ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 139 | ||
§ 139:1 | ᶊ Senhor, tu me sondas, e me conheces. | |
§ 139:2 | Ŧ Tu conheces o meu sentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento. | |
§ 139:3 | ⱻ Esquadrinhas o meu andar, e o meu deitar, e conheces todos os meus caminhos. | |
§ 139:4 | ᶊ Sem que haja uma palavra na minha língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces. | |
§ 139:5 | Ŧ Tu me cercaste em volta, e puseste sobre mim a tua mão. | |
§ 139:6 | Ŧ Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim; elevado é, não o posso atingir. | |
§ 139:7 | Ꝓ Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde fugirei da tua presença? | |
§ 139:8 | ᶊ Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás também. | |
§ 139:9 | ᶊ Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, | |
§ 139:10 | ɑ ainda ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá. | |
§ 139:11 | ᶊ Se eu disser: Ocultem-me as trevas; torne-se em noite a luz que me circunda; | |
§ 139:12 | ɲ nem ainda as trevas são escuras para ti, mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa. | |
§ 139:13 | Ꝓ Pois tu formaste os meus rins; entreteceste-me no ventre de minha mãe. | |
§ 139:14 | ⱻ Eu te louvarei, porque de um modo tão admirável e maravilhoso fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. | |
§ 139:15 | Ꝋ Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado, e esmeradamente tecido nas profundezas da terra. | |
§ 139:16 | Ꝋ Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos os dias, sim, todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles. | |
§ 139:17 | ⱻ E quão preciosos me são, ó Deus, os teus pensamentos! Quão grande é a soma deles! | |
§ 139:18 | ᶊ Se eu os contasse, seriam mais numerosos do que a areia; quando acordo ainda estou contigo. | |
§ 139:19 | Ꝋ Oxalá que matasses o perverso, ó Deus, e que os homens sanguinários se apartassem de mim, | |
§ 139:20 | ɦ homens que se rebelam contra ti, e contra ti se levantam para o mal. | |
§ 139:21 | Ɲ Não odeio eu, ó Senhor, aqueles que te odeiam? e não me aflijo por causa dos que se levantam contra ti? | |
§ 139:22 | Ꝋ Odeio-os com ódio completo; tenho-os por inimigos. | |
§ 139:23 | ᶊ Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos; | |
§ 139:24 | ⱱ vê se há em mim algum caminho perverso, e guia-me pelo caminho eterno. | |
O SALMO 139 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | Meus co-irmãos, os senhores bispos1, e neles o próprio Senhor de todos, ordenaram-me que vos expusesse este salmo, na medida que Deus nos conceder este dom. Ajudem-me vossas orações, para que diga o que devo dizer, e escuteis como convém, a fim de que a palavra divina seja de utilidade para todos nós. Com efeito, ela não é útil para todos, porque a fé não é de todos (cf 2Ts 3,2). Na alma, a fé é qual raiz boa e esta dá fruto, com as chuvas. Ao invés, a perfídia, o erro diabólico, a cupidez, raiz má de todos os males (cf 1Tm 6,10), é qual raiz de espinheiro que produz galhos espinhentos mesmo com a chuva mais suave. | |
§ 2 | Acredito que enquanto se cantava o salmo notaste qual o seu conteúdo. O corpo de Cristo, cercado de malvados, queixa-se e geme, derramando diante de Deus as suas preces. Sua voz, em toda esta profecia, é a daquele pobre, isto é, necessitado, ainda não saciado, com fome e sede de justiça, ao qual é prometida certa saciedade, reservada para o fim do mundo (cf Mt 5,6). Neste ínterim, agora na terra tenha sede e fome, gema, bata à porta, procure. Não se deleite nos prazeres durante a peregrinação, não considere o mundo sua pátria, do qual a vinda de Cristo o libertará; porque Cristo é nossa Cabeça, Cabeça de um corpo. Não se pode falar em cabeça, onde não existe corpo ao qual pertença a cabeça. Portanto, se Cristo é Cabeça, é Cabeça de um corpo. O corpo desta Cabeça é a santa Igreja, da qual somos membros, se amamos nossa Cabeça. Ouçamos, então, as vozes do corpo de Cristo, isto é, nossas vozes, se estamos no corpo de Cristo; porque aquele que lá não se achar, pertence ao número daqueles que fazem o corpo gemer. Conseqüentemente, ou estás no corpo e gemes no meio dos maus; ou não estás no corpo, e serás dos que fazem o corpo gemer, porque ele geme no meio dos maus. Ou serás membro de Cristo, ou inimigo do corpo de Cristo. Estes inimigos e adversários do corpo de Cristo não se entendem de maneira unívoca, nem agem do mesmo modo. É versátil aquele que reina sobre eles, e que os emprega como instrumentos seus. Enfim, muitos se libertam dele, e passam para o corpo de Cristo. Quais são estes, e quantos haverão de ser, conhece-o somente aquele que os redimiu com seu sangue, sem que eles mesmos o soubessem. Com efeito, alguns haverão de persistir em sua malícia, e não pertencem ao corpo de Cristo; também eles são conhecidos daquele que nada ignora. Neste ínterim os que já estão incorporados a ele como seus membros, que ainda não gozam da futura ressurreição, quando terminará todo gemido e lhe sucederá o louvor, quando toda tribulação perecerá e haverá exultação sem fim, eles, portanto, que ainda não possuem tudo isso na realidade, mas já o têm em esperança, gemem por seus anelos, e pedem que sejam libertados dos homens malvados, no meio dos quais é necessário que vivam mesmo os bons; pois qualquer separação ainda não é segura. A separação cabe àquele que não pode errar. Que quer dizer: não pode errar? Não coloca o mau à direita, nem o bom à esquerda. A nós, porém, nesta vida é difícil conhecermos até a nós mesmos; quanto mais não devemos de outro proferir uma sentença improvisada? Pois, se hoje sabemos que alguém é mau, ignoramos o que será amanhã; e talvez aquele que odiamos intensamente, é nosso irmão e não o sabemos. Por isso, odiamos com segurança a malícia dos maus, e amamos a criatura; de tal sorte que amemos o que Deus criou e odiemos o que fez o homem. De fato, Deus criou o próprio homem, mas o homem fez o pecado. Ama o que Deus criou, odeia o que fez o homem; desta forma perseguirás o que o homem fez, a fim de se libertar o que Deus criou. | |
§ 3 | 1 “Para o fim. Salmo de Davi”. Não consideres outro fim senão o que foi estabelecido pelo Apóstolo: “Fim da lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Por conseguinte, ao ouvires de um salmo: “Para o fim, voltem-se os corações para Cristo. O título do salmo é o pregoeiro do salmo, parecendo dizer: Eis que ele virá. Por isso vou falar, hei de cantar a Cristo. Quanto a “Davi”, entendo aquele que nasceu da descendência de Davi, segundo a carne (cf Rm 1,3). Enfim, o nome lhe veio da estirpe. Raça carnal de Davi; raça espiritual acima de Davi. E não somente antes de Davi, mas anterior a Abraão (cf Jo 8,58); mas não somente anterior a Abraão, mas até antes de Adão; nem apenas antes de Adão, mas antes do céu e da terra, antes de todos os anjos, antes de todas as Potestades e Virtudes, antes de todos os seres visíveis e invisíveis. Por quê? Porque para que existissem, tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito (cf Jo 1,3). Por isso, uma vez que é da descendência de Davi, não segundo a divindade, pela qual é Criador do próprio Davi, mas segundo a carne, ele se dignou ser denominado Davi na profecia, considera o próprio fim, porque o salmo é cantado para “Davi”. Escuta a voz de seu corpo, e permanece em seu corpo. Torne-se tua a voz que ouviste, ora e repete o que segue. | |
§ 4 | 2 “Senhor, livra-me do homem malvado”, não de um só, mas de toda a série; nem apenas dos instrumentos, mas do próprio chefe, isto é, do próprio diabo. Por que “do homem”, se é do diabo? Porque ele aparece também na figura de homem, conforme foi dito: “Um homem inimigo é que fez isto. Veio e semeou o joio no meio do trigo”; e como os servos do pai de família dissessem: “Não semeaste boa semente? Como então está cheio de joio?” Ele respondeu: “Um homem inimigo é que fez isto” (Mt 13,27.28.25). Deste homem maligno reza, quanto puderes, para te livrares. Pois, teu “combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6,12), isto é, os dominadores dos pecadores. E isto, na verdade, nós o fomos; acabamos de ouvir a palavra do Apóstolo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Por conseguinte, transformados em luz, não em nós, mas no Senhor, oremos não somente contra as trevas, isto é, os pecadores, que ainda estão em poder do diabo, mas ainda contra o próprio príncipe deles, o diabo, que opera nos filhos da incredulidade. “Guarda-me do injusto. Homem malvado” aqui identifica-se com “injusto”. Chama-o de malvado, porque injusto, a fim de que não julgues que um injusto é bom. Pois, existem muitos injustos que parecem não prejudicar; não são cruéis, não são ásperos, não são perseguidores, nem oprimem os outros; contudo, são injustos de outro modo porque luxuriosos, ébrios, dados aos prazeres. Como não prejudica quem não se poupa a si mesmo? Inocente é o que não prejudica; mas não o que prejudica a si mesmo. E como pode não te prejudicar quem prejudica a si mesmo? Mas respondes: Em que me prejudica? Não invadiu o que é meu, não atacou minha saúde, nutre-se de sua lúxúria, deleita-se em seus prazeres; mas se tem prazeres impuros, mancha-se a si mesmo; que me importa se não me é molesto? Prejudica-te ao menos pelo mau exemplo, porque vive contigo e convida-te a praticar as mesmas ações. Se o vês prosperar no meio de sua impureza, és induzido a deleitar-te em tais ações? Mesmo que não consintas, ao menos tens o que combater. Como, então, não te prejudicaria, se tens trabalho para vencer o que ele fez a teu coração? É malvado, portanto, todo injusto, e necessariamente será prejudicial, quer seja brando, quer seja feroz. Quem nele tropeçar, quem for apanhado em seus laços, descobrirá como é prejudicial aquele que ele julgava inócuo. Com efeito, irmãos, também os espinheiros não espetam nas raízes. Tira os espinheiros da terra, esfrega suas raízes, e verifica se sentes dor. No entanto, o que te causa dor na superfície, procede daquela raiz. Por conseguinte não vos agradem os homens como se fossem afáveis e brandos, se são amantes das volúpias carnais e seguidores dos desejos impuros; não vos agradem. Embora pareçam mansos, são raízes de espinhos. Com tais ações, pela sensualidade, muitas vezes manifestam o que tinham; e como procuram recuperar o que derramaram? Acaso já evitam as rapinas e os pensamentos de fraudes, de procurar toda espécie de maldades? Logo descobres o malvado que antes consideravas inofensivo. Quando o vias embriagar-se, era bom; agora já o vês ladrão, e o temes. As raízes produziram espinhos. Quando sentias lisas as raízes do espinheiro, então se possível devias queimá-las para não brotarem os que agora te espetam. Por isso, meus irmãos, corpo de Cristo, ou membro de Cristo, que geme no meio destes malvados; todos aqueles que encontrardes inclinados aos maus prazeres e aos deleites perniciosos, reprendei-os, castigai-os, queimai-os. Queime-se a raiz, e não poderão brotar os espinhos. Se, porém, não o puderdes, ficai certos de que os tereis como inimigos. Podem calar, podem ocultar suas inimizades, não podem amar-vos. Mas, uma vez que não podem amar-vos, necessariamente os que vos odeiam procurarão fazer-nos mal; vossa língua e vosso coração não cessem de rogar a Deus: “Senhor, livra-me do homem malvado, guarda-me do injusto”. | |
§ 5 | 3 “Dos que tramam injustiças no coração”. E então? Não ousam proferir com a boca, e guardam no coração? Por isso o salmista refere-se aos que muitas vezes têm palavras boas nos lábios. Ouves a voz de um justo; mas o coração não é de um justo. Que adianta acrescentar: “Dos que tramam injustiças no coração?” Livra-me des-tes. Seja nisto poderosíssima tua mão para livrar-me. Pois é fácil evitar as inimizades declaradas; é fácil escapar do inimigo pronto e manifesto, cujas iniqüidades estão também nos lábios; é molesto, é oculto, é difícil de evitar aquele que tem palavras boas nos lábios, e ocul-ta o mal no coração: “Dos que tramam injustiças no coração, que provocam lutas todos os dias”. Que são essas “lutas?” Todos os dias estabelecem o que deve combater. Nas-ce de tais corações tudo aquilo contra o qual luta o cristão. Se é sedição, cisma, heresia, contradição turbulenta, isso não brota a não ser daqueles pensamentos que estavam encobertos; e mesmo quando os lábios proferem palavras boas, “provocam lutas todos os dias”. Ouves palavras pacatas, mas a guerra declarada não se afas-ta dos corações. Os termos: “todos os dias” indicam que isto acontece ininterruptamente, isto é, em qualquer tempo. | |
§ 6 | 4 “Aguçaram a língua qual serpente”. Se ainda procuras saber qual o homem, pondera a comparação. Na serpente encontra-se principalmente a astúcia e o dolo prejudicial; por isso também ela serpeia. Nem ao menos tem pés, para que se ouçam seus passos quando se aproxima. Ao avançar, arrasta-se suavemente, mas não em linha reta. Portanto, assim rasteiam e serpeiam para causar dano, ocultando o veneno, que inoculam sob leve contacto. Por isso continua o salmo: “Sob os lábios têm veneno de áspides”. Nota que está sob os lábios; uma coisa é estar sob os lábios e outra, nos lábios. Outra passagem o manifesta, nesses termos: “Falam de paz com o próximo, mas têm a malícia no coração” (Sl 27,3). | |
§ 7 | 5 “Guarda-me, Senhor, da mão do pecador; livra-me dos homens injustos”. São eles, são conhecidos. Não se trata de entender, mas de agir; necessitamos de orar e não de tentar saber quais são. Mas como orar contra tais homens, o versículo seguinte o denota. Pois muitos rezam contra os maus de forma indébita. Diz o salmo: “Que planejaram suplantar-me”. É possível uma interpretação material. Alguém possui um inimigo; planeja enganá-lo num negócio, e tirar-lhe dinheiro, que investiram juntos; outro tem um vizinho inimigo, e cogita fazer mal a sua casa, diminuir um pouco seus rendimentos; com efeito, planeja um dolo, planeja uma fraude, e quer consegui-lo com artifícios diabólicos; ninguém o recebe. Todavia, não é por isso que deves precaver-te, e sim para que não te atraiam para seu lado, por meio de insídias; isto é, não te separem do corpo de Cristo e te incorporem no deles. Pois, como Cristo é Cabeça dos bons, o diabo é a cabeça deles. “Que planejaram suplantar-me”. Que quer dizer: “suplantar-me?” Não quer dizer que não erres no negócio que tens com ele, e que ele não te engane na causa que tens com ele no foro. Ele suplanta, se te impedir de prosseguir no caminho de Deus, de tal modo que o desígnio reto que tencionaras realizar vacile, ou escorregue no caminho, ou caia no caminho, ou volte atrás do caminho, ou permaneça no caminho, ou retroceda para o lugar de onde partira. Todo aquele que te fizer uma de tais coisas, te suplantou, te enganou. Reza para superares tais insídias, a fim de não perderes o patrimônio celeste, não deixares de ser co-herdeiro de Cristo, porque hás de viver eternamente na companhia daquele que te fez herdeiro. Não te fez herdeiro de alguém que morre para que sejas seu sucessor, e sim com o qual hás de viver eternamente. | |
§ 8 | 6 “Os soberbos me esconderam as suas armadilhas”. Brevemente descreve todo o corpo do diabo, dizendo: “os soberbos”. Daí vem que eles muitas vezes se denominam justos, enquanto são iníquos. Daí provém que nada lhes é tão incômodo como confessar seus pecados. Sendo falsos justos, forçosamente invejam os verdadeiros. Pois ninguém inveja a outrem naquilo que não quer ser ou parecer. Alguém te inveja por seres rico; para te invejar, ou quer ser rico ou ser tido na conta de rico. Outro te inveja porque és ilustre e nobre; ou gostaria de sê-lo, ou ambiciona ser julgado tal. E assim acontece com tudo o que neste mundo parece ser bom, ou é julgado como um bem. És invejado naquilo que alguém ambiciona, em que deseja se destacar ou obter fama. Ora, estes falsos justos querem parecer justos, quando não o são; e forçosamente vendo-se na presença de verdadeiro justo, invejam-no, e procedem de maneira a tirar-lhe esse motivo de glória. Daí provêm todas as seduções e suplantações. Quem foi o primeiro a querer tal coisa foi o próprio diabo, que decaído invejou o homem que estava de pé; e tendo perdido o reino dos céus, não quis e não quer que o homem o alcance; e agora age de forma que o homem não chegue lá de onde ele mesmo foi expulso. Uma vez, portanto, que ele é soberbo, e invejoso porque soberbo, todo o seu corpo é constituído de soberbos invejosos. Quanto a nós, rezemos contra aquele que não se pode corrigir, e também pelos que podem, de sorte que digamos ao homem injusto: Por que invejas o justo, ó injusto? Porque ambicionas parecer justo? Faze logo o que é melhor, e mais facilmente conseguirás ser aquilo que queres parecer. Sê justo; assim amarás aquele a quem invejavas; o que te dói por ele ser assim, serás igualmente, e amar-te-ás nele e a ele em ti. Efetivamente, se invejares o rico, não está em teu poder tornar-te rico; se invejares um senador honesto e nobre, não está em teu poder seres nobre e ilustre; se invejares um homem belo, jamais conseguirás fazer-te belo. Se invejares ao forte e válido, jamais obterás para ti essa força. Mas, se invejares a um justo, é questão de vontade; torna-te o que te dói ver no outro. De fato, não terás de comprar o que não és e o outro é; obtém-se gratuitamente, rapidamente: “Paz na terra aos homens de boa vontade” (Lc 2,14). | |
§ 9 | Mas aqueles “soberbos me esconderam suas armadilhas”. Procuraram suplantar-me. E que fizeram? “Estenderam cordas como laços para meus pés”. Que cordas? Esta palavra é conhecida das Escrituras, e encontramos noutra passagem o que significam essas redes. O Senhor fez um flagelo de cordas para expulsar do templo os que ali agiam mal (cf Jo 2,15), e outro trecho das Escrituras indica-nos como entender essas cordas: “O ímpio é apanhado pelos laços do pecado” (Pr 5,22). E abertamente Isaías: “Ai dos que se apegam à iniqüidade, arrastando-a como uma corda longa”! (Is 5,18). Por que a denomina corda? Porque todo pecador que persevera em seus pecados, acumula-os. E quando devia pela acusação do pecado corrigir-se, duplica-o pela defesa o que podia apagar com a confissão, e muitas vezes quer proteger-se com outros pecados por causa daqueles que cometeu. Pratica um adultério e para não ser morto, premedita um homicídio; acrescenta pecado a pecado. Além disso, se lhe acontecer praticar o homicídio, ele que temia por causa de um crime, teme por dois. E assim, vendo-se com maior temor do que antes, não pensa diminuir o que fez, mas acumular o que ainda não fez; vai atrás talvez de um malefício. Eis com três pecados. Quem pensará em mais? Como acabar a corda dos pecados? E não é exata a expressão: rede? A rede aumenta pela torcedura; e não se colocam fios retos, mas tortos. A perversidade alonga-se e não cuida de cortar o que teceu errado e sim aumentar, produzir, esticar. No fim terá como ser ligada de mãos e pés e ser lançada nas trevas exteriores (cf Mt 22,13). Eles estendem diante dos justos esses seus pecados, quando tentam persuadi-los a praticar os crimes que eles mesmos cometem. Por isso diz o salmista: “Estenderam cordas como laços para meus pés”, isto é, quiseram derrubar-me com seus pecados; e onde? “Perto do caminho puseram-me um tropeço”. Não no caminho, mas “perto do caminho”. Teus caminhos são os preceitos de Deus. Eles colocaram tropeço perto do caminho; não te apartes do caminho, e não esbarrarás no tropeço. Não digas: Se Deus lhes proibisse colocar-me tropeços perto do caminho, não poriam. É o contrário. Deus permitiu que eles colocassem tropeços junto do caminho para que tu não deixes suas veredas. “Perto do caminho puseram-me um tropeço”. | |
§ 10 | 7 E que resta? Qual o remédio no meio de tantos males, nestas tentações, nestes perigos? “Disse ao Senhor: És o meu Deus”. Eles são homens e não são meus; tu és Deus, e és meu. “Disse ao Senhor: És o meu Deus”. Oração grandiosa! Induz à confiança. Mas, Deus não será deles? De quem não é Deus o Deus verdadeiro? Mas propriamente é Deus daqueles que dele fossem, que o servem, que de bom grado se submetem a ele. Com efeito, os maus, mesmo contra a vontade, estão-lhe sujeitos. Os bons invocam o Deus que os coroará; os que fogem da sujeição, por ele serão condenados. O iníquo que não quer ter o Senhor por seu Deus, para onde fugirá do Deus de todas as coisas? Seria bom para ele, portanto, converter-se para o Deus de todos, e fazê-lo seu Deus, através da conversão; aquele, porém, que a conversão fez dele o seu Deus, convivendo com tais pecadores, sedutores, hipócritas, soberbos, diga a Deus: “Disse ao Senhor: És o meu Deus. Ouve, Senhor, a voz da minha súplica”. É uma sentença simples, e fácil de se entender. Entretanto, talvez seja agradável pensar por que não disse o salmista: Ouve minha súplica; mas exprimindo de certo modo com maior clareza o afeto de sua alma, disse: “a voz de minha súplica”, a vida de minha súplica, a alma de minha súplica. Não o que soa em minhas palavras, mas o que vivifica minhas palavras. Pois, ruídos sem alma podem ser chamados sons, mas não vozes. A voz propriamente é dos seres animados, vivos. Quantos, porém, suplicam a Deus, e não percebem a Deus, não pensam de maneira correta sobre ele? Podem ter então o som da súplica, mas não a voz, porque não têm vida. Voz da súplica era de alguém que vivia, porque conhecia seu Deus, via quem o libertava, e percebia de que o libertava. | |
§ 11 | 8 Recomendando-a aos ouvidos de Deus, diga: “Senhor, Senhor”. Tu, “Senhor, Senhor”, isto é, tu, Senhor em toda verdade, não como os homens são senhores, não como os senhores que compram com dinheiro, e sim Senhor que compra com seu sangue. “Senhor, Senhor, força de minha salvação”, isto é, que dás forças à minha salvação. Que quer dizer: “força de minha salvação?” O salmista se queixava dos escândalos e das ciladas dos pecadores, dos homens que o cercavam ladrando e armando insídias, instrumentos do diabo, dos soberbos que invejavam os justos, entre os quais necessariamente vivemos, enquanto estamos em peregrinação. O Senhor predisse que viria tal abundância de escândalos: “Crescerá a iniqüidade, e pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará”. Mas logo acrescentou o consolo: “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,12). Percebeu-o o salmista e teve medo; perturbado com a abundância das iniqüidades, considerou a esperança, porque “aquele que perseverar até o fim, esse será salvo”. Empenhou-se em perseverar e viu como o caminho era longo. Visto que perseverar é coisa grandiosa e difícil, pediu a perfeição de sua perseverança àquele que lhe ordenou que perseverasse. Certamente serei salvo se perseverar até o fim; mas a perseverança pertence à virtude, para que mereça a salvação; tu és a força de minha salvação, tu me fazes perseverar para obter a salvação. “Senhor, Senhor, força de minha salvação”. Qual o motivo por que espero que sejas a força de minha salvação? “Protegeste-me a cabeça no dia do combate”. Eis que agora ainda combato: combato fora contra os que se fingem bons; combato dentro contra minhas concupiscências; “mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rm 7,23-25). Por conseguinte, lutando nesta guerra, olhou para a graça de Deus; já começara a sentir calor e a murchar, mas encontrou uma sombra, sob a qual viveria: “Protegeste-me a cabeça no dia do combate”, isto é, no calor ardente, para não me cansar, não murchar. 1 Portanto, o sermão foi pronunciado a pedido de alguns bispos. | |
§ 12 | 9 “Não me entregues, Senhor, segundo meu desejo, ao pecador”. Eis para que me valerá a tua sombra, a fim de não sofrer o ardor de mim mesmo. Que me faria aquele pecador, por mais que se enfurecesse? Com efeito, os iníquos se enfureceram contra os mártires; arrastaram-nos, ligaram-nos com cadeias, fecharam-nos nos cárceres, feriram-nos com a espada, lançaram-nos às feras, consumiram-nos no fogo. Tudo isso eles fizeram; mas Deus não os entregou aos pecadores, porque não foram entregues segundo seus desejos. Por isso, suplica-lhe, quanto puderes. Que Deus não te entregue, segundo teu desejo, ao pecador. Pois, tu, com teu desejo dás entrada ao diabo. Eis que o diabo te propôs um lucro e te incitou a uma fraude. Não podes alcançar o lucro se não cometeres esta fraude. Mas o lucro é uma isca, a fraude, um laço. Dá atenção à isca de tal sorte que vejas igualmente o laço, porque não podes obter o lucro se não cometeres fraude; mas se a cometeres, cairás no laço. Não digo que cairás, porque serás descoberto. Às vezes não serás descoberto, mas da parte dos homens; acaso não o serás por Deus? Serás apanhado, arrastado, morto. Todo o que pratica isto, mata-se a si mesmo. Lá está a isca, mas também lá está o laço. Freia o desejo, e não cairás no laço; se, porém, te vencer o desejo da isca, ele porá teu pescoço no laço, e o caçador das almas te apanhará. “Não me entregues, Senhor, segundo meu desejo, ao pecador”. Daí provém a sombra no dia do combate. Pois o desejo produz calor ardente; a sombra do Senhor tempera o desejo, a fim de podermos refrear e não sermos arrastados; não sentiremos tal ardor que sejamos jogados na armadilha. “Eles tramaram contra mim; não me desampares para que não se ensoberbeçam”. Encontra-se em outra passagem: “Exultarão meus opressores se eu ficar abalado” (Sl 12,5). Estes também são assim, porque assim é também o próprio diabo. Quando tiver seduzido o homem, alegra-se, triunfa sobre ele; ele se exalta porque foi humilhado o homem. Por que foi humilhado? Porque se exaltara malignamente; mas aquele que dele triunfa, será humilhado. Assim acontece a todos os que se alegram com o mal. Parecem por algum tempo gloriar-se, ensoberbecer-se, levantar a cabeça. Não vos agrade a exaltação deles. Têm na boca a isca e o anzol. O que os deleita os arrasta. “Não me desampares para que não se ensoberbeçam”, isto é, não triunfem por minha causa, não se alegrem por isso. | |
§ 13 | “O começo de seus circuitos, a fadiga de seus lábios os envolverá”. A mim, me protegerá a sombra de tuas asas. Protegeste-me no dia do combate. E a eles, o que protege? “O começo de seus circuitos”, isto é, a soberba. Que são “seus circuitos?” Eles rodam e não páram; giram em torno do erro, numa estrada sem fim. Quem vai ao longo da estrada, começa num ponto e termina em outro; quem gira, nunca chega ao fim. Esta a fadiga dos ímpios, demonstrada com maior evidência em outro salmo: “Os ímpios andam ao redor” (Sl 11,9). Mas o começo de seus circuitos é a soberba, porque a soberba é o início de todo pecado (cf Eclo 10,15). Como se sabe, porém que a soberba é “a fadiga de seus lábios?” Todo soberbo é fingido, todo fingido é mentiroso. Os homens lutam para falar a mentira; falariam com toda facilidade, se falassem a verdade. É um labor o fingimento ao falar. Pois, quem quer dizer a verdade, não faz esforço algum; a própria verdade fala sem labor. O salmista mostra o homem a pedir a Deus: Proteja-me tua sombra; aos outros proteja-os a sua mentira, mas a própria mentira é fadiga para seus lábios. “Eis que ele gerou a injustiça, concebeu o trabalho e deu à luz a iniqüidade” (Sl 7,15). Toda obra má acarreta fadiga, e toda obra mal concebida, tem a mentira como guia. Só existe verdade na obra boa. É por isso que todos se cansam com a mentira. Como clamou a verdade? “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso” (Mt 11,28). É a mesma voz que clama aos atribulados em outro salmo: “Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido? Por que amais a vaidade e procurais a mentira”? (Sl 4,3). Escuta de outra passagem mais claramente alusão à fadiga que traz a mentira: “Habituaram suas línguas à mentira, eles se cansam de agir mal” (Jr 9,4). “O começo de seus circuitos, a fadiga de seus lábios os envolverá”. | |
§ 14 | 11 “Choverão sobre eles carvões em brasa na terra, e os derrubarão”. Que é: “na terra?” Aqui, ainda nesta vida; aqui “sobre eles choverão carvões em brasa, e os derrubarão”. Quais são esses “carvões em brasa?” Já conhecemos estes carvões. Ou esses diferem daqueles dos quais vamos falar? Pois vejo que estes eqüivalem a um castigo; os outros, porém, a que vou me referir, são para salvação. Foi dito, efetivamente, de certos carvões, quando o sal-mista pedia auxílio contra uma língua dolosa: “Qual será a tua paga, o teu castigo, ó língua enganadora? Aguçadas setas de poderosos, com carvões devoradores” (Sl 119,9), isto é, as palavras de Deus que traspassam o coração, eliminam o velho homem, geram o amor; e são os exemplos dos homens que estavam mortos e reviveram, estavam negros e se tornaram brilhantes. Pois, os carvões representam as trevas; a cor o indica. Mas, ao se aproximar deles a chama da caridade, e ser apagados se acenderem, escutem a palavra do Apóstolo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Estes são, irmãos, os carvões que contemplamos, quando queremos mudar a vida por termos sido traspassados pelas setas de Deus, e impedem-nos as línguas más, das quais há pouco nos queixávamos; e querem seduzir-nos, afastando-nos do caminho da verdade, além disso induzir-nos a seus erros e dizer-nos que não cumpriremos o que prometermos. Olhamos esses carvões. O que ontem era ébrio, hoje é sóbrio; quem ontem era adúltero, hoje é casto; quem ontem era ladrão, hoje é doador; todos estes são carvões em brasa. Acrescentam-se os exemplos dos carvões aos das feridas ocasionadas pelas setas - não receio denominá-las feridas, uma vez que a esposa clama: “Estou ferida de amor” (Ct 2,5,sg. LXX) e realiza-se ali a devastação do feno; por isso são chamados carvões devastadores. O feno é devastado, mas o ouro é purificado. E o homem se transfere da morte à vida, e começa a ser também ele carvão ardente. Tal carvão era o Apóstolo, que primeiro foi perseguidor, blasfemo e injurioso (cf 1Tm 1,13), negro e extinto; tendo obtido misericórdia, foi aceso por um fogo vindo do céu; a voz de Cristo o acendeu. Sumiu dele todo negrume, e começou, pelo fervor do espírito que o inflamava, a acender os outros. Então aqui, devemos entender que se trata de tais carvões, que chovem sobre os maus e os derrubam? Certamente, não é proibido entender assim. Vejo aqui começar a luzir para nós uma sentença aceitável e irrepreensível; entendo que esses carvões caem sobre eles para derrubá-los. Sobre uns chovem para acendê-los; sobre outros, para derrubá-los. Pois, o próprio carvão dizia: “Para uns somos odor que da morte leva à morte; para outros, odor que da vida leva à vida” (2 Cor 2,16). Pois, eles vêem os justos, ardorosos de espírito, numa luz candente, e caem por invejá-los. Assim, chovem sobre eles carvões na terra, e são derrubados. Que quer dizer: “na terra?” Enquanto estão nesta vida; sem levar em consideração a pena que é reservada para os ímpios, esses carvões os derrubam, antes que venha o fogo eterno: “Choverão sobre eles carvões em brasa na terra e os derrubarão. Na desgraça não subsistirão”. Vem a desgraça sobre eles e não a toleram; o justo, porém, subsiste, como subsiste aquele que diz: “Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5). Ao invés, quando sobrevém aos ímpios alguma angústia, alguma infelicidade, não subsistem; caem. Pois, ao sofrerem tais tribulações, não conseguem tolerá-las, caem em péssimos pecados, porque são entregues segundo seu desejo ao pecador. | |
§ 15 | “O homem falador não trilhará bom caminho na terra”. O falador gosta da mentira. Que prazer tem senão falar? Não presta atenção ao que fala, contanto que fale. É impossível que trilhe bom caminho. Como deve então ser o servo de Deus, inflamado por aqueles carvões, e feito também ele carvão salutar? Como deve ser? Deve preferir ouvir a falar, conforme está escrito: “Seja cada um de vós pronto para ouvir, mas tardio para falar” (Tg 1,19); e se for possível, deseje não ter necessidade de falar, discursar e ensinar. Pois, eis o que afirmo a V. Caridade: meus irmãos agora vos falamos para vos ensinar; quanto melhor seria se todos nós soubéssemos tudo e nenhum ensinasse a outro, de sorte que não haveria um que falasse, outro que ouvisse, mas todos seríamos ouvintes só daquele ao qual se diz: “Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”? (Sl 50,10). Daí também deriva que João Batista não se alegrava tanto por pregar e falar, mas alegrava-se por ouvir; assim se exprime: “Mas o amigo do esposo, que está presente e o ouve, é tomado de alegria à voz do esposo” (Jo 3,29). Por isso, irmãos, logo direi a V. Caridade, como cada qual deve dar provas de si mesmo: não quero dizer que não fale, mas fale conforme o exija o dever de falar; tenha o gosto voluntário da taciturnidade, e a palavra de ensinamento segundo a necessidade. Pois, quando é necessária a palavra da doutrina? Quando tens de suportar um ignorante, quando suportas um indouto. Se sempre te agrada ensinar, sempre queres que haja um ignorante a quem ensines. Se, porém, és benévolo, e queres que todos sejam doutos, não queres que haja sempre a quem ensinar. O exercício ou a aprovação de teu ensino não virá de tua vontade, e sim da necessidade. Tua alegria esteja na audição da palavra de Deus, e a necessidade te leve a falar; e assim não serás falador, que não trilha bom caminho. Por que queres falar e não queres ouvir? Sempre pronto a sair, demoras a voltar para dentro. Teu mestre está no teu interior; quando ensinas, de certo modo sais ao encontro daqueles que estão do lado de fora. No interior, de fato, ouvimos a verdade, e falamos àqueles que estão fora de nosso coração. Quando se diz que temos no coração aquilo que pensamos, trata-se de determinada imagem, que disto temos impressa. Pois, se eles estivessem inteiramente dentro de nós, saberiam o que existe em nosso coração e assim seria desnecessário falar-lhes. Se, porém, te agrada o que fazes do lado de fora, acautela-te de inchar-te do lado de fora, sem poderes voltar pela porta estreita (cf Mt 7,17), e que não possa te dizer teu Deus: “Entra na alegria de teu Senhor” (Mt 25,21.23); mas te diga, porque estava fora de ti o que amaste: “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o fora, nas trevas exteriores” (Mt 22,13). Mostrou que é um mal ser lançado fora, também demonstrou que é bom entrar no interior. Pois, o que disse ao servo bom? “Entra na alegria de teu Senhor; ao mau servo, porém: “Lançai-o fora, nas trevas exteriores” (cf Mt 25,30). Por conseguinte, não prefiramos os bens exteriores, mas os interiores; alegremo-nos com os interiores; quanto aos exteriores, sigamos a necessidade, não a vontade. “O homem falador não trilhará bom caminho na terra”. | |
§ 16 | “Os males apanharão o injusto para sua perdição”. Os males advêm, e ele não subsiste; por isso disse o salmista: “Apanharão para sua perdição”. Sucedem males a muitos bons, a muitos justos; parece que os males vêm encontrá-los. Por isso, diz o salmo: “Apanharão”, porque todos querem se esconder do mal; mas quando alguém é alcançado por um mal, é uma espécie de caça. Porventura são apenas os maus que fogem dos males, quando estes vêm procurá-los? Não foi dito também aos bons: “Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra”? (Mt 10,23). Portanto, quando os maus perseguiam os bons, isto é, nossos mártires, prendendo-os, apanhavam-nos na caça, mas não para sua perdição. A carne era oprimida, a alma coroada; a alma foi lançada para fora do corpo, mas ao corpo nada se fez que posteriormente pudesse ainda prejudicá-lo. Seja queimada a carne, seja ferida, dilacerada; foi roubada ao Criador, porque foi entregue às mãos do perseguidor? Aquele que a criou quando não era, não restaurará melhor a que era? Por isso, todas as vezes que os justos foram aprisionados, os maus na verdade os apanharam, mas não para a perdição. Ao invés, aqueles que não trilham bom caminho, que são faladores, os males os apanharão para sua perdição. Por quê? Porque “na desgraça não subsistirão”. | |
§ 17 | 3 “Sei, porém, que o Senhor fará justiça ao necessitado”. Esse necessitado não é falador. Pois, quem é falador, quer ter fartura, não sabe ter fome. Mas, são necessitados aqueles aos quais se diz: “Batei e vos será aberto; buscai e achareis; pedi e vos será dado” (Mt 7,7). É necessitado aquele do qual se diz: ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). Gemem no meio dos escândalos dos maus, suplicam a sua Cabeça que os livre do homem malvado, que os guarde do maligno, que escapem das mãos dos injustos. Destes o Senhor não negligencia a causa; e se agora sofrem opressão, aparecerá a sua glória quando se manifestar a glória de sua Cabeça. A eles se diz aqui na terra: “Morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Portanto, somos pobres, e nossa vida está escondida. Clamemos por pão; existe um pão; existe um pão vivo que desceu do céu (cf Jo 6,41). Quem nos alimenta na caminhada, na pátria há de saciar-nos. Agora, pois, somos reconfortados para suportarmos; pois é forçoso que tenhamos fome até sermos saciados. “Sei que o Senhor fará justiça ao necessitado”. O salmista está seguro de “que o Senhor fará justiça ao necessitado e à causa do pobre”. O Senhor mostrará aos iníquos quanto ama seus justos; mostrará aos ricos quanto ama seus pobres. Ricos são os soberbos e pobres os humildes; ricos, os que não procuram porque têm em abundância; pobres, os que suspiram por desejo do que não têm. O Senhor fará justiça a sua causa. | |
§ 18 | “Mas os justos confessarão teu nome”. Confessarão teu nome, ao atenderes a causa deles, ao fazer-lhes justiça; nada atribuirão aos próprios méritos, e sim a tua misericórdia. “Mas os justos confessarão teu nome”. Confessarão teu nome, porque por mais justos que forem, nada assumem como seu, nada atribuem a si mesmos. Como é que tornam reto o coração? Voltando-se para si mesmos, eles torcem o coração; ao invés, voltando-se para o Senhor, tornam reto o coração. Onde estará o prazer, o repouso, a alegria, a felicidade? Porventura em si mesmos? Não; naquele que os transforma em luz. Diz o Apóstolo: “Mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Por isso, leva em consideração o modo de continuar e de concluir do salmo: “E os retos habitarão diante de tua face”. Iam mal ao olharem para a própria face; estarão bem diante de tua face. Amaram sua face e comeram o pão com o suor de seu rosto (cf Gn 3,19). Voltem, enxuguem o suor, termine o trabalho, cesse o gemido e virá para eles a tua face, com tudo que lhes baste. Nada mais procurarão, pois nada há de melhor; não te abandonarão doravante, nem serão desamparados por ti. Com efeito, que foi dito sobre o Senhor, após a ressurreição? “Encher-me-ás de alegria ante a tua face” (Sl 15,11). Longe de tua face, não existe alegria para nós. Limpamos a face, a fim de nos alegrarmos ante a sua face. Pois, “desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2), porque “os retos habitarão diante de tua face”. Imaginamos que será diante da face do Pai e não diante da face do Filho? Ou ante a face do Filho e não diante da face do Pai? Ou de certa maneira perante a face do Pai e do Filho e do Espírito Santo, que é uma só? Verifiquemos se não teria o próprio Filho nos prometido a visão de sua face para nos alegrar. Agora mesmo o Senhor Deus inspirou-nos a leitura do capítulo do evangelho que atesta o que se encontra neste salmo. Pois, afirmou o próprio Senhor: “Quem ouve meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama, será amado por meu Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,21). Qual o prêmio prometido, caríssimos? Por acaso não o viam os apóstolos a quem prometeu que se lhes manifestaria? Não estava diante deles? Sua face corporal não se oferecia a seus olhos? Que é que ainda queria mostrar aos que o viam? Mas os discípulos o viam tal qual aparecia ao ser crucificado pelos judeus. Pois, era Deus oculto sob aquela carne. Eles podiam como homens ver a sua humanidade, mas quanto a Deus não o podiam, apesar de ter a natureza humana. Uma vez que são “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8), apareceu na condição humana aos piedosos e aos ímpios; reservou a condição divina para os puros e piedosos, para que nele nos alegremos, e sermos felizes eternamente diante de sua face. | |