deus, verifica como és justo. De outro lado, és iníquo e pecador por teres caído e feito o que desagrada a Deus, e devido a certa fragilidade inerente à fraqueza humana cometeres aquelas faltas e ainda carregares a fraqueza da carne, e gemeres pela consciência de estares relutando.



§ 15
Perguntas: Como se pode ser parcialmente justo e parcialmente pecador? Que é que dizes? Sentimos dificul-dade, parecemos falar paradoxos, a não ser que nos venha em socorro a autoridade do Apóstolo. Escuta a palavra do Apóstolo, a fim de não me acusares de entender mal. Diz ele:

Compraz-me a lei de Deus, segundo o homem interior”.

Eis o justo. Pois, não é justo aquele a quem compraz a lei de Deus? Como, então, é pecador? “Mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado”.

Ainda faço guerra contra mim mesmo, ainda não estou inteiramente restaurado à imagem de meu criador; comecei a ser esculpido de novo, e pela parte em que sou reformado, desagrada-me o que em mim é disforme. Por isso, enquanto sou assim, que espero? “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso(Rm 7,22-25).

A graça de Deus que já começou a esculpir novamente, a graça de Deus que infunde suavidade, de tal sorte que pelo homem interior te comprazes na lei de Deus; assim como isto foi sanado, o restante também o será. Geme, porém, ainda estando ferido, castiga a ti mesmo, a tua situação te desagrade.



§ 16
Diz Paulo:

É assim que pratico o pugilato, mas não como quem fere o ar. Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado(1 Cor 9,26-27).

Porventura quem trata duramente o corpo, o odeia? Quem castiga o servo, o odeia? Se fustiga o filho, o odeia? E para falarmos globalmente, tua carne é como tua esposa. Isto é o que diz o próprio Apóstolo:

Ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Crito com a Igreja(Ef 5,29).

Certamente a carne assemelha-se a uma esposa, e ninguém quer mal a sua própria carne. No entanto, que diz outra passagem? “A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne(Gl 5,17).

Tem aspirações contrárias as tuas, como uma esposa; ama e castiga, até que se reforme e viva em concórdia. Quando isto sucederá? Uma vez que agora clamas:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte”? (Rm 7,24).

Este corpo se há de separar de ti e então estarás seguro? E que seria:

Gememos interiormente, suspirando pela redenção de nosso corpo”? (Rm 8,23).

Da mortalidade é restaurado para a imortalidade e já não resiste, porque não existe mortalidade que resista. Por isso, trata duramente teu corpo; agora sujeita o que depois recuperarás; agora desfaleça, para que então tudo esteja bem. Pois, nesta vida não pode ser restaurado, enquanto decorre o tempo em que é mortal. Não te abata, não te quebrante; suporta, instrui, castiga. Ele será restaurado no fim. E como “ninguém jamais quis mal a sua própria carne”, ressurgirá a carne. Mas como? Também então haveria eu de lutar? “É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade(1 Cor 15,53).



§ 17
Por conseguinte, ao dizer o salmista:

Ele me corrigirá e repreenderá”, quer seja um irmão, quer um próximo, quer um vizinho, quer tu mesmo, deves repreender e corrigir com misericórdia.

Mas o óleo do pecador não me unja a cabeça”.

Mas o que faço, dizes-me? Sofro da parte dos aduladores, que não cessam de gritar; louvam-me no que não quero, elogiam-me naquilo que menosprezo, censuram-me no que estimo; aduladores, mentirosos, sedutores. Dizem, por exemplo: É um grande homem, aquele Fulano; importante, douto, sábio; mas por que é cristão? (cf Tertul. Apolog. 3,1).

De grande ciência, grandes conhecimentos, grande sabedoria. Se tem grande sabedoria, aprova o fato de ser cristão; se têm grande ciência, escolheu doutamente. Enfim,aquilo que tu condenas, agrada àquele a quem elogias. Mas, como? Aquele louvor não adoce: é óleo do pecador. Mas ele não cessa de falar. Nem por isso unja tua cabeça, isto é, não fiques contente com isso; isto é, não concordes, não consintas, não te con-gratules com isso; e se ele traz o óleo da adulação, mas tua cabeça permanece íntegra, não se incha, não se orgulha. Se ela se inchar e se elevar, fica pesada e te precipita nu-ma queda.

Mas o óleo do pecador não me unja a cabeça”.



§ 18
Ainda até minha oração será do agrado deles”.

Espera; agora me injuriam, diz o Cristo. Nos primórdios, os cristãos eram censurados em toda parte.

Ainda espera; até minha oração será do agrado deles”.

Virá a época em que ultrapassarão o número mil os homens que baterão no peito a dizer:

Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores(cf Mt 6,12).

Quantos restaram que têm vergonha de bater no peito? Portanto censurem; toleremos. Repreendam, odeiem, acusem, caluniem:

Ainda; até minha oração será do agrado deles”.

Virá o tempo em que até minha oração será do agrado deles. Pois eles se erguem por suas forças, como se fossem justos; serão vencidos na luta. Uma vez que se elevaram orgulhosamente, serão derrubados, arrastados pelos pecados, verão que são iníquos, e se realizarão as predições dos profetas. Começarão a temer o juízo, o íntimo deles se volta à consciência dos pecados, e agradar-lhes-á a oração:

Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores(Mt 6,12).

Oh loquaz defesa dos pecados! Certamente os povos já proferem esta prece, e o trovão dos povos a baterem no peito não se interrompe. Com razão, das nuvens onde Deus habita, partem trovões. Onde se encontra aquela loquacidade, onde aquela jactância: Sou justo, não pratiquei mal algum? Sem dúvida, ao ponderares a norma da justiça incluída nas Sagradas Escrituras, por mais que tenhas progredido, reconhecer-te-ás pecador. Progrediste, já adoras a um só Deus. Ótimo! Não praticas adultério em relação a ele, procurando ídolos, astrólogos, adivinhos, arúspices, agoureiros, maléficos; seria fornicação relativamente ao Senhor teu Deus; já és do número dos membros de Cristo. Começas a perceber também aqueles pecados da sociedade humana. Não matas, não cometes adultério com a mulher do próximo, nem abandonas tua mulher para procurar outra, não injurias, não te contaminas por nenhuma mácula péssima, contiveste a mão para não furtar, a língua de um perjúrio, o coração de desejar qualquer bem do próximo: já és justo. Considera o restante; não te ensoberbeças ainda. Tua língua não peca em coisa alguma? Não deixas escapar uma palavra dura? Mas que importância tem isso, dizes? Que importância? “Aquele que chamar ao seu irmão: Louco, terá de responder ao julgamento da geena de fogo(Mt 5,22).

Aquela soberba toda estremece. Eis que ele não comete mal tão grande que pareça por alguma impiedade blasfemar contra Deus; não avança para causar dano a alguém, não faz a outrem o que não quer lhe seja feito; mas e a língua? Quem a domina? Suponhamos que já a domaste, embora se pergunte: Quem é tão grande que o faça perfeitamente? Mas seja que já a freaste; que fazes de teus pensamentos? Que fazes do tumulto e da turba de desejos rebeldes? Não lhes ofereces teus mebros. Acredito. Vejo. No entanto os pensamentos às vezes te dobram, te arrastam, muitas vezes durante a oração de joelhos. Prostras o corpo, dobras a cerviz, confessas os pecados, adoras a Deus. Vejo onde jaz o corpo, e pergunto por onde voa o espírito. Vejo os membros prostrados; vejamos se a consciência está firme, vejamos se está fixa naquele a quem adora; e se muitas vezes não é arrastada pelos pensamentos, como um mar agitado, e é levada pela tempestade daqui para lá. Se estivesses falando comigo, e de repente te voltasses para teu escravo, e me deixasses (não digo que estivesses me pedindo algo, mas falavas de igual para igual), não consideraria uma injúria? É isto que fazes cotidianamente a Deus. Quem é que assim age, irmãos? Não falo daquele que adora um só Deus, que confessa a Cristo, que sabe que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, que não lhes é infiel, que não adora os demônios, que não procura auxílio do diabo, que pertence à Igreja católica; de quem ninguém se queixa ter sido por ele defraudado, nem um vizinho fraco geme devido a uma opressão; que não tenta a mulher do próximo, que se contenta com a sua, ou nem se une a sua, mas segundo é permitido e lícito, segundo a disciplina do Apóstolo, quando há consenso mútuo, ou ainda não contraiu casamento. Quem assim, no entanto é surprendido a fazer aquelas coisas que mencionei.



§ 19
6 Veio, portanto, o tempo do qual foi dito:

Ainda; e até a minha oração será do agrado deles”; seja a que ele nos ensinou, seja aquela com a qual intercede por nós. Por conseguinte, diante de todos esses pecados diários que esperança temos, senão proferir com coração humilde a oração do Senhor, que já é de nosso agrado, pois não defendemos nossos pecados, mas os confessamos:

Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores(cf Mt 6,12), e temos por advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o justo? Ele é vítima de expiação pelos nossos pecados (cf 1Jo 2,1.2).

Agora falam os soberbos; são vencidos em número, são vencidos pelos povos, enquanto a terra inteira, do nascer do sol até o seu ocaso, louva o nome do Senhor. Que fazem os outros, em pequeno número, que disputam? São os juízes dos ímpios. Mas que te importa? Vê o seguinte:

Seus juízes foram tragados junto à pedra”.

Que significa:

Foram tragados junto à pedra? Essa rocha, porém, era Cristo(1 Cor 10,4).

Foram tragados junto à pedra”.

Junto, isto é, com ela confrontam-se os juízes, os grandes, os poderosos, os doutos; são denominados “seus juízes”, porque julgam acerca dos costumes e proferem uma sentença. Assim falou Aristóteles. Coloca-o junto à pedra e é tragado. Quem é Aristóteles? Que ele ouça: Cristo falou, e ele estremece nas regiões inferiores. Assim falou Pitágoras, assim Platão. Coloca-os junto à pedra, compara a autoridade deles à autoridade evangélica, compara os orgulhosos ao crucificado. Digamos a todos eles: Vós inscrevestes vossas obras nos corações dos soberbos; ele gravou sua cruz nos corações dos reis. Finalmente, morreu e ressuscitou; vós mor-restes, e não quero saber como ressurgireis. Portanto:

Foram tragados junto a esta pedra seus juízes”.

Parecem proferir algo até que sejam postos em confronto com a pedra. Por isso se descobrimos que algum deles disse o mesmo que Cristo disse, congratulamo-nos com ele; mas ele não o segue. Todavia ele foi anterior a Cristo. Se alguém fala a verdade, será anterior à própria verdade? Ó homem, pondera quando foi que Cristo te criou e não quando veio a ti. O doente pode também dizer: Mas eu fui para a cama antes que o médico viesse me ver. De fato, ele veio depois, porque tu caíste doente primeiro.



§ 20
Notai, então o texto do salmo:

Ainda; e até minha oração será do agrado deles”.

Mas serão muitos os con-traditores:

Seus juízes foram tragados junto à pedra. E então? Ouvirão, porque minhas palavras prevaleceram”.

Minhas palavras prevaleceram sobre as palavras deles. Eles proferiram sermões eloqüentes, mas os meus são verdadeiros. Uma coisa é louvar um orador loquaz, outra louvar um verdadeiro.

Ouvirão, porque minhas palavras prevaleceram”.

Qual deles não foi surpreendido a sacrificar, quando as leis o proíbem, e não negou? Qual não foi descoberto a adorar um ídolo e deixou de gritar: Não fiz isto; e tem medo de ser convencido? O diabo tinha tais ministros. Como então prevaleceram as palavras do Senhor? “Eis que eu vos envio como ovelhas entre lobos. Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode meter corpo e alma na geena de fogo(Mt 10,16.28).

Incutiu o temor, acrescentou a esperança, inflamou o amor. Diz ele: Não temais a morte. Temeis a morte? Eu morro em primeiro lugar. Receais que não pereça um fio de vossos cabelos? Antes eu ressuscito íntegro na carne. Com razão ouvistes suas palavras, porque prevaleceram. Falavam eles e eram mortos; caíam e ficavam de pé. E que aconteceu à morte de tantos mártires, a não ser que prevaleciam suas palavras, e a terra irrigada pelo sangue dos testemunhas de Cristo, em toda parte produzisse as messes da Igre-ja? “Ouvirão porque minhas palavras prevaleceram”.

Como prevaleceram? Já o dissemos: Ao serem pregadas aos que não temiam. O que eles não temiam? Nem o exílio, nem os prejuízos, nem a morte, nem a cruz. Pois, não era apenas a morte; mas não temiam nem a cruz, a mais execrável das mortes. O Senhor a assumiu, a fim de que seus discípulos, de fato, não temessem a morte, nem tivessem horror de algum gênero de morte. Por isso, ao se dizer tais coisas aos que não temem, as palavras prevaleceram.



§ 21
7 Qual o efeito da morte de todos aqueles mártires? Escuta:

Como o torrão endurecido se pulveriza na superfície da terra, dispensaram-se nossos ossos à beira do sepulcro”.

À beira do sepulcro dispersaram-se os ossos dos mártires, isto é, os corpos das testemunhas de Cristo. Pois, os mártires foram mortos, e de certo modo prevaleceram os que os mataram. Eles prevaleceram perseguindo, a fim de que as palavra de Cristo prevalecessem na pregação. E qual o resultado da morte dos santos? “Como o torrão endurecido se pulveriza na superfície da terra, dispersaram-se nossos ossos à beira do sepulcro”.

Que significa:

o torrão endurecido se pulverizou na superfície da terra?” Sabemos que terra endurecida é tudo que há de desprezível. As coisas que parecem desprezíveis aos homens fecundam a terra. Disse certo salmo que os santos jaziam mortos e não havia quem os sepultasse (cf Sl 78,3).

Mas aquelas mortes todas se tornaram terra fértil. Como a terra recebe certa fertilidade de elementos desprezíveis e abjetos, assim com aquilo que o mundo desprezava a terra foi fertilizada, a fim de que fossem abundantes as colheitas da Igreja. Sabeis, irmãos, que o lixo da terra que a fertiliza (não quero nomeá-lo, nem convém), alimenta a terra e a fortifica; e no entanto, é coisa desprezível para os homens, um tanto sórdida, e é lançada fora. Mas qual o efeito, para usar as palavras adequadas:

Ele levantou do pó o indigente e do estrume ergueu o pobre, para colocá-lo entre os príncipes, com os príncipes de seu povo(Sl 112,7.8).

Com efeito, foi prostrado por terra; como torrão endurecido foi pulverizado na superfície da terra. Foi assim que jazia aquele Lázaro chagado que, contudo, foi levado pelos anjos ao seio de Abraão (cf Lc 16,21-22).

Preciosa na presença do Senhor é a morte de seus santos (cf Sl 115,15).

O que é desprezível no mundo é valioso para o agricultor. Ora, ele sabe onde se encontra o que é útil, e o suco fértil; sabe o que aplicar, o que escolher para uma farta messe. Mas o mundo o despreza. Não sabeis que “o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é”? (1 Cor 1,28).

Do estrume foi erguido Pedro e também Paulo. Quando foram mortos, eram desprezados. Agora a terra já foi fecundada, e surgindo a messe da Igreja, eis que vem a Roma o imperador, o homem mais nobre e importante do mundo. Para onde se precipita? Para o templo do Imperador ou para o sepulcro do Pescador? Pois, “como o torrão endurecido se pulveriza na superfície da terra, dispersaram-se nossos ossos à beira do sepulcro”.



§ 22
8 “A ti, Senhor, se volvem os meus olhos; em ti esperei, não me tires a vida”.

Efetivamente, os mártires foram torturados nas perseguições e muitos apostataram. O salmo disse a respeito do cativeiro da perseguição:

Como o torrão endurecido se pulveriza na superfície da terra, dispersaram-se nossos ossos à beira do sepulcro”.

Aconteceu que muitos falharam e muitos periclitaram; e uma voz suplicante se levanta no meio das tribulações das perseguições:

A ti, Senhor, se volvem os meus olhos”.

Meus olhos estão mais fixos em tuas promessas, do que nas ameaças deles. Sei o que sofreste por mim, o que prometeste:

A ti, Senhor, se volvem os meus olhos; em ti esperei, não me tires a vida”.



§ 23
9 “Preserva-me do laço que me armaram”.

Qual o laço? Propunham: Se consentes, eu te poupo. No laço foi colocada a isca desta vida. Se a ave gosta desta isca, cai na armadilha. Se porém, é uma ave capaz de dizer:

Não desejei o dia do homem, tu o sabes(Jr 17,16), seus olhos não se apartam de Deus, e este tirará seus pés da armadilha (cf Sl 24,15).

Preserva-me do laço que me armaram e dos escândalos dos obreiros de iniqüidade”.

Trata de duas coisas, distintas entre si: o laço que armaram os perseguidores, os escândalos, porém, daqueles que consentiram e apostataram; e de ambas as coisas quer ser preservado. De um lado enfurecem-se os que ameaçam, de outro caem os que consentem. Tenho medo de que o primeiro me atemorize e o segundo me leve a imitá-lo. O primeiro: Faço-te tal coisa, se não consentires:

Preserva-me do laço que me armaram”.

Olha; teu irmão já consentiu:

E dos escândalos dos obreiros de iniqüidade”.



§ 24
10 “Caiam os pecadores em suas próprias redes”.

Que quer dizer isto, irmãos:

Caiam os pecadores em suas próprias redes?” Não se refere a todos os pecadores. Certos pecadores, que o são a tal ponto que amam a vida presente, preferindo-a à vida eterna; estes caiam em suas próprias redes. Mas que dizes? Pensas que estes caem em suas próprias redes? Mas que sucede a teus discípulos, ó Cristo? Eis que no ardor da perseguição, quando todos te deixaram sozinho, e foram cada um deles para sua própria casa (tu o predisseste, porque o previste. Não quer isso dizer que pelo fato de teres prenunciado, foste tu que o fizeste, ou que tu em algum ponto te negaste a ti mesmo), mas aqueles que te seguiam, na tua provação e perseguição, quando os inimigos te exigiam que fosses crucificado, eles falharam. E um só, aquele audacioso que te prometera que te seguiria até a morte, ouviu efetivamente da boca do médico como estava doente. Pois, estava febril e dizia estar são; o médico pegara-lhe o pulso. Chegou a prova, a tentação, a acusação; e ele interrogado, não por um potentado, mas pela última serva, uma mulher, uma escrava, sucumbiu. Negou por três vezes. Tendo negado uma vez, e sendo citado, negou outra vez; tendo renegado duas vezes, foi citado, e negou pela terceira vez. O Senhor o predissera. Não o ordenara, não o coagira. Ou se alguém pensar que Pedro agiu bem, porque o Senhor o predissera, também agiu bem Judas que o traiu, porque isso também foi predito pelo Senhor. De forma alguma, irmãos: este é o modo de falar dos eleitos que antes defendem seus pecados do que os confessam. Demos atenção antes ao próprio Pedro. Se em nada pecou, porque chorou? Acerca de Pedro interroguemos apenas as suas lágrimas. Não encontraremos testemunhas mais fidedignas.

Chorou amargamente”, diz o evangelho (Mt 26,31-75).

Ainda não era capaz do martírio.

Mas me seguirás mais tarde(Jo 13,36), disse-lhe o Senhor. Ainda haveria de se tornar firme, confirmado pela ressurreição do Senhor.



§ 25
Por conseguinte, ainda não era tempo de serem dispersados aqueles ossos à beira do sepulcro. Pois, notai quantos falharam, até os primeiros que estavam presos às suas palavras; até eles falharam. Por quê? “Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

Assim continua o salmo. Mais acima dissera:

Preserva-me, Senhor, do laço que me armaram e dos escândalos dos obreiros de iniqüidade. Do laço e dos escândalos”; dos que atemorizam, e dos que caíram. Mas como durante a paixão do Senhor mesmo os primeiros discípulos, que haveriam de ser os guias da Igreja e as colunas da terra, falharam, ainda não se havia realizado a palavra de outro salmo:

Eu firmei suas colunas(Sl 74,4).

Por que falou:

Quanto a mim, estou sozinho até que passe?” É a voz da Cabeça.

Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

Que quer dizer:

Estou sozinho?” Na paixão tu somente sofrerás, tu somente serás morto pelos inimigos.

Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

Que significa:

até que passe?” Narra o evangelista:

Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai(Jo 13,1).

Por que, então:

até que passe”, a não ser “deste mundo para o Pai?” Pois, então confirmei as suas colunas, isto é, as colunas da terra, quando os apóstolos em minha ressurreição aprenderam perfeitamente que a morte não deve ser temida. Por isso, “até que passe, estou sozinho”.

Quando tiver passado, multiplicar-me-ei. Muitos me imitarão, muitos sofrerão por causa de meu nome. Estou sozinho até que passe; quando tiver passado, muitos em mim serão um só.

Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

Escutai ainda o mistério desta palavra. Segundo a língua grega, pascha parece significar a paixão; páscheim se traduz, de fato, por sofrer; de acordo, porém, com a língua hebraica, pascha se traduz por passagem. Com efeito, se interrogares com insistência os gregos, negam que pascha seja termo grego. Soa, de fato, páschein, isto é, sofrer, mas não se costuma deste modo se pronunciar; pois paixão em grego é pathos, não pascha. Portanto, pascha, conforme afirmam os que sabem, e que traduziram para que lêssemos, é passagem. Efetivamente, estando por acontecer a paixão do Senhor, o evangelista usa a própria palavra:

Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai”.

No salmo a palavra aparece neste versículo:

Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

Depois da páscoa já não estarei sozinho, depois da passagem não estarei isolado. Muitos me imitarão, muitos me seguirão; e se depois seguirão, como será? “Quanto a mim, estou sozinho até que passe.” Por que o Senhor diz neste salmo:

Quanto a mim, estou sozinho até que passe?” Como é que o comentamos? Se entendemos bem, presta atenção às palavras do Senhor no evangelho:

Em verdade, em verdade, vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer produzirá muito fruto”.

O Senhor o afirmou na passagem onde também disse:

Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim(Jo 12,24.32).

Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer produzirá muito fruto”.

Portanto, grande colheita produziria aquele grão; mas espera, ainda será morto; porque se o grão que cair na terra não morrer, permanecerá sozinho.



§ 26
Por conseguinte, estava só antes de morrer. Por isso, Pedro igualmente não tinha tais forças; receberia forças para seguir a Cristo, ele que não tinha forças para precedê-lo (cf Jo 13,36).

Com efeito, ninguém morreu antes de Cristo pela confissão de seu nome, pelo qual somos cristãos. Não deveis pensar isso. Efetivamente, muitos morreram e são mártires, muitos profetas sofreram a morte; todavia não morreram por terem anunciado previamente o Cristo, mas porque denunciavam os pecados dos homens, e resistiam livremente a suas iniqüidades; e são tidos na conta de mártires. Com justiça, de fato, porque se não foram mortos pela confissão do nome de Cristo, contudo o foram pela verdade. Desta forma, porém, ninguém morreu pelo próprio nome, isto é, pela confissão do nome de Cristo, antes que aquele grão de trigo caísse na terra. Dele foi dito:

Quanto a mim, estou sozinho até que passe”.

O próprio João Batista, que fora morto recentemente, entregue à morte para ser dada sua cabeça à jovem dançarina, por ordem de um rei iníquo, não foi morto porque confessou a Cristo. Poderia, de fato, ter sido morto por isso, por meio de muitos judeus. Se foi morto por um só por outro motivo, quanto mais poderia ter sido morto por causa de Cristo por aqueles que mataram a Cristo? Ora, Cristo deu testemunho a respeito de João. Os que ouviam a Cristo queriam matá-lo, mas não mataram aquele que dava testemunho. Com efeito, se atacassem a João por causa de Cristo, ele não o negaria Ele tinha grande força, e por isso foi chamado amigo do esposo (cf Jo 3,29) . Possuía grande graça, grande excelência:

Entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior do que João, o Batista(Mt 11,11) . Com efeito, foi atacado aquele que não tinha tal força; foi atacado Pedro, e não João. Mas, Pedro posteriormente recebeu a mesma força; naquela ocasião, porém, era fraco. Por causa do nome de Cristo foi interrogado aquele que não tinha força; o que a tinha não sofre perseguição por causa de Cristo, para não preceder a Cristo, sofrendo por seu nome. Não foi morto pelos judeus aquele que livremente dava testemunho de Cristo, que os judeus mataram; e foi morto por Herodes, porque lhe dizia:

Não te é permitido ter a mulher de teu irmão(cf Mt 14,3-11).

Nem seu irmão havia morrido sem deixar descendência. Morreu, de fato, pela lei da verdade, pela eqüidade, pela justiça: portanto é santo, e é mártir; não, contudo pelo nome que nos faz cristãos. Por que isso, senão para se cumprir a palavra:

Quanto a mim, estou sozinho até que passe?